Passageiros Da Agonia

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Passageiros da agonia No auge da vida, jovens perdem a luta contra as drogas. Parentes rompem o sil�ncio e relatam seus dramas Samarone Lima e Tha�s Oyama Fotos: Album de Familia Cristiane Gaidies, a "Ma��zinha", 20 anos. Assassinada em S�o Paulo Jos� Eduardo Motta, o "Duda", 24 anos. Suic�dio em Salvador, BA Pedro P�blio de Goes, 21 anos, afogado em Bras�lia, DF Nelson Dal Poggetto matou-se aos 19 anos, deixando um bilhete de despedida para a fam�lia: "Amei muito voc�s e vou tranq�ilo. Isso vai ser um al�vio". T�o jovem, ele sabia o que era sofrer. Desde os 12 anos envolvido com o mundo das drogas, passou da maconha e do �lcool para a coca�na, e dela para o crack. "Eu sentia um cheiro de morte no ar", lembra a advogada paulista Nina Dal Poggetto, m�e de Nelsinho. Internado duas vezes, o rapaz voltava a fumar o cachimbinho de crack pouco tempo depois de receber alta. Na �ltima vez, a m�e hospitalizada, ele n�o apareceu como havia combinado. Preocupada, ela telefonou para o celular. Deu caixa postal. Nina gelou. Sabia que era mais uma

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Passageiros da agoniaNo auge da vida, jovens perdem a luta contra as drogas.Parentes rompem o sil�ncio e relatam seus dramas

Samarone Lima e Tha�s Oyama

Fotos: Album de Familia

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Cristiane Gaidies,a "Ma��zinha", 20anos. Assassinadaem S�o Paulo

Jos� Eduardo Motta, o "Duda", 24anos. Suic�dioem Salvador, BA

Pedro P�bliode Goes, 21 anos,afogado emBras�lia, DF

Nelson Dal Poggetto matou-se aos 19 anos, deixando um bilhete de despedida para a fam�lia: "Amei muito voc�s e vou tranq�ilo. Isso vai ser um al�vio". T�o jovem, ele

sabia o que era sofrer. Desde os 12 anos envolvido com o mundo das drogas, passou da maconha e do �lcool para a coca�na, e dela para o crack. "Eu sentia um cheiro de morte no ar", lembra a advogada paulista Nina Dal Poggetto, m�e de Nelsinho. Internado duas vezes, o rapaz voltava a fumar o cachimbinho de crack pouco tempo depois de receber alta. Na �ltima vez, a m�e hospitalizada, ele n�o apareceu como havia combinado. Preocupada, ela telefonou para o celular. Deu caixa postal. Nina gelou. Sabia que era mais uma reca�da. No dia seguinte, o menino apareceu em casa e ligou para a m�e. Estava deprimido e contou que vendera o celular para comprar a droga. "Tudo bem, filho." Nada estava bem. Nelson foi ao banheiro, tomou banho, escreveu o bilhete e deu um tiro na cabe�a.

Dramas como o de Nina s�o muito mais comuns do que as pessoas em geral gostam de acreditar. S� no ano passado, 20.000 pessoas morreram no Brasil v�timas da depend�ncia qu�mica, entre casos de overdose, suic�dios e assassinatos. � um ter�o de todas as baixas americanas em dez anos de guerra no Vietn�. J� seria um drama a perda de tantas vidas, em geral na flor dos anos. � pior do que isso. Meninos e meninas dependentes n�o lutam contra um inimigo vis�vel ou facilmente identific�vel. Lutam consigo mesmos, contra a puls�o irresist�vel de seguir numa rota de autodestrui��o. Para os pais, amigos e irm�os, � imposs�vel examinar a trajet�ria do jovem com a cabe�a fria. Remorsos e sentimentos de culpa s�o inevit�veis. A pergunta que sintetiza essa dor sempre �: "Onde foi que errei?"

Na maioria das vezes, essa pergunta n�o tem resposta. Numa mesma fam�lia, sujeitos ao mesmo tipo de educa��o, um irm�o ser� "careta", o outro, o maluc�o. Desfeito o namoro, uma adolescente chorar�, poder� at� fumar um cigarro de maconha, mas isso passa. A outra afundar� em drogas cada vez mais poderosas. Os pais se separaram? Um garot�o buscar� conforto com os amigos, o outro...

Marcelo MesquitaServa, 25 anos.Overdose emMar�lia, SP

�ngela VieiraMazzini, 32 anos.Overdose emLisboa, Portugal

Nelson DalPoggetto, 19anos. Suic�dioem S�o Paulo

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Nessa loteria, joga-se com probabilidades. Os meninos s�o mais sujeitos ao envolvimento com drogas il�citas do que as meninas, na propor��o de quatro para uma. Hist�rico familiar contendo depress�o, tentativas de suic�dio ou uso abusivo de �lcool e drogas tamb�m contribui. Ambiente familiar desfavor�vel e falta de perspectivas profissionais completam o quadro do que os especialistas chamam de "fatores predisponentes". � pura estat�stica. Na vida real, um jovem pode n�o apresentar nenhum desses fatores e no entanto decair. Outro, que tenha todos, pode jamais se envolver com drogas.

Resultados da �ltima pesquisa do Centro Brasileiro de Informa��es sobre Drogas Psicotr�picas, Cebrid, indicam que a droga � hoje uma amea�a onipresente. O estudo aponta que um quarto dos estudantes brasileiros com idade entre 10 e 18 anos j� provou alguma droga ilegal. Na Universidade de S�o Paulo, uma das melhores e mais disputadas do pa�s, com clientela ultra-seleta, outra enquete revelou que um em cada tr�s estudantes j� apertou um cigarro de maconha. A imensa maioria sair� ilesa da experi�ncia. Menos de 2% dos que experimentam tornam-se dependentes. Por que uns recebem o bilhete fatal � um mist�rio.

Maur�cio TeixeiraBranco, 16 anos.Overdoseem S�o Paulo

Adriana de Oliveira,20 anos.Overdose emInconfidentes, MG

Patr�cia Guazzelli,23 anos. Overdoseem Canoas, RS

Subst�ncias alucin�genas e estupefaciantes fazem parte da hist�ria da humanidade. A B�blia faz refer�ncia ao uso de bebidas alco�licas, a maconha j� era utilizada na China 3.000 anos antes de Cristo. V�m da mesma �poca os primeiros registros do consumo de �pio, como relaxante e analg�sico. No M�xico, um cacto alucin�geno, o peiote ou mescal, integrava os rituais religiosos desde o ano 1000 a.C. Mais recentemente, nos anos 40, soldados nas frentes de batalha da II Guerra Mundial ganharam a coragem que lhes faltava para os combates na base da ingest�o de anfetaminas. Aumentava-lhes a vigil�ncia e a excitabilidade. Nos anos 60, a maconha acompanhou os jovens nas manifesta��es de protesto. Depois, foi tudo ao mesmo tempo. �cido lis�rgico, o LSD, coca�na, hero�na, crack, ecstasy, al�m das drogas antigas. Trata-se de um imenso arsenal qu�mico, oferecido todos os dias, legal ou ilegalmente, para preencher o vazio da vida ou como lenitivo para a dor e o sofrimento. "A tend�ncia do ser humano � buscar alternativas que o ajudem a escapar de sensa��es dolorosas e desagrad�veis. E, para algumas pessoas, a droga � uma sa�da para isso", afirma o professor Elisaldo Carlini, titular de psicofarmacologia na Universidade Federal de S�o Paulo e diretor do Cebrid. O custo disso pode ser muito alto. Diariamente, no Brasil, cerca de 2 milh�es de pessoas

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consomem algum tipo de psicotr�pico.

� arriscado, muitas vezes inevit�vel, requer aten��o da fam�lia, mas o uso eventual n�o conduz necessariamente � depend�ncia. N�o fosse o fato de a maconha ser uma droga ilegal, que obriga o fumante a percorrer corredores do submundo para consegui-la, seu consumo numa festinha equivaleria a uma bebida alco�lica, coisa que n�o leva obrigatoriamente ao alcoolismo. � natural que os pais sintam medo. A amea�a das drogas � a quarta maior preocupa��o do brasileiro. S� perde para o desemprego, a sa�de e o sal�rio, segundo pesquisa do Ibope realizada no in�cio deste ano. Primeiro, a fam�lia n�o sabe at� onde o uso da droga pode tornar-se cr�nico e compulsivo, tomando conta da vida do filho. Depois, h� o perigo do envolvimento com a viol�ncia do tr�fico e de outros usu�rios. A psiquiatra carioca Maria Tereza de Aquino lembra: "Esses jovens acabam se envolvendo com a pol�cia, os traficantes e os tiroteios". Maria Tereza tem uma contabilidade macabra. Todos os anos perde uma m�dia de quatro a cinco pacientes de forma violenta.

Foi assim num caso que chocou a cidade de S�o Paulo, em outubro de 1995, quando Cristiane Gaidies, de 20 anos, morreu alvejada por um tiro de pistola 9 mil�metros. A menina, filha de uma psic�loga, at� os 18 anos dormia abra�ada ao ursinho de pel�cia. Gostava de ir a shopping centers e a shows de rock. No final de 1992, de repente, abandonou os amigos e envolveu-se com maconha e crack. A fam�lia tentou de tudo. Levou-a a terapeutas e psiquiatras. Internou-a durante um m�s numa cl�nica especializada. Mas "Ma��zinha", o apelido da garota, reca�a sempre. "Ela sumia de casa, ficava vagando pelas ruas fumando crack e depois reaparecia parecendo uma mendiga", lembra-se a m�e, Marli. Foi morta quando tentava roubar um toca-fitas de um Fiat Tipo. O toca-fitas tinha sido exigido por um traficante que a abastecia. Era o pre�o da droga.

O que preocupa os especialistas � que a afli��o das fam�lias em rela��o ao problema das drogas � desproporcionalmente maior do que o grau de informa��o sobre o assunto. O paulista �gas Branco, professor de t�nis, via o filho chegar em casa com os olhos injetados, sintoma mais evidente dos usu�rios de maconha, mas achava que Maur�cio, estudante de 16 anos, apenas tinha "tomado umas cervejinhas a mais". A paisagista baiana Alma�sa Motta, m�e de Jos� Eduardo, o "Duda", que se suicidou aos 24 anos, n�o percebia os jarros de ch� de cogumelo (um alucin�geno) que o filho colocava na geladeira, ao lado dos sucos de frutas consumidos pela fam�lia. O filho de repente come�a a mentir que perdeu todo dinheiro — na verdade, usou-o para comprar a droga. Cerca-se de "m�s companhias", em geral outros dependentes. Desaparece do c�rculo familiar. Reduz o ritmo de estudo e de trabalho. � um tipo de vida que as fam�lias ainda costumam resumir como "vagabundagem". N�o � assim. Segundo a Organiza��o Mundial de Sa�de, a depend�ncia pode ser definida como a perda de controle sobre tudo aquilo que envolve o

Na�lton de AbreuTorres, 20 anos.

Suic�dio emS�o Paulo

Mirella Pascotto,16 anos. Queda

de um edif�cioem S�o Paulo

Marcos Dallal,36 anos.

Assassinado noRio de Janeiro

De cada quatro estudantes brasileiros com idade entre

10 e 18 anos, um j� experimentou alguma

droga ilegal

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consumo da droga: a quantidade, a qualidade e a freq��ncia. Um dependente qu�mico, portanto, n�o � um fraco de car�ter, um sem-vergonha ou ovelha negra da fam�lia. � um doente. Precisa ser tratado. E rapidamente.

Mariana Johannpeter,23 anos. Queda deum edif�cio, RS

Jos� Artur Machado,o "Petit", 32 anos.Suic�dio noRio de Janeiro

FernandaFerreira deMoraes, 16 anos. Overdose emContagem, MG

Psic�logos e psiquiatras reconhecem a enorme diferen�a entre o uso espor�dico e a depend�ncia. Mas advertem: quando os pais ficam sabendo, geralmente � porque a situa��o j� fugiu ao controle. O que fazer quando a not�cia do consumo de drogas chega em casa? O m�dico Ronaldo Laranjeira, da Universidade Federal de S�o Paulo, diz que um dos primeiros procedimentos dos pais deve ser parar de acobertar o filho. Se ele consumiu droga e n�o p�de ir trabalhar ou faltou � escola, o pr�prio usu�rio deve se explicar. "Nada de inventar desculpas para ele", aconselha. Amea�as do tipo "se voc� n�o parar, vou expuls�-lo de casa" n�o funcionam. Com o tempo, isso apenas aumenta os atritos. Abrir espa�os de di�logo � uma �tima alternativa. Devem-se impor limites. Os pais s�o respons�veis pela educa��o dos filhos, e, enquanto eles moram na mesma casa, t�m de obedecer a certas regras. Ou seja, � importante o di�logo, mas deixando bem claro que para a fam�lia n�o � "tudo bem" com as drogas. Pais e irm�os devem agir em conjunto, ajudando e encorajando o parente em dificuldade. Ignorar os protestos dos dependentes contra o atendimento especializado � fundamental. "Eles sempre acham que podem se recuperar sozinhos", diz o m�dico. Devem-se marcar consultas com psiquiatras mesmo contra a vontade do dependente. Se n�o conseguem levar o filho a uma cl�nica ou especialista, vale a pena os pais se dirigirem a servi�os de atendimento em busca de orienta��o. � at� f�cil falar, mas, na procura pela salva��o do filho dependente, o que mais acontece s�o as fam�lias se dilacerarem.

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"Meu pai n�o admitia e n�o admite que uma pessoa n�o consiga se autocontrolar", lembra a contadora carioca Marcia Dallal. "Quando ele soube que meu irm�o Marcos estava envolvido at� a medula com drogas — ele era um ex-hippie —, reagiu com �dio." O pai surrava o filho, chamava a pol�cia. Achava que assim estava ajudando. "Nossa fam�lia ficou um trapo. Eu n�o suportava a forma violenta com a qual papai tratava o Marcos." Afundado na depend�ncia, isolado da fam�lia, sem dinheiro, o rapaz foi morto com dois tiros nas costas quando roubava um peda�o de carne. "Nunca mais os encontros em fam�lia viram um sorriso", lamenta Marcia.

A dificuldade � convencer o dependente de que ele tem um problema s�rio de sa�de, e n�o uma rebeldia, um inconformismo �s vezes at� encarado por ele como coisa positiva. Um estudo realizado pelo departamento de psicologia da Universidade Federal de S�o Paulo sobre imprensa e drogas aponta as ra�zes dessa imagem favor�vel de que as drogas gozam at� hoje. De 1968 a 1975, per�odo mais violento da repress�o pol�tica, havia uma associa��o constante entre o uso de drogas e a rebeli�o libert�ria dos jovens. Em outros pa�ses, fen�menos parecidos ocorreram e continuam ocorrendo. A simples associa��o da droga com a juventude j� transfere ao v�cio uma certa aura ben�vola. Nos anos 80 veio o susto. Subst�ncias que antes se ligavam � id�ia de "paz e amor" agora vinham vinculadas �s palavras viol�ncia, tr�fico, morte. Mas talvez o maior risco seja o atual, quando essas coisas se banalizaram. Uma das maiores autoridades brasileiras no estudo de drogas, o professor e psiquiatra Arthur Guerra de Andrade, titular da Universidade de S�o Paulo, pai de um adolescente, conta que, quando chamou o filho para uma primeira conversa sobre os perigos da maconha, obteve a seguinte resposta: "Nem vem, pai. � claro que eu vou experimentar". O professor ficou perplexo. Percebeu, naquele momento, que seu filho n�o era diferente da maioria dos jovens: curioso, estava sujeito a uma tragada experimental — e a todos os riscos que adv�m dela. O principal: o contato com outras drogas, que criam a depend�ncia qu�mica mais velozmente. "O uso da droga, infelizmente, � hoje quase como um rito de passagem para o adolescente. Uma fase parecida com a inicia��o sexual", diz Guerra de Andrade.

A fam�lia tem de prestar muita aten��o nessa "inicia��o", porque a recupera��o de um dependente � muito dif�cil, mesmo quando se usam todos os recursos � disposi��o. Contam-se �s pencas hist�rias de derrotas no decorrer do tratamento. A terapeuta corporal paulistana Tereza de Jesus Ferreira Maciel viu o filho Andr� lutar por

cinco anos para se recuperar da depend�ncia de coca�na. "Quatro vezes internado em cl�nicas especializadas, cada interna��o era uma esperan�a. Ele parecia que queria voltar a viver, submetia-se a todas as normas, ganhava peso, ficava lindo. Eu ressuscitava junto", lembra Tereza. Mas a cada reca�da ele piorava. Mergulhava ainda mais profundamente nas drogas, apesar de ter vergonha da depend�ncia. Um dia, quando Andr� acabava de receber alta na �ltima de suas interna��es, ele foi visitar a m�e no trabalho. "Sentou-se, olhou para mim e sorriu daquele jeito horr�vel como s� fazia

Marcelo Bhering,30 anos.Assassinado noRio de Janeiro

Andr� Maciel, 20anos. Acidente emuma motocicleta,em S�o Paulo

Marcus RobertoPazini, 19 anos.Assassinado emS�o Paulo

Ana CatharinaNogueira, 15anos. Suic�diono Recife, PE

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