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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros FREITAS, CM. Debates - Subsídios para um debate sobre as inter-relações produção, consumo, saúde e meio ambiente. In: MINAYO, MCS., and MIRANDA, AC., orgs. Saúde e ambiente sustentável: estreitando nós [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2002, pp. 261-287. ISBN 978-85-7541- 366-1. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0. Parte IV - processos produtivos, consumo e degradação da saúde e do ambiente IV.3 – Debates - Subsídios para um debate sobre as inter-relações produção, consumo, saúde e meio ambiente Carlos Machado de Freitas

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Parte IV - processos produtivos, consumo e degradação da saúde e do ambiente

IV.3 – Debates - Subsídios para um debate sobre as inter-relações produção, consumo, saúde e meio ambiente

Carlos Machado de Freitas

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Debater os textos escritos por Raquel Rigotto – Produção e consumo,saúde e ambiente: em busca de pontes e caminhos – e Tânia Franco –Processos de produção e consumo e a degradação da saúde e do meioambiente —, que compõem o capítulo Relação entre Processos Produti-vos e de Consumo e Degradação da Saúde e Ambiente é, antes de tudo,um imenso prazer. Minha identificação com ambas deriva do fato de ter-mos em comum sempre procurar associar as questões relacionadas aosimpactos dos processos produtivos sobre a saúde dos trabalhadores e adegradação ambiental. Outra identificação é associarmos estes impactosao modelo de desenvolvimento industrial capitalista vigente, o que nosobriga a uma posição crítica, ainda que de modos diferenciados. Feitasestas considerações, procurarei trazer alguns elementos para o debate quesubsidiem avançarmos para a construção de algo como uma teoria críticasocial da saúde.

A partir da Revolução Industrial e, particularmente, ao longo do sé-culo XX, o crescimento e a expansão dos processos produtivos para trans-formação de energias e materiais para a produção de matérias-primas ebens de consumo tornaram-se gigantescos, possibilitando uma crescenteintegração econômica entre setores e países. Desde 1900, a populaçãomundial mais do que triplicou, a economia cresceu 20 vezes, o consumode combustíveis fósseis aumentou 30 vezes e a produção industrial 50vezes. Paralela a esse processo, ocorreu uma degradação ambiental e dasaúde que vem contribuindo, cada vez mais, para que problemas de polui-ção locais se convertam em regionais ou até mesmo globais, alterando,

Subsídios para um Debate sobre asInter-Relações Produção, Consumo,

Saúde e Meio Ambiente

Carlos Machado de Freitas

IV.3 Debates

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por vezes de modo irreversível, os sistemas ecológicos que são críticospara o desenvolvimento econômico e a própria vida. Para agravar estequadro, muitos países não conseguem atender necessidades básicas desua população. Aproximadamente 1,3 bilhão de pessoas não têm acesso aágua potável; 880 milhões de adultos são analfabetos; 770 milhões estãosem alimentação suficiente para uma vida ativa de trabalho; 800 milhõesvivem em pobreza absoluta (MacNeill et al., 1992).

Existem poucas dúvidas de que o padrão de produção e consumocontemporâneo gera conseqüências desastrosas para o meio ambiente(buraco na camada de ozônio, aquecimento global, chuvas ácidas, aciden-tes químicos e nucleares, destruição de ambientes locais) e que ocorremde modo desigual. Enquanto aproximadamente 20% da população mun-dial, situada particularmente em países da Europa Ocidental, Japão, Ca-nadá e EUA consomem cerca de 80% dos bens produzidos a nível global,resta aos outros 80% da população, distribuída pelo resto do planeta, oconsumo de apenas 20% dos bens (MacNeill et al., 1992). Entretanto, sãoexatamente os 80% da população do planeta que muitas vezes não têmsuas necessidades básicas atendidas, que vivenciam de modo mais graveas situações e eventos que implicam degradação ambiental e da saúde.

Se, por um lado, o crescimento e a expansão dos processos produti-vos e do consumo contribuíram para que a ampliação da interdependên-cia econômica fosse acompanhada de uma crescente interdependênciaecológica (MacNeill et al., 1992), não podemos deixar de também obser-var que estas interdependências, associadas ao processo de globalização,não só não excluíram a persistência das desigualdades socioespaciais, comoativamente contribuíram para aumentá-las (Sabroza & Leal, 1992).

A crise ecológica ocorre em paralelo à crise do acesso e distribuiçãodos bens, ambas inerentes ao modelo de desenvolvimento econômicovigente e aos padrões de produção e consumo estabelecidos. Como ob-serva Bauman (2000), se não forem colocados limites aos desejos de-senfreados de consumo, reintroduzindo a noção de finitude na agenda davida, e as sociedades não tentarem promover e defender a limitação cole-tiva, pouco se conseguirá. Medidas de redistribuição são fundamentais,porém, se forem dissociadas de transformações radicais nos modelos deprodução e padrões de consumo atuais, pouco adiantará, pois caso os80% da população mundial tivessem o mesmo padrão de consumo daspopulações situadas nos países ricos, a situação ambiental do planeta po-deria ser ainda mais grave.

Para agravar a situação, no quadro atual, podemos até considerarque, do ponto de vista das mudanças que seriam necessárias para uma

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profunda transformação do modelo de produção e padrões de consumo,de modo a garantir a solução da crise ecológica e do acesso e distribuiçãode bens e riquezas, vivemos um momento de retrocesso.

Alguns sinais desse retrocesso estão presentes em uma série de ques-tões atuais: a realização de uma “Rio + 10”, que se encontra bastanteenfraquecida e com uma série de pendências ainda na pauta; as crescentesações unilaterais dos EUA após a eleição de George Bush para presidentee os atentados de 11 de setembro, incluindo aí a recusa de aceitar as me-didas previstas no protocolo de Kioto, ratificado durante a administraçãode Bill Clinton; o abandono do tratado referente à redução de armasnucleares; as ações para tirar do comando de organismos internacionaisprofissionais que procurem ter uma posição mais independente e críticaem relação à atual política americana de defesa (o caso do diretor geral daOrganização Para Prescrição de Armas Químicas, o brasileiro José Busta-ni) e ambiental (o caso da saída do presidente do Painel Intergoverna-mental sobre Mudanças Climáticas da ONU, o climatologista americanoRobert Watson). A extensão do poder de instituições financeiras, como oFMI, que se encontra por trás da crise econômica, política e social queassola a Argentina, bem como da série de mudanças estruturais que vêmsendo impostas aos países da América Latina com o apoio e subserviên-cia das elites locais, de modo a tornar os investidores mais confiantes, taiscomo: redução do papel do Estado no controle e regulamentação dosnegócios; controle mais estrito dos gastos públicos, com redução dosinvestimentos em políticas sociais; redução dos impostos que afetam asgrandes corporações e aumento dos impostos dos cidadãos; reforma dosistema de proteção social; desmantelamento das normas que regem omercado de trabalho, como a CLT.

Todas essas questões se encontram associadas e refletem o cresci-mento e a ampliação do poder da esfera econômica – que é inerente aocapitalismo industrial –, particularmente através das instituições financei-ras e comerciais, que vêm se sobrepondo e impondo sua lógica para asoutras arenas sociais (incluindo saúde, segurança, meio ambiente, educa-ção, emprego, bem-estar social). Para o caso do Brasil, um exemplo dasobreposição e imposição desta lógica é o documento elaborado pelaSecretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da Repúblicado Brasil, em 1998, “Brasil 2020 – Cenários Exploratórios”. Este docu-mento foi elaborado no mesmo ano em que finalizava o governo do pre-sidente Fernando Henrique Cardoso e foi garantida sua reeleição. Apre-sentava três cenários futuros para o país, importantes de serem conside-rados para o debate em questão.

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O primeiro era o cenário Abatiapé, em que o Brasil se tornaria umapotência econômica sólida e modernizada, com o Estado investindo osrecursos públicos prioritariamente para a infra-estrutura econômica, maiorintegração econômica na América do Sul, avanços na modernização tec-nológica elevada e nichos de competitividade, com uma estrutura produ-tiva diversificada e maior participação do setor terciário e declínio da agri-cultura, contribuindo para aumentos no comércio exterior (cerca de US$720 bilhões1), no PIB total (US$ 3.360 bilhões) e per capita (US$ 17.000).Neste cenário, persistiria a concentração espacial da economia, a má dis-tribuição de renda, com taxas de desemprego em torno de 6,5% e depopulação em situação de pobreza em torno de 7%, desequilíbrios nonível de qualidade de vida e nos indicadores sociais, persistência dos pro-blemas de degradação ambiental e de violência urbana.

O segundo cenário, Baboré, envolveria a redução dos desequilíbriossociais, com o Estado investindo os recursos públicos prioritariamentepara a infra-estrutura social e para a distribuição de renda, transferindopara o setor privado a responsabilidade pelos investimentos no setor pro-dutivo. Neste cenário haveria redução do índice de desemprego (em tor-no de 5%) e da pobreza (afetando pouco mais de 4% da população),resultando em melhoria dos indicadores sociais e de qualidade de vida. OPIB total se situaria em torno de US$ 2.330 bilhões e o per capita em tornode US$ 11.800. Do ponto de vista ambiental, haveria uma ampliação defontes alternativas de energia, gerando oferta mais diversificada, bem comouma gestão ambiental mais adequada e com redução da degradação am-biental. Do ponto de vista econômico, haveria uma lenta modernizaçãotecnológica, moderada diversificação da produção, redução do influxo decapitais externos e uma ampliação moderada do comércio exterior (emtorno de US$ 400 bilhões), com aumento da vulnerabilidade do país aoquadro externo.

O terceiro cenário, o Caaetê, seria o de uma economia estagnada,havendo instabilidade e desorganização político-institucional e os recur-sos públicos sendo investidos de forma pulverizada. Não vamos nos de-ter neste cenário, bastando apenas pontuar que implicaria a conjunção detodas as perdas que podem ser encontradas nos dois cenários anteriores.

Resguardados os limites das previsões do futuro, a questão que im-porta destacar no documento da SAE (1998) é o enunciado subjacente,pois, mantido sem críticas, certamente contribuirá para que se realize ocenário que considera mais adequado e que para nós significa caminhar

1 Os valores referem-se às contas nacionais do ano base de 1997.

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para fortalecer a sobreposição e imposição da esfera econômica e finan-ceira sobre todas as outras arenas sociais, dentro da lógica de mercadoque caracteriza o avanço neoliberal, representando um retrocesso do pontode vista das conquistas sociais e ambientais. Este enunciado nos faz crerque uma maior integração econômica no cenário global, capaz de tornaro país uma ‘potência sólida’ menos vulnerável às variações econômicasexternas, ainda que considere a necessária integração ecológica, implicarápesados custos sociais e ambientais, mantendo e acentuando as desigual-dades socioespaciais vigentes e associadas ao processo de globalização.

Sendo assim, embora o cenário Baboré seja o mais desejável, do pontode vista de redução da degradação ambiental e da saúde, acabaria, ao con-trário do cenário Abatiapé, por tornar o país mais vulnerável ao quadroeconômico e financeiro externo e, por conseguinte, ao potencial de futu-ros e graves problemas sociais e ambientais. Do ponto de vista do papeldo Estado, tanto na prática em curso, como no discurso que a legitima, oque é vislumbrado no cenário Abatiapé é uma privatização do seu papel edos recursos públicos, de modo que garanta o fortalecimento do modeloeconômico vigente, mantendo e aumentando os padrões de produção econsumo e, ao mesmo tempo, garantindo o lucro de poucos ao custo dadegradação ambiental e da saúde da maioria.

Este enunciado subjacente se encontra em consonância com os dis-cursos e as práticas neoliberais, empenhados, entre tantas coisas, em des-truir as estruturas coletivas que permitam impor limites aos desejos de-senfreados de consumo e resistir à lógica do mercado como referênciapara todas as esferas de nossa vida, inclusive para as questões ambientaise de saúde, transformando cidadãos em consumidores. Ao crescimento eampliação do poder global das forças econômicas (capital, finanças e co-mércio) e do nível de institucionalização alcançado pelas mesmas, como aOMC, o FMI e o Banco Mundial, o que assistimos é uma limitação oumesmo enfraquecimento das forças políticas e instituições que poderiamtomar posição contra os impactos ambientais e à saúde provocados pelaliberdade do capital e da movimentação financeira.

Os instrumentos de controle e influência do cidadão, por mais po-derosos que sejam, além de não possuírem o mesmo nível de poder eintitucionalização, continuam, grosso modo, limitados ao nível local. Estaassimetria na relação de poder entre as instituições econômicas e finan-ceiras globais e as instituições responsáveis pelas outras arenas sociais(saúde, segurança, meio ambiente etc.) e situadas no nível mais local, vemsendo possibilitada não só pela privatização do Estado e dos espaçospúblicos, mas também pelo enfraquecimento das estruturas e ações cole-

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tivas por intermédio da privatização dos meios de garantir\assegurar\firmar a liberdade individual, transformando as questões de saúde e am-biente em problemas individuais e sintonizados com a lógica do mercado(Bauman, 2000).

Dois processos simultâneos têm contribuído para a privatização dasliberdades individuais, transformando cidadãos em consumidores, dimi-nuindo, assim, o poder de crítica e transformação global da sociedade. Oprimeiro envolve precarizar os trabalhadores envolvidos nos processosprodutivos até incapacitá-los como potenciais atores da resistência. Istoenvolve elevadas taxas de desemprego como problema estrutural, substi-tuição de contratos permanentes e legalmente protegidos por empregosou serviços temporários que permitam a demissão sumária, contratosrotativos e permanentes avaliações de desempenho, tornando a remune-ração cada vez mais dependente de resultados obtidos a cada momento,induzindo, assim, a competição entre setores, departamentos e trabalha-dores da mesma empresa (Bauman, 2000). O segundo envolve estimulardesejos e expectativas, orientados para a sociedade de consumo, adicio-nando sempre às novas mercadorias em oferta o valor acrescido da dis-tinção que promete conferir status social para consumidores. Desde que oconsumo de produtos e serviços se transformou em base estrutural dassociedades industriais, acompanhado de um processo de internacionali-zação da economia, a integração social e a formação de identidades émediada pela sedução do mercado que caracteriza o consumismo dassociedades contemporâneas (Macnaghten & Urry, 1998; Bauman, 2000).

Dentro deste quadro, o desemprego e a precarização do trabalho sãoestruturais, de modo a garantir que sempre haja novos pobres e despos-suídos, que falharam em garantir\assegurar\firmar a sua liberdade indivi-dual, tornando-se, na expressão de Bauman (2000), ‘consumidores falha-dos’. Sendo assim, o direito universal ao emprego e à renda mínima, pre-sentes no documento da SAE (1998), em cenários como o Baboré, o queenvolveria a redução dos desequilíbrios sociais, com o Estado investin-do os recursos públicos prioritariamente para a infra-estrutura social epara a distribuição de renda, contribuindo para uma redução da degra-dação ambiental e da saúde, é incompatível com o discurso e a lógicaneoliberal vigente e, em uma lógica estrita de mercado global, significatornar o país fraco e vulnerável. Incompatível porque significa deixarde transformar o ingresso no mercado para garantir o acesso e o consu-mo de mercadorias como uma necessidade existencial, como únicamaneira de continuar vivo, como a única forma de se tornar ‘cidadão’,demonstrando permanentemente para os incluídos o exército de exclu-

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ídos à espera de um lugar, viabilizando assim a precarização e flexibiliza-ção do trabalho (Bauman, 2000).

O grave nisso tudo é que a lógica de mercado que sustenta e acentuaos padrões atuais de consumo, com trabalhadores precarizados, espaçose recursos públicos privatizados e cidadãos transformados em consumi-dores, não só resulta em degradação ambiental e da saúde, afetando prin-cipalmente as populações dos países mais pobres, mas acaba por trans-formar a vida e o ambiente em meros artefatos de consumo, de sustenta-ção do modelo econômico vigente. E aí nos defrontamos com um para-doxo, pois, se por um lado, o crescimento e a ampliação dos padrões deprodução e consumo contribuíram para gerar os movimentos sociais crí-ticos à degradação ambiental, por outro, reforçam uma certa espécie deconsumismo, em que os indivíduos desenvolvem não somente a obriga-ção de consumir, mas, também, certos direitos, incluindo o de consumi-dores de ar, águas, alimentos e paisagens que possuam certa qualidade.Isto implica uma mudança nas bases da cidadania, dos direitos políticospara os direitos do consumidor, de modo que se tornam significantesconcepções de direitos ambientais relacionadas a concepções de naturezacomo fornecedora de produtos (água, ar, alimentos etc.) e serviços (espa-ços para lazer) (Macnaghten & Urry, 1998). Nas palavras de Bauman(2000), isso implica que mesmo movimentos sociais que tentam atacar asquestões públicas nascidas das tendências globais, como o movimentoambientalista, não só constatam que é extremamente difícil romper ocírculo da desregulamentação global e frear os efeitos repulsivos da mes-ma. Muitas vezes, também, acabam por caminhar para uma política de‘no meu quintal não’, tentando evitar que nos territórios em que vivem,lhes reste, como afirma em outro texto, “a tarefa de lamber as feridas,de consertar o dano e se livrar do lixo” resultantes das decisões toma-das nos centros extraterritoriais de decisões e cálculos financeiros (Bau-man, 1998: 17). Isto acaba por minar a solidariedade global que poderiae deveria reforçar.

Tal paradoxo se manifesta mesmo no âmbito da Saúde Pública. Porum lado, a Nova Saúde Pública (NSP), principalmente a partir das redefi-nições sociais, políticas e culturais derivadas das críticas e intervençõesprovenientes dos denominados novos movimentos sociais, tais como omovimento ambiental, representa uma institucionalização de possíveistomadas de posições contra os impactos ambientais e à saúde provoca-dos pelos padrões de produção e consumo atuais, bem como pela liber-dade do capital e da movimentação financeira. Por outro lado, encontra-se em total consonância com os valores e princípios neoliberais. Ao mes-

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mo tempo em que vem adotando práticas de redução dos custos de fi-nanciamento do setor e tomadas de decisões baseadas em critérios decusto-benefício, com participação ativa de instituições financeiras comoFMI e Banco Mundial, também vem incluindo no discurso sobre suas po-líticas e estratégias, através do movimento da Promoção da Saúde, espinhadorsal da NSP, questões como políticas públicas saudáveis, a criação deambientes favoráveis à saúde, o incremento do poder técnico e político dascomunidades nos processos decisórios para se alcançar melhores níveis desaúde e o desenvolvimento de habilidades e atitudes pessoais.

Sem apontar para a necessidade de profundas transformações nalógica econômica dos modelos de produção e padrões de consumo vi-gentes, a NSP vem reforçando o individualismo consumista, chamando-nos a desempenhar nossa parte na criação de um ambiente mais saudávele ecologicamente sustentável através de mudanças nos nossos estilos devida e envolvimento em vários projetos coletivos e colaborativos (Peter-sen & Lupton, 1996), transformando os problemas ambientais e de saú-de em problemas de foro individual (Sabroza & Leal, 1992).

As questões apontadas nos parágrafos anteriores exigem dos profis-sionais no campo da Saúde Coletiva aprofundar o debate sobre as rela-ções entre produção e consumo, saúde e meio ambiente, rumo à constru-ção de uma teoria crítica social da saúde que nos permita articular e pro-por transformações aos inúmeros desafios que se colocam, tanto no ní-vel macro, como no nível micro.

No nível macro, tendo Raquel Rigotto como referência, uma questãoque se coloca e nos obriga a pensar não só o papel, mas as possibilidades eos limites do Estado no contexto atual é: como Estados cada vez maisenfraquecidos e reféns dos poderes financeiros e comerciais globais serãocapazes de reduzir e eliminar padrões insustentáveis de produção e consu-mo, já que, ao contrário, vêm contribuindo para ampliá-los ou mantê-los?

No nível micro, tendo Tânia Franco como referência, a questão quese coloca e nos obriga a pensar acerca das possibilidades e liberdadesindividuais é: como poderão ocorrer transformações na individualidade,de modo a se respeitar o espaço natural e o tempo histórico se o queassistimos de modo agressivo e contínuo é a transformação dos indiví-duos em consumidores, cada vez mais destituídos da cidadania e das pos-sibilidades de estruturas e ações coletivas capazes de colocar limites aospadrões de consumo atuais e reintroduzir a noção de finitude dos recur-sos, do planeta e da própria vida? São questões que não exigem respostasimediatas, mas exigem um intenso debate e reflexão, de modo a orientaras ações e os discursos no campo da Saúde Coletiva em direção às neces-

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sárias transformações sociais, políticas, econômicas, culturais, éticas e mo-rais para que possamos construir uma sociedade em que os padrões deprodução e consumo sejam orientados para o bem-estar global, para aredução e o fim da degradação ambiental e da saúde.

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Referências Bilbiográficas

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BAUMAN, Z. Em Busca da Política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

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PETERSEN, A. & LUPTON, D. The New Public Health: health and self in theage of risk. Londres: Sage Publications, 1996.

SABROZA, P. C. & LEAL, M. C. Saúde, ambiente e desenvolvimento. Algunsconceitos fundamentais. In: LEAL, M. C. et al. (Orgs.). Saúde, Ambientee Desenvolvimento – Uma análise interdisciplinar. Rio de Janeiro/São Paulo:Hucitec/Abrasco, 1992.

SECRETARIA DE ASSUNTOS ESTRATÉGICOS (SAE). Brasil 2020:cenários exploratórios. Brasília: SAE, 1998.

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Produção e Consumo, Saúde e Ambiente:o papel do SUS e algumas lições

aprendidas da saúde do trabalhador

Elizabeth Costa Dias

Os textos preparados pela Profa. Raquel Maria Rigotto e pela Dra. TâniaFranco sobre as relações entre os processos produtivos e de consumo e adegradação da saúde dos grupos humanos e do ambiente são importantecontribuição para o debate do tema que, felizmente, vem tomando corpona sociedade.

Vivemos um momento particular na história humana, marcado pelaagudização da crise do modelo civilizatório adotado no mundo ocidentalnos últimos 200 anos e globalizado de modo acelerado a partir da últimadécada do século XX. Multiplicam-se as manifestações de situações-limi-te de deterioração da qualidade de vida e da saúde das pessoas, dos traba-lhadores de modo particular e de degradação ambiental. O esgotamentoe a extinção de recursos naturais, as perdas na biodiversidade, as manifes-tações de violência que explodem na sociedade sob distintas formas, en-tre outras conseqüências, interferem na qualidade de vida e colocam emrisco a própria sobrevivência da espécie humana. Paradoxalmente, a abun-dância do supérfluo proporciona bem-estar a pequenos grupos, com umasofisticação inimaginável nos mais fantásticos exercícios futuristas.

Neste cenário de conflito, as autoras destacam a produção e distri-buição desigual do risco de degradação dos recursos ambientais e da saú-de humana que, segundo Lieber & Romano-Lieber (2002), são insepará-veis da produção e distribuição da riqueza.

Sobre a estratificação socioespacial dos riscos no Brasil, a Profa.Raquel afirma que as dimensões econômica, social, política, técnica e cul-tural tecem uma teia complexa e, de modo articulado, ‘geram, nomeiam,localizam, classificam, negociam, regulam, controlam, eliminam ou po-tencializam’ os riscos e danos para a saúde e o ambiente.

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Também o enfoque da produção e distribuição dos riscos geradosnos processos produtivos e a abordagem das relações entre os padrões deprodução-consumo, ambiente e saúde é considerada por Porto (2000:6)como “um importante instrumento para a democratização dos locais detrabalho e da própria sociedade, pois coloca a discussão quem, como ecom que critérios são definidos os riscos para a vida dos trabalhadores,das pessoas em geral e do meio ambiente”.

A urgência desse debate se instala diante dos episódios denunciados,cotidianamente, pela mídia. Cubatão, Paulínia, Bauru, Bahia da Guanaba-ra, Cidade dos Meninos, Nova Lima são só alguns exemplos noticiadosem uma mesma dada semana. São catástrofes ambientais geradas nosprocessos produtivos que, além de causar danos à saúde dos trabalhado-res, atingem as populações vizinhas e o ambiente, às vezes distantes geo-gráfica e temporalmente, pela ruptura dos ‘muros’ das fábricas e dos limi-tes das unidades de produção.

A consciência de que é preciso agir, e rápido, para garantir nossopresente/futuro comum se espalha nas sociedades por distintos meios eformas. O local e o global se entrelaçam criando possibilidades de açõespositivas e a vivência de um ‘outro lado’ da globalização.

Entre outras reflexões, a leitura dos textos preparados pela Dra. Ra-quel e pela Dra. Tânia evocou a trajetória do ‘movimento da Saúde doTrabalhador’, que tomou corpo no Brasil nos anos 80, no bojo do pro-cesso sociopolítico de reconstrução democrática do país, ao final da dita-dura militar.

Assim, como contribuição ao debate, gostaria de apresentar uma per-cepção do aprendizado coletivo ensejado pelo processo de instituição docampo da Saúde do Trabalhador no espaço da Saúde Pública, nos últimos25 anos, destacando as ações de Saúde do Trabalhador no Sistema Únicode Saúde (SUS), considerando que pode ser útil na construção de alterna-tivas e formas de lidar com esse desafio.

À primeira vista, essas idéias podem parecer meio fora de foco. Mas,acreditando que, no mundo real, o macro contém o micro, o micro espe-lha o macro; que no ‘velho’, no já acontecido estão as sementes do ‘novo’e que as grandes mudanças são construídas nos microespaços do cotidi-ano, ouso comentá-las a seguir.

Em ambos os textos, as autoras destacam a centralidade dos proces-sos de trabalho e dos padrões de consumo para a vida social no modo deprodução capitalista, sendo estes responsáveis pela qualidade da vida, ascondições de saúde e doença dos trabalhadores, da população e do ambi-

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ente. A mesma compreensão do mundo orientou a instituição do movi-mento da Saúde do Trabalhador nos anos 80. É certo que, naquela época,a questão dos padrões de consumo ainda não era tão valorizada. Porém,recordo a pergunta formulada pelo Dr. Herval Pina Ribeiro, ao apresen-tar o filme “O pó nosso de cada dia”, que retratava as condições de traba-lho e de saúde dos ceramistas em Jundiaí, São Paulo: “Por que produzirestas peças, com um custo tão alto para a saúde dos trabalhadores? Aquem se destinam?”.

Na sua estruturação, o movimento da Saúde do Trabalhador ‘bebeuem várias fontes’: adotou o modelo explicativo do processo saúde/doen-ça, proposto pela corrente latino-americana da Epidemiologia Social; so-mou fileiras na discussão da reforma sanitária; estabeleceu parcerias como movimento sindical engajado no ‘novo sindicalismo’; adaptou instru-mentos e metodologias de estudo das condições de trabalho utilizadospela Saúde Ocupacional. Reunia técnicos da rede pública de serviços desaúde, agentes da fiscalização do Trabalho, profissionais da PrevidênciaSocial, das universidades, lideranças sindicais e de organizações sociais etrabalhadores, buscando conhecer as relações entre trabalho e saúde, des-velar suas conseqüências negativas traduzidas em um perfil diferenciadode adoecimento e morte dos trabalhadores e construir formas de inter-venção, visando à melhoria das condições de trabalho e de vida.

A criação de Programas e Centros de Referência em Saúde do Tra-balhador na rede de serviços de saúde possibilitou o desenvolvimento deuma atenção diferenciada aos trabalhadores, considerando sua inserçãonos processo de trabalho. A busca de uma atenção integral, com açõescurativas e preventivas, obedecia ao princípio de que não é eticamenteadmissível, nem tecnicamente correto atender e tratar um trabalhadordoente ou acidentado do trabalho, sem tentar mudar as condições gera-doras do problema, de modo a evitar sua repetição. Apesar das dificulda-des, procurou-se desenvolver ações multidisciplinares, interinstitucionais,com setores do Ministério do Trabalho e da Previdência Social responsá-veis por essas questões. Foram privilegiadas alternativas de atenção à saú-de com os trabalhadores, baseado no entendimento de que são eles quemmelhor conhecem as conseqüências do trabalho sobre a saúde e que, or-ganizados, podem mudar as condições geradoras de doença.

Desse relato sintético é possível estabelecer um paralelo entre as atu-ações do movimento da saúde do trabalhador e as observações daDra.Tânia, quando ressalta a necessidade de abordagens sistêmicas e in-terdisciplinares, estabelecendo canais de convergência de campos cientí-ficos até então autônomos, de busca de olhares interdisciplinares e canais

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de diálogo para construção de categorias mediadoras entre o indivíduo ea sociedade, o social e o biológico, para lidar com as relações entre osprocessos de produção e consumo e a degradação da saúde e do meioambiente. A autora também destaca a participação dos trabalhadores e daincorporação das categorias tradicionais das ciências sociais para estudare desenvolver ações de mudança das condições de trabalho.

Entre os frutos desse processo histórico temos hoje, ainda quede modo incompleto, a instituição do campo da Saúde do Trabalha-dor: a saúde inscrita como direito dos trabalhadores na ConstituiçãoFederal de 1988, e atribuição explícita do SUS, regulamentada pelaLei Orgânica da Saúde, no 8.080, de 1990. No âmbito do Sistema deSaúde – em nível federal, estadual e municipal –, arranjos institucio-nais, os Códigos de Saúde, normas e portarias específicas têm busca-do ‘fazer acontecer’ essas conquistas.

Mas, enquanto ainda comemorávamos esses avanços possíveis, oprocesso de reestruturação produtiva e globalização dos mercados intro-duziu mudanças radicais no ‘mundo do trabalho’. A incorporação maciçade tecnologias nos processos produtivos e as novas formas de gestão dotrabalho têm conseqüências importantes para a saúde dos trabalhadores eo ambiente, afetando significativamente a qualidade de vida da população.Postos de trabalho são extintos ou modificados, acarretando o desempregoreal ou disfarçado na ‘precarização’ do trabalho. Um número cada vez maiorde trabalhadores é excluído ou deslocado para o mercado de trabalho in-formal, que hoje absorve cerca de 50% da População EconomicamenteAtiva (PEA) no país. Mudam as regras dos contratos de trabalho e de pro-teção dos trabalhadores e as atenções do movimento sindical são absorvi-das pelo esforço de manter postos de trabalho a qualquer custo.

As mudanças beneficiam, se assim se pode chamar, parcelas míni-mas de trabalhadores. A grande maioria convive com novos riscos para asaúde decorrentes da intensificação do trabalho, que se refletem sobre oaparelho psíquico; com a violência crescente nos ambientes e entornosde trabalho, no trânsito e nos locais de moradia. Aumentam a incidênciae a prevalência das doenças degenerativas relacionadas ao trabalho como,por exemplo, a hipertensão arterial e as doenças osteo musculares (Dort/LER), que ocupam a liderança entre as doenças ocupacionais notificadas.Sem falar do que não conhecemos ou que os meios diagnósticos disponí-veis não conseguem identificar.

As doenças profissionais clássicas, entre elas, a silicose, a intoxicaçãopor chumbo, pelos agrotóxicos e outros venenos permanecem, configu-rando um quadro combinado de morbi-mortalidade ‘tradicional–moder-

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no’, como destaca a Dra. Tânia no seu texto. Porém, segundo a autora,agrega-se uma dimensão nova: a expansão da capacidade produtiva, emescalas até então desconhecidas pela humanidade, demanda e utiliza vo-lumes crescentes de recursos naturais (água, matérias primas, insumos),cria recursos sintéticos, produz novas substâncias, principalmente, na in-dústria química e petroquímica, cujo uso e resíduos colocam em risco avida e a saúde humana e o ambiente.

Nesse cenário, as transformações ocorridas no interior do Estadobrasileiro, que não chegou a se consolidar como um Estado de Bem-Estar Social, tentam adequá-lo ao figurino estabelecido pelo modelo neo-liberal, por meio da privatização de setores e atividades produtivas; o re-forço ou criação da capacidade regulatória e ampliação da governabilida-de em áreas consideradas estratégicas, repercutindo, diretamente, sobreos processos de formulação e implementação de políticas na área da saú-de, saúde do trabalhador e ambiente (Buss, 1999). A Dra. Raquel Rigottochama a atenção para o fato de que, na política liberal do ‘Estado Míni-mo’, os países são conduzidos a reduzir os gastos com políticas públicas,privatizar serviços, enxugar quadros de servidores, comprometendo seri-amente o desempenho do papel mediador e fiscalizador do Estado.

Os organismos financeiros internacionais impõem a busca do equi-líbrio fiscal, responsabilizando a seguridade social pelo déficit e apresen-tando-a como uma fonte potencial de recursos e poupança nacional epressionam na direção das reformas. Entretanto, essa proposta de refor-ma, orientada pela diretriz do enxugamento, se opõe à prescrição de queo Estado desempenhe um papel-chave na compensação dos custos so-ciais do ajuste estrutural, sobretudo entre os grupos mais afetados ouexcluídos. Assim, são estimulados programas existentes, e implementa-dos novos, justificados por razões humanitárias e de eqüidade, para asse-gurar a estabilidade política, o apoio ou menor resistência necessária paraas reformas econômicas, no período de transição.

É neste cenário que nossas atenções se voltam para o SUS. É aosistema de saúde que as pessoas, geralmente, recorrem quando adoecemem decorrência dos riscos presentes no ambiente, gerados nos processosde trabalho ou pela exploração predatória dos recursos naturais. Assim,não estamos falando de algo que pode vir a acontecer, mas que já estápresente no cotidiano dos serviços de saúde que, lamentavelmente, nãoestão preparados nem equipados para lidar com a assistência aos doentese a vigilância dos fatores de risco, resultantes das relações produção-con-sumo, trabalho e ambiente.

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De acordo com as informações disponíveis, dos 174 milhões de bra-sileiros, apenas 39 milhões estão cobertos por Planos de Saúde. O restan-te da população, ou seja, 135 milhões de pessoas contam apenas com osrecursos do SUS que, apesar das inúmeras dificuldades que enfrenta parase manter fiel aos princípios constitucionais que o norteiam, representaum patrimônio social que não pode ser perdido. Além disso, o SUS repre-senta a única possibilidade de se prover ações de saúde especializadaspara os trabalhadores do crescente setor informal de trabalho.

As atribuições do SUS quanto à saúde dos trabalhadores e à prote-ção do meio ambiente – nele compreendidos o trabalho e a vigilânciasanitária – são claras, amplas e estão detalhadas nos artigos 5o e 6o daLOS. Assim, não se trata de algo novo para o SUS. O desafio é agregarqualidade às ações desenvolvidas, reconhecendo as relações produção-consumo, saúde-doença e danos ambientais, para agir sobre ou ‘vigiar’ osdeterminantes, ou seja, os processos de trabalho geradores ou agravantesdos problemas, e prover uma assistência integral à população.

Assim, este exercício busca relacionar as questões de saúde e doençados trabalhadores e da população em geral, a degradação ambiental e aperda da biodiversidade com sua origem comum nos processos produti-vos. Destaca as responsabilidades e as possibilidades de atuação do Siste-ma Único de Saúde (SUS) sobre esses problemas, particularmente na aten-ção básica à saúde. Pretende ser otimista, mas não ingênuo, ao identificarelementos facilitadores e destacar as lições aprendidas do movimento daSaúde do Trabalhador e da experiência dos Programas e Centros de Refe-rência na rede de serviços, que podem auxiliar o desenvolvimento deações transformadoras dessa realidade.

Também se acredita que a ampliação do enfoque dos problemas, doexclusivamente ocupacional para o ocupacional e ambiental, saltando osmuros e limites das unidades de produção, o envolvimento de novos ato-res e o apoio da mobilização social que cresce em torno desses temaspossa favorecer a luta dos trabalhadores por melhores condições de vidae de trabalho.

Cumprindo a atribuição constitucional e utilizando a capacidade insta-lada e a capilaridade da rede de serviços de saúde, o SUS é um espaçopúblico de acolhida da dor e do sofrimento, de atenção à doença e de pro-moção e proteção da saúde. O processo irreversível da municipalização e aspráticas de controle social permitem o pensar global e agir localmente.

A decisão do Ministério da Saúde de reorientar as políticas de saúdeno país pelo enfoque da Promoção da Saúde, entendida, segundo a Carta

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de Ottawa, como o “processo de proporcionar à população os meiosnecessários para melhorar sua saúde e exercer um maior controle sobre amesma” (Terris, 1996:43), também pode ser considerada como facilita-dora de uma atuação mais efetiva do SUS sobre a saúde e as doenças dapopulação, dos trabalhadores em particular, relacionados aos processosde produção e consumo e à degradação ambiental.

Apesar das críticas, centradas na desigualdade das forças envolvidasnas relações e nos riscos da ‘individualização’ do fenômeno saúde-doen-ça, a Promoção da Saúde propõe a reorientação das ações de saúde, apartir de mudanças culturais e técnicas, tendo como referência o nívellocal e a responsabilidade compartilhada dos problemas e soluções. Se-gundo Buss (1999:179), a Promoção da Saúde parte de uma concepçãoampliada do processo saúde-doença e do papel de “protagônico” dosseus determinantes, articulando saberes técnicos e populares e a mobili-zação de recursos institucionais e comunitários, públicos e privados, dediversos setores, para o enfrentamento e a resolução dos problemas.

A priorização da atenção básica em saúde, em particular a imple-mentação da estratégia do Programa de Saúde da Família, oferece a pos-sibilidade de levar as ações de saúde o mais próximo possível de onde aspessoas vivem e trabalham, facilitando o controle social dessas práticas.

No âmbito do Ministério da Saúde, alguns instrumentos normativose operacionais, como a Norma Operacional de Saúde do Trabalhador(Nost/SUS-98-Portaria 3.908/98); a Instrução Normativa de Vigilânciaem Saúde do Trabalhador (Portaria 3.120/98); a Lista de Doenças Relaci-onadas ao Trabalho (Portaria 1.339/99); o Caderno de Atenção Básicaem Saúde do Trabalhador e o Manual de Doenças Relacionadas ao Tra-balho para os Serviços de Saúde são exemplos de ferramentas que po-dem facilitar o desenvolvimento de ações de saúde ambiental e ocupacio-nal na rede de serviços e a articulação entre as Vigilâncias Sanitária, Am-biental e de Saúde do Trabalhador (MS/Cosat, 2001).

A multiplicação e o fortalecimento dos fóruns interinstitucionais desaúde do trabalhador e meio ambiente e de outras instâncias de controlesocial na área ambiental agregam a participação de novos atores sociais,compensando a diminuição relativa da presença do movimento sindical,absorvido por outras frentes de luta, e abre espaço para os trabalhadoresdo setor informal. É interessante registrar, como um aspecto potencial-mente positivo, o novo perfil dos trabalhadores do setor informal detrabalho. Este setor, composto, até então, na sua maioria, por trabalhado-res desqualificados, marginais, geralmente pouco politizados e mobiliza-dos, recebe, na atualidade, pessoas de distintos perfis, técnicos egressos

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da indústria, com experiência de participação política e atividade sindical.Esta mudança pode contribuir para o rearranjo de forças, a definição denovas formas de luta e o estabelecimento de novas alianças e parceriascom o movimento social.

Encerrando esses breves comentários, é importante reafirmar quenão se está propondo que o SUS seja a ‘solução’ para a complexidade dasrelações produção/consumo, ambiente/saúde. Como bem assinala a Dra.Raquel, as mudanças necessárias têm um cunho muito mais radical e sig-nificam a reorientação do atual modelo civilizatório. Mas, na construçãodeste novo, pode ser importante partir do existente, do possível, aqui eagora. Assim, o que se deseja e propõe é que o SUS assuma seu papel efaça o melhor possível aquilo que já faz ou deveria fazer. E que se apro-veite e utilize bem este patrimônio social construído coletivamente comtanto esforço e luta.

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Referências Bibliográficas

BUSS, P. M. Escola de Governo em saúde: contribuições à reforma setorialno Brasil. In: CASAS, J. A. & TORRES, C. Governabilidad y Salud: políticaspúblicas y participación social. Washington, DC: OPS, 1999.

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LIEBER, R. R. & ROMANO-LIEBER, N. S. O Conceito de Risco: Janusreinventado. São Paulo: 2002. (Mimeo.)

MINISTÉRIO DA SAÚDE/COSAT. Plano de Ação em Saúde do Trabalhador2001-2002. Brasília, 2001. (Mimeo.)

PORTO, M. F. de S. Análise de riscos nos locais de trabalho: conhecer paratransformar. INST: Cadernos de Saúde do Trabalhador. São Paulo: INST/CUT, 2000.

TERRIS, M. Conceptos de la Promoción de la Salud: Dualidades de la Teoríade la Salud Pública. Promoción de la Salud: una antologia. Washington, DC:OPS, 1996.

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A Propósito do Capítulo “Processos deProdução e Consumo e a Degradação da

Saúde e do Meio Ambiente”

Francisco Antonio de Castro Lacaz

Como situa a própria autora no início de seu trabalho, trata-se de umempreendimento que buscará analisar as relações Saúde/Trabalho/Am-biente numa ‘perspectiva sociológica’, a qual é desenvolvida basicamentea partir de uma abordagem marxista, apesar de passar rapidamente pelasociologia durkheiminiana e weberiana.

E, ao assim proceder, a autora privilegia, na abordagem de cunhomarxista, os padrões de produção e de consumo capitalistas para explicaros nexos entre Saúde/Trabalho/Ambiente.

Ocorre que, no nosso entender, para explicar e discutir as relaçõesentre Trabalho/Ambiente, é de fundamental importância acoplar à análi-se a dimensão da circulação de mercadorias no modo de produção capita-lista, a qual, com a agilidade cada vez maior dos transportes e dos meiosde comunicação torna-se uma ameaça à integridade do ambiente mundiala todo o momento, o que, aliás, é motivo de preocupação da autora, par-ticularmente, nas notas de número 10 e 11, quando se refere a uma certadivisão internacional de riscos dos dejetos de países centrais, o que éconsubstanciado pela referência ao despejo em alto mar do lixo líquido edo lixo (tóxico) sólido em países periféricos.

Entretanto, o texto atualiza de forma bastante oportuna e esclarece-dora o mito da separação entre ambiente, processo produtivo e poluição,valendo-se de uma série de autores que têm tratado deste tema seja noBrasil ou no exterior. No caso destes, situa com felicidade suas preocupa-ções em articular a realidade dos países do capitalismo central com a dospaíses periféricos como é o caso de Castleman, Hirata e Thébaud-Mony.

É também digna de nota a referência, mesmo que esteja tratando dotema mediante uma ‘perspectiva sociológica’, a contribuição da grande

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área da psicologia/psicopatologia do trabalho para a compreensão dosnexos trabalho e saúde/doença mental, particularmente no aporte que aárea oferece para a discussão da temática da organização do trabalho nassociedades contemporâneas. E, nesta questão particular, caberia tambémdiscorrer sobre a possibilidade de se pensar na utopia de resgate do ver-dadeiro ethos do trabalho, como refere Mendes (1995): libertário, humani-zador e emancipador.

Ao abordar, no caso brasileiro, a dimensão intrafabril das relaçõestrabalho e saúde, a autora salienta a importância de órgãos do pólo traba-lho como o Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúdee dos Ambientes de Trabalho (Diesat). Ocorre que, ao não situar histori-camente a citação, deixa a impressão de que aquela instituição ainda per-manece com uma atuação semelhante à que desempenhou nos anos 80 einício dos 90 do século XX. Na verdade, tal atuação fragilizou-se, acom-panhando o próprio discenso da ação política do movimento sindical, oque não deixa de ser discutido pela autora em outro momento do texto,quando aborda a atual feição do capitalismo globalizado e da sua ‘fielcompanheira’, isto é, a reestruturação produtiva.

A essa discussão também está aderida a postura que vem sendo ado-tada pelo ‘Império Norte-americano’, especialmente após o fatídico 11de setembro, no que diz respeito à sua desfaçatez em desrespeitar osvários acordos internacionais que vêm sendo rompidos na assim chama-da ‘Era Bush’.

Como bem lembra a autora, a não adesão ao acordo de Kioto porparte do governo Bush é uma séria ameaça ao meio ambiente mundial. Eé bom lembrar que tal medida não é isolada e vem acompanhada de umaescalada de rompimentos de acordos e tratados que também se relacio-nam com o tema em discussão. Aqui falamos da atual posição do gover-no Bush no que se refere à não-proliferação de armas nucleares, ao que sesoma a destituição do diplomata brasileiro, em decorrência de uma clarapressão do governo norte-americano sobre o organismo internacionalque fiscaliza a produção de armas químicas e biológicas, e que se propu-nha ser mais independente!

Frise-se: é evidente que a postura adotada pelo governo norte-ame-ricano atende aos interesses maiores das grandes corporações do capita-lismo financeiro e industrial, muito apropriadamente chamadas por Bo-ron (1999) de os novos Leviatãs da nova ordem neoliberal que vem acom-panhada da maior crise da democracia representativa na América Latina,temática esta também relacionada aos padrões atuais de consumo, circu-lação e produção.

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E talvez aqui fosse pertinente que Tânia Franco se socorresse deChauí (2001:22) para incluir, na discussão que desenvolve, a temática dasideologias no mundo contemporâneo, o que enriqueceria sobremaneirasua abordagem. Melhor explicando: na verdade, referimo-nos ao pós-modernismo como a “ideologia da nova forma de acumulação de capi-tal”, ou seja, a reestruturação globalizada neoliberal, tema este tambémabordado pela autora.

É neste aspecto particular, quando discute a radicalização da exclu-são social do período fordista no contexto da globalização, da reestrutu-ração produtiva e das políticas neoliberais, que ameaçam e anulam con-quistas seculares, que observamos uma certa contradição ou incongruên-cia na argumentação, na medida em que o fordismo-keynesiano, no dizerde Gorender (1997), é tratado pela autora tanto de um prisma excludentecomo de uma ótica em que avançaram as conquistas sociais nos paísescapitalistas centrais.

A esta incongruência alia-se a necessidade, no nosso entender, deque a autora discorra com mais desenvoltura sobre o chamado modelojaponês de gestão do trabalho, especialmente quando aborda, na contem-poraneidade, a desregulamentação do trabalho, a polivalência, a multifun-cionalidade e o acúmulo de funções associados à fragilidade das ações deâmbito coletivo dos sujeitos sociais, aliás um traço também marcante doque aconteceu com o sindicalismo japonês a partir do final dos anos 50 einício dos 60 (Antunes, 1995).

Finalmente, entendemos que seria interessante esclarecer o quedeve ser entendido por ‘modo de vida poluente’, para que ao leitornão ficasse a impressão de que, da densa análise marxista do modo deprodução capitalista empreendida pela autora, a propósito das rela-ções Saúde/Trabalho/Ambiente, ao final do texto esta ficasse ‘sub-sumida’ a uma visão simplista do ‘modo de vida’ que o modo de pro-dução vem criando ao longo dos últimos 500 anos da história da es-pécie humana.

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Referências Bibliográficas

ANTUNES, R. C. Adeus ao Trabalho? – Ensaio sobre as metamorfoses e acentralidade do mundo do trabalho. São Paulo/Campinas: Cortez/Ed.Unicamp, 1995.

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Processos de Produção e Consumo esuas Relações com a Saúde Humana e

Ambiental: alguns comentários adicionais

Josino Costa Moreira

BORON, A. A. Os “novos Leviatãs” e a polis democrática: neoliberalismo,decomposição estatal e decadência da democracia na América Latina.In: SADER, E. & GENTILI, P. (Orgs.) Pós-neoliberalismo II. Que Estadopara que Democracia? 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

CHAUÍ, M. Escritos sobre a Universidade. São Paulo: Ed. Unesp, 2001.

GORENDER, J. Globalização, tecnologia e relações de trabalho. EstudosAvançados, 11 (29):311-61, 1997.

MENDES, R. (Org.) Patologia do Trabalho. Rio de Janeiro: Atheneu, 1995.

Os textos das doutoras Raquel Rigotto e Tânia Franco – que discutem asrelações entre a produção, o consumo, a saúde e o ambiente – apresentamde maneira clara os grandes problemas que atualmente permeiam estessegmentos e suas múltiplas causalidades.

É fato conhecido que alguns processos produtivos têm contribuídomais significativamente que outros para a contaminação humana e ambi-ental por agentes químicos tóxicos. Dentre estes, o processo de produçãoagrícola merece destaque e será objeto destes comentários.

A introdução dos pesticidas e dos fertilizantes no mercado, apregoa-dos como a solução para o problema da oferta de alimentos para umapopulação mundial crescente a partir de uma área agricultável limitada, fezcom que estas substâncias fossem imediatamente adotadas e amplamenteutilizadas pelo homem do campo.

Entretanto, estas novas facilidades não foram acompanhadas pelaimplementação de programas de qualificação da força de trabalho, sobre-tudo nos países em desenvolvimento, expondo comunidades inteiras a um

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conjunto de riscos desconhecidos, decorrentes do uso extensivo de umgrande número de substâncias químicas tóxicas. Estes riscos são agrava-dos por uma série de determinantes sociais resultantes do modelo dedesenvolvimento econômico adotado em nosso País

Até hoje, pouca atenção tem sido dada à solução desses problemasbásicos e, ao mesmo tempo, o aumento da produção agrícola e a utiliza-ção de agentes químicos para este fim têm sido incentivados. Devido àurbanização acelerada que se tem observado nas últimas décadas, um grupocada vez menor de agricultores, na sua maioria despreparados e tecnica-mente desassistidos, torna-se responsável por uma produtividade que sedeseja cada vez mais elevada.

O uso de fertilizantes e pesticidas no Brasil tem crescido. Tomando-se como base os dados do IBGE para a população rural brasileira de1997, pode-se estimar que o consumo médio de pesticidas é de cerca de25 kg/trabalhador/ano, com sensível diferenciação regional. Em algu-mas áreas produtoras, este consumo pode atingir valores bem superiores,como é o caso de uma região no Estado do Rio de Janeiro onde foiobservado um consumo de cerca de 56 kg/trabalhador/ano (Moreira etal., 2002). Com isso, o Brasil é o responsável pelo consumo de cerca de50% da quantidade de pesticidas utilizados na América Latina e ocupa ooitavo lugar no ranking dos países consumidores dessas substâncias porhectare plantado (consumo estimado em 3,2 kg/ha).

A ampla utilização desses produtos, o desconhecimento dos riscosassociados a sua utilização, o conseqüente desrespeito às normas básicasde segurança, a livre comercialização, a grande pressão comercial por par-te das empresas distribuidoras e produtoras e os problemas sociais en-contrados no meio rural constituem importantes causas responsáveis pelosníveis de contaminação humana e ambiental observados em nosso meio.A estes fatores devem ser acrescentadas as políticas incentivadoras doconsumo, a deficiência da assistência técnica ao homem do campo e adificuldade de fiscalização do cumprimento das leis (Pimentel, 1996; Pe-res, 1999; Oliveira-Silva et al., 2000).

A contaminação resultante deste processo produtivo não fica restri-ta à área ou aos trabalhadores, sendo exportada através da contaminaçãoambiental (ar e água) e dos alimentos. Alguns trabalhos têm procuradodemonstrar a extensão desses processos em nosso meio. Dados do Mi-nistério da Saúde mostram que em 1996 foram notificados 8.904 casos deintoxicações por agrotóxicos, dos quais 1.892 (21,25%) aconteceram nomeio rural (Sinitox, 1998). Estes dados estão reconhecidamente subdi-mensionados e, conseqüentemente, não refletem a real dimensão do pro-

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blema. Resultados de trabalhos que procuram avaliar os níveis de conta-minação ocupacional por agrotóxicos em áreas rurais brasileiras têm rela-tado níveis de contaminação humana que variam de 3 a 23% (Almeida &Garcia, 1991, Faria et al, 2000, Gonzaga et al., 1992).

Utilizando-se o limite mínimo reportado e conhecendo-se a popula-ção rural brasileira, pode-se estimar que apenas naquele meio, o númerode indivíduos contaminados diretamente por agrotóxicos no Brasil deveser de aproximadamente 540.000, com cerca de 4.000 mortes por ano.Estimativas da população urbana contaminada são mais difíceis deser elaboradas, mas os números oficiais demonstram claramente aimportância deste segmento. Contribuem para estes dados a conta-minação resultante da utilização direta dos pesticidas, bem como aexposição indireta que se dá principalmente através do contato comambientes ou alimentos contaminados.

Um estudo preliminar realizado pelo INCQS/Fiocruz para verifi-car o grau de contaminação por resíduos de pesticidas de frutas (ma-mão) brasileiras oferecidas ao consumidor revelou contaminação emcerca de 40% das amostras, sendo observada, também, uma grande va-riação de região para região, sendo que na região nordeste esta contami-nação atingiu cerca de 70% das amostras analisadas. Deve-se ressaltarainda que a contaminação observada era devido ao uso de um determi-nado agrotóxico (dicofol), cujo uso não é autorizado para aquelas cul-turas. Isto demonstra uma total falta de orientação técnica e de fiscali-zação por parte dos organismos governamentais responsáveis. Este agro-tóxico, inclusive, está sendo submetido a uma reavaliação pelas agênciasamericanas de saúde e ambiente por ser suspeito de ter ação carcinogê-nica, endócrina, imunotóxica e neurotóxica. A substância base desteproduto é considerada uma das mais tóxicas para o ecossistema e para asaúde humana (Scorecard, 2002).

Outro estudo, realizado em uma importante área agrícola do Estadodo Rio de Janeiro, encontrou níveis significativos de agrotóxicos anticoli-nesterásicos em amostras de água de um rio que corta esta região. Estesresultados, embora preliminares, atingiram valores de até 76.80 ± 10.89µg/L (Alves, 2000) e são muito superiores àqueles recomendados pelalegislação brasileira para águas de abastecimento doméstico e utilizadaspara irrigação de hortaliças e de plantas frutíferas – organofosforadostotais e carbamatos :10 µg/L – (Conama, 1996). Estes níveis têm deter-minado não apenas a contaminação da biota, mas, também, favorecido acolonização da área por espécies mais resistentes, causando diversos efei-tos sobre o equilíbrio ecológico local (Moreira et al., 2002).

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É importante realçar que a atividade agrícola próxima dos grandescentros é majoritariamente de pequeno porte e eminentemente familiar,em que adultos e crianças se ajudam mutuamente no trabalho. Geralmen-te as famílias agricultoras também moram nas vizinhanças das planta-ções. Isto faz com que crianças, jovens e mulheres em idade fértil tam-bém estejam sujeitos a elevado risco de contaminação. Esta situação éséria devido ao pouco conhecimento que se tem acerca da ação sobre oorganismo humano de uma exposição continuada e múltipla a essas subs-tâncias. Atualmente sabe-se que vários agrotóxicos são suspeitos de apre-sentar atividade carcinogênica ou hormonal.

O envolvimento de jovens e crianças no trabalho e o fato de agrande maioria das famílias morar nas proximidades de áreas de cul-tivo facilitam a exposição por via ambiental e faz com que mulheresem todas as fases da vida e crianças mesmo antes do nascimento es-tejam continuamente expostas a esses agentes químicos. Moreira etal. (2002) relatam a contaminação de 17% de trabalhadores jovens ecrianças (de 7 a 17 anos) por pesticidas anticolinesterásicos (organo-fosforados e carbamatos) em uma região agrícola do Estado do Riode Janeiro, evidenciando a seriedade deste problema. Esta situaçãotorna-se ainda mais preocupante quando se sabe que vários pestici-das dessas e de outras classes, igualmente utilizados no meio ruralbrasileiro, são suspeitos de produzirem efeitos endócrinos que semanifestarão tardiamente ou mesmo em gerações futuras. Dentre es-tes, pode-se citar, por exemplo, o mancozeb – inibidor tireoidianoem ratos, goitrogênico –, o maneb e o metamidofos – redutor dacontagem espermática e da viabilidade (Cocco, 2002).

Um estudo epidemiológico realizado a partir de dados coletados em11 estados brasileiros, correlacionando as vendas de pesticidas em 1985 eas desordens reprodutivas humanas observadas na década de 90, mostraassociação positiva, sugerindo uma correlação entre estes dois fatores(Koifman et al., 2002).

Alguns pesticidas comercializados como grande revolução tecnoló-gica nos anos 50 são, hoje em dia, alvo de ataques por seus efeitos deleté-rios sobre o ambiente e sobre o homem. Um acordo internacional, recen-temente concluído (Convenção de Estocolmo, 2002), contempla o bani-mento da produção, uso e venda de 12 substâncias orgânicas altamentepersistentes no ambiente, dentre as quais vários pesticidas organoclora-dos. A alguns desses pesticidas são associados a efeitos sobre a saúde esobre a reprodução, como o DDT, substância amplamente utilizada nocombate a vetores de doenças e pragas e que apresenta ação anti-estrogê-

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nica in vitro e efeitos estrogênicos em animais, não havendo, ainda, com-provação destes efeitos em populações humanas.

Estes pesticidas, denominados de primeira geração, estão sendo subs-tituídos por novas substâncias, apregoadas como mais seguras, mesmosem o conhecimento de suas ações ecotoxicológicas em longo prazo. Atéquando, não se sabe.

Atualmente, o cultivo de plantas geneticamente modificadas tem sidoproposto como uma alternativa ao uso extensivo de pesticidas. Estes or-ganismos geneticamente modificados, veiculados como mais produtivose resistentes às pragas e doenças, exigem um menor consumo de pestici-das. Nessa briga, que envolve interesses econômicos poderosos, propõe-se a substituição de uma tecnologia por outra, cujo domínio é quase ex-clusivo dos países economicamente mais desenvolvidos. Embora se re-conheçam os méritos e as potencialidades da engenharia genética, princi-palmente pelo avanço do conhecimento científico conseguido nas últi-mas décadas sobre a genética e suas múltiplas relações biológicas, deve-serealçar que, neste domínio, ainda estamos na ‘primeira geração’. Isto sig-nifica que torna-se imprescindível que a liberação de organismos geneti-camente modificados para cultivo ou para o consumo seja uma atituderesponsável e baseada em minucioso conhecimento científico sobre seuspossíveis efeitos ao ambiente e ao homem, especialmente aos grupos detrabalhadores e àqueles mais vulneráveis (mulheres grávidas, crianças, ido-sos etc.), sob pena de podermos, futuramente, estar enfrentando situaçãosemelhante àquela que estamos vivenciando com os pesticidas.

É importante realçar que não apenas efeitos facilmente perceptíveisdevem ser considerados, mas principalmente aqueles mais sutis. Estesreferem-se a certos efeitos biológicos cujo conhecimento não é imediato etampouco há interesse em sua divulgação, sendo, portanto, de vigilânciamuito mais difícil que a simples transgênese. Por exemplo, o conhecimentodetalhado dos mecanismos genéticos e suas relações com outros sistemasbiológicos, tais como o comportamento humano, permitiriam a indução deum determinado tipo de comportamento em uma população através daingestão de alimentos geneticamente modificados para esta finalidade.

Assim, é essencial que seja assegurado que os conhecimentos cientí-ficos produzidos nesta área sejam utilizados em estrita observância dospreceitos éticos e morais, ou seja, exclusivamente em benefício da huma-nidade como um todo e não apenas de grupos mais favorecidos. Por isso,é necessário que a biotecnologia seja objeto de um processo de gover-nança com a participação efetiva de grupos sociais organizados, (Freitaset al., 2002), tanto em nível nacional quanto internacional.

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