PASSAGENS AO POÉTICO: A CORRESPONDÊNCIA DE PAUL … · Essai sur Paul Celan. Paris: Les Editions...

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PASSAGENS AO POÉTICO: A CORRESPONDÊNCIA DE PAUL CELAN E GISÈLE CELAN-LESTRANGE por José Eduardo Marques de Barros Dissertação de Mestrado em Teoria Literária apresentada à Coordenação de Pós-Graduação em Letras do Departamento de Ciência da Literatura. Orientadora: Professora Vera Lins. Faculdade de Letras – Universidade Federal do Rio de Janeiro Agosto de 2006

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PASSAGENS AO POÉTICO: A CORRESPONDÊNCIA

DE PAUL CELAN E GISÈLE CELAN-LESTRANGE

por

José Eduardo Marques de Barros

Dissertação de Mestrado em Teoria Literária

apresentada à Coordenação de Pós-Graduação

em Letras do Departamento de Ciência da

Literatura.

Orientadora: Professora Vera Lins.

Faculdade de Letras – Universidade Federal do Rio de Janeiro

Agosto de 2006

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DEFESA DE DISSERTAÇÃO

José Eduardo Marques de Barros, Passagens ao Poético: A Correspondência de Paul Celan e

Gisèle Celan-Lestrange, Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, Dissertação de Mestrado

em Teoria Literária.

Banca Examinadora:

__________________________________________________________________________ Orientadora: Professora Vera Lins __________________________________________________________________________ Professor André Luiz de Lima Bueno __________________________________________________________________________ Professor Marcelo Jacques de Moraes __________________________________________________________________________ Suplentes: Professor Luis Edmundo Bouças Coutinho __________________________________________________________________________ Professor: Ronaldes de Melo e Souza

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Para Solange

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AGRADECIMENTOS

Aos professores do Mestrado da Faculdade de Letras da UFRJ, pela contribuição

atenciosa.

À Vera Lins, orientadora, pelo interesse no tema proposto e pelo incentivo a

prosseguir nesta escrita.

À Analucia Ribeiro, pela sua revisão cuidadosa da tradução do francês.

A Bertrand Badiou, organizador da correspondência, pelo seu trabalho de total

dedicação.

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SINOPSE

Estudo sobre a correspondência do poeta Paul Celan com sua mulher Gisèle

Celan-Lestrange, visando encontrar, nas cartas, as passagens ao poético. Passagens que nos trazem as invenções celanianas e o surgimento dos poemas. A correspondência como “escrita de vida”, enquanto um lugar de construção e experiência da bio-grafia. Cicatricement, cicatriz sempre em movimento, verdadeiro operador da escrita celaniana. A estreita relação da poética de Paul Celan com a questão da melancolia.

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RESUMÉ

Étude sur la correspondance du poète Paul Celan avec sa femme Gisèle Celan-Lestrange, dans le but de trouver, dans ces lettres, des passages au poétique. Passages qui nous apportent les inventions celaniennes et le surgissement des poèmes. La correspondance comme “écriture de vie”, comme un lieu de construction et d'expérience de la bio-graphie. Cicatricement, cicatrice toujours en mouvement, véritable opérateur de l'écriture celanienne. Le rapport étroit de la poétique de Paul Celan avec la question de la mélancolie.

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SUMÁRIO

PASSAGENS AO POÉTICO: A CORRESPONDÊNCIA DE PAUL CELAN E GISÈLE CELAN-LESTRANGE

1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................. 8

2. BIOGRAFIA: ESCRITA-E-VIDA ................................................................................................................ 13

2.1. APRESENTANDO O POETA ........................................................................................................................... 14 2.2. A QUESTÃO DA BIO-GRAFIA ......................................................................................................................... 18

3. PAUL CELAN E O POEMA “FUGA DA MORTE”................................................................................... 27

4. O POETA E SUAS INDAGAÇÕES .............................................................................................................. 33

4.1. A QUESTÃO DA EXPERIÊNCIA DO POETA ..................................................................................................... 34 4.2. ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A POÉTICA DE PAUL CELAN ......................................................................... 49

5. AS CARTAS: O REGISTRO DE UMA POÉTICA ..................................................................................... 52

5.1. A CARTA E A QUESTÃO DO EQUÍVOCO EPISTOLAR ....................................................................................... 53 5.2. A CORRESPONDÊNCIA ENTRE PAUL CELAN E GISÈLE CELAN-LESTRANGE ................................................. 55 5.3. O SOBRE-VIVER DE UM POETA: AINDA E SEMPRE ........................................................................................ 74

6. A LÍNGUA E O SEU MOVIMENTO EM CICATRICEMENT .................................................................. 95

6.1 A EXPERIÊNCIA DE CICATRICEMENT ............................................................................................................. 96 6.2. PAUL CELAN: UMA POÉTICA DA MELANCOLIA .......................................................................................... 103

7. CONCLUSÃO ............................................................................................................................................... 117

8. BIBLIOGRAFIA DE PAUL CELAN.......................................................................................................... 121

8.1 EM TRADUÇÃO FRANCESA.......................................................................................................................... 122 8.2 EM PORTUGUÊS .......................................................................................................................................... 123

9. BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 124

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1. INTRODUÇÃO

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A proposta desta Dissertação é estudar a correspondência de Paul Celan e Gisèle

Celan-Lestrange. Neste estudo, intitulado “Passagens ao poético: a correspondência de Paul

Celan e Gisèle Celan-Lestrange” apresentaremos algumas reflexões sobre o que nomeamos

“passagens ao poético”, recolhidas nesta troca epistolar, construindo os paradigmas que nos

servirão ao longo texto.

A proposição “passagens ao poético” indica não apenas algo poético ou literário

que surge no texto da correspondência, mas também as invenções celanianas elaboradas pelo

poeta no decorrer desta experiência. “Passagens ao poético” é nossa hipótese de trabalho.

Pretendemos demonstrar que uma correspondência íntima, como a de Paul Celan e Gisèle

Celan-Lestrange, pode propiciar um espaço de experiência poética. A intensidade do amor

que esta correspondência apresenta não impede a possibilidade do surgimento de poemas e

palavras inventadas na língua franco-celaniana.

Vamos destacar algumas cartas que possam sinalizar algo que registre uma

passagem ao poético, mas também faremos uma referência ao trabalho de escrita do poeta e

tradutor Celan, compondo um texto de estudo sobre sua poética.

A correspondência de Celan e Gisèle apresenta, muitas vezes, referências à

criação poética, à prática de escrita, e ao que Jacques Derrida chamou de “experiência da

língua”. As cartas de Celan trazem uma outra passagem poética: a da bio-grafia, no sentido

utilizado por Roger Laporte. Uma passagem que fala da forte relação, na obra de Celan, entre

a vida e a escrita.

Estaremos buscando demonstrar, então, o entrelaçamento entre vida e obra,

utilizando o conceito de bio-grafia. Aqui estamos pensando com os escritores Roger Laporte

e Antonin Artaud que não concebiam uma obra como destacada da vida, pois há uma

intrínseca relação entre a escrita e a vida. Daí pensarmos o poema como escrita de vida.

Também vamos conceber a troca epistolar como “escrita de vida”. A correspondência

enquanto um lugar de construção e experiência da bio-grafia. As passagens ao poético,

portanto, trazidas nesta dissertação, falam desta bio-grafia, deste fio de escrita entre a obra e a

vida.

O poema Todesfugue (“Fuga da morte”) de Paul Celan nos confirma também a

relação entre obra e vida. Este poema foi escrito em 1947, logo após o final da guerra, e será

estudado neste texto.

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A expressão “equívoco epistolar” trazida por Vincent Kaufmann vem conferir

importância para pensarmos estas cartas. Este autor formula a hipótese de que o ato epistolar

estabelece um intervalo, e produz uma distância graças à qual o texto literário pode sobrevir.

Então, a correspondência mostra-se útil ao demarcar uma distância, e abre um espaço

“propício à criação literária”. Kaufmann, em seu livro L’Equivoque epistolaire, reflete que, a

princípio, a correspondência entre dois escritores é mais propícia para o surgimento de

questões referentes à criação ou à obra. No entanto, Kaufmann também diz que uma

correspondência entre um escritor e um não-escritor, como por exemplo, a correspondência de

Kafka com Felice, propicia um espaço de passagem para a literatura.

Vamos trabalhar com o recurso da teoria psicanalítica em relação à questão do

“eu” no poeta Celan, sempre em referência à sua escrita. Pois, em alguns momentos da vida e

da obra deste poeta, ele vai se referir ao desejo, em geral frustado, do encontro consigo

mesmo. Os “pedaços destacados” do “eu” trazidos assim pelo poeta, nos balizarão em nossa

demonstração. Vamos também introduzir as diferenças entre o “eu” e o Je. Pensamos aqui o

Je como o sujeito do inconsciente. Recorremos ao ensaísta e poeta Michel Collot, além dos

psicanalistas Sigmund Freud e Jacques Lacan nesta discussão sobre o “eu” e o Je.

Afirmamos, neste estudo, que há em Paul Celan uma poética relacionada com as

datas. Na experiência com a data, o poeta trabalha de forma singular. Nesta experiência,

também lemos uma “passagem ao poético”. Passagem que Celan tenta manter viva com a

memória das datas. São datas específicas que marcam o tempo. A correspondência nos

demonstra, em vários momentos, a importância que as datas contêm tanto na poética quanto

na vida do poeta.

Em Paul Celan, encontramos a interação de vários elementos que constituem a sua

poética, a saber – o real e o delírio, a linguagem e a língua, firmando uma escrita única. O real

se mostra em sua efetividade; o delírio, paradoxalmente, com sua esperança; a linguagem, na

perseverança da escrita e a língua, com sua ressurreição sofrida e marcada por perdas.

Além de falarmos do processo de escrita de Celan, onde a língua tem muita

importância na construção desta poética, vamos considerar o que Derrida chamou de

“experiência da língua”, enfocando inclusive, a questão da cicatriz. Esta questão da língua

será parte fundamental neste texto que se afirma uma escrita em cicatricement, ou seja, uma

escrita nunca cicatrizada, sempre em processo de cicatrização. A questão da cicatriz

(cicatrice) e da sua variação cicatricement vai ser trabalhada como uma passagem ao poético,

na medida em que cicatricement é uma invenção de Celan para traduzir a palavra alemã

narbenwahr.

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Neste momento da correspondência, Celan envia para Gisèle um dicionário, que

nós chamaremos de Dicionário Celan, onde ele propõe uma tradução para narbenwahr: “vrai-

‘cicatricement’”. O termo cicatricement, será considerado como verdadeiro operador da

escrita celaniana, além de apontar uma estreita relação com a questão da melancolia, também

trabalhada neste estudo.

Com a psicanálise, introduziremos o conceito do real, termo trazido por Jacques

Lacan. O real fala sempre de um encontro faltoso e toca a dimensão do impossível. Ele se

apresenta primeiro no campo psicanalítico como trauma.

A escrita de Paul Celan parte deste encontro faltoso, onde os acontecimentos que

permeiam sua poética apresentam questões impossíveis de simbolizar. Vamos trabalhar com o

pensamento poético de Martine Broda que fala de Auschwitz como um acontecimento puro,

insimbolizável, de um real que vai estar implicado na poesia de Celan.

Na poesia de Paul Celan, a partir do terceiro livro Sprachgitter / Grelha de

linguagem (1959), já se anunciava sua obra tardia. As imagens nos poemas deste tempo ficam

mais escassas e mais carregadas de conflitos. Em seus versos surgem palavras anorgânicas. A

morte nas estrelas e nas pedras, de que fala Adorno 1, introduz uma linguagem mineral da dor,

levando a escrita para uma poesia silenciosa e abismal. No livro seguinte, Die Niemandsrose

(A Rosa de Ninguém), Celan segue em direção à alegoria. Há um deslizamento de

significantes, como por exemplo, do vocábulo “rosa”.

Assim como Walter Benjamin, Celan também vai fazer a relação da obra com a

história. O importante aqui é que tanto Benjamin quanto Celan trabalham fazendo relações

com a história, e preservam a possibilidade que a obra tem de se descolar do tempo e do

espaço históricos em que foi produzida.

Nas palavras de Martine Broda, a travessia de Celan é feita em uma “‘escrita de

sombras sobre as pedras’ onde o sentido não faz mais irrupção senão nas fendas de uma forma

violentamente dissociada pelo sofrimento” 2.

Nesta dissertação, faremos um breve estudo sobre a questão do luto e da

melancolia, utilizando o pensamento de Walter Benjamin e Sigmund Freud. Vamos

demonstrar a intensa relação do poeta com temas próprios à melancolia. Tanto quanto em

Benjamin, a escrita de Paul Celan se constrói a partir de ruínas e de perdas. A melancolia,

para estes autores, funciona como um operador que move o texto, em meio a ruínas e

fragmentos.

1 ADORNO, Theodor. Paraliponema. Paris: Klincksieck, 1976. p. 94. 2 BRODA, Martine. Dans la main de personne. Essai sur Paul Celan. Paris: Les Editions du Cerf, 1986. p. 97.

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A melancolia em Paul Celan, na forma como construímos no texto, fala de uma

ferida que não se fecha. Daí o termo cicatricement traduzir uma cicatriz sempre em

movimento.

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2. BIOGRAFIA: ESCRITA-E-VIDA

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2.1. APRESENTANDO O POETA

Paul Celan nasceu em 1920 na cidade de Czernowitz, antiga Bucovina, que era

um território integrado ao império dos Habsburgos, depois à Romênia, e à União Soviética.

Hoje pertence à república da Ucrânia. Nesta região, há setenta anos atrás conviviam quatro

culturas distintas: a alemã, a judaica, a latina e a eslava. Estas culturas deixariam marcas

importantes neste poeta e tradutor.

Em 1938, Paul Celan decidiu estudar medicina na França, já que a Faculdade de

Medicina de Bucareste não aceitava estudantes judeus. Quando retornou de férias, no verão de

1939, depois de estourar a guerra, a situação de sua cidade tinha se complicado. Celan foi

apanhado num canto da história. E foi surpreendido: uma intrusão do real, “ruptura do fio do

destino” 3.

Os judeus de Czernowitz começaram a ser perseguidos, a princípio pela polícia

política da Rússia de Stalin e depois por Hitler. Em 1941, os judeus foram perseguidos sem

trégua. Houve um momento de calmaria, e Celan chegou a escrever a amigos no exílio,

dizendo que ele e a família tinham escapado ilesos à barbárie alemã. Sua família, que estava

escondida nos guetos, regressou à cidade graças à ajuda do Alcade de Czernowitz. No

entanto, no mês de junho de 1942, recomeçaram as perseguições e deportações em massa.

Então, eles novamente precisaram se esconder na casa de vários amigos, burlando a vigilância

dos agentes da Gestapo. Paul Celan encontrou um abrigo numa fábrica de cosméticos de

Valentin Alexandrescu, um empresário romeno. Era um lugar seguro, e que talvez pudesse

acolhê-los por uns dois anos. Sua mãe não queria se esconder neste abrigo. Celan insistiu que

a fábrica de Alexandrescu oferecia toda a segurança.

Em um domingo à noite, Celan deixou a casa confiante de que seus pais o

seguiriam. Esperou-os durante toda à noite. Mas, não apareceram. No dia seguinte, ao

regressar à sua casa encontrou-a fechada. Seus pais tinham sido deportados. Morreram alguns

anos depois, em campos de concentração. Paul Celan nunca se perdoou por ter partido sem

seus pais. Este trauma o acompanhou durante toda a vida, e também na sua escrita. Escrita

que se revelava na língua alemã, língua materna: língua-morte, língua-trauma.

Paul Celan foi pego pelo terror alemão, e encaminhado a um campo de trabalhos

forçados. Ao sair do campo, ele foi trabalhar como chefe de uma redação de um suplemento

cultural de um jornal de Bucareste. Tinha 25 anos e escrevia seus poemas em alemão. Neste

3 LACAN, Jacques. Seminário VI (inédito). Lição 19 (29/04/59).

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tempo de horror, Celan escreveu: “A morte é um mestre que vem da Alemanha”. 4

Felizmente, não só a morte vinha da Alemanha, mas também a possibilidade de um escritor se

expressar em alemão falando deste horror inenarrável. Vale aqui lembrar Theodor W. Adorno

que no princípio dos anos 50 afirmou que depois de Auschwitz, escrever um poema era um

ato de barbárie. Quinze anos mais tarde, ao ler a poesia de Paul Celan e de outros poetas,

retificou sua sentença e escreveu: “a dor perene tem tanto direito à expressão, como o

torturado ao grito; por isso pode ter sido errado afirmar que não se pode escrever mais

nenhum poema após Auschwitz” 5. A poesia também testemunha esta barbárie e, segundo as

palavras de Paul Celan, “testemunha a presença do humano – à majestade do absurdo.” 6

No final da década de 40, mais precisamente em 17 de dezembro de 1947, Paul

Celan parte para Viena, cidade que lhe atrai por sua grande tradição literária e em especial por

ser uma cidade marcada pela poesia de grandes poetas, como por exemplo, Georg Trakl. Em

Viena, ele encontra o pintor surrealista Edgar Jené (1904-1984) e se interessa por suas

pinturas. Quando Jené realiza uma exposição de pinturas, pede a Celan para escrever um texto

que sairá no catálogo da exposição. O texto de Celan se chama “Edgar Jené e o sonho do

sonho” e está traduzido para o português.

Em 1948, encontra com a poeta Ingeborg Bachmann e inicia uma relação amorosa

com ela. Em sua estadia em Viena, Celan mantem contato com o Grupo 47, e dentre seus

participantes estava Bachmann. Sua relação com este grupo será sempre conflituosa. A partir

da publicação da correspondência entre Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange, tomamos

conhecimento que, em 1952, Celan participa, pela primeira e última vez, de um congresso

importante do Grupo 47,

em Bad Niendorf (estação balneária do Báltico). Até o último momento, Hans Werner Richter, o ‘chefe’ do grupo, ‘esquece’ de convidar Paul Celan. Ele redige, apressadamente, um pequeno cartão-convite devido ao pedido insistente de Ingeborg Bachmann e de Milo Dor, por ocasião de uma de suas estadias em Viena, pouco tempo antes da reunião (cf. Hans Werner Richter, Briefe, hrsg. Von Sabine Cofalla, München-Wien, Carl Hanser, 1997, p. 127 sq. ). (...) As relações de Paul Celan com Richter e o Grupo 47 permanecerão extremamente problemáticas, até conflituosas. Paul Celan cuidará sempre para não ser considerado como um membro do Grupo. 7

4 CELAN, Paul. “Fuga da morte” in Sete rosas mais tarde. Antologia poética, seleção, tradução e introdução de João Barrento e Y. K. Centeno. Lisboa: Edições Cotovia, 1996, p. 17. 5 ADORNO, Theodor. Apud SILVA-SELIGMANN, Márcio. in Cristal de Paul Celan. São Paulo: Iluminuras. (orelha do livro). 6 CELAN, Paul. “O Meridiano” in Arte Poética, O meridiano e outros textos. Lisboa: Edições Cotovia, 1996, p.46. 7 “à Bad Niendorf (station balnéaire de la Baltique). Jusqu’au denier moment, Hans Werner Richter, le ‘chef’ du groupe, ‘oubliera’ d’inviter PC. Il ne rédigera, hâtivement, une petite carte d’invitation (mentionée supra) que suite à la demande pressante d’Indeborg Bachmann et de Milo Dor lors d’un ses sejours à Vienne, peu de temps avant la réunion (cf. Hans Werner Richter, Briefe, hrsg. Von Sabine Cofalla, München-Wien, Carl Hanser, 1997,

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Em 19.1.1965 (n.196), Celan escreve a Gisèle dizendo que enviou três cartas: uma

delas “a Oslo, (recusando de participar do almanaque (um tipo de anuário) publicado na

ocasião da noitada do Grupo 47).”8 Nas notas às cartas, Bertrand Badiou, o organizador desta

correspondência, diz que Paul Celan recusa a Kirsti Christensen, representante da Associação

dos Estudantes Noruegueses, o direito de publicar em uma antologia, as traduções de poemas

do livro Mohn und Gedächtnis (Papoula e Memória) lidos na ocasião de um encontro

consagrado ao Grupo 47. A nota segue explicando:

Em sua carta de 18.01.1965 a Felix Berner, responsável pelo serviço de contratos e de questões jurídicas da Deutsche Verlags-Anstalt, Paul Celan lembra, para motivar sua recusa, que ele jamais fez parte do Grupo.9

Celan vive em Viena pouco tempo, de dezembro de 1947 a julho de 1948, incapaz

de suportar a atmosfera fascista. Ao chegar em Paris, decide viver nesta cidade, e começa a

estudar literatura alemã e lingüística. Em 1950, ele completa os estudos universitários,

obtendo “a licença em letras”10. Este será seu título universitário mais elevado. Dentre os

estudos realizados se destacam: “estudo de literatura estrangeira”; “estudos práticos de

alemão”, “filologia alemã” e “lingüística geral”. Em novembro de 1950, com 30 anos, se

inscreve no DES (diploma de estudos superiores, equivalente ao mestrado), com um projeto

“de memória sobre Kafka”11. Em abril de 1952, Celan intensifica seu trabalho de pesquisa

sobre a obra de Kafka na Biblioteca Nacional da França e inicia a redação do texto sobre a

memória, do qual, infelizmente, não há nenhum rastro. Celan começa a ter conflitos com seu

orientador de DES e opta por abandonar os estudos universitários.

Depois da conclusão de seus estudos, Celan vai trabalhar na École Normale

Supérieure, ocupando o posto de leitor de alemão. De 1950 até seu suicídio em 1970, Celan

produzirá inúmeros livros. Em 1952, se casa com a artista plástica Gisèle Lestrange com

quem tem dois filhos: o primeiro, nasce em sete de outubro de 1953, com o nome de François.

p. 127 sq. ). (...) Les relations de PC avec Richter et le Groupe 47 resteront extrêmement problématiques, voire conflituelles. PC veillera toujours à ne pas être considéré comme une membre du Groupe”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et Illustrations Vol. II. Paris: Seuil, 2001. p.58 (todas as traduções desta dissertação são traduções livres realizadas pelo autor). 8 “à Oslo (refus de participer à l’almanach publié à la occasion de leur soirée Groupe 47)”. CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE , Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Paris: Seuil, 2001. p. 199. 9 “Dans sa lettre du 18.1.1965 à Felix Berner, responsable du service des contrats et des affaires juridiques de la Deutsche Verlags-Anstalt, PC rappele, pour motiver son refus, qu’il n’a jamais faite partie du Groupe”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et Illustrations Vol. II. Ibidem. p. 189. 10 “la licence en lettres”. Ibidem. p. 486. 11 “de mémoire sur Kafka ”. Ibidem. p. 486.

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Ele não sobrevive. Vive só um dia. O segundo filho nasce em seis de junho de 1955 e recebe

o nome de Claude François Eric.

Paul Celan, nascido Paul Antschel-Teitler, nomeia-se Paul Celan em 1946, a partir

da sugestão de uma amiga. O nome Celan vem do anagrama da grafia romena de seu

sobrenome: An/cel. A mudança de sobrenome coloca-o em uma situação singular, pois a sua

identificação ficaria restrita a seu nome de poeta. Já não seria mais possível localizá-lo na

tradição judaica. Com a troca do sobrenome, só podemos identificá-lo à sua escrita.

O poeta Celan elegeu o alemão como sua língua poética. Esta era a sua língua

materna, isto é, a que sua mãe lhe ensinou. Além de ser também a língua assassina dos

nazistas. O próprio Celan se diz um poeta de língua alemã. No entanto, seu alemão é singular,

à medida que, quando ele imigra para a França, o alemão não mais será falado no cotidiano,

mas será uma língua à parte: da escrita, das traduções, das leituras públicas e de seus

encontros literários na Alemanha, Suíça, Áustria ou mesmo em Paris, no contato com alguns

exilados. O alemão também será usado para ensinar, mantendo uma confrontação permanente

com o francês.

A singularidade dos seus poemas escritos em alemão se aproxima muito das

questões de Antonin Artaud sobre a língua francesa. Jean-Michel Rey explica, falando de

Artaud, que

a poesia é minha auto-bio-grafia a trabalho: esses escoamentos de escrita que conferem uma certa atualidade às fontes de onde provêm, esse trabalho de torsão de uma língua, feito em memória de outras línguas (conhecidas ou inventadas), e que acaba tornando-se a minha: não o francês como tal, mas o contínuo deslocamento pelo qual o aquém e o além do francês se imbricam, se enriquecem.12

Em Celan, há também um enriquecimento da língua alemã para aquém e além

dela. E o trabalho de torção da língua na poética celaniana aponta para um entroncamento de

línguas, quase uma “memória de outras línguas”. As afinidades de Celan com Artaud se

mostram ainda mais fortes quando o tema é a língua materna. Cito novamente Jean-Michel

Rey: “No ato poético, faço jogar os limites de minha língua materna, introduzo uma música e

uma escansão que ela ignora, um ritmo que se torna o equivalente de uma assinatura.”13 Celan

também escreve no limite de sua língua materna, trazendo um ritmo que também equivale a

uma assinatura. Mais adiante, no capítulo 6, retomarei este ponto da assinatura.

12 REY, Jean-Michel. O Nascimento da poesia – Antonin Artaud. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2002. p. 69. 13 Ibidem. p. 69.

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2.2. A QUESTÃO DA BIO-GRAFIA

Sabemos a partir de Dominique Maingueneau que a biografia de um autor deve

ser investigada utilizando “uma barra que une e separa dois termos em relação instável.”14

Assim, leríamos as biografias com uma nova perspectiva. Bio-grafia “que se percorre nos dois

sentidos: da vida rumo à grafia ou da grafia rumo à vida”.15

O ensaísta e escritor francês Roger Laporte pensa a biografia no sentido inverso

do seu uso habitual. “ ‘Bio’ da ‘grafia’, via intrínseca da escrita”,16 nos fala Frédéric Yves

Jeannet no prefácio a obra de Roger Laporte, Quinze variations sur um thème biographique.

Roger Laporte, falando da questão da biografia, cita Antonin Artaud que escreve: “Eu não

concebo uma obra como destacada da vida”.17 E segue fazendo uma pergunta ao leitor: “Se

assim é, não se deveria dizer que o ‘conceito’ de biografia é reversível, que não somente

escrever é necessário à vida, mas ainda que a vida do homem ela mesma não deve ser

separada da escrita?18 Esta pergunta vai nos levar a uma indagação precisa sobre a

correspondência de Paul Celan. Não nos apontaria esta correspondência o entroncamento

entre a vida e a escrita? Conforme disse certa vez Paul Celan: “eu sou a poesia”, já nos

mostrando a intrínseca ligação da escrita com a vida. E mais ainda: a vida do homem não é

separada da escrita. Ela se engendra com a escrita. Aqui podemos pensar a bio-grafia, nas

palavras de Phillipe Sollers, como “escrita viva e múltipla”19 que engloba tanto a vida quanto

a escrita. Também podemos pensar a correspondência como “escrita de vida”. A

correspondência como o lugar de construção e experiência da bio-grafia.

Maingueneau cita Michel de Montaigne, que vive um grande envolvimento entre

a escrita e a vida. Para Montaigne, a feitura de seu livro se dá em cooperação com a vida.

Assim, ele pode afirmar: “não fiz mais meu livro do que meu livro me fez”. No entanto, o

escritor fica sempre nesta passagem vida (bio) /obra (grafia). Então, trata-se de “um

envolvimento recíproco e paradoxal” entre obra e vida. Este envolvimento só se resolve no

movimento da criação.

14 MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo, Martins Fontes, 1995. p.46. 15 Ibidem. p. 46. 16 “‘Bio’ de la ‘graphie’, vie intrinsèque de l’écriture”, in LAPORTE, Roger. Quinze variations sur um thème biographique. Paris: Flammarion/ Éditions Léo Scheer, 2003, p. 12 (pontuação de Frédéric Yves JEANNET em seu préfacio a obra de Laporte). 17 “Je ne conçois pas d’oeuvre comme détachée de la vie”. Ibidem. p. 412. 18 “S’il en est ainsi, ne faut-il pas dire que le ‘concept’ de biographie est réversible, que non seulement écrire est nécessaire à la vie, mais encore que la vie d’homme elle-même ne doit pas être séparée de l’écriture? ” Ibidem. p. 412. 19 “écriture vivante et multiple”. Ibidem. p. 229.

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Refletindo um pouco mais sobre este envolvimento entre a vida e a obra, temos

que reconhecer que a vida de um poeta também recebe as marcas de seus poemas: ela é

habitada por eles. Caminharemos aqui com o pensamento do poeta e pesquisador Marko

Pajevic20, que discute a questão da bio-grafia no texto “Le poème comme écriture de vie”.

Este texto nos leva a uma indagação pertinente. Em que medida a vida real do poeta importa

para o poema? E em que medida é suficiente conhecer a linguagem do poeta para conhecer e

compreender sua vida? Será que nós devemos dizer ao poeta: Je te connais21? “Eu te

conheço” é o início de um poema de Celan, escrito em letras maiúsculas e que dá título ao

poema:

(JE TE CONNAIS: tu es la profondément inclinée, moi, le transpercé, te suis soumis. Où flamboie une parole qui témoignerait pour nous deux? Toi – toute, toute réelle. Moi – tout délire .)22

Na tradução para o português lemos:

(EU TE CONHEÇO: és a profundamente curvada, Eu, o esburacado, te sou submisso. Onde flameja uma palavra que testemunharia por nós dois? Tu – toda, toda real. Eu – todo delírio).

Este poema se encontra entre parênteses, como uma dedicatória, e nos revela algo

de sua biografia. Aqui, vamos estabelecer uma posição interpretativa do poema,

acompanhando, passo a passo, o pensamento de Marko Pajevic. Ele diz que uma indicação

biográfica estabelecida por Christoph Schwerin a propósito deste poema “parece desenhar um

quadro interpretativo”23. A indicação biográfica fala das circunstâncias e dos sentimentos que

desencadearam em Celan o desejo de escrever este poema. Destacamos neste relato de

Schwerin, que é analisado criticamente por Pajevic, alguns pontos que nos interessam aqui:

O quanto o poeta, tomado pelo amor que dedicava a sua mulher, estava consciente de seu próprio isolamento crescente do mundo, do desamparo que o dominava, isto

20 Marko Pajevic é estudioso da obra de Paul Celan, além de fazer pesquisas poéticas. Em 1999, ele defendeu uma tese sobre Celan, sob a orientação de Henri Meschonnic et Gert Mattenklot, e publicada em 2000 em formato de livro, intitulado Zur Poetik Paul Celans. Gedicht und Mensch – die Arbeit am Sinn (“A propósito da poética de Paul Celan. O poema e o homem – trabalho sobre o sentido”). 21 Poema de Paul Celan, incluído no livro “Mudança de respiração”. Renverse du Souffle (Atemwende). 22 “(ICH KENNE DICH, du bist die Gebeugte,/ ich, der Durchbohrte, bin dir untertan./ Wo flammt ein Wort, das für uns beide zeugte ?/ Du – ganz, ganz wirklich. Ich – ganz Wahn.) PAJEVIC, Marko. “Le poème comme ‘écriture de vie’”. in Revue Europe. N. 861-861. 2001. p.152. (poema « JE TE CONNAIS », traduzido para o francês por Fernand Cambon). 23 “semble dessiner um cadre interprétatif ”. Ibidem. p. 152.

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sobressai de um poema que ele escreveu em 1965. (...) Celan se encontrava em uma crise tanto no que concerne a sua existência quanto a sua criação, e a mulher, pelos seus desenhos, o ajudava a buscar um novo começo24.

Poderíamos aqui pensar, a partir deste relato, que a significação do poema seria

simplesmente ser ancorado no relato biográfico. Pajevic, analisando o texto de Schwerin, diz:

“Celan exalta sua mulher que o assiste nos bons como nos maus momentos, ele procura

instaurar um laço com ela nos registros da palavra.” 25

Se formos nos guiar por indicações biográficas, a palavra “delírio” tem referência

aos momentos de intenso sofrimento de Paul Celan, nos anos sessenta. Neste tempo, ele

precisou se internar por muitas vezes em hospitais psiquiátricos. Esta informação

parece legitimar uma interpretação segundo a qual Celan tematizaria aqui o que sua mulher devia ter sofrido por e através dele, ele se submete a ela que, em seu delírio, é para ele um ponto de referência e um socorro 26.

A propósito da data em que foi escrito este poema, é preciso marcar, que segundo

a editora de Bonn, este poema foi escrito em nove de janeiro de 1964. A datação de 1965,

relatada por Schwerin está equivocada, o que traduz a dificuldade das indicações biográficas.

Ela nos aponta uma certa insegurança das fontes, além das armadilhas da lembrança. Os

poemas de Celan se caracterizam por terem uma plurivocidade. E a biografia é um dos muitos

elementos que devemos colocar em obra para abordarmos esta poesia. Um pouco mais adiante

retomaremos este ponto da biografia.

Há muitas interpretações possíveis para o poema “EU TE CONHEÇO” já

levantadas por inúmeros estudiosos da obra de Celan. Pajevic fala das particularidades

formais deste poema. “EU TE CONHEÇO” é um dos raros poemas de Celan que é rimado de

maneira regular e também é o único poema que está inteiramente colocado entre dois

parênteses. Para Hans Georg Gadamer, “os parênteses separam aquele que diz ‘eu” da

universalidade habitual do eu lírico, tudo incluindo aí o tu apostrófo” 27. Deste fato, acrescenta

Pajevic, “o poema adquire para Gadamer o ‘caráter de uma discreta dedicatória ou de uma

24 “Combien le poète, pris dans l’amour qu’il portait à sa femme, était conscient de son propre isolement grandissant dans le monde, de la détresse qui l’importait, cela ressort d’un poème qu’il écrivit en 1965. (...) Celan se trouvait dans une crise, tant en ce qui concernait son existence que sa création, et sa femme, par ses dessins, l’aidait à trouver un nouveau commencement”. PAJEVIC, Marko. “Le poème comme ‘écriture de vie’”. in Revue Europe. N. 861-861. Op. cit. p.153. 25 “Celan commémore sa femme qui l’assiste dans les bonnes comme dans les mauvaises passes, il cherche à instaurer un lien avec elle dans le registre de la parole”. Ibidem. p. 153. 26 “semble legitimer une interprétation selon laquelle Celan thématiserait ici ce que sa femme a dû souffrir par et à travers lui, il se soumet à elle qui, dans son délire, est pour lui un point de repère et un secours”. Ibidem. p. 153. 27 “les parenthèses séparent celui qui dit ‘moi’ de l’universalité habituelle du moi lyrique, tout en incluant le toi apostrophé”. Ibidem. p. 153.

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assinatura de um quadro’ (p.105)”28. Já James K Lyon faz uma relação com o caso Goll e “vê

nos parênteses ‘um gesto de proteção’: face a todos os ataques do mundo exterior, esse poema

seria a expressão do idílio e da segurança que Celan encontrava junto a sua mulher”29.

O último verso deste poema nos interessa, na medida em que ele nos coloca diante

do “delírio” e do “real”. Relembremos o verso, primeiro em alemão e depois em sua tradução,

para o português: “Du – ganz, ganz wirklich. Ich – ganz Wahn”. “Tu – toda, toda real. Eu –

todo delírio”30. Temos aqui, que nos reportar a história das palavras Wahn (delírio ou loucura)

e wirklich (real):

Wahn sob a forma de wân, significa, ainda em médio-alto alemão ‘espera, esperança’; wirklich teria sido formado a partir de wirken pelos místicos da Idade Média e significava ‘eficácia, efetivo, ativo’. Assim, a profundamente inclinada não é necessariamente aquela que traz o luto, mas pode ser também entendido como aquela que porta segurança31.

Acrescentemos que a palavra wirken significa em alemão “agir, produzir efeito,

ser eficaz”32. Já a palavra wirklich se traduz, em geral, em alemão moderno “por ‘realmente’

ou por ‘efetivamente’”33.

Mesmo que este poema não seja exatamente um poema otimista, ele traz um sinal

de esperança na mirada de um encontro possível entre Paul Celan, portando o delírio e Gisèle

Lestrange-Celan portando o real. Real aqui apontando para uma efetividade e o delírio para

uma esperança.

Ainda no rastro do pensamento de Marko Pajevic, teceremos algumas poucas

considerações sobre a relação entre linguagem e o poeta, a saber, “o tema da palavra na

medida em que ela dá testemunho”34. A palavra/fala que cintila e que porta testemunho para o

poeta e para a língua é a poesia, acrescenta Pajevic. Então, se a palavra/fala traz em si um

28 “ce poème acquiert pour Gadamer le ‘caractère d’une discrète dédicace ou de la signature d’un tableau’”. Esta citação se encontra no livro Qui sui-je et qui est-tu? Commentaire de ‘Cristaux de souffle’ de Paul Celan de Hans Georg Gadamer (trad. E. Poulain. Actes Sud, 1987). PAJEVIC, Marko. “Le poème comme ‘écriture de vie’”. Op. cit. p. 153. 29 “voit dans les parenthèses ‘un geste de protection’: face à toutes les attaques du monde extérieur, ce poème serait l’expression de l’idylle et la securité que Celan trouvait auprès de sa femme (p. 188-89)”. (A citação de James K Lyon está em seu livro Absolument pas hermétique. Réflexions sur la ‘juste’ lecture de la poésie de Paul Celan. New York, 1985. éd. Joseph P. Strelka. Peter Lang. Berne. 1987). Ibidem. p. 154. 30 “Toi – toute, toute réelle. Moi – tout délire”. Tradução feita para o português a partir do francês. Verso do poema JE TE CONNAIS já citado. 31 “Wahn, sous sa forme wân, signifiait encore em moyen-haut-allemand ‘attente, espérance’; wirklich avait été forme sur wirken par les mystiques du Moyen Âge et signifiait ‘efficace, agissant, actif’. Ainsi, la ‘profondément inclinée’n’est pas nécessaire celle qui porte le deuil, mais elle peut être aussi entendue comme celle qui porte secours”. PAJEVIC, Marko. Le poème comme ‘écriture de vie’”. Op. Cit. p. 155. 32 “agir, produire de l’effet, être efficace”. Ibidem p. 164. 33 “par ‘réel (lement)’ ou par ‘effectif/vement’”. Ibidem. p. 164. 34 “le thème de la parole en tant qu’elle porte témoignage”. Ibidem. p. 155.

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testemunho para o poeta, para a língua e para sua vida, esta palavra/fala é a poesia, que pulsa

e procria. Aqui, o autor lança mão da palavra alemã Zeugen que não pode ser compreendida

aqui “somente como un Bezeugen, mas como ‘procreação, fecundidade’”35. Vale lembrar que

o verbo bezeugen significa “exclusivamente ‘atestar, certificar, testemunhar’”36. Já Zeugen é

mais abrangente em seu significado, pois além de significar ‘testemunhar’, também pode

querer dizer ‘engendrar’. A poesia não só procria ou fecunda, mas também engendra o

homem.

Voltando a questão do real e do delírio, lembremos que é Nietzshe, em sua

filosofia, que coloca o real e o delírio em oposição. Estou aqui me referido à oposição trazida

por Nietzsche entre dois elementos: apolíneo e dionisíaco. Para o filosofo, estes dois

elementos são necessários à arte:

do lado de Apolo, a realidade sonhada mais perfeita, com sua aptidão para conferir formas plásticas; do lado de Dionísio, a embriaguez portadora de veracidade e de fusão. Um sem o outro permanece estéril; é somente na interação dos dois que a arte pode conseguir se desenvolver37.

Podemos aqui pensar que, em Paul Celan, somente a interação de vários

elementos, a saber – o real e o delírio, a linguagem e a língua – tornaram possível sua poesia.

Real, com sua efetividade; delírio, com sua esperança; linguagem, com sua perseverança;

língua, com sua ressurreição.

O conhecimento dos dados biográficos de um autor pode até ser útil para

alargarmos o campo de uma interpretação, mas é verdade que muitas vezes ele restringe a

compreensão do poema. E o que interessa para nós não é a questão biográfica, mas a relação

feita por Laporte, que não concebe uma obra literária como destacada da vida. Ele trabalha

com a intrínseca ligação entre escrita e vida: bio-grafia.

“Vivemos sob céus sombrios e... existem poucos seres humanos. Talvez por isso

existam também tão poucos poemas”38, diz Celan em carta a Hans Bender em 18 de maio de

1960. Ao pensarmos sobre esta frase de Paul Celan, vemos a intima ligação que há entre o

poema e o homem. Em Celan, o poema é escrito em vista do homem. Encontramos, em uma

carta endereçada ao seu amigo Erich Einhorn, uma referência importante do poeta a este elo

35 “seulement comme un Bezeugen, mais comme ‘procréation, fécondité’”. PAJEVIC, Marko. Le poème comme ‘écriture de vie’”. Op. Cit. p. 156. 36 “exclusivement ‘attester’”. Ibidem. p. 164. 37 “du côté d’Apollon, la realité rêvée plus parfait, avec son aptitude à conferer des formes plastiques; du côté de Dionysos, l’ivresse porteuse de veracité et de fusion. L’un sans autre demeure stérile; c’est seulement dans l’interaction des deux que l’art peut trouver à se developer”. Ibidem. p. 157. 38 CELAN, Paul. Arte Poética – O meridiano e outros textos. Lisboa: Edições Cotovia. 1996. p. 67.

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entre o poema e o homem: “Eu não tenho necessidade de sublinhar que o poema é escrito por

amor desta opinião – pelo amor dos homens, portanto contra todo vazio e toda atomização”39.

A opinião a qual Celan se refere na carta tem relação com Demócrito e também com o poema

“Strette” de seu livro Grille de la parole, que evoca “as devastações da bomba atômica”40.

Neste poema, Celan faz referência, de forma fragmentária, à palavra de Demócrito, que diz:

“Não há nada senão os átomos e o espaço vazio: todo o resto é opinião”41. Para Celan, é o

Homem que sobrevive mesmo que fragmentado. E o poema surge como uma manifestação.

Como diz o poeta, em outro momento, “a poesia não se impõe, mas se expõe”. Com estas

afirmações, ele pretende dar mais ênfase ao poema dando-lhe um “status de ponto de partida,

não o de um resultado de técnicas e conhecimentos determinados”42. Para Celan, não há um

engendramento de um poema: “!!Não falo em nenhum lugar do engendramento de um poema;

mas sempre somente do poema engendrado!!”43. Tanto no início quanto no fim da frase Celan

coloca duas exclamações, realçando seu comentário. Além disso, ele é firme em defender o

seu ponto de vista: “Os poemas não são fabricáveis; eles tem a vida dos seres animados

mortais”44. E o poema “não tem nada a ver com dados biográficos, o poema é escrita de

vida”45.

Aqui cabe acrescentar uma observação muito importante do tradutor Fernand

Cambon46. Segundo ele, no título da versão original do texto de Marko Pajevic, a palavra

Lebensschrift é uma palavra que Paul Celan empregava. Ela deve ser considerada como “a

transcrição direta em alemão da palavra bio-grafia”47. A literalidade da transcrição é menos

perceptível em francês e em português que não dispõem de tais “palavras compostas”48. Esta

39 “Je n’ai pas besoin de souligner que le poème est écrit pour amour de cette opinion – pour l’amour des hommes, donc contre tout vide et toute atomisation”. “Correspondance Paul Celan/ Erich Einhorn – Extraits”. In Revue Europe. N. 861-862. 2001. p. 58. 40 “les ravages de la bombe atomique”. Correspondance Paul Celan/ Erich Einhorn – Extraits”. In Revue Europe. N. 861-862. 2001. Ibidem. p. 58. 41 “Il n’y a rien que les atomes et l’espace vide: tout le reste est opinion”. Citação de Demócrito feita por Celan na mesma carta a Erich Einhorn.Ibidem.p.58. 42 “status d’un point de départ, non celui d’un résultat de techniques et de connaissances déterminée”. PAJEVIC, Marko. “Le poème comme ‘écriture de vie’”. Op. cit. p. 159. 43 Cito: “!!Ne parle nulle part de l’engendrement d’un poème; mais toujours seulement du poème engendré!!”. Ibidem. p. 159. (esta citação de Paul Celan foi retirada por Pajevic do livro Paul Celan, Der Meridian. Endfassung Vorstufen Materialien. éd. Boschenstein/ H. Schmull, Suhrkamp, Francfort-sur-le-Main. 1999. p. 94). 44 “Les poèmes ne sont pas fabricables; ils ont la vie d’êtres animés mortels”. Ibidem. p. 159. 45 “n’a rien à voir avec des données biografiques, le poème est écriture de vie”. Ibidem. p. 159 46 Fernand Cambon é germanista, tradutor e ensaísta. Ele foi aluno de Paul Celan na École Normale Supérieure durante os anos universitários 1963-1964 e 1966-1967. 47 “la transcription directe en allemand du mot bio-graphie”. PAJEVIC, Marko. “Le poème comme ‘écriture de vie’”. (nota do tradutor Fernand Cambon). Ibidem. p. 163. 48 “mots composés”. Ibidem. p. 163.

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transcrição tem por efeito “um importante deslizamento de sentido”49. O deslizamento aqui

destacado diz de uma passagem da palavra leben(s), vida ou viver para a palavra schrift,

grafia ou escrita. Os dados biográficos não são a “verdade” do poema. A “verdade” se

encontra no deslizamento de sentido que a palavra bio-grafia porta em suas letras. Em Celan,

o poema e a pessoa (o homem) se situam no mesmo plano. Bio, por um lado, referindo-se a

questão da “pessoa” (da vida) e a grafia, por outro lado, na referência ao poema. E o

deslizamento do termo também aponta para a “bio da grafia, via intrínseca da escrita”, trazido

por Laporte. Em sua complexidade, a bio-grafia fala do poema e do homem. E o poema aqui

pode ser visto como a “presentificação do ser de um homem. Ele é ‘escrita de vida’”50. É a

presentificação da vida na escrita. Podemos aqui acrescentar que a vida do homem, nesta

perspectiva não deve ser separada da escrita. Vamos lembrar aqui o Avant-propos de Philippe

Lacoue-Labarthe ao livro de Roger Laporte intitulado Lettre à personne. Ele diz que quando a

obra Une vie de Laporte foi lançada em um “genêro (inédito): biografia”51, devemos pensá-la,

ao senso mais estrito, como “escrita da vida”52. Então, em Laporte, a vida, não certa vida, mas

a verdadeira vida, só chega com a escrita e como escrita, “a saber, o fato de escrever.

Escrever, é viver, porque existe uma vida que ‘não é nem anterior nem exterior à escrita’”53.

Aqui, neste avant-propos, e em todo o livro de Laporte, a escrita está sendo discutida sob o

parâmetro do término da escrita. Roger Laporte, em 24 de fevereiro de 1982, decide parar de

escrever e escreve seu último livro, Moriendo. Assim, renunciar a escrita não significa, de

maneira simples, “morrer”. É algo mais grave. Significa não ser mais capaz de escrever

“esta vida-aqui-de viver”. Habitar, sem habitá-la – porque é simplesmente inabitável ( ou

inospitaleiro, se o termo traduz justamente o alemao unheimlich) – , esse lugar sem lugar,

entre vida e morte. Ou não mais viver senão moriendo”54.

O projeto de Laporte de fazer uma biografia é um projeto de viver-escrever e está

relacionado “com um propósito retomado de Artaud: instaurar uma cultura que, ao contrário

49 “un important glissement de sens”. PAJEVIC, Marko. “Le poème comme ‘écriture de vie’”. (nota do tradutor Fernand Cambon). Op.cit. p. 163. 50 “présentification de l’être d’un homme. Il est ‘écriture de vie’”. Ibidem. p. 159. 51 “genre (inédit): la biographie”. LAPORTE, Roger. Lettre à personne – Carnets. Paris: Plon. 1986. (Avant-propos de Philippe Lacoue-Labarthe). p. 15. 52 “écriture de la vie”. Ibidem. p. 15. 53 “c’est-à-dire le fait d’écrire. Écrire, c’est vivre, parce qu’il existe une vie qui ‘n’est ni antérieure, ni extérieure à l’écriture’”. Ibidem. p. 16. 54 “cette vie-là-de vivre. Habiter, sans l’habiter – parce qu’il est tout simplesment inhabitable (ou inhospitalier, si ce terme traduit justement l’allemand umheimlich) – , ce lieu sans lieu, entre vie et mort. Ou ne plus vivre que moriendo”. Ibidem. p. 16.

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da arte desinteressada, seja ‘um meio refinado de compreender e de exercer a vida’. O que

Artaud esperava do teatro, eu o espero da escrita.”55

Além disso, Laporte acredita que a escrita lhe possa dar a possibilidade de se

sentir vivo. E novamente ele se serve do texto de Artaud, fazendo uma mudança verbal no

texto; onde Artaud escreve jouer (atuar) ele substitui por écrire (escrever). Citemos Artaud,

na leitura de Laporte: “Quando eu vivo eu não me sinto viver. Mas, quando (eu escrevo) é aí

que eu me sinto existir”56. Na correspondência de Paul Celan, seja à sua mulher Gisèle, seja a

alguns amigos, também encontramos uma forte relação entre a vida e a escrita. Lembremos

aqui a carta que ele envia a seu amigo Erich Einhorn, onde fala de seus escritos. Na referência

aos seus livros, Celan escreve: “Ao ver as coisas que eu lancei aqui, sobre o papel, você

saberá, sem dúvida, em que ponto estou da minha vida e de meus pensamentos (Eu jamais

escrevi uma linha que não tivesse a ver com a minha existência)”57. Existência e escrita estão

entrelaçadas no poeta.

55 “avec un dessein repris d’Artaud: instaurer une culture qui, à l’opposé de l’art désintéressé, soit ‘un moyen raffiné de comprendre et d’exercer la vie’. Ce que Artaud attendait du théâtre, je l’attends de l’écriture”. LAPORTE, Roger. Quinze variations sur um thème biographique. Op. cit. p. 408. 56 “ Quand je vis je ne me sens pas vivre. Mais quand (j’écris), c’est là que je me sens exister”. Ibidem. p. 408. 57 “À voir les choses que j’ai jetées là sur le papier, tu sauras sans doute où j’en suis de ma vie et de mes pensées. (Je n’ai jamais écrit une ligne qui n’êut à voir avec mon existence)” Correspondance Paul Celan/ Erich Einhorn”. Revista Europe número 861-862/ Janvier-Février 2001. Op. cit. p. 57.

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3. PAUL CELAN E O POEMA “FUGA DA MORTE”

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Encontramos com clareza, em Paul Celan, a relação paradoxal entre obra e vida.

O poema Todesfugue, traduzido por “Fuga da morte”, traz esta questão. Este poema foi escrito

em 1947, logo após o final da guerra. As feridas da guerra e do horror dos campos de

concentração deixavam sua marca em toda a humanidade. Cicatrizes sem cicatrização.

Naquele tempo o poeta chileno Vicente Huidobro, que estava em Berlim no final da guerra,

disse que a sua poesia não seria mais a mesma. Agora ele escreveria seus poemas com as

palavras feridas. Da mesma forma podemos dizer, que Celan também escreveu com palavras

feridas. Há, em sua poesia, uma “‘ferida de lembrança’ não curada”58, como veremos mais

adiante.

Paul Celan escreveu o poema “Fuga da morte” quando estava de passagem, em

Viena. Depois, foi morar em Paris, e demorou algum tempo para se adaptar aos hábitos

parisienses. Sentia-se só e muito culpado pela morte dos pais. Ficou em Paris até o fim da

vida. Ele irá dedicar-se à literatura, seja nas traduções, seja na escrita poética. Apesar de

morar em Paris e poder compartilhar com os alunos da École Normale Supérieure, onde

lecionava língua alemã, e com os amigos de língua alemã que moravam em Paris, ele

necessitava viajar constantemente à Alemanha, Suíça e Áustria. Parecia precisar ouvir a

língua alemã. Mas, mesmo em suas viagens, quando divulgava sua escrita, falando em

alemão, língua escolhida por ele para escrever seus poemas, Celan não ficava à vontade,

sempre estranhando alguma coisa. Às vezes ficava acuado com as perguntas, e com a falta de

entendimento em relação a sua poética. Acuado e revoltado. Não admitia ser chamado de

poeta hermético. Sua poesia era clara, e ele a escrevia para que todos entendessem, gostava de

dizer. O poeta sentia-se tomado por um desassossego sem trégua.

O poema “Fuga da morte” faz alusão à experiência de Paul Celan como

prisioneiro de guerra dos nazistas em um campo de trabalhos forçados. Ele surge depois da

experiência traumática vivida pelo poeta na guerra. Também traz à tona as atrocidades

ocorridas nos campos de concentração. Evoca uma experiência vivida em um campo de

concentração. Sabemos que os pais do poeta morreram nos campos. Este poema foi o

primeiro a ser assinado como Paul Celan. Aqui, ele se despedia do seu nome paterno

Antschel. O que estaria indicado aqui seria o que Maingueneau chamou de “reserva” de um

autor. Podemos lembrar que quando o escritor Julien Gracq é colocado na coleção La Plêiade,

ele se recusa a deixar reproduzirem sua assinatura. Maingueneau nos esclarece sobre este

ponto:

58 ABI- SÂMARA, Raquel. Quem sou eu, quem és tu? Hans-George Gadamer: leitor de Paul Celan. Tese de doutorado apresentada no programa de Pós-graduação em Letras – UERJ, 2002. p.36.

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A assinatura imporia a presença maciça de uma individualidade em que só deve figurar a inapreensível ‘reserva’ de um autor por intermédio de quem a Literatura fala. Essa reserva que tem de ser incessantemente reafirmada é, ao mesmo tempo, uma ética e a dinâmica de uma escrita.59

O ato de Paul Antschel de mudar seu sobrenome, e se intitular Paul Celan não só

aponta para uma “reserva” incondicional do escritor, mas também para uma reescritura de seu

próprio nome. Não se trata de um pseudônimo como no caso de Julien Gracq. Esta mudança

de sobrenome estabelece um trabalho de linguagem, trabalho que irá de encontro a sua criação

poética. A mudança de nome só antecipa aquilo que estava por vir, isto é, uma mudança

semântica radical, uma gramática ferida.

O poema “Fuga da morte” traz em seus versos a possibilidade de uma experiência

entre a linguagem (sua escrita poética) e os eventos. E é nesta tênue relação entre a escrita e a

vida, que se dá a construção poética. Maingueneau nos esclarece sob este ponto dizendo o

seguinte:

o escritor só consegue passar para sua obra uma experiência da vida minada pelo trabalho criativo, já obsedada pela obra. Existe aí um envolvimento recíproco e paradoxal que só se resolve no movimento da criação: a vida do escritor está à sombra da escrita, mas a escrita é uma forma de vida.60

Os versos de “Fuga da morte” estão povoados de música, poesia e religião. Bach,

Wagner, Goethe, Heine e trechos da Bíblia atravessam todos os versos. Este texto, tomado

pela cena do horror nazista está organizado em forma musical. A experiência invocada no

poema se refere ao fato de que os guardas SS do campo obrigavam os violinistas judeus a

tocar música, em especial, uma peça conhecida como “El tango de la muerte”. Pablo Fuentes,

em seu texto “El arte de la fuga”, nos diz que esta música é baseada no tango Plegaria do

musico argentino Eduardo Bianco. Os guardas obrigavam os músicos judeus a tocarem este

tango durante “trabalhos, marchas, castigos e execuções”.61 Eduardo Bianco interpretou este

tango com sua orquestra perante Hitler em Berlim, onde foi gravado em 1939. Na verdade, os

nazistas usavam, durante as execuções, uma melodia baseada neste tango. Lembremos aqui,

que o poema de Celan tinha o título, em romeno, de “Tango da morte”.

Este poema se apresenta em quatro estrofes, em versos livres e métrica irregular.

Estrofes, que trazem as vozes apagadas dos prisioneiros, fazem contraponto às ordens dos

verdugos, com o fundo musical dos violinos. Cada uma destas estrofes inicia-se com um

59 MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. Op. cit. p. 55-56. 60 Ibidem. p. 47. 61 FUENTES, Pablo. El arte de la fuga: La escritura poética y lo real, retirado do site http://meltingpot.fortunecity.com/namibia/601/elartedelafuga.htm , dezembrode2002, p. 1.

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oxímoro Schwarze Milch (Leite Negro). Entre as estrofes, se alternam duas transições e uma

coda final. Coda é um período musical brilhante e vivo, que termina a execução de um trecho.

O poema, em sua estrutura formal, se apóia “sobre o princípio construtivo da fuga musical”.62

Paul Celan utiliza os recursos musicais da fuga, fazendo uso de distintas vozes no texto.

Assim, ficamos com uma impressão de fuga.

Eis o poema:

Fuga da morte

Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite bebemos e bebemos cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de ouro

Margarete escreve e põe-se à porta da casa e as estrelas brilham assobia e vêm os seus cães assobia e saem os seus judeus manda abrir uma vala na terra ordena-nos agora toquem para começar a dança Leite negro da madrugada bebemos-te de noite bebemos-te pela manhã e ao meio-dia bebemos-te ao entardecer bebemos e bebemos Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de ouro Margarete Os teus cabelos de cinza Sulamith cavamos um túmulo nos ares

aí não ficamos apertados

Ele grita cavem mais fundo no reino da terra vocês aí e vocês outros cantem e toquem leva a mão ao ferro que traz à cintura balança-o azuis são os seus

olhos enterrem as pás mais fundo no reino da terra vocês aí e vocês outros continuem

a tocar para a dança

Leite negro da madrugada bebemos-te de noite bebemos-te ao meio-dia e pela manhã bebemos-te ao entardecer bebemos e bebemos na casa vive um homem os teus cabelos de ouro Margarete os teus cabelos de cinza Sulamith ele brinca com as serpentes

62 “As partes principais da fuga musical são os desenvolvimentos e as transições. A fuga começa com uma voz expondo o tema no tom principal. A continuação, uma segunda voz inicia o tema em uma forma um pouco modificada, quase como uma ‘resposta’ enquanto a primeira voz cumpre uma função de contraponto. As distintas vozes ou temas que se apresentam dão uma impressão de fuga.” (segundo apontamentos de Pablo Fuentes).

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E grita toquem mais doce a música da morte a morte é um mestre que veio da Alemanha

grita arranquem tons mais escuros dos violinos depois feitos fumo subireis aos céus

e tereis um túmulo nas nuvens aí não ficamos apertados Leite negro da madrugada bebemos-te de noite bebemos-te ao meio-dia a morte é um mestre que veio da Alemanha bebemos-te ao entardecer e pela manhã bebemos e bebemos a morte é um mestre que veio da Alemanha azuis são os teus olhos atinge-te com bala de chumbo acerta-te em cheio na casa vive um homem os teus cabelos de ouro Margarete atiça contra nós os seus cães oferece-nos um túmulo nos ares brinca com as serpentes e sonha a morte é um mestre que veio

da Alemanha

os teus cabelos de ouro Margarete os teus cabelos de cinza Sulamith63

Este poema levanta várias perguntas. A experiência do Holocausto excede toda

significação. Então, como uma escritura poética pode dar conta do que excede e busca se

inscrever? Toda esta experiência está atravessada por silêncios e pela morte. É possível

traduzir e criar a partir de tal experiência?

Neste poema há uma aposta nos limites da significação. A linguagem, marcada

pelo traumático da experiência dos campos de concentração, se transforma em ato mesmo da

enunciação, “em fragmentos verbais desprendidos da ordem comunicativa que circulam

incessantemente no texto, em imagens invocadas em estado de desagregação e recomposição

semântica”.64 O trabalho de escrita de Celan consiste em revelar o que não pode ser nomeado

da experiência.

O que é de um horror extremo é apresentado de forma poética, trazendo

velamentos e descentramentos no tema. Talvez, estes recursos poéticos nos permitam ler o

poema e encontrar o efeito estético esperado – a saber – o impacto de uma história ainda

encoberta.

Em quatro estrofes, o poema inicia-se com o oxímoro “leite negro” e que evoca

metonimicamente a uma maternidade que recusa, trazendo à tona, veladamente, a questão da

morte. Na verdade, o significante morte só comparece, de forma plena, na repetição do verso

“a morte é um mestre que veio da Alemanha”. Além disso, os temas, ao modo musical, se

sucedem e se vinculam entre si em diferentes ordenamentos. Vejamos alguns desses

63 CELAN, Paul. “Fuga da morte” in Sete rosas mais tarde. Antologia poética, seleção, tradução e introdução de João Barrento e Y. K. Centeno. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 15-19. 64 FUENTES, Pablo. El arte de la fuga: La escritura poética y lo real. Op. cit., p.4.

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ordenamentos, seguindo uma pontuação de Pablo Fuentes. Na referência ao tempo e à

maternidade temos “leite negro”. Em relação à morte, mais especificamente à impossibilidade

do judeu de ter um enterro digno, temos “cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos

apertados”. É uma referência clara também aos judeus que eram queimados. Na seqüência das

referências, ainda encontramos o contraste entre as mulheres Margarete/Sulamita trazendo

algo de uma figura dupla feminina. Reconhecemos em Margarete a figura feminina de Fausto

de Goethe, e em Sulamita a mulher que é evocada nos Cânticos dos Cânticos. Uma referência

forte à Alemanha como portadora da morte, aos judeus como vítimas, além de outros temas

não citados aqui, se sucedem e se alternam dando possibilidades de significações ao leitor,

principalmente nas quatro estrofes principais.

Nos momentos de transição do poema, que são dois, surge em seu início o

significante “grita” – puro horror. Este significante é um pedido enlouquecedor dos verdugos.

Pedem que toquem e cantem. O que trazia mais angústia ainda aos judeus; o peso do trauma,

que o poema evoca a todo instante, fica mais insuportável ao leitor. Era a cerimônia do

extermínio que estava em andamento. Este grito dos verdugos nos remete a uma total

desumanidade. O carrasco grita, os cães ladram e as vítimas somente podem calar e morrer.

Este poema é – nas palavras de Soshana Felman –, um poema “sobre a relação

entre violência e linguagem, sobre a passagem da linguagem pela violência e a passagem da

violência pela linguagem”.65 Esta violência é encenada no poema pelos atos de fala do mestre

alemão que dirige a orquestra macabra.

A coda final traz a dramaticidade da diferença entre as mulheres Margarete e

Sulamita. Assim fala o texto em seu final: “os teus cabelos de ouro Margarete / os teus

cabelos de cinza Sulamith.”

Margarete representa o objeto de desejo de Fausto, e a encarnação do amor

romântico no sentido goethiano. Uma cena que evoca, ao mesmo tempo, o desejo efetivo do

mestre alemão – o mestre da morte – pela sua amada alemã, e a tradição da literatura

melancólica alemã. Já Sulamita (Sulamith na tradução portuguesa), é um emblema feminino,

evocada nos Cânticos dos Cânticos. Sinal de beleza, emblema do desejo, Sulamita porta o

anseio pela judia amada. Ainda evoca a melancolia bíblica e literária judia. Tanto na evocação

de Margarete quanto na de Sulamita, esta evocação do nome querido é atravessada pelos

mesmos anseios e desejos humanos. Há uma ressonância mútua. Porém há uma radical

diferença, amargo sinal dos tempos sombrios. Ironicamente, Celan nos traz este contraste que

65 FELMAN, Soshana. “Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino” in Catástrofe e Representação. São Paulo: Escuta, 2000. p. 43.

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choca. Os “cabelos de ouro” de Margarete, o ideal ariano, e os “cabelos de cinza” da

Sulamith, da beleza semita. Mas não é só isso. Os ideais arianos da raça pura num contraste

chocante com o “cabelo queimado de uma raça” 66 – cabelo reduzido às cinzas.

Neste poema e em outros poemas iniciais, o caráter traumático desta escrita se

mostrava evidente. Em determinado momento, algum tempo depois da construção do poema

“Fuga da morte”, Celan começa a ser reconhecido como um outro “mestre” celebrado.

Vejamos os dois primeiros versos do poema intitulado “Não mais arte de areia”, onde a

questão da mestria é criticada: “Não mais arte de areia, nem livro de areia, nem mestres/ nada

que se lance a sorte dos dados”.67 Em tempos sombrios, o poeta se posiciona em relação à

mestria, questionando ao mesmo tempo, os oficiais da SS – mestres da morte – e a mestria da

poesia.

66 FELMAN, Soshana. “Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino.” Op. cit. p. 45. 67 CELAN, Paul. Não mais arte de areia in Poemas. Tradução de Pablo Oyarzún. Edición Electrónica de www.philosophia.cl . Escuela de Filosofía. Universidade de Arcis, p. 86.

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4. O POETA E SUAS INDAGAÇÕES

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4.1. A QUESTÃO DA EXPERIÊNCIA DO POETA

Em 22 de março de 1962, Celan escreve uma carta ao poeta René Char, carta esta

que ele não consegue enviar. Ele escreve para agradecer o apoio dado a ele por Char no

affaire Goll68. Cito alguns trechos da carta:

Querido René Char, Obrigado pela sua carta – tão verdadeira. Obrigado de me apertar a mão – eu aperto a sua. (...) A poesia, como você bem sabe, não existe sem o poeta, sem sua pessoa – sem a pessoa”.69

Mais adiante, ao tratar da questão do exílio diz: “quanto a mim, me redistribuem,

depois, divertem-se em me apedrejar com... os pedaços destacados do meu eu”.70 Esta carta,

não enviada, mas endereçada a um poeta, eu diria até endereçada à poesia, nos lança uma

questão por demais instigante. Na poesia, isto é, na construção do poema, trabalha-se com os

“pedaços destacados” do “eu”? Podemos pensar aqui o “eu” (moi) na referência à pessoa

como totalidade, o que explicaria, em parte, a busca de Celan pelo encontro consigo mesmo.

No entanto, a questão do “eu” é bem mais complexa. Sabemos que Freud, nos primeiros

escritos, pensava o “eu” como o “si-mesmo” de uma pessoa como totalidade (incluindo seu

corpo), para diferenciar de outras pessoas. Encontramos o uso da expressão “si-mesmo”71 em

seus trabalhos sobre o narcisismo, onde Freud falava que o “eu” é um reservatório de libido

narcisíca. Depois, como veremos, o “eu” ocupará um lugar secundário.

A afirmação de Celan sobre o “eu” nos coloca diante do poeta em seu dizer. Dizer

que porta um enigma, e que nos leva em direção à fórmula de Rimbaud: “EU é um outro”72,

fórmula que introduz uma rachadura que não pode mais ser remendada. Essa rachadura

também é uma abertura – abertura do inconsciente –, mas uma abertura que também pode ser

68 O chamado affaire Goll se refere à acusação feita por Claire Goll, viúva do poeta surrealista Yvan Goll, do qual Celan era tradutor e amigo: Em 1951, a senhora Goll instiga o editor Franz Vetter da editora Pflug Verlag a recusar as traduções de Paul Celan dos poemas de seu marido Yvan Goll, alegando “que elas portavam a marca bastante pregnante do tradutor”. (Correspondance. Vol. II. p. 488.) Este ato teve conseqüências duras, porque um tempo depois, ela publicou uma carta aberta em um jornal alemão, difamando o nome de Paul Celan, acusando-o de plágio. 69 “Cher René Char, merci pour votre lettre – si vraie. Merci de me serrer la main – je serre la vôtre. (...) La poésie, vous le savez bien, n’existe pas sans le poète, sans sa personne – sans la personne”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et Illustrations Vol. II. Paris: Seuil, 2001. Op. cit. p.535. 70 “quant à moi, on me redistribue, puis, on s’amuse à me lapider avec... les pièces détachées de mon moi”. Ibidem. p. 536. 71 das Selbst em alemão. 72 “JE est un autre”. RIMBAUD, Arthur. Carta a Paul Demeny de 15 de maio de 1871. In: RIMBAUD Poésies, Le livre de Poche n. 5924, p.201.

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entendida como uma ferida, uma dimensão da experiência poética. A partir desta frase de

Rimbaud, o que se apresenta é a descontinuidade do eu. Rimbaud se opõe, nas palavras de

Michel Collot, à “teoria tradicional da expressão, segundo a qual o eu, na sua identidade e

integridade será mestre e fiador – auctor – de sua palavra”.73 A oposição de Rimbaud quebra

a hegemonia do eu. Ele recusa a concepção cartesiana que dá ao sujeito a faculdade de

coincidir com ele mesmo no ato de pensar: “é falso dizer: eu penso: deveríamos dizer: alguém

me pensa”.74 Rimbaud se mostra atento a isso que se passa alheio a si mesmo. Vale lembrar

aqui Lacan que também recusa a idéia do “eu penso”. Lacan diz que

a questão que a natureza do inconsciente coloca diante de nós é, em poucas palavras, a de que alguma coisa sempre pensa. Freud nos ensinou que o inconsciente está acima de todos os pensamentos e que aquilo que pensa está vedado à consciência.75

Lacan acredita que o pensamento deve ser um efeito do inconsciente. O que

reforça a concepção de sujeito (Je) defendida por Rimbaud. O Je porta “em seu dizer uma

polissemia (a possibilidade de uma palavra ter muitas significações)”76, diz Collot. Algo que

não pode ser dominado. Nas palavras de Collot, este Je teria uma relação com o isso (ça)

freudiano: “eu quiz dizer o que isso diz”77. Para este autor, é o isso que o poeta deixa falar

através da linguagem. Há, então, nele, um desconhecimento de si mesmo. Lembremos aqui

Freud, em seu livro Esboço de Psicanálise: À mais antiga das localidades ou áreas de ação

psíquica do ser falante damos o nome de isso. O isso contém formas de expressões psíquicas

desconhecidas:

contém tudo o que é herdado, que se acha presente no nascimento, que está assente na constituição – acima de tudo, portanto, as pulsões, que se originam da organização somática e que aqui [no isso] encontram uma primeira expressão psíquica, sob formas que nos são desconhecidas78.

Para Freud, esta parte do aparelho psíquico permanece sendo a mais importante

durante toda a vida. Sabemos, pela psicanálise, que a formação do “eu” se dá a partir do isso.

Ele é um destinatário dos investimentos derivados do isso. Assim, o “eu” é “uma espécie de

73 COLLOT, Michel. “L’Autre dans le Même” in COLLOT, Michel & MATHIEU, Jean-Claude (org.). Poésie et Alterité. Paris: Presses de L’École Normal Supérieure, 1990. p. 31. 74 “C’est faux de dire: Je pense: on devrait dire: On me pense”. RIMBAUD, Arthur. Carta a George Izambard de 13 de maio de 1871. In: RIMBAUD Poésies. Le Livre de Poche n. 5924. Op.cit. p. 200. 75 LACAN, Jacques. “Da estrutura como intromistura de um pré-requisito de alteridade e um sujeito qualquer” in A controvérsia estruturalista. São Paulo: Editora Cultrix Ltda. p. 201. 76 COLLOT, Michel. “L’Autre dans le Même”. Ibidem. p. 31. 77 “j’ai voulu dire ce que ça dit”. Ibidem. p.31. 78 FREUD, Sigmund. Obras Completas. Volume XXIII. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1969. p. 169-170.

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estação terminal de um processo gerado em outra cena”79. Então, ele não controla as reservas

libidinais do ser falante. Ele somente as conserva.

O poeta, quando traz a sua palavra não a traz pelo seu “eu” (moi), pois quem fala é

o Je não-reconhecido (Je méconnu). Podemos dizer, então, que o sujeito que fala está além do

“eu” e toca aquilo que é mais não-reconhecido (méconnu). É a partir deste desconhecimento,

no campo do “eu”, que podemos pensar o inconsciente e aproximá-lo do ça dit trazido por

Collot.

Há, então, um desconhecimento (méconnaissance) que vai implicar, em seu

significado, precisamente o sujeito (Je) de que fala Rimbaud. Assim, a questão do encontro

consigo mesmo, trazida por Celan, se refere muito mais ao desconhecimento de que fala

Lacan do que “a pessoa” em sua totalidade. Desconhecimento que talvez possa ter alguma

relação com os “pedaços destacados” do “eu”, na medida em que Celan fala de um “eu”

fragmentado. É claro que aqui estamos pensando na referência a singularidade da descoberta

freudiana, a saber: “a intrínseca determinação do sujeito por fatos de linguagem dos quais ele

não tem nenhuma percepção e que lhe são estritamente particulares”80. O próprio “ato falho”,

introduzido por Freud como uma formação do inconsciente, já aponta uma falha no “eu”, uma

singularidade do inconsciente onde as palavras que tropeçam são palavras que confessam.

Então, o inconsciente, esse saber não-sabido, porta uma falta e fala de um desconhecimento.

Deconhecimento que implica um saber, que precisa ser inventado. O laço entre

desconhecimento, inconsciente e invenção nos interessa aqui para pensarmos o poeta como

aquele que faz passagens em direção a uma invenção.

Em 17 de março de 1961, Celan assiste a três conferências de Theodor Adorno no

Collège de France, mas não pôde assistir a todas as conferências. Então, ele escreve para

Adorno para se desculpar dizendo: “eu me sinto muito sozinho, estou muito sozinho – comigo

mesmo e meus poemas (o que eu considero uma só e mesma coisa).”81 A travessia solitária

que Paul Celan empreende é bem exemplificada em seu discurso “O meridiano”. O texto

definitivo do discurso “O meridiano” “é o resíduo da decantação difícil de um manuscrito

enorme (notas, tentativas, transcrições entre maio e outubro de 1960) com cerca de 300

79 CABAS, Antonio Godino. Curso e discurso da obra de Jacques Lacan. São Paulo, 1982. p. 216. 80 CONTÉ, Claude. O real e o sexual – de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. p. 252-253. 81 “Je me sens très seul, je suis très seul – avec moi même et mes poèmes (ce que je tiens pour une seule et même chose).” CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et Illustrations. Vol II. Op. cit. p. 530.

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páginas”.82 Este discurso é qualificado por Derrida como um “ato exemplar”. Roger Laporte,

em seus comentários sobre Paul Celan complementa dizendo que:

O Meridiano é, com efeito, um ‘ato exemplar’ na medida onde o ato do pensamento e o ato poético fazem um só ato. Este ato constitui uma escrita, constitui-se como uma nova modalidade de escrever, como experiência, isto é, ao mesmo tempo como prova e como travessia, como passagem, como tentativa de atravessar uma região assustadora, como um abrir caminho que é preciso cumprir até o fim83.

A escrita de Paul Celan está marcada por passagens. Do traumático ao impossível.

Uma das palavras-chave de sua poética é o termo hebraico Schibboleth84 que significa palavra

de passe (mot de passe): passagem, ultrapassagem de fronteira. Real85 que insiste em tentar

passar e deixar alguns traços.

O discurso “O Meridiano” deve ser visto como um trajeto de escrita, onde o

caminho é sempre um “caminho do impossível, este impossível caminho” 86, nas palavras de

Celan.

Meridiano é o nome dado a uma linha imaginária da superfície terrestre que se

estende de um pólo a outro. Um meridiano é a metade de um grande círculo que passa pelos

pólos e forma um ângulo reto com o Equador. Os meridianos também são chamados de linhas

de longitude. Para saber precisamente onde se encontra, e para localizar qualquer ponto da

superfície terrestre, o homem inventou dois tipos de círculos que cortam a Terra em dois

sentidos: leste-oeste, meridianos; norte-sul, paralelos. O meridiano também pode ser pensado

como uma travessia forçada, isto é, algo que toca um limite. Sabe-se que o meridiano é

qualquer dos círculos máximos da esfera terrestre que passam pelos pólos. É este “máximo”

que atinge a poesia de Celan. “Máximo” aqui pensado como algo que precisa de um esforço

redobrado, eu diria até um “forçamento”. Celan busca encontrar um Meridiano –

82 CELAN, Paul. Arte Poética – O Meridiano e outros textos. Posfácio de Joao Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1996. p. 78. 83 “Le Méridien est en effet un ‘acte exemplaire’ dans la mesure où l’acte de la pensée et l’acte poétique ne font q’un. Cet acte constitue une écriture, si constitue comme une nouvelle modalité d’écrire, comme expérience, c’est-à-dire à la fois comme épreuve et comme traversée, comme franchissement, comme tentative de franchissement d’une contrée effrayante, comme un frayage qu’il faut accomplir jusq’au bout”. LAPORTE, Roger. Études. Paris: P.O.L. Éditeur, 1990. p. 72-73. 84 Schibboleth é uma palavra de origem hebraica que se encontra no Antigo testamento; em alemão quer dizer algo próximo de Erkennungszerchen (signo de reconhecimento). Schibboleth também é um poema que Celan escreveu em 1954 e faz parte do livro Von schwelle zu schwelle (De limiar em limiar). 85 Real aqui não tem nehuma relação com a realidade. Vou utilizar o termo em itálico para evitar possíveis confusões com a realidade. Vamos abordar aqui o termo real na concepção lacaniana, que será explicado no decorrer da dissertação. 86 CELAN, Paul. Arte Poética – O Meridiano e outros textos. Op. cit. p. 63.

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“Selbstbegegnung (encontro de si mesmo)”,87 como ele escreve em sua agenda no dia 13 de

abril de 1960, após saber que tinha ganho o prêmio Buchner. Também encontramos, no final

de seu discurso, uma referência à busca empenhada por ele na constituição de si, no intuito de

encontrar uma linguagem que pudesse expressar seus poemas. Cito o texto:

encontro qualquer coisa – como a linguagem – de imaterial, mas terreno, planetário, de forma circular, que regressa a si mesma depois de passar por ambos os pólos e – coisa divertida! – cruzar os trópicos: encontro um Meridiano.88

Ao falar de “coisa divertida”, Celan faz um jogo, na língua alemã, com “as

palavras “tropos” e “trópicos” (que tem a mesma forma de plural, Tropen)”89. A palavra

tropos quer dizer no sentido dos céticos, argumentos que mostravam que era impossível

atingir a verdade. Também quer dizer desvio, mudança. Encontrar um Meridiano pode ser

lido como algo impossível de se realizar em sua totalidade, quer dizer, impossível de atingir a

verdade do encontro e, por conseguinte, impossibilidade que atinge o próprio poeta, em sua

busca de si mesmo. Além disto, a “coisa divertida” tem relação com a carta não enviada por

Celan a Char, já citada no início deste capítulo, que fala do divertir-se até se “lapidar com... os

pedaços destacados” de seu eu.

A partir da cronologia feita por Bertrand Badiou no segundo volume da

correspondência90, vamos poder adentrar um pouco nas notas e na agenda pessoal do autor,

onde encontraremos maiores referências bio-gráficas sobre Paul Celan. Em 22 de outubro de

1960, Paul Celan recebe o importante prêmio Georg Buchner, já comentado neste capitulo.

Depois, o texto do discurso intitulado “O Meridiano” será publicado. Neste dia, ele escreveu

em sua agenda uma referência ao discurso. Assim fala o texto incluído na cronologia de

Celan: “Mas o poema fala! Da data que é a sua, ele preserva memória, mas – ele fala. Ele fala,

certamente, sempre, da circunstância única que, propriamente, lhe diz respeito”.91 Este recorte

do texto vai ao encontro do que Michel Deguy diz em homenagem a Paul Celan: “todo poema

é de circunstância (...) Dito em outros termos: um poema espera. Ele espera repassar no

87 Cito : “Selbstbegegnung (rencontre de soi même)”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et Illustrations. Vol. II. Op. cit. p. 522. 88 CELAN, Paul. O Meridiano in Arte Poética – O Meridiano e outros textos. Op. cit. p. 63. 89 CELAN, Paul. Ibidem. nota n.26. p. 63. 90 CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et Illustrations. Vol. II. Paris: Seuil, 2001. 91 “Mais le poème parle! De la date qui est la sienne, il préserve mémoire, mais – il parle. Il parle, certes, toujours, de la circonstance unique qui, proprement, le concerne”. Ibidem. p. 527.

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‘meridiano’: quer dizer cruzar com uma circunstância”.92 O poema, então, espera. Espera a

circunstância que lhe dará algum sentido, a data que o fará sair da espera e esclarecer algo –

que se apresenta marcado pelo “enigma da data”, segundo as palavras de Derrida. O enigma

que aqui nada mais é que a experiência poética da data. E, nesta experiência poética da data,

leio uma passagem ao poético. Afirma-se uma poética – na relação com as datas. Celan em

seu discurso “Meridiano” declara que: “talvez se possa dizer que em cada poema fica inscrito

o seu ‘20 de janeiro’*. Talvez o que há de novo nos poemas que hoje se escrevem seja isto:

que é aí que, da forma mais clara, se procura manter viva a memória de tais datas”.93 Manter

viva a memória de datas, recortar uma circunstância, trazer o poema à sua singularidade de

acontecimento, dar “fisionomia às datas”, como dizia Benjamin e assim trabalhar o poema em

sua operação criadora.

Jacques Derrida dedica-se a trabalhar a questão do “enigma da data” no livro

intitulado Schibboleth. Derrida, neste livro, se propõe a estudar a importância da data na

poética de Paul Celan. As datas, muitas vezes, também tinham referência a um lugar. Alguns

poemas estão datados em Zurich, Tubingen, Todtnauberg, Paris, Jerusalém, Lyon, Tel-Aviv,

Viena, Assis, Colônia, Genebra, etc. Ele lembra que ao começo ou ao final de uma carta, “a

data consigna um agora do calendário ou do relógio”94. As datas, inscritas nas cartas, marcam

o que se encontra dado. E o que é datado é algo da ordem de uma assinatura – e que se

encontra re-marcado de uma forma singular. Para Derrida, o que se remarca é sua “partida”,

este início da carta que pertence à data, mas que a abandona ao partir dirigindo-se ao outro.

Há aqui, certa forma de repartição. A marca que a data porta deve ser des-marcada, pois ela

precisa se desgarrar do datado e seguir seu caminho. É preciso, então, que o datado não date,

isto é, não mantenha a fixidez do datado, que impediria a carta de seguir seu destino. Assim, a

legibilidade da data poderá comparecer arrancando ou se substraindo a si mesmo, isto é, a sua

aderência imediata ao aqui e agora.

Além disso, na experiência poética de Paul Celan, cada data tem a sua própria

ferida. Lemos no texto “Lectures de Paul Celan” de Roger Laporte uma reflexão importante

sobre a data, a partir de Derrida. Diz o texto: “nós nos interessamos pela data como por um

entalhe ou a uma incisão que o poema traz em seu corpo [...], o poema começa por se ferir em

92 “tout poème est de circunstance (...). Dit en autres termes: un poème attend. Il attend de repasser au ‘méridien’: c’est-à-dire de recouper une cirscunstance”. in DEGUY, Michel. “Paul Celan, 1990” in La raison póetique. Paris: Galilée, 2001. p. 93. * 20 de janeiro de1942 é a data em que os nazistas se reuniram em uma mansão à beira do lago Wansee, em Berlim, para decidir o destino dos judeus. A “solução final” para o “problema judaico” era a câmara de gás. 93 CELAN, Paul. Arte Poética, O Meridiano e outros textos. Op. cit. p. 54. 94 DERRIDA, Jacques. Schibboleth. Para Paul Celan. Madrid: Arena Libros 2002.p. 29.

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sua data”95. Podemos então dizer que a memória das datas, para Celan, tem relação com a

memória dos crimes do fascismo, e, de modo geral, com a memória de todas as violências

durante os séculos contra a humanidade. Cada poema de Celan porta um rastro destas datas.

Daí ele frisar que em cada poema estaria inscrito o seu “20 de janeiro”.

Também encontramos em Celan a referência à data como algo de um valor

talismânico. Para ele, o número 23 tinha um valor de talismã ligado à sua data de nascimento,

que era 23 de novembro, e a data de seu casamento com Gisèle, um 23 de dezembro. Ele

chamava estas datas de “‘grandes aniversários’; os 23 dos outros meses do ano eram os

‘pequenos aniversários’”96. Em 23.1.1955, ele envia um telegrama (de Stuttgart) dizendo:

“BOM ANIVERSÁRIO MINHA QUERIDA BOM ANIVERSÁRIO”97. Mesmo internado

em uma clínica privada de Vésinet, Celan lembrava do dia 23. No dia 11 de maio de 1965 (n.

230), ele diz que terá que ficar quinze dias na clínica e acrescenta: “Será, pois para o 23, dia

de aniversário”98.

Michel Deguy nos fala que, para pensarmos a poesia de Celan como experiência,

ela teria que cumprir três requisitos: originalidade, rigor (mantendo a lógica própria do poema

– a sua singular respiração) e responsabilidade. E acrescenta:

A poesia celaniana, transfiguração da experiência em seu poema, é esta proeza de três à proa da poesia: pela densidade de sua gravidade; pela lógica do algos99, ou pensamento da dor; pela referência, sim, outro nome da responsabilidade, isto é, a ‘potência próxima’ (Merleau-Ponty) que exerce esse dizer sobre as coisas do tempo, de nosso tempo100.

Ainda podemos acrescentar que a responsabilidade deve engajar, nas palavras de

Derrida “uma assinatura poética à uma data singular”101.

95 “nous nous intéressons à la date comme à une entaille ou à une incison que le poème porte dans son corps [...], le poème commence par se blesser à sa date ” LAPORTE, Roger. Études. Op. cit. p. 69. 96 “‘grands anniversaires’; les 23 des autres mois de l’année étant les ‘petits anniversaires’”. CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance II – Commentaires et Illustrations. Op. cit. p. 46. 97 “BON ANNIVERSAIRE MA CHÉRIE BON ANNIVERSAIRE”. CELAN, Paul. LESTRANGE-CELAN, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 64. 98 “Ce será donc pour le 23, jour d’anniversaire”. Ibidem. p. 241. 99 algos em grego significa “dor” , de onde vem o sufixo algia, que entra na formação de palavras do tipo nevralgia, mialgia etc 100 “La poèsie celanienne, transfiguration de l’expérience en son poème, est cette prouesse des trois à la proue de la poésie: par la densité de la gravité; par la logique de l’algos, ou pensée de la douleur; par la référence, oui, autre nom de la responsabilité, c’est-à-dire la ‘puissance prochaine’(Merleau-Ponty) qu’exerce ce dire sur les choses du temps, de notre temps.” DEGUY, Michel. “Paul Celan, 1990” in La raison póetique. Op. cit. p. 92. 101 DERRIDA, Jacques. “Poétique et politique du témoignage”. in Cahier de L’Herne - Jacques Derrida. 2005. p. 521.

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Todo poema, diz o ensaísta e tradutor João Barrento, “é o registro de uma

circunstância, que é uma experiência”102. Etimologicamente, experiência vem do latim ex-

periri que quer dizer provar, experimentar. Em francês, éprouver. O radical de ex-periri é

periri que significa periculum, péril, danger, perigoso. A raiz indo-européia é per “a qual se

liga a idéia de travessia e secundariamente, esta de prova”103, diz Philippe Lacoue-Labarthe

Trata-se de uma travessia arriscada. Também no alemão, Er-fahrung, que contém os semas de

travessia (fahren) e de perigo (gefahr). Nas palavras de Walter Benjamin, Erfahrung é a

experiência (real ou acumulada), sem a intervenção da consciência. É o conhecimento obtido

através de uma experiência que se acumula. Não devemos confundir o conceito de Erfahrung

com o de Erlebnis (traduzido por vivência), que não tem conseqüências poéticas, nem “resto”.

Na vivência, encontramos somente uma experiência vivida, evento que é assistido pela

consciência.

Para o tradutor e estudioso da obra de Paul Celan, Fernand Cambon, o ato poético

se efetua inteiramente no presente. É “um ato que é vivido essencialmente no presente, mais

do que qualquer outro. É uma espécie de presente incessantemente renovado.” 104 Cambon

esclarece que este presente não tem relação com o “eterno presente”105 do qual fala a

psicanalista Solal Rabinovitch. O “eterno presente” é o estado em que vivem os psicóticos,

segundo o estudo desta autora. A partir da hipótese levantada por Cambon de que a Shoah

pode modificar os dados do ato poético genérico, em particular “pela pertubação da

temporalidade que ela engendra”106, podemos fazer uma relação com as concepções de

Rabinovitch sobre o “eterno presente”. Assim, o acontecimento traumático pode ser visto

como um acontecimento que vai parar o tempo, fazendo com que o tempo da Shoah torne-se,

ele mesmo, “eterno presente”. No entanto, diz Cambon,

em Celan, isto não chegava a este ponto, mesmo assim. Mas, em todo caso, isto tem o risco de pertubar o ato poético, que não é, propriamente, ‘eterno presente’, mas que é perpetuamente recomeçado e engajado no presente efetivo. Isto vai desempenhar um papel fixador bastante importante. 107.

102 CELAN, Paul. A morte é uma flor. Lisboa: Edições Cotovia. 1998. p. 133. (posfacio de João Barrento) 103 “à laquelle se rattachent l’idée de traversée et secondairement, celle d’epreuve”. LACOUE-LABARTHE, Philippe. La poésie comme experience. Paris: Christian Bourgois Éditeur. 1997. p. 30. 104 “un acte qui se vit essentiellement au présent, plus que tout autre. C’est une sorte de présent incessamment renouvelé”. CAMBON, Fernand. “Paul Celan en Provence”. Carnets 35. Paris: École Psychanalytique Sigmund Freud. 2001. p. 89-90. 105 “éternel présent”. RABINOVITCH, Solal. Les voix. Paris: Point hors ligne, Érès coll. 1999. 106 “par le bouleversement de la temporalité qu’elle engendre”. CAMBON, Fernand. “Paul Celan en Provence”. Carnets 35. Paris: École Psychanalytique Sigmund Freud. 2001. p.91. 107 “Chez Celan, ça n’etait pas à ce point là, tout de même”. Mais en tout cas, ça risque de bouleverser l’acte poétique, qui n’est pas, lui, proprement ‘éternel présent’, mais qui est perpétuellement recommencé et engagé dans le présent effectif. Ça va jouer un rôle fixateur très important”. Ibidem. p.91.

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Trata-se aqui de um presente sempre em renovação constante. E o poeta escreve

pela sua experiência vivida no presente, “‘tempo específico da poesia’ como Celan anotou

uma vez” 108.

No artigo “Paul Celan ou la passion du réel” 109, citado pelo autor em “Paul Celan

en Provence”, Cambon diz, indo contra a famosa frase de Adorno, a saber, “que seria bárbaro

escrever poemas depois de Auschwitz”, que, ao contrário, “a poesia seria a forma de

linguagem mais adequada para sustentar uma tarefa marcada pelo impossível”110. Em Celan,

nas palavras de Cambon, “o real do ato poético” 111 é uma resposta ao “real da Shoah”112.

Importa ressaltar que o real, termo introduzido por Jacques Lacan, está para além

do autômaton (que é regido por uma fala que se repete em vão e futilmente). Estamos sob o

domínio da tiquê. Lacan traduz tiquê por encontro do real. Real como sendo a dimensão do

impossível, real sem lugar de ser. “A função da tiquê, do real como encontro, (...) encontro

faltoso, se apresenta primeiro na história da psicanálise”113, como traumatismo. O real, no

entanto, não fica restrito à experiência traumática. Segundo Lacan, o real se distingue por

“sua separação do campo do princípio do prazer, por sua dessexualização, pelo fato de que

sua economia, em seguida, admite algo de novo, que é justamente o impossível” 114.

A escrita de Paul Celan parte deste encontro faltoso, na medida em que os

acontecimentos que permeiam sua poética, por exemplo, Auschwitz, tocam em questões

impossíveis de simbolizar. Martine Broda, falando de Auschwitz, diz:

todo o contrário de uma metáfora, um acontecimento puro, o impossível, o surgimento de um absoluto horror, quer dizer, de um real (no sentido lacaniano), de início insimbolizável, com risco de retornar como trauma, no real da História, enquanto que ele permanecer acontecimento inanalisável, enquanto o silêncio for cúmplice das forças que, desde o início, trabalhavam para o recalque – o esquecimento.115

108 “le ‘temps spécifique de la poésie’, comme Celan l’a noté une fois”. PAJEVIC, Marko. “Le poème comme ‘écriture de vie’”. Op. cit. p. 159. (esta citação de Celan foi encontrado por Pajevic na margem de um livro lido por Celan de Husserl: Leçons pour une phénoménologie de la conscience intime du temps.) 109 artigo publicado na Revue Europe.n. 861-862 Paris: 2001. 110 “la poésie serait la forme de langage la plus adéquate pour soutenir une tache marquée d’impossible”. CAMBON, Fernand. “Paul Celan en Provence”. Carnets 35. Paris: École Psychanalytique Sigmund Freud. 2001. Op. cit. p. 89. 111 “réel de l’acte poétique”. Ibidem. p. 89. 112 “réel de la Shoah”. Ibidem. p. 89. 113 LACAN, Jacques. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Livro XI (1964-1965). Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988, p.57. 114 Ibidem. p.57. 115 “Tout le contraire d’une métaphore, un événement pur, l’impossible, le surgissement d’une absolue horreur, c’est-à-dire d’un réel (au sens lacanien) d’abord insymbolisable, qui risque de faire retour comme trauma, dans le réel de l’Histoire, tant qu’il reste événement inanalysé, tant que le silence sera complice des forces qui, depuis le début, oeuvraien pour le refoulement – l’oubli”. BRODA Martine. “Paul Celan, la politique d’un poète après

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O real, na poética de Celan, está sendo pensado como algo da ordem do

impensável. Os acontecimentos dos campos de concentração também são da ordem do

impensável. Só podemos avaliar estes acontecimentos pensando-os articulados em uma

“composição do real”116. Nesta composição percebemos “uma constelação de elementos

chamados a constituir a realidade cuja ‘matriz’ permanecerá para sempre fora do domínio da

expressão”117. Este real é algo que se dá, sem mediação, e que “continua o efeito traumático

do que ficou fora da simbolização”118. Não há nenhum tipo de expressão que possa nomeá-lo,

e não há como circunscrevê-lo e manejá-lo. Ele é “inimaginável e inapreensível”119. Podemos,

então, pensar o real como um “movimento de travessia”120 que conduz o sujeito, à sua revelia,

para onde ele não tem mais nenhum meio de reagir, “a não ser na precipitação da imagem ou

da palavra que cai brutalmente numa espécie de evidência delirante”121.

Ao abordarmos a poética de Paul Celan a partir da concepção lacaniana do real,

estamos em um campo que não só toca o impossível de se escrever, mas também a questão do

sentido. O poeta e ensaísta Christian Prigent diz que a poesia é a simbolização de um buraco.

E acrescenta: “esse buraco, eu o nomeio real. Real entendido aqui no sentido lacaniano: o que

começa onde o sentido pára”122.

A partir de Lacan, podemos pensar que a escrita opera às voltas com o impossível,

trazendo a questão da destituição do ser, se interrogando de seu próprio movimento de

escrever. Ao romper com a questão do ser, a saber: a tradição, a ordem, a certeza, a verdade e

toda forma de enraizamento, a escrita literária traz em si a interrogação do desejo e encontra

sempre um impossível. A tarefa poética de Paul Celan toca o impossível, na medida em que

sua poesia procura reduzir “a imagem à pura percepção, isto é, na medida em que ela procura

esvaziar ou escavar a imagem”123. Assim, a poesia toma “sua medida na impossibilidade de

uma linguagem sem imagem ou na impossibilidade do que Benjamin chamou a ‘pura

Auchwitz” in Dans la main de personne – Essai sur Paul Celan et autres essais. Paris: Les éditions du Cerf. 2002. p. 155. 116 DAYAN, M. “Répetition et composition du réel” in Topique 41, 1988. p. 101 117 LAMBOTTE, Marie-Claude. O Discurso melancólico. Rio de Janeiro: Companhia de Freud Editora. 1997. p. 500. 118 Ibidem. p. 500. 119 Ibidem. p. 500. 120 Ibidem. p. 501. 121 Ibidem. p. 501. 122 “ce trou, je le nomme réel. Réel s’entend ici aus sens lacanien: ce qui commence là ou le sens s’arrête”. PRIGENT, Christian. L’Incontenable. Paris: P.O.L. 2004. p. 17. 123 “l’image à la pure perception, c’est-à-dire en tant qu’elle cherche à vider ou à evider l’image”. LACOUE- LABARTHE, Philippe. La poésie comme expérience. Op. cit. p.101.

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linguagem’”.124 Podemos ainda acrescentar que, na leitura de Philippe Lacoue-Labarthe, a

poesia, em Paul Celan, é sem representação. Ela se apresenta.

Sabemos, a partir do testemunho de sua esposa Gisèle, dado a poeta Martine

Broda que Paul Celan insistia sobre o caráter não metafórico e desprovido de imagens de sua

poesia. Cito o testemunho: “Eu sempre ouvi meu marido insistir no caráter absolutamente não

metafórico e desprovido de imagens de sua poesia, que ele associava à reificação da

palavra”125.

Segundo as palavras de Martine Broda:

‘reificação’ me parece ser uma tradução dessa Dinglichkeit (como consistência insuflada à linguagem, ‘ser-de-coisa’ ou ainda ‘efeito-de-coisa’) que Celan atribui à palavra em Mandelstam em uma das ‘cartas a Gleb Struve’ (op. cit.) onde ele se interroga sobre a condição muito particular do referente na poesia de Mandelstam.126

O caráter não metafórico da poesia de Celan nos fala de seu trabalho para

“simbolizar o insimbolizável”127, trabalho que um sujeito “descobre na língua o ‘ponto de

poesia’”128 a partir do qual, do impossível algo possa se inscrever. Celan inventa uma poesia

que caminha em direção ao caos das metáforas – “uma poesia sem imagens e sem metáforas,

à altura desta não-metáfora absoluta que é Auschwitz, do infigurável da morte”129. Uma

poesia que tem um caráter alegórico.

Luiz da Costa Lima, em seu livro Mímesis: Desafio ao pensamento discute a

questão da representação a partir do poema “Todtnauberg” de Paul Celan. O poema fala de

uma situação concreta: o encontro de Celan com Martin Heidegger na cabana do filósofo, na

aldeia de Todtnauberg, situada na Floresta Negra. Vejamos o poema:

Arnica, centáurea, o sorvo no poço, no topo

124 “sa mesure à l’impossibilité d’un language sans image ou à l’impossibilité de ce que Benjamin appelait le ‘pur language’”. LACOUE-LABARTHE, Philippe. La poésie comme expérience. Op. cit. p. 101. 125 “ j’ai toujours entendu mon mari insister sur le caractere absolument non métaphorique et dénué d’images de sa poésie, qu’il associait à la réification du mot”. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Apud BRODA, Martine. “Paul Celan, la politique d’un poéte après Auchwitz”. Dans la main de personne – Essai sur Paul Celan et autres essais. Op. cit. p. 154. 126 “‘réification’ me semble être une traduction de cette Dinglichkeit ( comme consistance insufflée au linguage, ‘être-de-chose’ ou encore ‘effet-de-chose’), que Celan atribue au mot chez Mandelstam dans une des ‘Lettres à Gleb Struve’ (op. cit), où il s’interroge sur le statut très particulier du référent dans la poèsie de celui-ci”. BRODA, Martine. “Paul Celan, la politique d’un poète après Auchwitz”. In Dans la main de personne – Essai sur Paul Celan et autres essais. Op. cit. p. 154. 127 “symboliser o l’insymbolisable”. BRODA, Martine. Ibidem. p.155. 128 “découvre dans la langue le ‘point de poésie’”. BRODA, Martine.Ibidem. p. 155. 129 “une poésie sans image e sans métaphore, à la hauteur de cette non-métaphore absolue qu’est Auschwitz, de l’infigurable de la mort”. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Apud BRODA, Martine. Ibidem. p.155.

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o dado estrelado na cabana, No livro – que nomes recolheu antes do meu? –, a linha escrita neste livro, esperança, hoje, da palavra de um pensador vinda Ao coração Relva do bosque, chão irregular Orquídeas e orquídeas, dispersas Cru, o que mais tarde, no caminho é patente,

Quem nos guia, o homem, também o escuta, Nos caminhos feitos de toras semipercorridos, no alto brejo,

Muito úmido130

Costa Lima parte de um comentário de Lacoue-Labarthe a propósito dos poemas

“Todtnauberg” e “Tubingen Janner”, este dedicado a Hölderlin. Cito o texto:

Creio estes poemas estritamente intraduzíveis, inclusive dentro de sua própria língua e, por isso, aliás, incomentáveis. Furtam-se necessariamente à interpretação; eles a interditam. No limite, são escritos para interditá-la. Eis por que a única questão que os conduz, como conduziu toda a poesia de Celan, é a do sentido, da possibilidade do sentido131.

Costa Lima se nega a “reiterar”, com Lacoue-Labarthe que os poemas de Celan

são incomentáveis. Para Costa Lima, “a dificuldade de entendimento é em grande parte

vencida pela reconstituição do ‘encontro’”132. Em nota de rodapé, ele fala de uma

130 LIMA, Luiz Costa. Mímesis: Desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 268-269 (tradução feita por Luiz Costa Lima neste texto). 131 “Je crois ces poèmes strictement intraduisibles, y compris à l’intérieur de leur propre langue, et pour cette raison d’ailleurs incommentables. Ils se dérobent nécessairement à l’interprétation, ils l’interdisent. Ils sont écrits, à la limite, pour l’interdire. C’est pourquoi l’unique question qui les porte, comme elle a porté toute la poésie de Celan, est celle du sens, de la possibilité du sens”. LACOUE-LABARTHE, Philippe. La poésie comme experience. Op. cit. p. 23-24. Tradução de Luis Costa Lima, no livro Mímesis: Desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p.269. 132 LIMA, Luiz Costa. Mímesis: Desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Ibidem. p.270.

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reconstituição empírica dos poemas de Celan. Trata-se da análise que Peter Szondi fez do

poema “Eden” de Paul Celan. Cito: “a reconstituição da caminhada que fizera com o poeta em

Berlim torna nítido e comovente o que, de outra maneira, deixaria o leitor apenas

desorientado”133. Costa Lima propõe a reconstituição do “encontro” de Celan com Heidegger.

Há uma homologia entre os obstáculos do poema e os obstáculos do encontro. Diz: “é

admissível que o poema elimine os esclarecimentos necessários não para que exista o prosaico

ou elida o sujeito, porém por um motivo menos especulativo: os obstáculos do poema

funcionam como homólogos ao encontro”134. Não vamos nos adentrar no comentário de Costa

Lima sobre o poema. Faremos algumas pontuações que nos interessam.

Lacoue-Labarthe diz que a poesia tem, talvez, um só objeto: a interdição da

representação. Para este autor, a exigência última da poesia de Celan é uma espécie de

destruição da metáfora. O interdito à interpretação, assim como a interdição à representação

de Lacoue-Labarthe são questionados por Costa Lima.

O primeiro verso do poema Todtnauberg: “Arnica, centáurea” contém apenas

substantivos. Tanto arnica quanto centáurea são plantas medicinais. É interessante e

“literalmente significativo que um poema que dirá respeito a um encontro se inicie pela alusão

a recursos médicos”135, diz Costa Lima. Os três versos seguintes “sorvo no poço,/ no topo/ o

dado estrelado” falam de um lugar específico. A informação factual vem ajudar, pois se trata

de um poço que fica do lado de fora da cabana de Heidegger. O poço tem uma marca que

forma um dado estrelado. Ele lembra que a palavra Sternwurfel, “literalmente significa

‘estrela-dado’”136. A informação vem de uma carta do filho do filósofo, Hermann Heidegger,

que transcreve o que Celan escrevera no livro dos visitantes da cabana. Na carta lemos: “No

livro da cabana, com o olhar sobre a estrela do poço, com a esperança, no coração, de uma

palavra por vir. 27 de julho, 1967, Paul Celan”137.

Em dois de fevereiro de 1968, Celan escreve ao editor Robert Altmann

comentando a recepção de Heidegger ao poema “Todtnauberg”. Diz a carta:

Caro Sr. Altmann, Permita-me citar-lhe apenas as três frases centrais da carta de Martin Heidegger de 30 de janeiro: “A palavra do poeta que diz ‘Todtnauberg’ nomeia lugar e paisagem onde um pensamento tentou dar o passo para trás, no Ínfimo – a palavra do poeta que é, ao mesmo tempo, estímulo e advertência e que guarda em seu pensamento a lembrança de um dia, na Floresta Negra, em que o humor foi múltiplo. Desde então,

133 LIMA, Luiz Costa. Mímesis: Desafio ao pensamento. Op. cit. p.270. 134 Ibidem. p. 270. 135 Ibidem. p. 270 136 Ibidem. p. 270. 137 Ibidem. p. 271.

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nos dissemos muito em silêncio. Eu penso que certas coisas ainda, um dia, serão destacadas do não-dito para entrar no diálogo”. Se nós nos virmos, como eu espero, na semana que vem, eu lhe levarei a carta. Com minhas cordiais saudações, seu Paul Celan.138

A carta de Heidegger, em sua integra só foi publicada em 1998 por Stephan Krass

na Neue Zürcher Zeitung. Celan não faz nenhum comentário sobre a carta de Heidegger. Ele

também se cala diante de Heidegger. A presença do humor “múltiplo” na carta de Heidegger

fala das marcas deste encontro.

Prosseguindo nos questionamentos críticos trazidos por Costa Lima, para

pensarmos a representação, vamos partir agora de uma frase de Paul Celan recolhida por

Lacoue-Labarthe do discurso “O Meridiano”. Lacoue-Labarthe diz que os poemas de Celan

“trariam o traço de toda obra de arte: ‘a arte cria a distância do eu’”139. Esta frase que fala da

arte criando uma distância em relação ao eu, é corretíssima, diz Costa Lima, “tanto no caso do

poema considerado como da arte em geral se por ela se entenda que a obra de arte não é

propriedade da intencionalidade autoral”140. Para Costa Lima, “a obra apresenta ou produz

(darstellt) uma cena e não só a representa (vorstellt)”141. Mas isto não quer dizer que a

representação esteja ausente. Representação, para este autor, está na referência ao efeito

causado em um sujeito. A representação no poema Todtnauberg “pressupõe a apresentação de

uma certa cena pelo poema”142. A cena da qual Costa Lima fala não tem “um mero caráter

descritivo”143. Daí, esta apresentação proposta por Costa Lima produzir um novo objeto: o

poema, que

se projeta sobre restos ou parcelas da cena real: a subida de uma montanha por alguém, que vê uma cabana e um poço; alguém que nutre um desejo; que sai da cabana sem que ele se cumpra; que segue, junto com duas outras pessoas, por um caminho que leva mais acima, de que sumariamente se diz ter um brejo e ser muito

138 [“Cher monsieur Altmann, \ Permettez-moi de ne vous citer que les trois phrases centrales de la lettre de Martin Heidegger du 30 janvier: \\ ‘La parole du poète qui dit ‘Todtnauberg’ nomme lieu et paysage où une pensée essaya de faire le pas en arrière dans l’Infime – la parole du poète qui est à la fois encouragement et avertissement et qui garde dans sa pensée le souvenir d’un jour en Forêt-Noire, dont l’humeur fut multiple.\ Depuis lors nous nous sommes dit en silence beaucoup [cf. Le dernier vers de Todtnauberg]. \ Je pense que certaines choses encore, un jour, seront détachées du non-dit pour entrer dans le dialogue.’ \\ Si nous nous voyons,comme je l’espère, la semaine prochaine, je vous apporterai la lettre. \ Avec mes cordiales salutations\ votre\ Paul Celan\\ 2 février 1968”] CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance II – Commentaires et Illustrations. Op. cit. p. 576-577. 139 LIMA, Luiz Costa. Mímesis: Desafio ao pensamento. Op. cit. p. 269. (na tradução de João Barrento, a frase de Celan fica assim: ‘A arte provoca um distanciamento do Eu’ ). 140 Ibidem. p. 273. 141 Ibidem. p. 273. 142 Ibidem. p. 273. 143 Ibidem. p. 271.

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úmido. Por isso mesmo, a cena real pouco tem a ver com o poema, embora sem ela não houvesse o poema. Em lugar da descrição, se impõe como que um esquema.144

Para Costa Lima, neste esquema nasce o que ele vai chamar de representação-

efeito.

O verso final, a saber, “muito úmido”, traz a inclusão de uma situação incômoda.

Aqui, não importa saber se o incômodo estava em Celan, apesar de reconhecermos que existe

um incômodo. O que importa aqui no poema é ele “conter uma posição de sujeito”145. Costa

Lima, neste momento de sua reflexão, lança uma pergunta: “como essa posição se constitui

senão a partir da apresentação (produção), a partir da qual se fala o que se fala?”146. O sujeito

para Costa Lima não está centrado em si mesmo. Ele é “fraturado” e tem uma mobilidade que

lhe possibilita assumir posições. Este sujeito “fraturado” tem como premissa ser capaz de

“ocupar posições diversas no interior da sociedade”147. É a partir deste sujeito que podemos

verificar o entrelaçamento entre produção do poema – que traz aspectos da realidade, mas,

também algo novo: “no caso de Todtnauberg, a silenciosa compreensão da incompreensão – e

a representação que provoca”148. A produção do poema, na leitura de Costa Lima apenas

começa na obra. O importante serão os seus efeitos. Então, a representação que Costa Lima

trabalha está sempre relacionada aos seus efeitos. Daí ele chamá-la de representação-efeito.

Por isto mesmo, acrescenta Costa Lima, a representação manterá um “caráter produtivo,

portanto potencialmente divergente”149.

Assim como Costa Lima, Lacoue-Labarthe também evoca a interpretação de Peter

Szondi que propõe

um deciframento completo de um poema até a sua mais resistente opacidade, porque ela é a única que sabe de qual ‘material’ é constituído o poema: do lembrança de quais circunstâncias, de quais lugares percorridos, de quais frases trocadas, de quais espetáculos entrevistos ou vistos, etc.: a menor alusão, a menor evocação são aí identificadas150.

De certa maneira, é como se pudéssemos decifrar certas questões trazidas pelo

poema quase sem resto. Lacoue-Labarthe, pensando diferente de Szondi e de Costa Lima, não

acredita nesta decifração quase completa. Este quase é fundamental na argumentação de

144 LIMA, Luiz Costa. Mímesis: Desafio ao pensamento. Op. cit. p. 273-274.. 145 Ibidem. p. 274. 146 Ibidem. p.274. 147 Ibidem. p. 276. 148 LIMA, Luiz Costa. Mímesis: Desafio ao pensamento. Op. cit. p. 276. 149 Ibidem. p. 277. 150 LACOUE-LABARTHE, Philippe. La poésie comme expérience. Op. cit. p.26

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Lacoue-Labarthe. Um quase que faz respirar o poema pelo que resta a ser decifrado. Não só

resta a ser decifrado, mas também fica como resto mesmo. Há aqui uma impossibidade, não

apenas de decifração completa, mas também de uma interpretação total do poema. Daí

Lacoue-Labarthe falar do interdito à interpretação. Interdição que não impossibilita uma

interpretação, mas faz obstáculo à uma compreensão completa de um poema.

As posições de Costa Lima e de Lacoue-Labarthe são muito distintas, o que nos

faz pensar na complexidade do tema da interpretação e da representação/apresentação, que

obviamente não pretendo esgotar nesta dissertação. O que fiz aqui foi trazer duas posições

distintas, para abrir espaço ao pensamento do leitor.

4.2. ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A POÉTICA DE PAUL CELAN

O escritor Lucio Cardoso escreve, em seu diário, que o ato de escrever é um ato de

sobrevivência. Diz o depoimento:

escrevo – e minha mão segue quase automaticamente as linhas do papel. Escrevo – e meu coração pulsa. Porque escrevo? Infindável é o número de vezes que já fiz a mesma pergunta e sempre encontrei a mesma resposta. Escrevo apenas porque em mim alguma coisa não quer morrer e grita pela sobrevivência. Escrevo para que me escutem – quem? Um ouvido anônimo e amigo perdido na distância do tempo e das idades... – para que me escutem se morrer agora.151

O poema, para Paul Celan “quer ir ao encontro de um Outro, precisa desse Outro,

de um interlocutor. Procura-o e oferece-se-lhe. Cada coisa, cada indivíduo é, para o poema

que se dirige para o Outro, figura desse Outro”152. Podemos lembrar que, quando Paul Celan

escreve seu livro DIE NIEMANDSROSE (A Rosa de Ninguém), ele o dedica à memória de

Óssip Mandelstam, poeta russo, assassinado pelo regime stalinista em 1938.

Celan estabelece um diálogo com o texto em prosa de Mandelstam, “O

interlocutor”. No texto, Óssip Mandelstam compara o poeta ao navegador, que no momento

crítico, lança ao mar “uma garrafa lacrada”. Nela está escrito o seu nome e o “relato de seu

destino”. Vários anos se passam e um dia a garrafa é encontrada na areia. Aquele que

encontra a garrafa (o leitor) lê a carta, “toma conhecimento da sua data” e das “últimas

vontades do morto”. Ele “tinha o direito de fazer isso”. Não violou correspondência alheia. “A

151 CARDOSO, Lúcio. Diário completo. Rio de Janeiro: José Olympio/INL, 1970. p. 60. 152 CELAN, Paul. “O Meridiano” in Arte poética, O meridiano e outros textos. Op. cit. p. 57.

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carta, lacrada dentro da garrafa, estava endereçada a quem a encontrasse”.153 Ele era o

“destinatário misterioso”. Aqui podemos fazer uma reflexão sobre a carta e o poema. Entre os

dois encontramos semelhanças. A carta (dentro da garrafa lacrada) assim como o poema, não

é endereçada de maneira definida para alguém em particular. Entretanto, ambas tem

destinatário: a carta, destinada a alguém que, por acaso, topar com a garrafa na areia e o

poema encontra o “leitor na posteridade”. Em Celan, não há o leitor na posteridade mas, o

leitor ninguém.

Paul Celan escreve: “Um poema, sendo como é uma forma de manifestação da

linguagem, (...) pode ser uma mensagem em uma garrafa, lançada na crença (nem sempre

muito esperançosa) de que ela poderá em algum lugar e em algum momento chegar à terra

firme”.154 Assim, “os poemas estão a caminho – tem rumo”.155 Para onde, pergunta Celan. Os

poemas caminham em direção “a algo aberto, de ocupável, talvez a um tu endereçável, a uma

realidade endereçável”156. Trata-se de uma “mensagem cifrada que retem no interior de si

toda uma luz. Garrafa ao mar, Até outra mão, outro olhar, uma escuta distinta, acolham a

mensagem, a recebam, e justo nesse ato se transformem”157, diz o poeta espanhol José Angel

Valente. Esta luz vem de um engendramento nas “escalas da sombra, oculta ou ocultada,

muda ou não manifesta”158 em direção a uma palavra nova ou uma nova manifestação. No

entanto, Celan, como vimos, segue Mandelstam quando ele postula a existência do

Interlocutor. Também concorda com o fato de não podermos determinar quem vai ser este

interlocutor. O que Celan introduz de novo é o leitor ninguém. O poema não é endereçado a

“uma certa pessoa”159. Então, o lugar do Interlocutor “é um lugar vazio que vem designar esta

palavra: ninguém”160. O poema tendo como destinatário Ninguém (Personne) é uma

proposição que Mandelstam não “ousa ainda pensar”161.

A poética de Paul Celan nos introduz, então, uma nova forma de endereçamento.

Nela, constatamos um projeto de endereçamento testemunhal singular onde uma esperança

153 MANDELSTAM, Óssip. O Interlocutor, in: Revista Inimigo Rumor n.8. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000. p.61. 154 CELAN, Paul. Alocução na entrega do prêmio literário da cidade de Bremen in Arte poética, O meridiano e outros textos. Op.cit. p. 34. 155 Ibidem. p. 34. 156 Ibidem. p.34. 157 VALENTE, José Angel. “Bajo um cielo sombrío”. In Paul Celan: rosa de nadie. Rosa Cúbica – revista de poesía. Invierno 1995-1996. Barcelona. p. 21. 158 Ibidem. p. 21 159 “une certaine personne” BRODA, Martine. “Personne et la question de L’interlocuteur”. in Dans la main de personne – Essai sur Paul Celan et autres essais.Op. cit. p. 64. 160 “est une place vide que vien désigner ce mot : personne”. Ibidem. p. 64. 161 “n’ose pas encore penser”. Ibidem. p. 64.

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trafega junto de uma desesperança. E é nesta incerteza de endereçamento, que talvez

possamos encontrar uma realidade endereçável, ou um tu endereçável – “no vazio da noite”.

O poema, nas palavras de Celan, “afirma-se à margem de si próprio; para poder

subsistir, evoca-se e recupera-se incessantemente, num movimento que vai do seu Já-não ao

seu Ainda-e-sempre”.162 Só podemos encontrar esse “Ainda-e-sempre” no poema quando

aquele que escreve “não se esquece de que fala sob o ângulo de incidência da sua existência,

da sua condição criatural.163 Aqui o real se apresenta enquanto encontro faltoso, enquanto

“mistério do encontro”164, nas palavras de Celan, onde algo ainda e sempre existe no deslizar

da mortalidade. Daí, Celan dizer que a poesia é esse dizer infinitamente de pura mortalidade.

Dizer que toca o impossível da escrita sempre na tentativa de se inscrever. E é neste

desassossego da escrita, que a poesia de Celan se encontra, assim como o próprio escritor em

sua desistência de ser para deixar falar o poema com seus “becos sem saída”.

Além disso, a poesia em Celan “testemunha a presença do humano – à majestade

do absurdo”.165 A noção do absurdo, em Celan, coloca em questão o inaudito166 da poesia.

“Ela (a noção do absurdo) constata que o Homem testemunha de si no absurdo, no que não se

entende – é o pensamento poético”167, diz Marko Pajevic em seu texto sobre a questão do

homem e da poesia em Paul Celan. Esta noção do “absurdo” não pode ser apreendida ou

capturada nas palavras. Ela só pode ser percebida no que se passa no continuo das palavras,

no ponto onde o silêncio tem seu lugar. (Em Celan, no poema, é o silencio que fala). É neste

sentido que Celan fala que a poesia existe a partir de uma travessia do absurdo. E nesta

travessia o Homem está implicado, sempre em busca de uma relação com o Outro.

162 CELAN, Paul. “O Meridiano” in Arte poética, O meridiano e outros textos. Op. cit. p. 56 163 Ibidem. p.56 164 Ibidem. p.57. 165 Ibidem. p. 46. 166 Inouï quer dizer inaudito, mas também desconhecido ou inconcebível. 167 “Elle constate que l’Homme témoigne de soi dans l’absurde, dans ce qui ne s’entend pas – c’est la pensée poétique”. PAJEVIC, Marko. “Le travail du sens de l’Homme. La poétique de Paul Celan”. p. 115.

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5. AS CARTAS: O REGISTRO DE UMA POÉTICA

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5.1. A CARTA E A QUESTÃO DO EQUÍVOCO EPISTOLAR

A expressão “equívoco epistolar” resume a tese de Vincent Kaufmann sobre as

correspondências. Este autor formula a hipótese de que o ato epistolar “em vez de contribuir

para aproximar, para comunicar”168, estabelece um intervalo, “desqualifica toda forma de

partilha e produz uma distância graças à qual o texto literário pode sobrevir”169. Então, a

correspondência pode ser útil para, ao demarcar uma distância, abrir um espaço “propício à

criação literária”. Kaufmann, em seu livro, reflete sobre as correspondências entre dois

escritores e entre um escritor e um não-escritor. A princípio, tenderíamos a pensar que a

correspondência entre dois escritores seria mais propícia para o surgimento de questões

referentes à criação ou à obra. No entanto, Kaufmann diz que:

uma correspondência como a de Kafka e Felice também propicia aquele espaço de passagem para a literatura. Isto porque em ambos os casos importam fatores além do que pode ser lido de forma literal, ou seja, importam algumas articulações estabelecidas pela correspondência.170

Desta forma, uma troca epistolar, com tal especificidade, não tem por fim uma

mera satisfação. Ela está a serviço, nas palavras de Elias Canetti, da “criação literária”171.

As cartas de Paul Celan para sua mulher não são apenas cartas de amor e não se

referem somente à vida familiar. Elas portam em si, muitas vezes, referências ao ato de

criação literária, ao estilo, e ao que Derrida chamou de “experiência da língua”. Além disso,

as cartas de Celan trazem uma outra passagem: a da bio-grafia, no sentido de Roger Laporte

já descrito neste texto. Uma passagem que nos esclarece a forte relação, na obra de Celan,

entre a vida e a escrita. É claro que não estou dizendo aqui que haja uma transposição da vida

para a obra, mas que, como já disse antes, se trata de uma estreita relação entre a vida e a

escrita.

A correspondência “pode atuar literariamente tanto quanto o texto de um poema,

desde que nela esteja presente a função poética”,172 nos fala Jakobson. Esta função se

“manifesta na palavra sentida como palavra e não como simples substituto do objeto

168 Castañon Guimarães, Júlio. Distribuição de Papéis: Murilo Mendes escreve a Carlos Drummond de Andrade e a Lucio Cardoso. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1996, p. 7. 169 Kaufmann, Vincent. L’Equivoque Épostolaire. Paris: Minuit, 1990, p. 8. 170 Castañon Guimarães, Julio. Ibidem. p. 8. 171 CANETTI, Elias. O outro processo: as cartas de Kafka a Felice. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988. p. 17. 172 JAKOBSON, Roman. Apud ANGELIDES, Sophia. Correspondência entre Tchekhov e Gorki. São Paulo: Edusp. 2001, p.23.

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nomeado, nem como explosão de uma emoção”, 173 acrescenta Sophia Angelides em seu

estudo sobre a correspondência entre Tchékhov e Gorki.

A carta é uma forma particular de palavra, na qual o autor experimenta uma maior

proximidade com a escrita propriamente dita, e para alguns autores funciona como um

laboratório. A partir da leitura de Roman Jakobson podemos pensar a poesia e a carta (ou até

o diário) de um escritor apresentando dois níveis semânticos diferentes de uma mesma

experiência. O caráter espontâneo e fragmentário e a alternância da linguagem poética e não-

poética são inerentes ao gênero epistolar. A passagem da simples comunicação não-literária

para a linguagem literária, e vice-versa, confere à carta um aspecto particular, misto de

documento informativo e texto literário. Além disso, muitas vezes vamos encontrar um

registro poético se insinuando e, às vezes, se sobrepondo ao registro “circunstancial

imediato”.174

Sabemos que a correspondência é sempre lacunar. E “a carta enviada atua, em

virtude do próprio gesto da escrita, sobre aquele que a envia, assim como atua, pela leitura e

releitura, sobre aquele que a recebe”. 175 Esta dupla função da carta a aproxima dos

hypomnemata 176.

Ainda podemos acrescentar aqui, a importância da carta para os exilados em Paris.

Celan tinha uma correspondência com amigos romenos, que viviam em Paris. Também

estabeleceu uma intensa correspondência com escritores e amigos que viviam na Europa e em

Israel. Talvez Rilke tenha razão quando diz que a carta é como um substituto ao país natal.

Vejamos um extrato de sua carta a Nanny Wunderly-Volkart, escrita na primeira metade do

século XX:

Só Deus sabe por que eu mantenho tantas relações; por vezes penso que é um substituto do país natal, como se com essa rede estendida de influências, me fosse dada, apesar de tudo, finamente repartida, a possibilidade de um estar em algum lugar.177

173 ANGELIDES, Sophia. Correspondência entre Tchekhov e Gorki. Op. cit. Ibidem. p.23. 174 PESSOA, Fernando. Correspondência 1905 -1912. Organização de Manuela Parreira da Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 486. 175 FOUCAULT, Michel. A escrita de si in O que é um autor. Lisboa: Veja. 1992. p. 145. 176 Cadernos pessoais cuja função é permitir a constituição de si a partir da recolha do discurso dos outros. Trazendo-os sempre à mão, aqueles que usavam estes cadernos se exercitavam regularmente em uma escrita fragmentada. Retirado de texto inédito “Manuel Bandeira, Itinerário de Pasárgada”. Solange Rebuzzi. Puc-Rio, 2000. 177 “Dieu sait pourquoi j’entretiens autant de relations; parfois je pense que c’est un substitut au pays natal, comme si avec ce réseau étendue d’influences, m’etait malgré tout donné, finement répartie, la possibilité d’un être quelque-part”. RILKE, Ranier Marie. Apud BOUZINAC-HAROCHE, Geneviève. “Souffrir de l’Europe” in Magazine Litteraire – maio 2005. p.21. (tradução da carta de Rilke feita por Vincent Kaufmann).

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Para Celan, a escrita epistolar tinha uma importância ainda maior, pois ele não se

sentia muito próximo nem da sua Romênia natal, nem da Alemanha. Para ele, não existia um

país natal onde se ancorar, nem uma língua para sustentá-lo. Daí, Celan dizer, não sem ironia,

que habitava um país de nome Celanie. Ainda queremos acrescentar em relação ao sobrenome

do poeta, que o tradutor Fernand Cambon aproxima, pela homofonia, o sobrenome Celan do

verbo celer 178 (celant 179) e lança uma pergunta: “Teria alguém pensado que ‘Celan’ poderia

ser lido ‘ocultando’, do verbo francês ‘ocultar’?” 180

5.2. A CORRESPONDÊNCIA ENTRE PAUL CELAN E GISÈLE CELAN-LESTRANGE

A correspondência entre Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange se iniciou em

novembro de 1951, e se encerrou em 1970 com o suicídio de Paul Celan. Já em 1948, Celan

escreveu cartas, em francês, a seus amigos exilados romenos que estavam em Paris. Desde

esta época revelava uma incrível mestria da língua francesa, e a manejava com sutileza em

todos os pontos de vista. Celan não hesitava em empregar o imperfeito do subjuntivo sem que

ficasse grotesco, e apresentava em seus escritos uma sintaxe singular. Com Paul Celan, “a

língua francesa é um pouco ‘visitada’ pelo alemão”, 181 nos diz Bertrand Badiou. Mas, a

língua francesa é visitada sobretudo pela maneira que Celan tem de interromper sempre o

curso do discurso por incisões, “pelos efeitos de afrouxamento do sentido” e por ressaltos. Ele

também fazia pesquisas com a língua francesa com o intuito de estabelecer uma relação de

forma lúdica com a língua alemã. Esta dimensão lúdica que não o deixará jamais, segundo

Bertrand Badiou. O que vai nos surpreender em sua escrita é a mestria lingüística, e a

capacidade de escrever verdadeiramente em francês. Além de possuir uma precisão lingüística

em relação à língua francesa, ele também era muito cuidadoso nas correções gramaticais.

Celan realiza, ao escrever em francês, um ato verdadeiro de escrita. Sentimos, diz Badiou, que

em Celan há “um certo gozo ao manejar o francês e ao inventar em francês”182.

178 Celer significa manter segredo; ocultar. 179 Celant quer dizer ocultando. 180 “A-t-on pense que ‘Celan’ pourrait se lire ‘celant’, du verbe français ‘celer’? ”. PEYER, Rudolf. “Approché d’une légende”. in Revista Europe número 861-862/ Janvier-Février 2001, Op. cit. p. 46. 181 BADIOU, Bertrand. “Au coeur d’une correspondance” in Revista Europe número 861-862/ Janvier-Février 2001, Op. cit. p.193. 182 Ibidem. p.193.

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Em muitos de seus poemas encontramos alusão ao francês. A princípio, podemos

pensar que isto se deve à prática de Paul Celan enquanto tradutor. No entanto, creio que na

feitura de seus poemas, feitos sempre na língua alemã, encontramos uma conversa silenciosa

com várias línguas. Não é de se espantar que o francês muitas vezes seja evocado em seus

poemas. Nesta conversa silenciosa, acontece, talvez, em relação ao francês, algo de uma

“potência próxima”183. Esta proximidade tensional do alemão com a língua francesa e com

outras línguas, como o inglês, ou o russo, por exemplo, possibilita falarmos da poesia de Paul

Celan como uma “potência próxima”, termo utilizado por Michel Deguy em seu estudo sobre

Celan.

Bertrand Badiou na nota editorial do livro sobre a correspondência comenta que o

texto desta correspondência se caracteriza por uma dupla alternância: a da prosa (das cartas) e

a dos versos que recobre “celle du francais et de l’allemand”; alternância que se mostra

emblemática do encontro que Paul Celan mantém com sua língua do exílio e com sua língua

materna. É verdade que sua língua de exílio – o francês –, nunca se transformou em língua

literária. O próprio Celan se diz um poeta de língua alemã. No entanto, seu alemão é singular

na medida em que, quando ele emigra para a França, a língua alemã não mais será a língua do

cotidiano, mas uma língua à parte: a de sua escrita, de suas traduções, de suas leituras públicas

e de seus encontros literários na Alemanha, Suíça, Áustria ou mesmo em Paris no seu contato

com alguns exilados alemães. O alemão também será usado para ensinar, mantendo uma

confrontação permanente com o francês.

A correspondência entre Paul Celan e Gisèle Lestrange-Celan foi longa e se deve

principalmente às inúmeras viagens de Celan. Mesmo quando se separaram, em 1966,

continuavam a se corresponder com certa freqüência.

Em muitas destas cartas, o amor surge de forma intensa, principalmente nos

primeiros anos da troca epistolar. Depois, após a separação do casal, as cartas se tornam

sombrias e angustiadas.

As cartas de Celan para Gisèle, em sua maioria, nos trazem esta dupla alternância

descrita por Badiou, a saber: a presença da escrita em prosa das cartas e os poemas em alemão

com a “passagem” ao francês. Além disso, a leitura das cartas de Celan – cartas “doublées de

poèmes” – nos faz perceber o espaço onde Celan pratica habitualmente sua língua e que ele

chamará algumas vezes, não sem humor, como já disse anteriormente, de sua “Celanie”. Ele

183 termo empregado por Maurice Merleau-Ponty.

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inventa palavras (neologismos) em francês introduzindo uma espécie de língua franco-

celaniana.

A correspondência se inicia com uma carta de amor de Gisèle Lestrange para Paul

Celan. Está datada do dia 11 de dezembro de 1951 e foi escrita do Café Kleber na praça

Trocadéro. Sabemos, a partir das notas do organizador desta correspondência que Gisèle

Lestrange e Paul Celan se encontraram pela primeira vez, algumas semanas antes, em 9 de

novembro de 1951 por intermédio de um amigo e companheiro de exílio, Isac Chiva,

pesquisador em etnologia no museu de Artes e Tradições populares de Paris. Gisèle diz na

carta:

Meu querido, É ainda perto de ti que eu estou, de tuas carícias, de teus olhos, de tua bela sinceridade e de teu amor. (...) Para te amar mais livremente, mas isso também me dá medo – afinal é tão doce te amar fora de toda lógica –184.

Nesta mesma carta, surge a leitora privilegiada de poesia. Gisèle se sente como

uma “espectadora” – sem dúvida alguma, a leitora mais próxima do poeta – da vida/obra de

Paul Celan. Em seu amor, há lugar para a leitora, mas, como veremos, com uma certa

dificuldade. Como amar um poeta? E prossegue a carta, com suas indagações:

(...) Deve ser muito difícil Amar um poeta, um belo poeta. Eu me sinto tão indigna de tua vida, de tua Poesia, de teu Amor – e tudo já parece não existir para mim, além de ti. Ouço tuas palavras, e te sinto tão perto de mim. – Amo estar mais perto ainda – Amo te olhar – te saber aqui, te ver silencioso e concentrado, tu me dás confiança, me acalmas, tão extraordinariamente. 185

A resposta de Celan também chega ardente, no dia seguinte:

[Paris], Quarta-feira, 12 dezembro [1951] Minha querida, como te dizer a alegria que eu senti esta manhã, ao receber tua carta? (...) Eu te olho, minha querida, eu te olho já além dessa bruma que a esperança, não é? não se cansará de dissipar.186

184 “Mon Chéri, C’est encore près de toi que je suis, de tes caresses, de tes yeux, de ta belle sincerité et de ton amour. Pour t’aimer plus librement, mais ça me fait peur aussi – et puis c’est si doux de t’aimer en dehors de toute logique –” CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p.11 185 “(...) Ce doit être très difficile d’Aimer un poète, un beau poète. Je me sens si indigne de ta vie, de ta Poésie, de ton Amour – et tout déjà semble ne plus exister pour moi, si ce n’est toi. J’entends tes paroles, et je sens tout près de moi – J’aime être plus près encore – J’aime te regarder – te savoir là, te voir silencieux et concentre, tu me donnes confiance, tu me calmes si extraordinairement”. Ibidem. p. 11-12. 186 “[Paris] Ce mercredi, 12 décembre [1951] Ma chérie, comment te dire la joie que j’ai ressentie ce matin, en trouvant ta lettre? (...) Je te regarde, ma chérie, je te regarde déjà au-delà de cette brume que l’espoir, n’est pas, ne se lassera pas de dissiper”. Ibidem. p.12 -13.

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Em Paul Celan, há sempre uma bruma a ser dissipada, como um traço melancólico

que o acompanhará durante toda a vida. Na verdade, podemos dizer, em relação à vida do

poeta, que ele sobreviveu. “Sobre-viver”187, no sentido dado por Derrida, implicando uma

experiência de uma sobre-vida.

Em uma carta escrita a Celan no dia nove de janeiro de 1960, (n. 116), Gisèle se

mostra muito preocupada com a onda de anti-semitismo na Europa. Ela relata, que na noite do

Natal de 1959 houve muitas profanações de tumbas e de sinagogas, com inscrições injuriosas,

na Alemanha, na França e através de toda a Europa. Ela conta também que escreveu para os

amigos Nani et Klaus Demus (muito amigos de Celan). Na nota desta carta do livro de

correspondências entre Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange, Bertrand Badiou comenta e

esclarece a carta de Gisèle, pois nos revela a preocupação que ela tem com a vida do marido.

Vejamos a nota:

Nesta carta a Nani e a Klaus Demus, datada do dia 9 de janeiro de 1960, Gisèle Celan-Lestrange evoca com insistência as dificuldades encontradas por Paul Celan: ‘Nanni [sic], Klaus, é preciso escutar Paul mesmo quando é difícil, mesmo quando é inacreditável, será que posso também dizer, mesmo se ele se engana, por favor. É raro que ele se engane. Mas eu bem sei que vocês sabem isto, mas eu sei também que é bastante difícil. Bastante difícil de viver...\ Vocês, que são amigos de Paul, não o deixem jamais, todos o deixam, todos o deixam. É difícil, difícil.188

As palavras de Gisèle parecem um pedido de socorro! São palavras que afirmam

as dificuldades do poeta com a vida, e as dificuldades de Gisèle de suportar tamanha angústia.

Na carta do dia 31 de dezembro de 1951, (n.3), ele envia o livro Der Sand aus den

Urnen (A Areia das Urnas)189 com dedicatória. É o seu primeiro livro e dentro dele

permaneceram duas flores secas, não identificadas. A dedicatória do livro diz: “A Maïa, para

que o dia se levante a meia-noite. Paul. Sobre a ponte dos anos em Paris.”190 É importante

aqui comentar a frase final da carta: “sobre a ponte dos anos em Paris”. Trata-se de uma

referência ao poema “Le Pont Mirabeau” de Guillaume Apollinaire do livro Alcools. Poémes

1898-1913 publicado na editora Gallimard. Na biblioteca dos Celan se encontra um exemplar

187 “Sur-vivre”. “Poétique et politique du témoignage” in DERRIDA, Jacques. Cahier de L’Herne - Jacques Derrida. 2005. p. 521. 188 “Dans cette lettre à Nani et Klaus Demus, datée du 19.1.1960, GCL évoque avec insistance les difficultés rencontrées par PC: ‘Nanni [sic], Klaus, il faut écouter Paul même quand c’est difficile, même quand c’est incroyable, est-ce que je peux dire aussi, même s’il se trompe, s’il vous plaît. C’est rare qu’il se trompe. Mais je sais bien que vous savez tout cela, mais je sais aussi que c’est très difficile, très difficile a vivre...\ Vous qui êtes les amis de Paul, ne le lâchez jamais, tous le lâchent, tous le lâchent. C’est difficile, difficile”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance.Vol. II Commentaires et illustrations. Op. cit. p. 133. 189 “Le Sable des Urnes”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p.13. 190 “A Maïa, pour que le jour se lève à minuit. Paul. Sur le pont des années à Paris.” Ibidem. p.13.

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deste livro de Apollinaire, e consta uma menção da data de aquisição, feita por Gisèle

Lestrange, em 11 de agosto de 1951. Appolinaire, quando escreveu este poema, fez a seguinte

datação: “As Noites de Paris, primeiro de fevereiro 1912”191. O poema “Pont Mirabeau” se

inicia com três versos: “Sob a ponte Mirabeau corre o Sena/ E nossos amores, será preciso

que me lembre? / a alegria vinha sempre depois da pena192. O dístico que vem a seguir se

repete ao longo do poema, marca o tempo das palavras: “Que venha a noite e soe a hora, / Os

dias se vão, eu me demoro”193. Em seu final, os versos, apontam uma passagem do tempo e da

vida: “Passam os dias e passam as semanas,/ Nem o tempo passado, nem os amores voltam;/

Sob a ponte Mirabeau corre o Sena”194. A referência a este poema de Apollinaire aparece em

inúmeras cartas de Celan para Gisèle. Na nota 2 da carta de 23.12.1960, Bertrand Badiou diz:

“A fórmula ‘sobre a ponte dos anos’ é empregada em muitas dedicatórias a Gisèle Celan-

Lestrange”.195 Além disso, não podemos esquecer que Paul Celan se suicida, pulando da

ponte Mirabeau. Sabemos, a partir do depoimento-homenagem de Edith Silbermann, uma

grande amiga de infância e juventude de Celan, que o poeta, desde sua primeira juventude,

“estava muito impressionado pela máscara mortuária da ‘Desconhecida do Sena’196, sobre a

qual, entre outros, seu mentor Alfred Margul-Sperber havia composto um poema”.197 Além

disso, complementa Silbermann

A água parece haver exercido uma atração especial sobre ele e a morte por afogamento ter ocupado sempre de novo seus pensamentos. Isto o demonstram poemas seus de diferentes períodos criativos, como “Schuttkahn” (Sprachgitter 1959), “Muschelhaufen” y “Unter der Flut” (Sob a maré – trad. para o português de João Barrento.) (Lichtzwang 1970), mas sobretudo os versos de “Kenotaph” (Von Schwelle zu Schwelle 1959), um epitáfio que já nos anos cinqüenta havia imaginado para si mesmo198

191 “Les Soirées de Paris, 1, février 1912”. DÉCAUDIN, Michel. Le Dossier D’Alcools. Genève: Librairie Droz,1996. p. 90 (o poema Le Pont Mirabeau de Appolinaire foi retirado deste livro de Décaudin). 192 “Sous le pont Mirabeau coule la Seine/ Et nos amours, faut-il qu’il m’en souvienne ?/ La joie venait toujours après la peine”. Ibidem. p. 90. 193 “Vienne la nuit, sonne l’heure,/ Les jours s’en vont, je demeure”. Ibidem. p. 90 194 “Passent les jours et passent les semaines,/ Ni temps passé, ni les amours reviennent; / Sous le pont Mirabeau coule la Seine”. DÉCAUDIN, Michel. Le Dossier D’Alcools. Ibidem. p. 90 195 “La formule ‘sur le pont des années’ est employée dans plusieurs dédicaces à Gisèle Celan-Lestrange”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol II. Commentaires et illustrations. Op. cit. p.147. 196 Em Paris, na década de 40, uma mulher se suicidou pulando no rio Sena. Não foi possível saber a sua identidade. Ela ficou conhecida como a “Desconhecida do Sena”. Paul Celan, quando se suicidou, se jogando no Sena, também foi chamado de “Desconhecido do Sena”. 197 “estaba muy impresionado por la máscara mortuoria de la ‘Desconhecida Del Sena’, sobre la cual, entre otros, su mentor Alfred Margul-Sperber había compuesto un poema. SILBERMANN, Edith. “Recuerdos de Paul (Celan-Antschel)” trad. de Cecília Dreymüller in Rosa Cúbica – Revista de Poesia. Inverno 1995-1996 (número 15-16) Paul Celan: rosa de nadie. Barcelona. 2ª edição. 2005. p.174-175. 198 “el agua parece haber ejercido uma atracción especial sobre él y la muerte por ahogo haber ocupado siempre de nuevo sus pensamientos. Esto lo demuestran poemas suyos de diferentes períodos creativos, como “Schuttkahn” (Sprachgitter 1959), “Muschelhaufen” y “Unter der Flut” (Lichtzwang 1970), pero sobre todo los

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Podemos também ler no poema “Und mit dem Buch aus Tarussa” [“Et avec le

livre de Tarussa”], de 1963, em tradução de Martine Broda, os versos:

(...) Da laje da ponte, de onde ele saltou falecendo na vida, voando de suas próprias feridas, - da Ponte Mirabeau199

Em seu artigo “La leçon de Mandelstam”, Martine Broda irá chamar estes versos

de “auto adivinhação”200.

Na carta do dia 7.1.1952, exatamente às 10 horas, Celan fala que talvez ainda

reste alguma porta aberta para ele, alguma esperança para a sua vida tão marcada de

imprevistos e de sofrimentos:

Maïa, meu amor, eu gostaria saber te dizer o quanto eu desejo que tudo isto fique, fique conosco, permaneça sempre conosco. Percebes? tenho a impressão, indo em direção a ti, de deixar um mundo, de ouvir as portas baterem atrás de mim, portas e portas, pois elas são numerosas, as portas deste mundo feito de mal-entendidos, de falsas claridades, de zombarias. Talvez ainda me restem outras portas, talvez eu não tenha ainda re-atravessado toda a extensão sobre o qual se espalha a rede de signos que descaminham – mas estou indo, tu me ouve? eu me aproximo, o ritmo – eu o sinto – se acelera, os fogos enganadores se apagam um após outro, as bocas mentirosas voltam a se fechar sobre sua baba – não há mais palavras, não há mais ruídos, mais nada que acompanhe meu passo – Eu estarei lá, junto de você, num instante, num segundo que inaugurará o tempo. Paul 201

“As bocas mentirosas voltam a se fechar sobre sua baba” se referem a Claire Goll,

viúva do poeta Yvan Goll e ao editor Franz Vetter da editora Pflug Verlag, que recusou as versos de “Kenotaph” (Von Schwelle zu Schwelle 1959), un epitafio que ya en los años cincuenta había ideado para si mismo”. SILBERMANN, Edith. “Recuerdos de Paul (Celan-Antschel)” trad. de Cecília Dreymüller in Rosa Cúbica – Revista de Poesia. Inverno 1995-1996 (número 15-16) Paul Celan: rosa de nadie. Ibidem. p. 175. 199 “(...)“De la dalle/ du pont, d’où/ il a rebondi/ trépassé dans la vie, volant/ de ses propres blessures, - du/ Pont Mirabeau”. CELAN, Paul. La Rose de Personne. Paris: José Corti, 2002. Trad. de Martine Broda. p. 149. 200 “auto divination”. BRODA, Martine. “La leçon de Mandelstam” in Dans la main de personne. Essai sur Paul Celan. Op. cit. p.94. 201 “Maia, mon amour, je voudrai savoir te dire combien je désire que tout cela reste, nous reste, nous reste toujour. Vois-tu, j’ai l’impression, en venant vers toi, de quitter un monde, d’entendre les portes claquer derrière moi, des portes et des portes, car elles sont nombreuses, les portes de ce monde fait de malentendus, de fausses clartés, de bafouages[sic]. Peut-être me reste-t-il d’autres portes encore, peut-être n’ai-je pas encore retraversé toute l’étendue sur laquelle s’étale ce réseau de signes qui fourvoient – mais je viens, m’entends-tu, j’approche, le rythme – je le sens – s’accélère, les feux trompeurs s’ éteignent l’un après l’autre, les bouches menteuses se referment sur leur bave – plus de mots, plus des bruits, plus rien qui acconpagne mon pas – Je serai là, auprès de toi, dans un instant, dans une seconde qui inaugurera le temps. Paul”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p.16

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traduções de Paul Celan dos poemas de Yvan Goll. As difamações contra Celan continuarão

durante toda a vida, e mesmo, depois de sua morte.

A carta seguinte traz a questão da “implacável solidão” do poeta. Celan acreditava

que o encontro com Gisèle, em sua intensidade amorosa, possibilitava a ele, descobrir uma

“nova dimensão” de vida e novas coordenadas em seu sobre-viver. Vejamos a carta:

(...) que este mundo és tu, somente tu, e que ele se encontra ampliado, que ele encontrou, graças a ti, uma nova dimensão, uma nova coordenada, aquela que eu não me decidia mais a lhe conceder, que ele não é mais aquela implacável solidão que me obrigava, a cada instante, a saquear o que se erguia diante de mim, a me voltar obstinadamente contra mim mesmo – pois eu queria ser justo e não poupar ninguém! – que tudo muda, muda, muda sob teu olhar – 202

A carta-resposta de Gisele (Mardi, 29.1.1952) é reveladora para entendermos um

pouco a necessidade de Celan de viver tão ligado a ela, para se proteger do mundo que o

ameaça. Gisèle pergunta: “porque te apegas assim a mim?”203 E continua, entre assustada e

encantada:

(..) Paul querido – é tão extraordinário o que nos acontece, é um pouco aterrorizador quando nós refletimos sobre isto, mas é tão tranqüilizante de vivê-lo – Eu vivo agora com a grande certeza de teu amor no fundo de mim e uma incrível confiança que eu jamais conheci. 204

Nesta carta-resposta de Gisèle, encontramos também uma reflexão interessante de

Gisèle-leitora-de-poemas. Ela está em posição delicada. Não sabe alemão o suficiente para ler

os poemas de Celan. Cito a carta: “(...) Meu Poeta querido, eu gostaria tanto poder ler tudo o

que você escreve. Mas, não acredita você que eu ficarei sempre um pouco estrangeira?” 205

Estrangeiro é uma boa palavra para expressar o que sentimos, enquanto leitores, quando nos

aproximamos da poética de um autor. Por mais que entremos em contato com a poesia, por

mais que conheçamos a vida do autor, sempre ficaremos um pouco estrangeiro.

A carta de Celan de 21.5.1952, escrita de Paris às quatro horas de uma quarta-

feira, fala do estranhamento constante do poeta com a Alemanha. É uma pequena carta, mas

202 “(...) que ce monde est toi, toi seule, et qu’il s’en trouve agrandi, qu’il a trouvé, grâce à toi, une nouvelle dimension, une nouvelle coordonnée, celle que je ne me decidais plus à lui accorder, qu’il n’est plus cette implacable solitude qui m’obligeait à chaque instant de mettre à sac ce qui se dressait devant moi, de m’acharner contre moi même – car je voulais être juste et n’épargner personne! – que tout change, change, change sous ton regard – ”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p.17. 203 “pourquoi t’attaches-tu ainsi à moi?”. Ibidem. p. 17. 204 “(...) Paul chéri – c’est très extraordinaire ce que nous arrive, c’est un peu terrifiant quand on y réfléchit, mais c’est tellement tranquillisant de le vivre – Je vis maintenant avec la très grand certitude de ton amour au fond de moi et une incroyable confiance que je n’ai jamais encore connue”. Ibidem. p. 17-18. 205 “Mon Poète chèri, je voudrai tant pouvoir lire tout ce que tu as écrit. Mais ne crois-tu pas que j’y resterai toujours un peu étrangère?” Ibidem. p.17.

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muito bonita. Cito um trecho: “(...) eu sinto quanto este país me é estranho. Estranho, apesar

da língua, apesar de muitas outras coisas...” 206 É nesta estrangeiridade da língua que o poeta

prossegue e resiste.

Em outra carta (n.52), do dia 31.1.1955, remetida de Stuttgart, ele diz: “(...) Eu

durmo mal aqui: a paisagem humana, neste desgraçado país (inconsciente de sua infelicidade)

é bem entristecedora. Os raros amigos, os verdadeiros, são desiludidos, resignados,

desencorajados”207. Algumas vezes, Celan, no contato com os alemães e com a língua alemã,

sentia-se deslocado: “(...) eu estou completamente deslocado neste país, onde fala a língua que

minha mãe me ensinou...”208 Em relação à língua materna, ensinada pela sua mãe na

Bucovina de sua infância, encontramos nos comentários do organizador da correspondência,

Bertrand Badiou, uma importante referência retirada dos cadernos de trabalho do poeta:

Paul Celan escreve em seu último dístico de “Proximidade das Tumbas”, datada por PC sobre seu exemplar de trabalho de A areia das urnas [Czernowitz, 44 (depois de meu retorno de Kiev)]: ‘E, de que maneira, tu suportas, tu, mãe, como outrora, ah, em nossa casa\ a doce, a dolorosa rima alemã?’ (é preciso notar que daheim, “em casa”, no país, rima aqui com Reim, “a rima, o verso”). 209

Para Celan, o alemão será a língua falada pelos seus poemas, mas também a

língua que ele terá que suportar durante toda a sua vida.

Na carta do dia 28.09.1955 (n. 69), remetida de Dusseldorf, Celan nos fala um

pouco de onde ele recolhe sua escrita. Cito-o:

(..) se há uma coisa que esta estada aqui me ensinou, uma vez mais, é bem esta: a língua com a qual eu faço meus poemas não depende em nada do que se fala aqui ou acolá, minhas angústias a este propósito, alimentadas por meus problemas de tradutor são sem objeto. Se há ainda fontes de onde poderiam brotar novos poemas (ou prosa), é em mim mesmo que eu as acharei e não nas conversas que eu poderei ter em alemão, com os alemães, na Alemanha. 210

206 “(...) je sens combien ce pays m’est étranger. Etranger malgré la langue, malgre beaucoup d’autres choses...” CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 22. 207 “(...) Je dors mal ici: le paysage humain, en ce malheureux pays (inconscient de se malheurs) est bien attristant. Les rares amis, les vrai, sont déçus, résignés, découragés. Ibidem. p. 70. 208 “(...) je suis tout à fait dépaysé dans ce pays, où parle la langue que ma mère m’a apprise...”. Carta do dia 26.9.1955 (n.67). Ibidem. p. 80. 209 “Paul Celan écrit dans le dernier distique de Nähe der Gräber [Proximité des tombes], date por PC sur son exemplaire de travail de Der Sand aus den Urnen ‘Cz[ernowitz], 44 (nach der Rückkehr aus Kiev) [Czernowitz, 44 (après mon retour de Kiev)]’: ‘Und duldest du, Mutter, wie einst, ach, daheim, \ den leisen, den deutschen, den schmerzlichen Reim? [Et comment supportais-tu, toi, mère, comme jadis, ah, chez nous\ la douce, la douloureuse rime allemande?]’ (GWIII, p. 20; il faut noter que “dahem”, chez soi, au pays, rime, ici avec “Reim”, la rime, le vers). CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II. Commentaires et illustrations. Op.cit. p. 103. 210 “(...) il y a une chose que ce séjour m’a, une fois de plus, apprise c’est bien celle-ci: la langue don’t je fais mes poème ne dépend en rien de celle que l’on parle ici ou ailleurs, mes angoisses à ce propos, alimentée par mes ennuis de traducteur, sont sans objet. S’il y a encore des sources d’où pourraient jaillir de nouveaux poèmes (ou de la prose), c’est en moi-même que je les trouverai et non point dans les conversations que je pourrais avoir

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Para Celan, como para Kafka, a questão da língua é complicada. Para eles, que

não eram alemães, o alemão não foi, nem uma língua de adoção nem de eleição. O alemão é

escolhido como a língua de escrita. Celan escrevia nesta língua, ao mesmo tempo a língua que

sua mãe falava e a língua assassina dos nazistas. Vale lembrar aqui Kafka, que também era

judeu, escrevia em alemão e vivia no meio de uma população tcheca, quase meio século antes

de Paul Celan. Tanto Kafka quanto Celan tinham – para usar uma expressão do poeta Manuel

Bandeira –, “uma necessidade imperiosa de escrever”. 211

Na ocupação húngara, a partir do ano de 1889, a população tcheca sofreu várias

restrições, e uma delas era o impedimento, aos tchecos, de escrever em alemão. Este

impossível social não impediu Kafka de escrever em alemão. Em uma carta a Max Brod, de

junho de 1921, Kafka escreve: “impossibilidade de não escrever, impossibilidade de escrever

em alemão, impossibilidade de escrever de outra maneira”. Escrever em alemão se impunha à

mão que escreve e era uma necessidade imperiosa. Também não podemos esquecer que Paul

Celan morava na França, e tinha conflitos também com a língua francesa. Em conversa com o

poeta francês Yves Bonnefoy, Celan expôs sua posição: “Vocês (tratava-se dos poetas

franceses, ocidentais) estão em sua casa, em sua língua, em suas referências, entre os livros

que vocês amam. Eu, eu estou fora...” 212 Este fora se dá em “um não-país e em um não-

tempo”213. Assim, em Celan, há um duplo conflito linguageiro: com a língua alemã e com a

língua francesa. Por outro lado, em conversa com o poeta e amigo Jean Daive, atravessando o

cruzamento da rue des Écoles e do Boulevard Saint-Michel, Celan confidenciava seu desejo e

sua impossibilidade de escrever em francês. Cito a conversa:

Celan: Você pensou poder escrever em uma outra língua? Daive: Não. E você? Celan: Sim.,. algumas vezes em francês... Mas isto não é possível. Daive: Por quê? Celan sorri.214

Um desejo de escrever em francês esbarrava em seu pensamento poético de que o

poeta só escreve em uma língua. Celan não acredita em bilingüismo na poesia. Lemos:

en allemand, avec de Allemands, en Allemagne”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 83. 211 ANDRADE, Mário; BANDEIRA, Manuel. Correspondência (organização, introdução e notas: Marcos Antonio de Moraes). São Paulo: Edusp, 2000. p. 448. 212 “Vous (il s’agissait des poètes français, occidentaux) êtes chez vous, dans votre langue, vos références, parmi les livres, les oeuvres que vous aimez. Moi, je suis dehors...” BONNEFOY, Yves. Le nuage rouge. Paris: Mercvre de France, 1992. p. 327. 213 BLANCHOT, Maurice. Le Dernier à parler. Paris: Fata Morgana. 1984. p. 24. 214 DAIVE, Jean. La Condition d’infini – n. 5. Sous la coupole. Paris: P.O.L, 1996. p. 21.

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“Poesia – essa é a inelutável unicidade da língua”215. Além disso, como nos diz o ensaísta

Rafael Gutierrez Girardot, a poesia de Paul Celan “é a complexa expressão de um exílio

absoluto que encontrou sua pátria impossível na língua alemã”,216 sempre buscando elaborar o

que parece impossível: uma pátria perdida.

Talvez, possamos aproximar Celan do escritor Edmond Jabès que pensava a

língua na referência, principalmente, ao que podemos chamar de estatuto de estrangeiridade.

Jabès nos fala que:

Eu nunca soube onde estava. Quando estava no Egito, estava na França. Desde que eu estou na França, estou em outra parte. Ainda o problema do estrangeiro. O estrangeiro não sabe mais qual é o seu lugar. Não há, senão a língua. Se um estrangeiro vem a um país porque ele escolheu sua língua, ele encontra aí seu lugar. Mas, onde ele encontra seu lugar? Simplesmente nessa língua. Ora, essa língua que não cessa de aperfeiçoar já não é mais a língua que se fala ao seu redor. Seu lugar é o lugar da língua: o livro. 217

Se o lugar da língua é o livro, o lugar do poema é a estranheza. E da língua à

estranheza passamos pelo estrangeiro. Estrangeiro que insiste e resiste nos poemas de Paul

Celan e na correspondência dele com Gisèle. Na carta do dia 15. 3. 1966 (n.369), Celan faz

referência ao nome Lestrange e sua relação com o L’étranger (“estrangeiro”). Diz a carta:

“(Aqui, pensei em ti ainda, a lembrança de Saint-John Perse e de seu ‘Chant de

l’Alienne’)”218. Ele faz alusão ao ultimo verso da primeira parte do Poème à l’Etrangère que

tem como épigrafe : “‘Alien Registration act’: Rua Gît-le-coeur [Jaz-o-coração]... Rua Gît-le-

coeur... canta baixinho a Alienne sob as lâmpadas, e são esses enganos de sua língua de

Estrangeira”219.

Na carta do dia 27 de dezembro de 1966 (n.469), Celan escreve, agradecendo a

gravura enviada e os votos de Gisèle para o novo ano (1967). Ele ressalta que, na gravura há

duas imagens, uma reagindo (no sentido de confrontação) à outra, e diz que: “os cobres,

215 CELAN, Paul. “Resposta a um inquerito da Librairie Flinker, Paris” (o objetivo do inquérito era o “problema do bilinguismo”). in Arte Poética. O Meridiano e outros textos. Op. cit. p.69. 216 GIRARDOT, Rafael Gutierrez. Bogotá: Gaceta de Colcultura No. 27, 1980. 217 Cito:“Je n’ai jamais su où j’étais. Quand j’étais en Egipte, j’étais en France. Depuis que je suis en France, je suis ailleurs. Encore le problème de l’étranger. L’étranger ne sait plus quel est son lieu. Il n’y a que la langue. Si un étranger vient dans un pays parce qu’il en choisit la langue, il y trouve son lieu. Mais il trouve son lieu où? Simplement dans cette langue. Or cette langue qu’il ne cesse de perfectionner n’est plus la langue qui se parle autour de lui. Son lieu, c’est le lieu de la langue: le livre”. “L’étranger d’Edmond Jabès”. Declarações recolhidas por André Velter. Le Monde. Paris, 28/04/1989. 218 “(Ici, pensée pour toi encore, le souvenir de Saint-John Perse et de son ‘Chant de l’Alienne’”.) CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.cit. p. 387 219 “‘Alien Registration Act.’: ‘Rue Gît-le-coeur... Rue Gît-le-coeur...’ chante tout bas l’Alienne sous ses lampes, et ce sont là méprises de sa langue d’Etrangère”. (Saint-John Perse. Exil, seguido de Poème à l’Etrangère, Pluies, Neiges,Paris, Livraria Gallimard, 1946, p. 37). CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II. Commentaireset illustrations. Op.cit. p. 293.

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reescritos com sua mão, trocam suas mensagens, ‘lestrangement’”220. Celan faz alusão, uma

outra vez, ao sobrenome de sua esposa, De Lestrange que sonoramente faz eco a De

l’étranger221. A qualidade necessária para um poema, assim como para uma gravura, é ter

estranheza. Celan dava ênfase “sobretudo a estranheza.(...) Sobre este tema, Paul Celan anota

em 1968 esta reflexão de Paul Valéry: ‘Toda visão das coisas que não é estranha é falsa’”222.

A carta de Celan do dia 10.8.1952 (n. 18) faz referência às cartas não publicadas

de Gisèle, nesta correspondência, onde ela comentava um livro que Celan tinha lhe dado de

presente. Trata-se da Montanha Mágica de Thomas Mann. Em um dos trechos, ela diz: “Eu

entrei na Montanha Mágica”. Celan, responde a esta carta dizendo: “!O que eu fiz mais?

(questão pertinente, pois eu não me encontro, como você, sobre uma ‘montanha mágica’, mas

na planície). Oh, não muita coisa, infelizmente”223. Esta carta mostra um distanciamento

(crítico literário) de Celan em relação a Gisèle. Ele prefere usar o pronome “vous” ao invés do

“tu” habitual. É claro que a sensação de Gisèle de se sentir em uma montanha mágica é

natural diante do impacto da leitura do livro de Thomas Mann. No entanto, Celan, neste

momento, não se imagina em uma montanha. Tudo com ele se passa em um plano bastante

árido e seco, com pedras e sombras.

Não podemos esquecer que a montanha, sete anos mais tarde, em 1959, terá para

Celan uma importância capital. Do “plano árido e seco” de 1952, para a “conversa na

montanha” de 1959, Celan percorreu um longo caminho. Um novo escrito surgiu, em prosa,

no ano da publicação de seu livro de poemas Sprachgitter (Grelha de linguagem). Depois de

Der Sand aus den Urnen (A areia das urnas, 1948), Mohn und Gedächtnis (Papoula e

Memória), 1952), e Von Schwelle zu Schwelle (De limiar em limiar, 1955), Conversa na

montanha foi escrito em um momento de transição, no qual o poeta trazia uma prosa

repetitiva, distante “da crescente economia”224 de seus poemas, nesta época. Excetuando o

longo poema “ENGFÜHRUNG” (“Stretto”) de Grelha de linguagem, os outros poemas deste

livro, já tendiam para esta economia de versos, que só iria se concretizar inteiramente em seus

últimos livros.

220 “les cuivres, réécrits de votre main, échangent leurs messages, ‘lestrangement’”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.cit. p.490. 221 L’étranger quer dizer o estrangeiro; o estranho. 222 “surtout à l’étrangeté. (...) A ce sujet, PC note en 1968 cette réflexion de Paul Valéry: ‘Toute vue des choses qui n’est pas étrange est fausse’”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II. Commentaires et illustrations. Ibidem. p. 338. 223 “! Qu’ai-je encore fait? (question pertinente, car je ne me trouve pas, comme vous, sur une ‘montagne magique’, mais dans la plaine). Oh, pas grand-chose, hélas.” CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 32. 224 HARTMAN, Geoffrey H. “Holocausto, Testemunho, arte e trauma” in Catástrofe e Representação (organizadores: Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva). São Paulo: Editora Escuta Ltda. 2000. p.229.

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O texto Conversa na montanha fala de um encontro entre dois judeus muito

falantes. Um judeu mais novo carregava em seu nome o indizível, e caminha pela estrada e

como Lenz225, “através da montanha. (...) Veio, sim, pela estrada, a bela, a incomparável, foi

como Lenz pela montanha, ele que deixaram morar lá embaixo, onde ele pertencia, nas terras

baixas, ele, o Judeu veio e veio andando”226.Veio ao encontro de seu primo. E segue o texto:

“Seu parente e primo, aquele que era mais velho do que ele um quarto de vida de Judeu, ele veio, grande, veio, ele também, na sombra emprestada, – pois eu pergunto e pergunto outra vez quem já que Deus fez nascer Judeu vem com algo que lhe seja próprio?”227

Aqui, na referência a sombra, o judeu mais novo veio pela sombra, não portando

nada que lhe pertencesse. Cito: “pois o Judeu você o sabe, o que tem ele que lhe pertença

realmente, que não lhe foi emprestado e tomado e jamais restituído”228. Há uma falta radical

que este encontro realiza e presentifica. Os judeus não tinham nada que lhes fosse próprio.

Assim, o silêncio se fez presente: “Assim, a pedra silenciou, ela também, e o

silêncio se fez na montanha. (...) Mas o silêncio não durou muito tempo, pois quando um

Judeu vem e encontra um outro, o silêncio logo termina, mesmo na montanha”229. Apesar de a

pedra ter silenciado, “o silêncio não é um silêncio, nenhuma palavra ali está calada, nenhuma

frase, é apenas uma pausa, apenas um intervalo entre as palavras, é apenas um vazio, podem-

se ver todas as sílabas imóveis em volta”230.

A carta de Celan do dia 14.8.52 (n. 20) é reveladora, no que se refere ao seu modo

peculiar de trabalhar os poemas. Depois de descrever a compra de vários livros a preço mais

em conta, em um bouquiniste perto da igreja de Notre-Dame e de pedir desculpas a Gisèle por

se considerar um gastador, Celan escreve: “Eu leio bastante para poder um dia escrever um

novo livro para você”231. O novo livro a que Celan se refere, se chamará Von Schwelle zu

Schwelle (De Limiar em Limiar) e sera dedicado a Gisèle.

Na nota número 8 do dia 14.8.1952 (n.20), o organizador da correspondência,

Bertrand Badiou diz que: “muitos dos poemas, aforismos ou pensamentos nasceram nas

225 Lenz, personagem de Büchner. Referência também ao discurso de Celan “O Meridiano” quando recebeu o premio Büchner. O texto de Büchner também começa com Lenz subindo a montanha. Nota da tradutora Vera Lins. 226 LINS, Vera. “Conversa na Montanha” (tradução). in Poesia e Crítica: Uns e outros. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005. p.35. 227 Ibidem. p. 35-36. 228 Ibidem. p. 35. 229 Ibidem. p. 36. 230 Ibidem. p. 36. 231 “Je lis beaucoup pour pouvoir un jour écrire un nouveau livre pour vous”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p.35.

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margens mesmas dos livros. Numerosas páginas dos livros da Biblioteca de Paul Celan

constituem verdadeiros manuscritos”232. Estes manuscritos contidos em muitos livros de Celan

nos revelam a sua prática de escrita. A leitura, para ele, tinha uma importância crucial. É a

partir dela que ele elaborava muitos de seus poemas e sua forma de pensar o mundo e a

poesia. Daí suas inúmeras anotações nas margens dos livros lidos. Em uma carta,

possivelmente escrita em dezembro de 1954, (n.45) Paul Celan assina com a letra “i”,

sublinhando-a duas vezes. Este “i” celaniano tem relação com suas anotações nas margens

dos livros lidos e aponta para sua experiência de escrita, a saber, de onde surgem as suas

idéias poéticas. Vejamos a esclarecedora nota de Bertrand Badiou:

Paul Celan assina com um pequeno “i” sublinhando duas vezes. É assim que ele assinala, para ele mesmo, muitas vezes, na margem de um livro, uma idéia, uma fonte de inspiração, uma palavra ou uma frase ressaltada no momento de uma leitura, um esboço mais ou menos elaborado de tradução ou de poema, uma reflexão de natureza aforística ou especulativa. Em setembro de 1957, Gisèle Celan-Lestrange escreve a Klaus Demus sobre o tema da inicial da palabra ‘idéia’: “Eu sei que ele lê muito e que ele retoma e reflete sobre suas ‘i’ (idéias que ele vai marcando aos poucos para trabalhá-los e fazê-los evoluir depois)”. Mas esta abreviação é certamente liberada de seu sentido original no fio do tempo, para adquirir um valor idiosincrático. O ‘i’ (precedido e seguido de um hífen ou não) indica uma fonte de inspiração ou um texto em potencial – por vezes mesmo um poema já plenamente existente, e que se publicou tal qual, depois de simples recolhimento do sinal. Assinando deste modo, Paul Celan se identifica por assim dizer à poesia, ou pelo menos a ‘idéia poética’ (confere ‘Eu sou a poesia’, proposição de Paul Celan relatada por Jean Bollack em Pierre du couer, s.l., Pierre Fanlac, 1991, p. 9).233

A marcação em “i” nos livros lidos, liberada de “seu sentido original no fio do

tempo” adquire um valor totalmente outro. O pequeno “i” traz um potencial de escrita que

desencadeia a produção de poemas e de outros textos. Potencial que fala de uma “potência

próxima”, onde o “i” atua como catalizador, que aproxima o texto assinalado do texto

232 “Bien des poèmes, aphorismes ou pensées sont nés dans les marges mêmes des livres. De nombreuses pages des livres de la Bibliotèque de PC constituent de véritables manuscrits”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II. Commentaires et illustrations. Op. cit. p.70. 233 “PC signe d’un petit ‘i’ souligné deux fois. C’est ainsi qu’il signale, pour lui-même, souvent dans la marge d’un livre, une idée, une source d’inspiration, un mot ou une phrase relevés lors d’une lecture, une esquisse plus ou moins élaborée de traduction ou de poème, une réflexion de nature aphoristique ou spéculative. En septembre 1957, GCL écrit à Klaus Demus au sujet de l’initiale du mot ‘idée’: ‘Je sais qu’il lit beaucoup et qu’il reprend et réfléchit sur ses ‘i’ (idées qu’il note au fur et à mesure pour les travailler et les faire évoluer dans la suíte).’ Mais cette abréviation s’est très certainement libérée de son sens originel au fil du temps, pour acquérir une valeur idiosyncrasique. Le ‘i’ (precede et suivi d’un tiret ou non) indique une source d’inspiration ou un texte en puissance – parfois même un poème déjà pleinement existent, et qui se publié tel quel, après simple retrait de ce signe. En signant de la sorte, PC s’identifie pour ainsi dire à la poésie, ou tout au moins à l’ ‘idée poétique’ (cf. ‘Je suis la poésie’, propôs de PC rapporté par Jean Bollack dans Pierre de coeur, s.l., Pierre Fanlac, 1991, p.9)”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II. Commentaires er illustrations. Op.cit. p.90.

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produzido pelo poeta. Mesmo que o texto assinalado tenha perdido o seu sentido original, ele

age, silenciosamente, no poema ou no texto inventado pelo poeta.

Além disso, para Celan, o livro, tinha um caráter transformador. Lembremos de

Kafka em carta a seu amigo Oskar Pollak, em 1904:

(...) acho que só devemos ler a espécie de livros que nos ferem e trespassam. Se o livro que estamos lendo não nos acorda com uma pancada na cabeça, porque o estamos lendo? (...) Mas nós precisamos de livros que nos afetam como um desastre, que nos magoam profundamente, (...) Um livro tem que ser como um machado para quebrar o mar de gelo que há dentro de nós É nisso que eu creio.234

Na correspondência a Gisèle Celan-Lestrange, encontramos Celan “escritor” de

língua francesa. Podemos perceber o desdobramento de sua palavra poética nas traduções que

começavam a se desenhar, ou nos poemas que ele endereçava à sua mulher. Esses poemas

eram acompanhados “d’un mot à mot français”. Aqui descobrimos, pela primeira vez, Celan

tradutor de Celan! Na verdade, Celan, muitas vezes, traduzia os seus versos do alemão para o

francês para que Gisèle pudesse entendê-los. Na carta de 13 de agosto de 1952, Celan se

mostra bem animado com a possibilidade de traduzir todos os seus poemas para o francês. Diz

a carta:

(...) Mas é claro, eu traduzirei para você todos os meus poemas: já, em meus passeios, eu os ausculto um pouco, para ver para onde eles ressoarão em francês – eles são menos teimosos do que eu havia pensado. 235

Este otimismo dará lugar a uma desconfiança em relação às traduções de seus

poemas para o francês, levando-o a pensar que há uma impossibilidade de traduzi-los. Quinze

anos mais tarde, na carta 27 de dezembro de 1966, quando Celan está escrevendo “Wenn ich

nicht weiss, nicht weiss” (Quand je ne sais pas, sais pas), poema do futuro livro Fadensonnen

(Soleils de fil), ele dá sua primeira impressão sobre este poema: “Eu escrevi um poema, duro,

difícil de traduzir”.236 Sabemos, a partir do testemunho de sua esposa Gisèle, que Celan

começa a se mostrar bem pessimista quanto ao caráter traduzível de seus poemas para o

francês. Então, ele toma a posição de não mais traduzi-los integralmente para sua mulher.

Renuncia em parte ao gesto de “tradutor” e opta por enviar uma lista de palavras traduzidas.

Esta lista servia como possibilidade de sua esposa aprender um pouco de alemão. Fazia parte

234 KAFKA, Franz. Carta aos amigos. São Paulo: Nova Época Editorial Ltda. p.9 235 “Mais oui, je vous traduirai tous mes poèmes: déjà, en me promenant, je les ausculte un peu, pour voir par où ils résonneront en français – ils sont moins têtus que je ne l’avais pensé.” in CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 34. 236 “J’ai écrit un poème, dur, difficile à traduire”. Ibidem. p. 491.

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de uma “lição de alemão”237. É nesta mudança de atitude que o poeta nos mostra o manejo

singular que tem com as duas línguas: a francesa e a alemã. Assim, ao enviar uma carta

contendo um poema, na carta seguinte ele envia um dicionário, que chamarei aqui de

“Dicionário Celan”. Em geral, ele não vinha completo obrigando à Gisèle a consultar o

dicionário de alemão-francês.

Este dicionário criado por Celan também trazia palavras inventadas em francês, a

saber, traduções franco-celanianas. Este momento de invenção celaniana está sendo

considerado aqui no texto como um momento de “passagem ao poético”.

Na carta do dia 2 de abril de1966 (n. 396) ele envia um poema e logo na carta

seguinte ele manda o “Dicionário Celan”. Vamos transcrever o poema em alemão e depois

trazer a tradução feita pelo organizador da correspondência, Bertrand Badiou, que segue, em

parte, o dicionário enviado para Gisèle. A seguir, vamos transcrever a carta seguinte, do dia

3?. 4. 1966 (n.397), que traz o “Dicionário Celan”; e depois reescreveremos a tradução do

poema, a partir deste Dicionário, além, é claro, de nos servir, com as palavras faltantes, de um

dicionário comum de alemão-francês. Este poema vai nos dar a diretriz de nosso trabalho, no

que se refere à questão da língua, em seu movimento de cicatricement, 238que será melhor

desenvolvido no capítulo seguinte. Ele diz nesta carta: “(...) Hoje, eu te beijo, antes de voltar,

com as palavras (necessárias)” 239 As palavras de seu dicionário nos serão também necessárias

para nos aproximarmos da escrita melancólica de Celan, escrita que traz uma cicatriz sempre

em movimento. Vamos ao poema:

2. 4. 66

_____

das Äusserste – l’extrême

nicht zu Entwirrende

Das Narbenwahre, verhakt

ins ÄuBerste, nicht zu

Entwirrende,

Längst

237 “leçon d’allemand”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II. Commentaires er illustrations. Op.cit. p. 71. 238 Podemos pensar aqui em cicatriz sempre em movimento. 239 “(...)! Aujourd’hui, je t’embrasse, avant de revenir, avec les mots (nécessaires!)”. CELAN, Gisèle. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.cit. p.415.

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ist der Schautanz getanzt,

der schwergemünzte,

hier in der Einfahrt,

wo alles noch einmal geschieht,

endlich,

heftig,

längst.

_______

2.4.66

An Gisèle240

A tradução de Bertrand Badiou ficou assim:

O verdadeiro cicatricial

enganchado

no extremo, inex-

tricável,

Há muito tempo

Terminou-se de dançar a dança-espetáculo,

o peso a ser pago,

aqui, na entrada dos carros,

onde tudo acontece uma vez mais,

enfim,

com violência,

há muito tempo.

2. 4. 66

A Gisèle241

O “Dicionário Celan”, contido na carta do dia 3. 4. 1966 (n. 397) vem com as

seguintes indicações de tradução, que manterei no original:

240 CELAN, Gisèle. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.cit. p. 415. 241 “Le vrai cicatriciel,/ accroché/ dans l’extrême, in-/extricable,/ Depuis longtemps/ on a fini de danser la danse-spectacle,/ la lourdement monnayée,/ ici, à l’entrée des voitures,/ où tout arrive encore une fois,/ enfin,/ avec violence,/ depuis longtemps./ 2. 4. 66/ A Gisèle”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 415-416.

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Die Narbe – la cicatrice\ narbenwahr – vrai comme une cicatrice\ vrai-“cicraticement”\ verhakt – accroché\ der Haken – le crochet\ das ÄuBerste\ - l’ Extrême\ entwirren: antonyme de verwirren – brouiller, [sic]\ das nicht zu Entwirrende – impossible à dévider, à sortir de la confusion\ längst\ il y a bien longtemps\ der Schautanz – la danse-“show”, [sic]\ die Schaumünze – la médaille (enfin: démonstrative) \ münzen – frapper monnaie \ die Einfahrt – l’entrée (pour automobilistes?) \ heftig – avec violence. 242

Permanecendo fiel ao “Dicionário Celan”, vou traduzir a primeira estrofe da

seguinte forma: “A verdadeira-cicatriz sempre em movimento, enganchada / no extremo, /

impossível de se desenredar”. 243 Na carta seguinte, do dia quatro de abril de 1966, Celan avisa

a Gisèle que provavelmente fará algumas mudanças no poema como é de seu feitio. E

acrescenta: “Eu gosto muito de decompor meus poemas, voce sabe bem”.244

Na carta do outono de 1952 (n. 23), Celan envia uma carta-poema, a saber, uma

carta que é um poema, para parafrasear a frase de Novalis de que toda carta é um poema.

Ainda poderíamos chamá-la de carta-poema-tradução, para sermos mais fiéis à carta. Aqui

encontramos ainda Celan tradutor de seus próprios poemas. Ele envia um poema em alemão e

o traduz integralmente, palavra por palavra. Assim ele escreve:

Ich hörte sagen, es sei

im Wasser ein Stein und ein Kreis

und über dem Wasser ein Wort,

das den Kreis um den Stein legt.

Ich sah meine Pappel hinabgehn zum Wasser,

ich sah, wie ihr Arm hinuntergriff in die Tiefe,

ich sah ihre Wurzeln gen Himmel um Nacht flehn.

Ich eilt ihr nicht nach,

ich las nur vom Boden auf jene Krume,

die deines Auges Gestalt hat und Adel,

ich nahm dir die Kette der Sprüche vom Hals

und säumte mit ihr den Tisch, wo die Krume nun lag.

Und sah meine Pappel nicht mehr.

[Paris?, automne 1952]

242 Ibidem. p. 416. 243 Versos do poema, a partir da tradução francêsa, modificados a partir do dicionário Celan: “Le vrai- “cicatricement” accroché/ dans l’extrême, impossible à devider”. Ibidem. p. 416. 244 “J’aime bien me défaire de mes poèmes, tu le sais bien” Ibidem. p.398.

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Ouvi dizer que havia

na água uma pedra e um círculo

e sobre a água uma palavra

que dispõe o círculo à volta da pedra.

Vi o meu choupo descer para a água,

vi o seu braço mergulhar no fundo,

vi as suas raízes suplicar noite voltadas para o céu.

Não corri atrás dele,

limitei-me a apanhar do chão essa migalha

que dos teus olhos tem a forma e a nobreza,

tirei-te do pescoço o colar daquelas falas

e debruei com ele a mesa onde agora estava a migalha

E deixei de ver o meu choupo.245

É curioso que o tradutor João Barrento tenha traduzido o verso celaniano ich sah

ihre Wurzeln gen Himmel um Nacht flehn por “vi as suas raízes suplicar noite voltadas para o

céu”, fazendo uma junção do suplicar com noite que é diferente da tradução de Celan, e perde

parte do movimento trazido pelo poeta. Celan prefere traduzir seu verso em alemão (ich sah

ihre Wurzeln gen Himmel um Nacht flehn) para o francês – “je vis ses racines se dresser vers

le ciel pour implorer/ (qu’il y ait) de la nuit” – transformando-o em dois versos, tensionando

as raízes em direção à noite. “Vi suas raízes se erguerem em direção ao céu para implorar/ que

haja noite” traz uma respiração que a tradução de Barrento não evidencia. Há um movimento

das raízes (do choupo, em uma clara referencia ao sujeito-poeta), com esforço, endereçadas ao

céu, esperando uma resposta que pudesse confirmar que haverá noite. No entanto, ele só

recolhe, em silêncio, uma “migalha”, perdendo de vista o seu choupo (as suas raízes). Isto nos

leva em direção a uma afirmação que Celan faz em sua correspondência para Gisèle: “eu sou

um homem sem raízes”.

245“J’entendis dire qu’il y avait/ dans l’eau une pierre et un cercle/ et au-dessus de l’eau une Parole/ qui met le cercle autour de la pierre./ Je vis mon peuplier descendre (aller vers le bas) vers l’Eau,/ je vis comme son bras plongea dans la profondeur pour saisir,/ je vis ses racines se dresser vers le ciel pour implorer/ (qu’il y ait) de la nuit./ Je ne lui courus pas après,/ je ramassai de par terre cette miette/ qui a la forme et la noblesse de ton oeil,/ je détachai de ton cou la chaîne des dits/ et en bordai la table, où/ maintenant gisait la miette./ Et ne vis plus mon peuplier” . Tradução para o francês feita por Paul Celan. Lembro aqui que choupo é uma árvore ornamental, da família das Salicáceas, de flores pequenas e casca rugosa; choupo pode ser também álamo. Quando Celan publica este poema, intitula-o “Ouvi dizer”. Sete rosas mais tarde. Op. cit. p. 37. (poema do livro Von Schwelle zu Schwelle (De limiar em limiar) de Paul Celan de 1955).

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Em suas últimas cartas a Gisèle, Celan retoma seu oficio de tradutor de seus

próprios poemas. Talvez, deixando no ar um indício de que seus poemas podiam ser

traduzidos para o francês.

Após a morte de Alberto Camus, Celan preparou um texto para ser traduzido

pelos seus alunos da École Normal Supérieure. O texto de Camus escolhido foi “La mer au

plus près. Journal de bord”, do livro intitulado L’Eté de 1954. Na carta n. 114 de “[Paris]

quarta-feira de manhã [6.1.1960]”246, ele escreveu: “A morte de Camus: é, uma vez mais, a

voz do anti-humano, indecifrável. Se nós pudéssemos pensar com os dentes!”247. No mesmo

dia, Paul Celan escreveu uma carta ao poeta René Char (não enviada) falando a respeito da

morte de Camus:

René Char! Eu gostaria de lhe falar, neste momento, que é o de seu sofrimento, qual é o meu sofrimento. O tempo luta com tenacidade contra aqueles que ousam ser humanos – é o tempo do anti-humano. Vivos, nós estamos mortos, nós também. Não há o céu da Provence; há a terra, aberta, sem hospitalidade; só há isso. Não há consolo, não há palavras. O pensamento – este é um caso de dentes. Uma palavra simples que eu escrevo: coração. Um caminho simples: aquele248.

“O pensamento como um caso de dentes” e “pensar com os dentes” nos remete a

um poema do livro póstumo Schneepart (publicado em 1975)249:

FALAR COM OS BECOS sem saída ali defronte, da sua expatriada significação – :

mastigar este pão, com dentes de escrita250.

Os versos que nos interessam aqui são: “mastigar/ este pão, com/ dentes de

escrita”. De que dentes Celan estaria falando? Seria ainda uma última possibilidade do

246 “ [Paris] mercredi matin [6.1.1960] ”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 112. 247 “La mort de Camus: c’est, une fois de plus, la voix de l’anti-humain, indéchiffrable. Si l’on pouvait penser avec ses dents!”. Ibidem. p. 112. 248 “René Char! Je voudrais vous dire, en ce moment, qui est celui de votre peine, quelle est ma peine. Le temps s’acharne contre ceux qui osent être humains – c’est le temps de l’anti-humain. Vivants, nous sommes morts, nous aussi. Il n’y a pas de ciel de Provence; il y a la terre, béante, et sans hospitalité; il n’y a qu’elle. Point de consolation, point de mots. La pensée – c’est une affaire de dents Un mot simple que je écris: coeur. Un chemin simple: celui-là”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II. Commentaires et illustrations. Op. cit. p. 130. 249 “A parte da neve”.Tradução feita por João Barrento. CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Op. Cit. p. 163. 250 CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Op. cit. p. 169.

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homem falar, antes de ser tomado pelo que ele chamou de anti-humano? Os dentes de escrita

remetem à escrita, ela mesma, enquanto possibilidade de dizer alguma coisa ainda, apesar de

sua condição de poeta expatriado. Lembro aqui os versos do poema “Argumentum e silentio”,

feito em homenagem a René Char, que além de tocar na questão da noite, agora “sobrevoada

de estrelas, submersa pelo mar”, fala também de uma junção da noite com o “dente venenoso”

de escrita causando dor:

(...) A ela, a noite, sobrevoada de estrelas, submersa pelo mar, a ela, ganha pelo silêncio, a quem não gelou o sangue quando o dente venenoso atravessou as sílabas251.

5.3. O SOBRE-VIVER DE UM POETA: AINDA E SEMPRE

Em 28 de setembro de 1962 (n. 144), Gisèle escreve se queixando de não estar

recebendo cartas. Ela diz:

De sua parte uma coisa não está bem. Porque não me envias o que escreves? Não importa o que, bem sabes que isto não será mal endereçado, bem sabes que podes me escrever tudo o que se passa pela sua cabeça, mesmo que seja apenas o reflexo de um instante de teu dia 252.

E acrescenta: “Eu te suplico, não guardes as cartas não enviadas, se elas me são

endereçadas” 253. Um pouco mais adiante, em outubro, Celan envia algumas cartas,

endereçadas a Gisèle, mas inacabadas. Antes de enviá-las, ele escreve uma longa carta no dia

30 de setembro de 1962 (n. 145), escrita de Genève. Celan novamente enfatiza a relação da

escrita com o amor, e, em especial, o amor pela sua mulher. Isto movia sua escrita: “Eu lhe

escrevo, meu Amor, eu lhe escrevo – isto faz viver” 254. Na carta do dia 3.4.1954 (n.39) não

251 CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Ibidem. p. 69. 252 “De votre part une chose n’est pas bien. Pourquoi ne pas m’envoyer ce que tu écris? N’importe quoi, tu sais bien que cela ne sera pas mal adressé, tu sais bien que tu peux m’écrire tout ce qui te passe par la tête, même si ce n’est le reflet que d’un instant de ta journée”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 140. 253 “Je t’en supplie, ne garde pas de lettres non envoyée, si elles me sont destinées”. Ibidem. p. 140. 254 “Je vous écris, mon Amour, je vous écris – cela fait vivre”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 143.

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somente faz referência ao amor, mas também ao entrelaçamento da arte – representada pela

sua mulher Gisèle – com a poesia, representada pelo próprio poeta:

Minha querida, você sabe bem: você é a ‘peinteuse’ da mesma maneira que eu, o ‘poéteux’. Eu, sei fazer uma coisa: te amar. – Tudo o resto tem pouca importância. [Na margem:] e meus poemas: são você, meu amor255.

Em uma das cartas inacabadas (n. 156), datada de 23.X. 1962, a grafia de Paul

Celan está “extremamente pertubada”256. Também o início do texto é revelador de seu estado

psíquico. Entre novembro e dezembro de 1962, Celan passará por graves dificuldades

psicológicas ligadas ao caso Goll. Vejamos a carta:

Você é minha mulher – você é corajosamente a mulher de um poeta. Eu te agradeço por sê-lo com tanta valentia. Você é também a mãe de meus filhos, você é a mãe de Eric. Obrigado, minha Querida, por sê-lo tão corajosamente. Você é, você bem sabe, a mulher de um poeta maldito: duplamente, triplamente ‘judeu’257.

Na cronologia feita pelo organizador da correspondência, Bertrand Badiou, há

uma referência a um terceto inédito de Celan, que é um “gesto de conjuração e de

resistência”258. Celan, em 7 de novembro de 1962, escreve um terceto: “‘Es muss Wahrheit

geschehen/ und / Liebe’. [É preciso que a verdade advenha/ e/ o amor]”259. Na carta do dia 31

de dezembro de 1962 (n. 160), Gisele tenta incentivá-lo com palavras de amor e diz que “você

sabe bem que nada pode nos separar jamais, jamais”260. No entanto, a situação amorosa do

casal é bastante precária. A partir do diário de Paul Celan e de conversas de Bertrand Badiou

com Gisèle Celan-Lestrange, podemos ter alguma noção do sofrimento e da angústia vivida

não só pelo poeta, mas também por sua mulher. A pedido de Gisèle, Celan aceita se internar

em uma clínica psiquiátrica privada de Epinay-sur-Seine. Sobre o fato, Badiou nos conta que:

255 “Ma chérie, vous le savez bien: vous êtes la ‘peinteuse’ au même titre que moi le ‘ poéteux’. Moi, je sais faire une chose: vous aimer. – Tout le reste n’a que peu d’importance. [En marge:] Et mes poèmes: c’est vous, mon amour”. CELAN, Gisèle. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.cit. p. 57. 256 “extrêmement troublée”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op. cit. p. 165. 257 “Vous êtes ma femme – vous êtes courageusement la femme d’un poète. Je vous remercie de l’être, si vaillamment. Vous êtes, aussi, la mère de mes enfants, vous êtes la mère d’Eric. Merci, ma Chérie, de l’être si courageusement. Vous êtes, vous le savez bien, la femme d’un poète maudit: doublement, triplement ‘juif’”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.Correspondance. Lettres. Vol. I. Ibidem. p. 157. 258 “geste de conjuration et de résistance”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle Correspondance. Commentaires et illustrations Vol. II. Ibidem. p. 540. 259 “[Il faut que la verité advienne\ et\ l’amour.]”. Ibidem. p. 540. 260 “vous savez bien que rien ne peut nous séparer jamais, jamais”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Ibidem. p. 160.

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Alguns dias antes, em Valloire, Paul Celan tinha vivido suas primeiras crises de delírio: alucinações, ameaças acompanhadas de gestos agressivos com respeito a Gisèle Celan-Lestrange. Paul Celan acusa um passante de estar implicado no caso Goll dizendo-lhe: ‘você também, você está no jogo’. Durante a viagem de retorno antecipada, ele arranca, com violência, ‘o lenço amarelo como as estrelas amarelas’ do pescoço de sua esposa (conversa com Gisèle Celan-Lestrange). Eric Celan, com um pouco mais de sete anos, é testemunha destas cenas. Na sua agenda, com a data de 21.12.1962, Paul Celan marca uma cruz (X) no interior de um quadrado. (Diário de Paul Celan e conversa com Gisèle Celan-Lestrange)261.

Paul Celan ficou internado do dia 31.12.1962 até o dia 17.01.1963. Durante este

período, as cartas de sua mulher tinham um efeito de suporte, e mesmo de sustentação

psíquica. Desde a entrada na clínica, no final de dezembro, Celan recebeu oito cartas de

Gisèle. Os médicos tinham pedido a ela para se abster de visitá-lo. Celan diz, em uma das

cartas desta época, o quanto as cartas de sua mulher eram importantes para ele. Cito um

pequeno trecho da carta do dia quatro de janeiro de 1963 (n. 166): “Continue, eu lhes peço,

me escrevendo todos os dias: é de suas cartas que jorram minha esperança e minha

coragem” 262.

Alguns meses depois, já fora da clínica psiquiátrica, Celan escreve uma carta-

dedicatória para Gisèle, datada do dia 24 de outubro de 1963 (n. 176), anunciando a chegada

de um novo livro. Trata-se do livro de poemas intitulado Die Niemandsrose (“A Rosa de

Ninguém”), escrito entre os anos de 1959 e 1963, repartido em quatro ciclos de forma não

cronológica. Cito a carta-dedicatória:

Para você, meu Amor sobre a Ponte dos anos, Paul Paris, 24 de outubro de 1963 É ainda e sempre nós263.

Vale aqui uma divagação sobre o verso “É ainda e sempre nós” do poema “Le mot

d’aller-à-la-profondeur”, citado nesta carta-dedicatória. Ele ocupará um lugar importante na

relação de Paul Celan com Gisele nos anos de criação deste poema. Eu chamarei este período 261 “Quelques jours auparavant, à Valloire, PC avait vécu sés premières crises de délire : hallucinations, menaces accompagnées de gestes agressifs à l’egard de GCL. PC accuse un passant d’être impliqué dans l’affaire Goll en lui disant: « vous aussi, vous êtes dans le jeu! » Durant le voyage de retour anticipé, il arrache avec violence « le foulard jaune comme les étoiles jaunes » du cou de son épouse (conversation avec GCL). EC, âgé d’un peu plus de sept ans, est témoin de ces scènes. Dans son agende, à la date du 21.12.1962, PC a note une croix (X) à l’interieur d’un carré. (Journal de PC et conversation avec GCL)”CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Ibidem. p. 169. 262 “Continue, je vous prie, de m’écrire tous les jours: c’est de vos lettres que rejaillissent mon espoir et mon courage”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Ibidem. p. 164. 263 “Pour vous, mon Amour,/ sur le Pont des Années,/ Paul/ Paris, 24 octobre 1963./ Wir sind es noch immer. (C’est encore et toujours nous)”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 173.

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de escrita de “ainda e sempre”, sinalizando a variação poemática dos versos. Este período

percorrerá algumas cartas entre os anos de 1959 e 1965, sendo a carta n. 302 (21 de novembro

de 1965) a última que Paul Celan envia. Este verso aponta também as dificuldades da relação

conjugal e o desejo do poeta, em muitos momentos compartilhado por Gisèle, de continuarem

casados “ainda e sempre”. Além disso, um outro período se instaura no poeta,

permanentemente, a partir de dezembro de 1962: um período de intenso sofrimento psíquico.

O poema surge pela primeira vez, em primeira transcrição, na carta-poema de

Paul Celan de 5.3.1959. Neste momento, Celan ainda estava no início da elaboração deste

poema e do livro La Rose de Personne. Depois de transcrever o poema, em alemão, sem

tradução, ele faz uma dedicatória para Gisèle: “Pelo seu aniversário, meu Amor, pelo

dezenove de março – esta noite, cinco de março 1959”264. Os momentos de crise ainda não

tinham acontecido e a relação com Gisele era harmoniosa. A referência a este verso só irá

aparecer de novo, na carta do dia quinze de abril de 1965 (n. 215), em plena crise conjugal. A

partir da cronologia feita por Bertrand Badiou, já sabemos que Paul Celan, em janeiro de

1965, convence sua mulher, depois de semanas de relações conflituosas, de se afastar por um

tempo de casa. Este pedido de Celan o deixa muito culpado. Nesta carta, ele diz que “nada

está perdido de nosso amor: É ainda e sempre nós”265. Gisèle, responde esta carta no dia 27 de

março, de Dinard (Bretanha), mostrando sua inquietude, dizendo que eles estavam vivendo

momentos muito duros no casamento, mas que conseguiriam superar os obstáculos. Cito um

trecho da carta, onde, novamente, o verso de Celan comparece:

Nós estamos tão perdidos longe um do outro, tão perdidos também neste momento, um com o outro. Mas, isto vai mudar. O amor nos ajudará a encontrar o caminho.

É ainda e sempre nós266

Neste momento da correspondência, o amor permanece, “ainda e sempre” no

coração e nas palavras dos dois. No entanto, as cartas também começam a ficar sombrias.

Retornando à questão do sofrimento de Paul Celan, encontramos na carta do dia

21 de dezembro de 1963 (n. 177) uma referência ao impacto causado no poeta pelas crises de

delírio. Ele escreve para Gisèle, se mostrando confiante em ultrapassar, junto dela, estes

momentos de tormento. Cito a carta: “Lentamente, eu subirei a ladeira, de novo, - nós a 264 “Pour votre anniversaire, mon Amour, pour le dix-neuf mars – ce soir, le cinq mars 1959”. CELAN, Gisèle. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.cit. p. 106. 265 “rien n’est perdu de notre amour: Wir sind es noch immer”. Ibidem. p. 229. 266 “Nous sommes si perdus loin l’un de l’autre, si perdus aussi en ce moment l’un avec l’autre. Mais cela va changer. L’amour nous aidera à trouver le chemin. ‘Wir sind es noch immer’”. CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisele.Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p.217.

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subiremos juntos. Tantas forças investidas na resistência – é preciso encontrar o meio de

ultrapassar este estado, de reviver, livremente”267. Celan sublinha a palavra revivre, nos

indicando sua luta, seu sobre-viver. Ainda nesta carta, ele novamente se apóia nos versos de

Guillaume Apollinaire do poema “Le pont Mirabeau” para falar de sua resistência: “A ponte

dos anos dura e durará”268. No final de abril de 1965, Celan passa por um profundo período de

depressão. Em maio de 1965, ele se interna, na clinica psiquiátrica de Vésinet. Em seu diário,

ele fala de uma “dúvida profunda que ele experimenta frente à terapia que ele se submete e

frente aos médicos”269.

Na carta do dia dezoito de maio de 1965 (n. 240), escrita por Celan na clínica

psiquiátrica, de novo o verso Wir sind es noch immer retorna, agora em tradução do próprio

Celan, em uma variação francesa. Ele fala de seu progresso na clínica, conseguindo dormir

sem o uso do sonífero e conseguindo retomar a leitura, lendo uma novela de Camus (L’Exil et

le Royaume), que se encontrava na biblioteca do hospital. Cito a carta:

Poucas palavras, poucas coisas – e no entanto, é um grande progresso. São forças recuperadas para lutar, juntos, por e com nosso filho. A Poesia, também ela, virá nos ajudar. Somos sempre parte dela, estamos sempre nela270.

Em sua última carta (n. 302 de 21.11.1965) do período “ainda e sempre”, Paul

Celan faz uma dedicatória à Gisèle, antes de transcrever o poema. Cito: “Para reencontrar

nosso amor”271.

Em algumas destas cartas, neste período, Celan, e também Gisèle, como vimos,

utilizam o verso Wir sind es noch immer (“É ainda e sempre nós”) para compor a carta e para

expressar a idéia e a força do amor, seja na referência poética, seja na referência pessoal.

No entanto, curiosamente, são apenas nas cartas do dia 5.3.1959 (primeira carta

do ciclo) e do dia 21.11.1965 (última carta do ciclo) que Celan faz a transcrição integral do

poema. Em 1959, Celan envia a primeira transcrição. Sabemos que em 1963 o poema é

publicado no livro A Rosa de Ninguém, mantendo esta transcrição. Em 1965, o poema

aparece, em outra versão, pela última vez. É importante salientar que Celan, nestas cartas do

267 “Doucement, je remonterai la pente, encore, - nous la remonterons ensemble. Tant des forces investies dans la résistance – il faut trouver le moyen de dépasser ce stade, de revivre, librement ”. CELAN, Gisèle. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.cit. p. 176. 268 “Le pont des anées dure et durera”. Ibidem. p. 176. 269 “doute profond qu’il éprouve vis-à-vis de la thérapie qu’il subit et des médecins”. CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle.Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op. Cit. p. 555. 270 “Peu de mots, peu de choses – et pourtant c’est un grand progrès. Ce sont des forces retrouvées pour lutter, ensemble, pour et avec notre fils. La Poésie, elle aussi, viendra nous aider. Nous en sommes toujours, nous y sommes toujours”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance.Vol. I. Lettres.Ibidem. p. 252. 271 “Pour retrouver notre amour ”. Ibidem. p. 320.

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período “ainda e sempre” mostra uma passagem ao poético quando transcreve os poemas em

dois momentos (a tradução do poema para o português virá na nota de rodapé). O primeiro

momento, em um esboço inicial do poema em carta enviada em 1959 (n.106), que ele manterá

na publicação deste poema. Em um segundo momento, que podemos chamar de forma final,

em 1965 (n. 302), ele faz mudanças significativas no poema. Vejamos as cartas-poemas:

[Paris, 5.3.1959]

Das Wort vom Zur-Tiefe-Gehn,

das wir gelesen haben.

Die Jahre, die Worte, seither.

Wir sind es noch immer.

Weisst du, der Raum ist unendlich,

weisst du, du brauchst nicht zu fliegen,

weisst du, was sich in dein Aug schrieb,

vertieft uns die Tiefe.

(…)

/ Erste Niederschrift/272

«La parole sur l’Aller-au-fond,

que nous avons lue.

Les années, les paroles, depuis.

C’est encore et toujours nous.

Tu sais, l’espace est infini,

tu sais, tu n’as pas besoin de voler,

tu sais, ce qui s’inscrivait dans ton oeil

approfondit pour nous les profondeurs »273.

[Traduction de Bertrand Badiou]

Agora o poema, em sua forma definitiva, em 1965 (escrito somente nesta carta a

Gisèle). Quando houver mudanças nos versos, irei assinalá-las usando itálico. E a forma

272 “Première transcription” (primeira transcrição). CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 106. 273 Tradução do poema: “a palavra sobre o Ir-ao-fundo, / que nós lemos. / Os anos, as palavras, desde então. / É ainda e sempre nós// Tu sabes, o espaço é infinito, / tu sabes, não precisas voar / tu sabes, o que se inscrevia em teus olhos / aprofunda para nós as profundezas”.

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anterior, será introduzida na mesma linha do verso modificado (do lado direito da página),

entre parênteses:

[Paris, 21.11.1965]

Das Wort vom Zur-Tiefe-Gehn,

das wir gelesen haben.

Die Jahre, wortlos, seither. (Die Jahre, die Worthe, seither)

Wir sind es noch immer.

WeiBt du, der Raum ist unendlich,

weiBt du, sie fliegen nicht weit. (du brauchst nicht zu fliegen)

weiBt du, (was sich in dein Aug schrieb274)

nur was ich dir zuschwieg, (verso novo)

hebt uns hinweg in die tiefe (vertieft uns die Tiefe).

A tradução francesa ficou assim:

La parole sur l’Aller-au-fond,

que nous avons lue.

Les années, sans paroles depuis. (Les années, les paroles, depuis)

C’est encore et toujours nous.

Tu sais, l’espace est infini,

tu sais, elles ne volent pas bien loin. (tu n’as pas besoin de voler)

tu sais, (ce qui s’inscrivait dans ton oeil275)

seul ce que mon silence t’a confié (verso novo)

nous élève vers les profondeurs 276 . (approfondit pour nous les profondeurs)

A partir da tradução francesa de Bertrand Badiou, vamos fazer algumas reflexões

sobre as mudanças na escrita deste poema. Em primeiro lugar, queremos ressaltar que Paul

Celan não mantém os mesmos versos, depois de sua publicação. Nas cartas a Gisèle, como já

vimos, ele ainda trabalha o texto. Na última versão, Celan modifica o verso “Les années, les

274 Na versão final, foi retirada estas palavras deste verso. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 320. 275 Parte do verso retirado, já assinalado no poema original em alemão. Ibidem. p.321. 276 Tradução da versão final do poema: “A palavra sobre o Ir-ao-fundo, / que nós lemos. / Os anos, sem palavras, desde então. / É ainda e sempre nós. // Tu sabes, o espaço é infinito, / tu sabes, elas não voam muito longe. / tu sabes, / só o que meu silêncio te confiou / nos eleva em direção às profundezas ”.

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paroles depuis”; a palavras les (de “les paroles”) é substituida pela palavra sans. O verso,

então, fica destituído da palavra/fala e mostra uma radicalidade. Agora, sem palavras, o poeta

vai caminhar com seu silêncio. No entanto, ainda e sempre endereça a Gisèle alguma

possibilidade, de juntos, se elevarem em direção (vers) “às profundezas”. A diferença que

podemos perceber agora, no poema, é em relação à intensa ligação de Celan a Gisèle. Lemos

na exclusão da frase “o que se inscrevia em teus olhos” (ce qui s’inscrivait dans ton oeil) do

verso “você sabe, o que se inscrevia em teus olhos” (tu sais, ce qui s’inscrivait dans ton oeil)

um sinal no poema de uma solidão impossível de compartilhar. O laço com Gisèle é rompido

em parte. O poema fica com um verso bem solitário, “tu sabes” (tu sais) e o poeta lança mão,

a seguir, de um verso novo: “só o que meu silêncio te confiou” (seul ce que mon silence t’a

confié). Como compartilhar o silêncio? É nesta impossibilidade que Celan coloca o leitor.

Em 5.5.1965 (n.220), Celan diz para Gisèle que irá se cuidar. Alguns dias antes

(3.5.1965), ele escrevera uma carta, não enviada, para o crítico Jean Starobinski. Muito aflito,

pedia a indicação de um médico, por não confiar no Dr. Male, médico psicoterapeuta que o

atendia. Diz a carta: “Você poderia, bem rápido, nos ajudar, me recomendando um médico

judeu (ele sublinha o judeu) (o Professor Lebovici277 [sic] talvez?) Faça-o, por telegrama se

possível. Você poderá salvar nossas três vidas (se refere a ele, a Gisèle e ao filho Eric), que

ficarão eternamente reconhecidas a você”278. Celan acreditava que devia ter uma saída, mas se

perguntava como fazer para encontrar esta saída. Para ele, a solidariedade humana devia ser a

base desta saída e mais ainda: “Pois o que é o judaismo senão uma forma do Humano, o que é

a Poesia senão uma forma do mesmo Humano”279. O Humano sempre comparecia para Celan

como uma saída para o seu sofrimento. A complexidade da relação entre o Humano, a Poesia

e o judaísmo, era uma questão das mais relevantes trazidas pelo poeta, mas que não serão

tratadas nesta dissertação.

277 Serge Lebovici (1915-2000) é psiquiatra e psicanalista. É filho de um médico que emigrou da Romênia para França no início do século passado e que morreu em Auschwitz; foi co-fundador, com Julian Ajuriaguerra, entre outros, da revista La Psychiatrie de l’enfant (1958). 278 “Pourriez-vous, très vite, nous aider, en me recommandant un médecin juif (le Professeur Lebovici [sic] peut-être?). Faites-le par télégramme si possible. Vous pouvez sauver nos trois vies, qui vous en resteront éternellement reconnaissantes ”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op. cit. p.209. 279 “car qu’est-ce que le Judaïsme sinon une forme de l’Humain, qu’est-ce que la Poésie sinon une forme de ce même Humain”. ”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op. cit. p. 209.

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O pedido de socorro de Paul Celan vem com uma explicação importante. Lemos

na carta não enviada para Starobinski: “Eu estou muito pertubado – fizeram tanto para me

pertubar! Mas não estou inteiramente [sic] sem lucidez” 280.

Paul Celan toma regularmente medicamentos psicotrópicos (antidepressivos e

neurolépticos) desde janeiro de 1963. Sua inquietude em relação as suas capacidades de

concentração e de memorização será constante a partir do ano de 1964. No entanto, seu

esforço para manter a lucidez será a toda prova. Em algumas cartas, Celan irá usar a

conjugação verbal “je maintiendrai” do verbo maintenir281 que é uma espécie de variação do

verbo alemão stehen282. Além disso, Stehen é um poema de Celan do livro Atemwende

(“Mudança de respiração”)283 que foi traduzido por tenir debout (ficar em pé) e que também

pode ser traduzido por resistir. Seu esforço para se manter de pé, além da tentativa, muitas

vezes enunciada, de encontrar-se está presente em várias cartas deste tempo. Além disso,

como nos lembra Raquel Abi-Sâmara, a palavra stehen é usada por Celan em três variações:

“Eu assumo/ Eu resisto/ Eu recuso”284. Assim, Abi-Sâmara traduz os dois primeiros versos do

poema dando ênfase ao verbo resistir: “RESISTIR, `a sombra/ da ferida aberta no ar”285. A

interpretação de Gadamer para este poema mantém a discussão sobre a palavra Stehen. Cito-

o:

Esta ferida aberta no ar é algo invisível, irreconhecível. (...) Esta ferida (...) está ‘no ar’, e é do tipo que projeta sombra, evidentemente apenas sobre mim, de modo que ninguém mais percebe que eu me mantenho de pé (stehen) nesta sombra. Está dito claramente: aquele que se mantém de pé fica de pé por si mesmo. 286

280 “Je suis bien troubler [sic] – on a tant fait pour me troubler! Mais je ne manque pas tout-à-fait [sic] de lucidité”. O [sic] em troubler indica um erro de ortografia de Celan: troubler, em lugar de troublé. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op. cit. p. 209. 281 Maintenir quer dizer manter, sustentar; manter-se. Michaelis: dicionário escolar francês: francês-português, português-francês. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2002. p. 217. Além disso, o Dictionnaire de l’Académie française, neuvième édition (version informatisée) diz que esta palavra saiu do latim popular manutenere, precisamente ‘tenir avec la main’ (manter/segurar com a mão). A poesia para Paul Celan é semelhante a um aperto de mãos. Ela é também coisa de mãos. 282 Stehen significa estar de pé, encontrar-se; estar escrito. Michaelis: minidicionário alemão-português, português-alemão. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1996. p. 339. 283 A palavra Stehen, segundo Lefebvre, quando utilizada sozinha, tem sobretudo o sentido de resistir, fazer face, permanecer em pé com constância, não cair e manter-se. CELAN, Paul. Renverse du souffle. Édition bilingue. Traduit de l’allemand et annoté par Jean-Pierre Lefebvre. Paris : Seuil. 2003. 284 “J’assume/ Je résiste/ Je refuse”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisele.Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 133. (confere com a nota do organizador da correspondência que diz que Celan usa três variantes francesas da palavra Stehen. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Ibidem. p. 153.) 285 “STEHEN, im Schatten/ des Wundenmals in der Luft.” GADAMER, Hans-Georg. Quem sou eu, quem és tu ? Rio de Janeiro:EdUERJ, 2005. p. 90. (Tradução e apresentação de Raquel Abi-Sâmara). 286 GADAMER, Hans-Georg. Quem sou eu, quem és tu ? Op. cit. p. 91.

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Na carta n. 194 (Paris, 17-18.1.1965), Celan faz uma espécie de diário de

angústia. Ele escreve uma longa carta, marcada pelas horas. A carta se inicia no domingo à

tarde e acaba na manhã de segunda-feira. No domingo, ele escreve às 21:45:

(...) Sem esta campanha contra mim (trata-se do caso Goll já explicado em outro momento da dissertação), e que é, isso é cada vez mais evidente, uma vasta tentativa de recalcar, de excluir este poeta um pouco alias que eu sou, sem tudo isso: como nossa vida teria sido então serena, de amor e de trabalho, da educação de nosso filho. Mais nós perseveraremos, nós nos manteremos, todos os três, juntos, cada vez mais unidos287.

A relação do poeta com o verbo maintenir tem uma história interessante. Gisèle

lembra na carta do dia 19 de janeiro de 1965 (n. 198) da visita que os dois fizeram a

Amsterdam: “Tu te lembras que, depois de Amsterdam, eu tive quatro ou cinco gravuras que

vieram sózinhas, entre as quais ‘Je maintiendrai’288. A nota n. 9 desta carta289, nos esclarece

um pouco mais sobre esta conjugação do verbo maintenir. Esta gravura feita por Gisèle

Celan-Lestrange será intitulada em definitivo Souvenir de Hollande – Erinnerung an Holland.

Celan a intitulou “Je maintiendrai” e ele insiste que o título esteja entre aspas e que ele não

deve ser traduzido. Os Celan estavam “particularmente sensíveis ao espírito de resistência

inscrito na história da Holanda, país que soube acolher Spinoza e se insurgir contra a

perseguição dos judeus (onda de greves de fevereiro de 1941)”290.

Em maio de 1965, já internado em uma clínica psiquiátrica (Le Vésinet), Celan

está menos angustiado e recupera o “fio” da leitura. Lemos na carta de 18.5.1965 (n.241):

Eu pude ler toda uma peça de Shakespeare – ‘Coriolano’ – sem perder o fio. ‘Das Rotverlorene’ – Tu te lembras? Pois bem, nós o reencontraremos, esse vermelho-perdido, perdidamente vermelho, perdidamente vivo. Com todas as minhas forças a você e ao filho. Viva Moisville! (casa de campo dos Celan) Viva Paris! Nós manteremos291.

287 “(...) Sans cette campagne contre moi, et qui est, c’est de plus en plus évident, une vaste tentative de refouler, d’exclure ce poète un peu d’ailleurs que je suis, sans tout cela : que notre vie aurait-elle donc été sereine, d’amour et de travail, d’éducation de notre enfant. Mais nous nous acharnerons, nous maintiendrons, tous les trois, ensemble, de plus en plus unis”. CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 195 288 “souviens-toi, après Amsterdam j’ai eu quatre ou cinq gravures qui sont venues toutes seules, dont ‘Je maintiendrai’”. Ibidem. p. 204. 289 Nota n. 9 da carta n.198 de 19.1.1965. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op. cit. p.194. 290 “particulièrement sensibles à l’esprit de résistance inscrit dans l’histoire de la Hollande, pays qui sut accueillir Spinoza et s’insurger contre la persécution des Juifs (vague de grèves de février 1941)”. Ibidem. p. 194. 291 “J’ai pu lire toute une pièce de Shakespeare – ‘Coriolan’ – sans en perdre le fil. ‘Das Rotverlorene’ – te rappeles-tu ? Eh bien, nous le retrouverons, ce ‘rouge-perdu’, éperdument rouge, éperdument vivant. De toutes mes forces à vous et au fils. Vive Moisville ! Vive Paris! Nous maintiendrons”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Ibidem. p.240.

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É interessante ressaltar que a palavra alemã Das Rotverlorene, nas palavras de

Bertrand Badiou, “resulta da fusão de duas expressões idiomáticas alemãs ‘der rote Faden’, o

fio vermelho, o fio condutor (expressão inventada por Goethe, Afinidades Eletivas, II, 2), e

‘den Faden verlieren’, perder o fio”292. No poema “LICHTENBERGS293 ZWÖLF” do ciclo

Atemwende (“Mudança de respiração”), Celan retoma a palavra Das Rotverlorene nos versos

“Das Rotverlorene eines Gedanken-/faden” para falar do fio do pensamento. Na tradução

francesa ficou assim: “o vermelho-perdido de um fio do pensamento”294. Celan tinha

esperança de retomar não só o fio do pensamento, mas também o fio da memória e da

concentração que sempre lhe escapava nos momentos de crise. A força do verbo maintenir

(nous maintiendrons) deixava também em Celan a esperança de recuperar o fio perdido, não

só do pensamento, mas também do amor. O elemento “fio” aparece na obra de Celan de

forma diversa. Ele se repete e pertence, nas palavras de Beda Alemann, “a uma série de

denominações relacionadas, como “fio”, “rastro”, “raio”, “rede”, “estria”295. Ao mesmo

tempo, estes significantes formam uma cadeia metonímica que se estende por toda a obra do

poeta. Esta cadeia vai em direção as palavras “olho”, “mão”, “pedra”, “árvore”, “nuvem”,

“água”, “vento”, “lágrima”. Palavras que compõem a poética celaniana.

Celan viaja, em setembro de 1965, para Frankfurt ficando lá oito dias. Na volta

passa por graves dificuldades psicológicas. A crise entre Paul e Gisèle Celan se intensifica e

ela propõe a separação para poupar o filho. Ele não aceita esta proposta e escreve uma carta

(n. 283 do dia 10.10.1965) dizendo que

(...) Eu não admito esta separação. Eu não admito deixar esta casa, minha casa. Aqui, eu combaterei, ainda e sempre. Aqui você reencontrará suas forças, seu trabalho, seu amor, sua compreensão, e você me ajudará no meu combate296.

292 “resulte de la fusion des deux expressions idiomatiques allemandes ‘der rote Faden’, le fil rouge, le fil conducteur (expression inventée par Goethe, Affinités électives, II, 2), et ‘den Faden verlieren’, perdre le fil”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op. Cit. p.221. 293 Na nota de Jean-Pierre Lefebvre para este poema, o tradutor nos fala que o escritor Lichtenberg tinha a reputação de ser distraído. Ele estava sempre em perigo de perder o fio de seu pensamento. CELAN, Paul. Renverse du souffle. Édition bilingue. Traduit de l’allemand et annoté par Jean-Pierre Lefebvre. Op.cit. p. 172. 294 “Le rouge-perdu d’un fil de pensée”. Ibidem. p. 104. 295 ALEMANN, Beda. “La poesía de Paul Celan” in ROSA CÚBICA – Revista de Poesia. Inverno 1995-1996 (número 15-16) Paul Celan: rosa de nadie.Op. cit. p. 93. 296 “(...) Je n’admets pas cette séparation, Je n’admets pas de quitter cette maison, ma maison. Ici, je combattrai, encore et toujours. Ici vous retrouverez vos forces, votre travail, votre amour, votre compréhension, et vous m’aiderez dans mon combat”. CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisele.Correspondance. Lettres. Vol. I. Ibidem. p.309-310.

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Neste momento de extrema angústia, Celan está bastante abalado psiquicamente e

explica o seu estado, qualificando-o de “retorno do guerreiro – do guerreiro judeu”297.

Determinado, Celan escreve um bilhete (n.284) no dia 15.10.1965 que diz: “você sabe, é

ainda e sempre nós”298 e deixa-o sem assinatura. Ainda e sempre, Paul Celan insiste em

manter o amor intacto.

Retomando aqui a referência de Celan à data como algo de um valor talismânico

(cf. Capítulo III p. 28), já sabemos que as datas de seu aniversário (23.11) e do aniversário de

casamento (23.12) são chamadas de “grandes aniversários” e os outros dias 23 do ano são os

“pequenos aniversários”. Assim, na carta do dia 23 de outubro de 1965 (n. 288), Celan deseja

bom “pequeno aniversário”: “Bom aniversário ainda! Dentro de dois meses, será nosso grande

aniversário – que nós possamos ter ainda muitos outros, no meio de nossas forças, de todas as

nossas forças reencontradas”299. Celan, quando escreveu esta carta, não se encontrava em

Paris. Estava vagando pela França e pela Suíça, abalado com a separação. Ao voltar à Paris,

no dia 23 de novembro, em plena crise de delírios, na noite do dia 23 para o dia 24 de

novembro, Celan tenta matar Gisèle com uma faca. Ela foge com o filho e se refugia na casa

dos vizinhos e amigos Jacques e Jacqueline Lalande. Nos dias seguintes a esta crise, Paul

Celan parte em busca do filho ausente. Gisèle se antecipa e pega Eric na saída do judô e vão

se refugiar na casa de sua irmã Monique Gessain. No dia 27 de novembro de 1965, Celan

escreve uma carta (n. 303) para a irmã de Gisèle (Monique Gessain), em busca de seu filho

ausente. Lemos na carta a aflição de Celan: “é preciso que Gisele volte para casa com Eric, é

preciso que Eric esteja em sua casa, que ele retome o trabalho”300. No dia 28, acontece o pior.

Gisèle, junto com os médicos que tratavam de Celan, decidem enviar enfermeiros do Hospital

psiquiátrico de Garches (Hauts-de-Seine) para levar Celan para uma internação forçada. Ele

precisa ser levado em camisa de força. No dia primeiro de março de 1967, ele irá escrever o

“poema “DIE LIBE, zwangsjackenschön [O AMOR, de uma beleza de camisa de força]”301

relembrando esta internação forçada. Celan, continua a escrever e a resistir.

297 “retour du guerrier – du guerrier juif”. CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II (Chronologie). Op. cit. p. 557. 298 “ Weisst du, wir sind es noch immer (Tu sais, c’est encore et toujours nous)”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 310. 299 “Bon anniversaire encore! Dans deux mois, ce sera notre grand anniversaire – puissons-nous en avoir beaucoup d’autres encore, au milieu de nos forces, de toutes nos forces retrouvées”. Celan sublinha toutes (todas). Ibidem. p. 312. 300 “il faut que Gisèle rentre avec Eric, il faut qu’Eric soit chez lui, qu’il reprenne le travail.” Ibidem. p.321. 301 “DIE LIEBE, zwangsjackenschön [L’AMOUR, d’une beauté de camisoles des forces].” CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op. cit. p.265.

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Gisèle escreve, em meio a momentos de muita aflição, que tinha estado com o

médico, o Dr. R. e tinham conversado muito. Diz a carta (n.312):

É preciso, Paul, que você se cuide, para sair deste mau período. É preciso te reencontrar no verdadeiro para poder de novo levar uma vida normal, escrever, ensinar, traduzir, realizar tudo o que você tem ainda a fazer302.

Em meio à crise, Celan, no dia 23 de dezembro de 1965 esquece de desejar feliz

“grande aniversário”. Neste dia estaria completando 13 anos de aniversário de casamento.

Tampouco Gisèle lembra da data. A necessidade de preservar a memória das datas, que Celan

insistia com tanta veemência, estava sendo colocada à prova. O esquecimento de uma data tão

importante para os Celan mostrava que o fio da relação estava rompido. O que estava em

questão neste momento era o que Celan chamou – por ocasião de uma de suas internações –

de “‘Beziehungswahn’ [‘delírio de relação’] (ele emprega o termo, entre aspas, em seu diário

na data de 8.5.1965)”303.

Em pleno sofrimento, Celan escreve já na clínica de Suresnes (ele fica internado

nesta clínica de 5/12/1965 até 7/02/1966):

Minha querida Gisèle,

Há muito tempo que eu te devo uma carta, e várias vezes eu segui um impulso para te escrever uma.

Mas, o que dizer? Com o conhecido e do desconhecido... eu bordo... eu bordo do bom lado, direi eu, do lado protegido também.

Onde está Eric? Onde está você? Eis minhas duas interrogações fundamentais, com, claro, um onde estou eu?, digno de ser marcado.

Pouco de elevação na casa de [ falta uma palavra], você bem vê. Deixar a palavra a quem? A vocês dois, a meu filho e a minha mulher.

Eu não leio – é lamentável. Poderia você evitar esta fase (‘fase’)! Eu ando – virtuosamente – em torno de meu quarto – vasto e virtuoso por sua

vez, mas bem sonoro também quanto ao inarticulado ou para-articulado (Deus! Não terminar nisso!)

Se você tiver uma carta de Eric, copie-a e mande-a para mim. Eu paro aqui – eu olho para você.

Paul304

302 “Il faut, Paul, que tu te soignes, pour sortir de cette mauvaise période. Il faut te retouver dans le vrai pour pouvoir à nouveau mener une vie normale, écrire, enseigner, traduire, réaliser tout ce que tu as encore à faire”. CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op.cit. p. 329. (carta do dia 21 de dezembro de1965). 303 “ ‘Beziehungswahn’ [‘délire de relation’] (il emploie ce terme, entre guillemets, dans son journal à la date du 8.5.1965)”. CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op.cit. p. 212. 304 “Ma chère Gisèle, Il y a longtemps que je te dois une lettre, et à plusiers reprises j’ai pris l’elan pour t’en écrire une. Mais que dire? Avec du connu et de l’inconnu... je brode... je brode du bon côté dirai-je, du côté protégé aussi. Où est Eric ? Où êtes-vous? Voici me deux interrogations fondamentales, avez, bien sûr, un où suis-je ?, digne d’être marqué. Peu d’élévation chez [manque], tu vois bien. Laisser la parole à qui ? A vous deux, à mon fils et à ma femme. Je ne lis point – c’est lamentable.Puissiez-vous éviter cette phase (‘phase’)! Je fais – vertueusement – le tour de ma chambre – vaste et vertueuse à son tour, mais bien sonore aussi quant à l’inarticulé ou para-articulé. (Dieu ! Ne pas aboutir à cela !) Si vous avez une lettre d’Eric, copiez-la et donnez-

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A “fase” do poeta não era nada boa. Como evitar esta fase, se indaga Celan. A

ênfase dada por Celan à palavra fase repetindo-a duas vezes e colocando-a entre aspas na

repetição nos conduz a uma antiga questão de poeta. Trata-se da perseguição feita pela viúva

do poeta Yvan Goll, Claire Goll, acusando Celan de plágio, além de escrever em revistas e

jornais coisas absurdas e terríveis sobre o poeta. Podemos até afirmar que as questões

psíquicas de Paul Celan se agravaram a partir desta perseguição desenfreada de Claire Goll.

Em muitas crises do poeta, a origem de seu sofrimento era um artigo de Claire, e até mesmo

encontrá-la em Paris em algum evento literário, desencadeava nele uma angústia intensa.

Lembremos aqui esta história, já contada, em parte, em uma nota de rodapé do Capítulo III da

dissertação. O “caso Goll” se desenrolou em três ‘fases’: (“A Fase I – 1949- 1952 –, Fase II –

1953- 1959 –, Fase III – 1960- 1962”)305. Em 1960, em uma carta aberta intitulada

“Unbekanntes über Paul Celan” (Coisas desconhecidas sobre Paul Celan306), publicada em

uma pequena revista literária de Munich, Claire Goll “acusa uma vez mais Paul Celan de ter

plagiado seu marido Yvan Goll no livro Papoula e memória”307. As acusações de Claire Goll

eram todas sem fundamentos literários. Em 16.12.1960, o poeta Hans Magnus Enzensberger

escreve no jornal Die Welt que, antes de tudo via em Claire Goll “um caso patológico”,

ressaltando que as declarações de Goll sobre este caso, deviam ser julgados “não de um ponto

de vista literário mas, sem dúvida, antes de um ponto de vista médico”308.

No dia nove 9 de fevereiro de 1966, Celan escreve, contando sobre o Professor

Jean Delay, diretor da Clínica da Faculdade, em Sainte-Anne. Jean Delay, além de ser

psiquiatra, era escritor. Nesta clínica, o trabalho de medicação era feito sob a supervisão do

professor Pierre Deniker, fundador, junto de Jean Delay, da psicofarmacologia. O poeta René

Char era amigo de Delay. Em conversas com Char, Jean Delay se mostrou interessado em

tratar de Paul Celan. Na clínica, Celan sente-se mais à vontade e gosta de ser tratado de Paul

Antchel, mas prefere ser chamado de Paul Anstchel-Celan. E diz: “É melhor: Paul Antschel-

Celan, - como isso nós nos habituaremos aos dois nomes”309. Lembremos aqui que em abril

la-moi. J’arrete – je vous regarde. Paul ” CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Ibidem. p.355-356. 305 (“A Phase I – 1949- 1952 –, Phase II – 1953- 1959 –, Phase III – 1960- 1962)”. CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op.cit. p. 279. 306 “Des choses méconnus sur PC”. 307 “accuse une nouvelle fois PC d’avoir plagie son mari, Yvan Goll, dans Mohn und Gedächtnis”. Ibidem. p. 143. 308 “non pas d’un point de vue littéraire, mais sans doute plutôt d’un point de vue médical”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Ibidem. p. 145. 309 “Le mieux, c’est: Paul Anstchel-Celan, - comme ça on s’habituera aux deux noms”. CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p.361.

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de 1955, Paul Celan recebe a recusa do Ministério da Saúde pública da “francesação do nome

Antschel em Celan”310. Este pedido de Celan foi feito, em 1953, junto ao pedido para se

naturalizar francês. Paul Celan gostaria de manter o nome Celan, quando fosse naturalizado

francês. No entanto, a administração pública francesa recusa este pedido considerando a

mudança do nome Anstchel para Celan “como uma verdadeira mudança de nome”311, que não

poderia ser feita na França. Em 8 de julho de 1955, sai o decreto de naturalização de Paul

Antschel, publicado no Jornal oficial do dia 17.7.1955. O nome Celan será visto por alguns

como um pseudônimo de Antschel. Durante toda a vida, o poeta usará o nome Paul Celan,

escolhido por ele. O nome Antschel aparecerá nos períodos de internação oficial ou quando

precisava fazer algum ato administrativo. Para a França, Paul Celan era oficialmente

reconhecido como Paul Antschel.

Em 16 de fevereiro de 1966 (n. 350), ainda na clínica, escreve dizendo: “Eu

reencontrei, entre outras, minhas forças epistolares”312. No dia seguinte escreve: “Mas, o tédio

cavou um pequeno lugar – eu espero que o tratamento vá remediar”313. Ele adquire o que

podemos chamar de uma esperança melancólica, ali onde um “tédio cavou um pequeno

lugar”. É como uma cicatriz que não se fecha. Podemos remediá-la, mas nunca fechá-la em

definitivo.

Na carta do dia 23 do mês de fevereiro de 1966, Celan fala da beleza das gravuras

de Gisèle e de seus poemas, retomando um pouco os temas poéticos. Lemos: “E minha poesia

se compraz sempre em seus clarões, luzes, em suas ravinas, e guiadas por suas asperezas

[sic]”314. As gravuras de Gisèle sempre provocaram em Celan uma fértil produção poética.

Juntos fizeram dois trabalhos, que foram expostos e muito apreciados, especialmente

Atemkristall (Cristal de souflle) de 1965, um ciclo de vinte e um poemas de Paul Celan e oito

gravuras de Gisèle Celan-Lestrange. Depois, este ciclo de poemas de Celan foi incluído em

seu livro Atemwende (Mudança de respiração). Lembremos aqui a carta do dia 29. 3. 1965

onde Celan escreve: “Minha querida, em seus cobres eu reconheço meus poemas: eles passam

por eles e estão neles, ainda ”315.

310 “francisation du nom Antschel en Celan”. CELAN Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op.cit. p. 500. 311 “véritable changement de nom”. Ibidem. p. 500. 312 “j’ai retrouvé, entre autres, mes forces épistolaires”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 367. 313 “Mais l’ennui se creuse une petit place – j’espère que le traitement va y remédier”. Ibidem. p. 368. 314 “Et ma poésie se plaira toujours dans ses lueurs, lumières, dans ses ravines, et guider par ses aspérités [sic]”. Ibidem. p. 370. 315 “Ma chérie, dans vos cuivres je reconnais mes poèmes: ils y passent pour y être, encore”. Ibidem. p.228.

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Em 12 de abril de 1966 (n. 406), Paul Celan escreve uma interessante carta ao

filho Eric falando de sua poesia e anunciando um novo ciclo de poemas:

Meu querido Eric, (...) escrevo-te para dizer da minha alegria de te ver fazendo progressos na escola, minha alegria de te ver tendo sucesso, igualmente, nos jogos e nos esportes.

Eu também trabalhei um pouco e não estou descontente. Você bem sabe: a Poesia é algo de muito elevado, de muito áspero. Eu enumerei os poemas escritos desde Niemandsrose (“A Rosa de Ninguém” ou “A Rosa Nula”) e percebo que terminei um novo ciclo de Poemas e, graças a isto, um novo livro está terminado. Nunca eu escrevi tanto; para a publicação de um livro, nunca tive tanto trabalho. Mas verás – em breve – quando tiveres progredido em alemão, nós começaremos, ou melhor: nós continuaremos a ver, juntos, o que eu faço, o que tu fazes. Mamãe deve ter te ajudado muito – beije-a, por isto também.

Um beijo Teu pai316

Quando Celan esteve internado no Hospital psiquiátrico de Sainte-Anne (fica

internado nesta clinica do dia 6 de fevereiro ao dia 11 de junho de 1966), viveu um período de

leitura intensa, com muitas anotações nos livros, “sobressaindo frequentemente a

autobiografia ou a teoria poética”317. Dentre os autores lidos estão: Alfred Adler, Honoré de

Balzac, Roberts Burns, Joseph Conrad, Homero, Hans Henny Jahnn, James Joyce, Stéphane

Mallarmé – et Jean-Paul Sartre, Martin Walser, Thomas Wolfe e Emile Zola. Ele compôs 35

poemas em estreita relação com o que ele estava vivendo e lendo. A maioria destes poemas

ele enviou para Gisèle. Ele só publicará onze, em 1968, sob o título Eingedunkelt. Entretanto,

o sofrimento do poeta começa a se intensificar. A carta de Gisèle do dia 22 de abril de 1966

dá a dimensão deste sofrimento:

Meu querido, meu Paul querido, Eu gostaria de te dizer esta noite que eu penso em ti na solidão de minhas noites, na solidão de meus dias. (...) Conserva a coragem de lutar para se curar, como eu conservo a coragem de trabalhar, de estar aqui para te esperar. Para que enfim nós estejamos para sempre juntos– 318

316 “Mon cher Eric,(...) je t’écris pour te dire ma joie de te voir faire des progrès à l’école, ma joie de te voir réussir, également, dans tant de jeux et de sports. Moi aussi, j’ai travaillé un peu et je n’en suis point mécontent. Tu sais bien : la Poésie c’est quelque chose de très haut, très âpre. J’ai compté les poèmes écrits depuis la « Niemandsrose » (« La Rose de Personne » ou « La Rose Nulle ») et je m’aperçois que j’ai terminé un nouveau cycle de Poèmes et, grâce à cela, un nouveau livre est terminé. Jamais j[e n]’ai écrit autant ; à la parution d’un livre, je n’ai jamais connu tant de travail. Mais tu verras – bientôt – quand tu auras encore progressé en allemand, nous commencerons, ou plutôt: nous continuerons de voir, ensemble, ce que je fais, ce que tu fais. Maman t’aura tellement aidé – embrasse-la, pour cela aussi. Je t’embrasse. Ton père”. CELAN, Paul. LESTRANGE-CELAN, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 406. 317 “ressortissant souvent à l’autobiographie ou à la théorie poétique”. CELAN, Paul. LESTRANGE-CELAN, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op. cit. p. 559. 318 Mon chéri, mon Paul chéri, Je voulais te dire ce soir que je pense à toi dans la solitude de mes soirées, dans la solitude de mes journées. (...) Garde ce courage de lutter pour guérir, comme je garde le courage de travailler, d’être là pour t’attendre. Pour qu’enfin nous nous retrouvions à jamais ensemble – CELAN, Paul. LESTRANGE-CELAN, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Ibidem. p. 435.

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Celan responde a esta carta com angústia (n.414). Estava prestes a receber um

tratamento à base de insulina, conhecido por terapia por insulina ou cura de Sakel319. Segundo

depoimento de Gisèle ao organizador da correspondência, Bertrand Badiou, não se tratava “de

uma verdadeira cura de insulina”320, mas de um tratamento visando melhorar as capacidade de

concentração e de memorização. Lemos na carta:

Minha Querida, Amanhã, sem dúvida, começará a cura pela insulina, e eu te escrevo para lhe

dizer que eu estou, desde ontem, um pouco ansioso. Pensei até mesmo, esta manhã – depois de uma noite não muito boa –, em ir procurar os médicos para falar com eles. Mas não o farei. “Não há prega”, diz René Char, sobre esta pedra321 que ele nos deu, “mas uma paciência milenar”322.

Diante da incerteza do tratamento, o que resta ao poeta senão uma “paciência

milenar”?

Em 13 de junho de 1966, Celan sai do hospital e retoma, pouco a pouco, suas

atividades na École Normal Superieure em Paris. Sente-se animado, porém está com muitas

dificuldades de concentração. Celan confidenciou ao poeta e amigo Yves Bonnefoy que os

medicamentos que ele tomava diariamente tinham se tornado um empecilho para a preparação

dos seminários.

Após seis meses de internação, Celan escreve o poema “Pedaços de sono”323. Foi

o primeiro poema escrito fora do hospital e faz referência ao tratamento de insulina, que era

aplicado a partir da indução ao sono. Cito os primeiros três versos: “Pedaços de sono, cunhas/

fincadas em lugar nenhum: / permanecemos iguais a nós mesmos.”324 Pedaços de sono,

fragmentos de si mesmo, impossíveis de permanecerem os mesmos. Aqui estamos,

novamente, na referência aos “pedaços destacados” do eu trazidos por Celan. Pedaços que o

poeta tenta driblar quando fala que “permanecemos iguais a nós mesmos”. Depois de sua

319 “Cura ou método de Sakel ou choque insulínico é um dos tratamentos da esquizofrenia – hoje abandonado – que consiste em provocar um choque, um coma, por injeção intravenosa.” in CELAN, Paul. LESTRANGE-CELAN, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op. cit. p. 297. 320 “d’une vraie cure d’insuline”. Ibidem. p.561. 321 Os Celan receberam o galet de presente de René Char (entre os anos 1955-1956). 322 “Ma Chérie, demain, sans doute, commencera la cure à l’insuline, et je vous écris pour vous dire que je suis, depuis hier, un peu anxieux. J’ai même pensé, ce matin – après une nuit pas trop bonne –, d’aller trouver les médecins pour leur parler. Mais je ne le ferai pas. ‘Il n’y a pas de repli’, dit René Char, sur cette pierre qu’il nous a donnée, ‘mais une patience millénaire’. CELAN, Paul. LESTRANGE-CELAN, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p.436. 323 “Schlafbrocken” (Morceaux de sommeil na tradução de Bertrand Badiou) Carta n. 455. Ibidem. p. 478-479. 324 “(...) Keile,/ ins Nirgends getrieben:/ wir bleiben uns gleich (coins,/ enfoncés dans le nulle part: / nous restons égaux à nous-mêmes)”. Ibidem. p. 478-479.

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experiência psiquiátrica, Celan permanece sem ter onde se apoiar, fincando-se em “lugar

nenhum”.

Suas crises de delírio cessam por um tempo. Em janeiro de 1967, ele apresenta, de

novo, dificuldades psíquicas, que são agravadas mais ainda pelo encontro fortuito com Claire

Goll no Instituto Goethe de Paris. Em 30 de janeiro de 1967, Celan tenta se matar com uma

faca, que passa bem perto do coração. Gisele o salva in extremis325. Ele é internado no

Hospital Boucicaut para ser operado no pulmão esquerdo que foi gravemente lesado. Depois

de sua recuperação, ele é internado no hospital psiquiátrico Sainte-Anne, no período de 13 de

fevereiro a 17 de outubro de 1967, no serviço do Dr. Jean Delay, com saídas autorizadas a

partir do fim de abril. Na clínica, Celan escreverá mais da metade dos poemas de

Fadensonnen (“Sóis Desfiados’) que será publicado em outubro de 1968, além de uma grande

parte de seu livro Lichtzwang (“A força da luz”), que será publicado em 1970, após a morte

do poeta. Neste momento da internação, Celan também se ocupava do manuscrito de

Atemwende, livro que seria lançado em 1967.

No início desta internação, ele relembra, em versos, a internação forçada que teve

em 1965, fazendo a relação entre estas duas internações, ou seja, o poeta traz, em versos, os

traços destas difíceis experiências de separação e isolamento. Agora também, de alguma

forma, ele estava quase em regime de “prisão”. O poema que Celan escreve em primeiro de

março de 1967, já citado anteriormente nesta dissertação traz, em seus versos, o amor e a

camisa de força, o nada e o sopro expirado na clara referência a morte:

O AMOR, de uma beleza de camisa de força, investe sobre o casal de gruas. Quem, na travessia do nada, levará o sopro expirado aqui do outro lado, em um dos mundos?326

A questão do sopro expirado nos leva a pensar no livro anterior de Celan,

Atemwende (“Mudança de respiração”) e que ele trabalhava já em vias de publicação. Este

título é uma retomada de uma expressão utilizada pelo poeta no discurso de recepção do

prêmio Buchner, em 1960 (“O Meridiano”). Em seu discurso, Celan fala que a “Poesia: é

qualquer coisa que pode significar uma mudança na respiração”327. Para o poeta, é numa

325 CELAN, Paul. LESTRANGE-CELAN, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol II. Op. cit. p. 565 (Cronologia feita por Bertrand Badiou). 326 “L’AMOUR, d’une beauté de camisoles de force, \ met le cap sur le couple de grues. \\ Qui, dans sa traversée du néant, \ apportera le souflle expiré ici\ de l’autre côté, dans un des mondes ? ”. CELAN, Paul. LESTRANGE-CELAN, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol II. Ibidem. p. 566. 327 CELAN, Paul. “O Meridiano”. Arte Poética – O Meridiano e outros textos. Op. cit. p. 54.

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“pausa na respiração” que o poema é construído. Jean-Pierre Lefebvre, nas notas a sua

tradução francesa do livro Atemwende (“Renverse du Souffle”) de Paul Celan diz que a

expressão Atemwende é mais do que uma simples mudança de orientação de respiração ou de

ar. Ela “designa o momento intermediário entre os dois tempos da respiração, durante o qual o

fluxo respiratório se inverte e recomeça no outro sentido”328. Nos textos preparatórios ao

discurso “O Meridiano” encontramos uma alusão de Celan a uma frase que sua mãe repetia

para ele: “o que temos no pulmão, temos na língua”329. Esta frase será desenvolvida pelo

poeta em uma palavra composta: “ ‘Auf Atemwegen’,‘Por caminhos da respiração’”330, que

permanece no texto definitivo de “O Meridiano” e exerce um papel importante na poética de

Paul Celan, pois liga a poesia à vida e à morte (“o que, ao pé da letra, fala-à-morte”331) .

Na clínica, Celan leu vários livros. Entre eles, Edmond Jabès (Le livre des

Questions II), Sigmund Freud (Jenseits des Lustprinzips “Além do principio do prazer” e Das

Ich und das Es “O Eu e o Isso”) e Thomas Bernhard (Verstörung). Em todos os livros as

marcas de leitura, anotações e o “-i-” (de idéia) estão presentes. No dia 20.3. 67, Celan

começa a ler o livro de Bernhard e termina no dia 23.3.67. Paul Celan sublinha e realça com

um traço na margem da página 183 algo que nos interessa aqui. Cito: “Todliche

Selbstgesprachigkeit. / Wahnsinn durch sich selbst als Wahnsinn der Welt, der Natur.

[Monólogo mortal. A loucura devido a si-mesma como loucura do mundo, da natureza]”332.

No fim do livro, Celan faz uma anotação, em relação à sua leitura da página 107, que toca no

ponto da melancolia: “ ‘-i-’ \ Die Schwermut, aufs neue geduldet, \ pendelt sic hein [O peso

melancólico, suportado de nova maneira \ reencontra seu ritmo pendular]333.

Em 15 de novembro de 1968, Paul Celan tem uma nova crise de delírios. Ele

agride um vizinho suspeitando que ele pudesse fazer mal a seu filho Eric. Celan é conduzido a

uma enfermaria psiquiátrica perto da Préfecture de Police e permanece diante dos médicos e

da assistente social, em um mutismo total “que ele rompe murmurando: ‘Eu sou francês’, ‘Eu

328 “désigne le moment intermediaire entre les deux temps de la respiration, pendant lequel le flux respiratoire s’inverse et repart dans l’autre sens”. CELAN, Paul. Renverse du souflle. Tradução e notas de Jean-Pierre Lefebvre. Op. cit. p. 128. 329 “ce qu’on a sur le poumon, on l’a sur la langue”. Ibidem. p. 128. 330 “ ‘Auf Atemwegen’, ‘Par des chemins de souffle’”. CELAN, Paul. Renverse du souflle. Tradução e notas de Jean-Pierre Lefebvre. Op. cit. p. 128. 331 “ce qui à la lettre parle-à-mort”. Ibidem. p. 129. 332 “Tödliche Selbstgesprächigkeit. / Wahnsinn durch sich selbst als Wahnsinn der Welt, der Natur. [Monologue mortel. La folie due à soi-même comme folie du monde, de la nature].” CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol II. Op. cit. p. 348. 333 “‘-i-’ \ Die Schwermut, aufs neue geduldet,\ pendelt sic hein. La pesanteur mélancolique, supportée de nouvelle manière,\ retrouve son rythme pendulaire”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol II. Op. cit. p.348.

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fui operado de um pulmão”334 ( referência de Celan a operação do pulmão esquerdo depois de

sua tentativa de suicídio em 1967). Depois desta passagem pela enfermaria, ele é novamente

internado, agora no Hospital psiquiátrico de Vaucluse, em Epinay-sur-Orge (Essonne) e ficará

neste Hospital por três meses. Dr. He.335, médico chefe deste hospital, diz que o quadro de

Paul Celan é de uma “melancolia delirante”336.

Paul Celan e Gisèle estão cada vez mais distantes e se correspondem com

intervalos maiores entre uma carta e outra. Em relação à internação de Celan, ela só tomou

conhecimento do fato treze dias depois. Apesar da distância entre eles, ainda e sempre o amor

entre os dois sobrevive. Na carta do dia 23 de dezembro de 1968, Gisèle envia uma carta

desejando os melhores votos para 1969. Segue a carta dizendo:

Há desesseis anos, era também um 23 de dezembro: o nosso. Quanta coisa vivemos desde então! Que este novo ano possa ser menos difícil. Sei as palavras que tu esperas e que não posso dizer. Sei para onde se dirige teu olhar, sem que eu possa responder a ele: a vida é muito má. Em meu sofrimento, em meu desamparo, faltam-se as palavras; saber-te onde estás, não posso dizer-te o que isso significa para mim, tua coragem e tua paciência, apesar de tudo isso. Gisèle337.

Nesta carta, Gisèle mantém uma postura mais distante, não podendo falar as

palavras que Celan espera que ela diga. Já Celan, mantem o amor por Gisèle preservado de

todas as intempéries. Lemos na carta de 26 de dezembro de 1968: “Minha querida Gisèle, O

vinte e três de dezembro que você evoca é sempre nosso e sera sempre nosso, ele nos

acompanha para oferecer-se a nós, ele se increve em nossas palavras, em nossos gestos, em

tudo o que faz nossa vida”338.

Ele recebe visitas regulares de Gisèle e dos poetas mais próximos dele, Jean Daive

e André du Bouchet. Nesta internação ele escreve trinta e quatro poemas, que ele depois vai

interditar para a publicação.

Em 18.3.1970 (n. 670), Celan escreve uma de suas ultimas cartas endereçadas a

Gisèle: “Que posso eu te oferecer, minha querida Gisèle? Eis um poema escrito pensando em

334 “Qu’il rompt qu’en murmurant ‘Je suis français’, ‘J’ai été opéré d’un poumon”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol II. Op. cit. p.427. 335 O nome deste médico é mantido em sigilo. 336 “mélancolie délirante”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Ibidem. p.428. 337 “Il y a seize, c’etait aussi 23 décembre: le notre. Ce que nous n’aurons pas vécu depuis! Puisse cette nouvelle année être moins dure. Je sais les mots que tu espès et que je ne peux dire. Je sais vers où ton regard se dirige sans que je puisse y répondre : c’est très méchant, la vie. Dans ma peine et mon désarroi les mots me manquent, te savoir là où tu es, je ne peux te dire ce que c’est pour moi; ton courage et ta patience malgré tout cela!”. Gisèle. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 649- 650. 338 “Ma chère Gisèle, Le vingt-trois décembre que tu evoques est toujours nôtre et sera toujours nôtre, il nous accompagne pour s’offrir à nous, il s’inscrit dans nos paroles, dans nos gestes, dans tout ce qui fait notre vie”. Ibidem. p. 650.

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você”339. O poema vem com uma tradução para o francês, palavra por palavra, e Celan vai

usar mais uma vez o vocábulo Wahn, que na tradução do poeta quer dizer delírio, loucura.

Lemos:

Il y aura quelque chose, plus tard,

qui se remplit (se remplira) de toi

et se hisse (ra)

à (la hauter d’) une bouche

_________

De mon (du milieu de) délire (ma folie)

volé (e) en éclats

je ne dresse (m’érige)

et contemple ma main

qui trace

l’un, l’unique

cercle340

Na tradução para o português, lemos:

Haverá alguma coisa, mais tarde,

Que se preenche (se preencherá) de ti

e se alça (alçará)

`a (altura de) uma boca

__________

De meu (do meio de) delírio (minha loucura)

Partido (a) em estilhaços

eu me ergo (me erijo)

e contemplo minha mão

que traça

o um, o único

círculo

Celan, em sua luta que trava com a escrita, ainda se ergue e contempla sua mão.

Ergue-se para poder permanecer de pé (Stehen) em seu desejo de escrita.

339 “Que puis-je t’offrir, ma chère Gisèle? Voici un poème écrit pensant à toi”. CELAN, Paul. LESTRANGE-CELAN, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op.cit. p. 687. 340 “Es wird etwas sein, später,/ das füllt sich mit dir/ und hebt sich/ an einen Mund/ Aus dem zerscherbten/ Wahn/ steh ich auf/ und seh meiner Hand zu,/ wie sie den einen/ einzigen/ Kreis zieht”. Ibidem. p. 688.

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6. A LÍNGUA E O SEU MOVIMENTO EM CICATRICEMENT

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6.1 A EXPERIÊNCIA DE CICATRICEMENT

Para introduzir a questão da língua na poética de Paul Celan, em primeiro lugar,

talvez possamos fazer uma indagação sobre Celan similar a que Maingueneau faz em relação

a Proust. Segundo Maingueneau, em relação ao escritor, “é impossível saber se permaneceu

nesse mundo para escrever ou se escreveu para ter o direito de permanecer neste mundo”.341

O poeta Celan em sua condição paratópica342, em relação aos franceses e aos alemães, teve

que cavar um lugar, mesmo onde não existia espaço para ele. Decerto que, como acrescenta

Maingueneau, quando um escritor tem que se insinuar onde não existe espaço para ele, senão

um lugar paradoxal, ele se coloca em “um lugar bem improvável ao sol da literatura”.343 Além

disso, Celan não só vai questionar a paratopia e os destinos da literatura, como também a

própria escrita poética – escrita em uma língua marcada “pelas mil trevas de um discurso

letal”: a língua alemã. Ele nos fala, em seu discurso na entrega do prêmio literário da cidade

de Bremen, que “no meio de tantas perdas, uma coisa permaneceu acessível, próxima e salva

– a língua”344. Ela precisou fazer uma travessia, atravessar o “próprio vazio de respostas”345.

Também Celan precisou fazer uma travessia junto da língua de seus poemas. Travessia que

buscava um rumo. E nessa experiência tentar fazer o seu “projeto de realidade”. Ele se

esforçava por fazer esta travessia, esta também era sua luta:

sobrevoado por estrelas que são obra humana, de quem, sem teto, também neste sentido até agora nem sonhado e por isso desprotegido da forma mais inquietante, vai ao encontro da língua com a sua existência, ferido de realidade e em busca de realidade”.346

A escrita de Celan luta com a língua alemã. Sua tentativa, nesta passagem

linguageira, segundo Shoshana Felman é a de:

aniquilar sua própria aniquilação presente nela, para se reapropriar da linguagem que marcou a sua própria exclusão: os poemas deslocam a língua de forma a remoldá-la, para mudar radicalmente sua semântica e pressupostos gramaticais e refazer –

341 MAINGUENEAU, Dominique. O Contexto da obra literária Op. cit. p. 60. 342 Segundo Maingueneau, a paratopia é a localização paradoxal em que se encontra o escritor no campo literário. O paradoxal é que esta localização se dá numa “deslocalização” apontando para “uma difícil negociação entre o lugar e o não lugar”. 343 Ibidem. p. 60. 344 CELAN, Paul. “Alocução na entrega do prêmio literário da cidade de Bremen” in Arte Poética, O Meridiano e outros textos. Lisboa: Edições Cotovia, 1996, p. 33. 345 CELAN, Paul. Ibidem. p. 33. 346 CELAN, Paul. Ibidem. p. 34.

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criativamente e criticamente – uma nova linguagem poética, totalmente própria a Celan.347

É esta linguagem apontada por Soshana Felman, que Celan chama de “seu projeto

de realidade”, projeto feito com esforço, em direção “ao encontro da língua com a sua

existência, ferido de realidade”348. Neste trajeto de remodelamento, em uma torção incessante,

Celan segue “ferido de realidade”, ferido de mundo. Em seu discurso de Bremen, Celan

esclarece o seu “projeto de realidade”:

Foi como podem ver, acontecimento, movimento, estar sempre a caminho, foi a tentativa de encontrar um rumo. E se pergunto qual é o seu sentido, então penso que terei de dizer a mim próprio que nesta pergunta também fala a pergunta sobre o sentido dos ponteiros do relógio.349

A pergunta celaniana pode estar endereçada ao leitor na referência à questão que

ele mesmo nomeou de cicatricement, pois que o poeta continua afirmando algo em

movimento, vivo e continuado, como o movimento dos ponteiros do relógio, em constante

trabalho.

Fernando Cambon, em 2001, fez uma entrevista com Bertrand Badiou,

organizador da correspondência entre Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange, antes ainda da

publicação deste texto no formato de livro. Segundo Bertrand Badiou, o francês é a primeira

língua viva que Celan aprende, excluindo o romeno que era uma língua obrigatória. “É sua

primeira língua viva escolhida”,350 nos diz o autor.

Retomando um pouco a história de Paul Celan, lembramos que, em Czernowitz,

terra natal do poeta, o francês é uma língua muito estudada e os amigos de infância de Celan

estão todos perfeitamente à vontade com a língua francesa. Depois do século XVIII a

influência do Leste Europeu é muito forte, e o francês tinha sempre lugar de destaque.

Em sua adolescência, Celan se encontrava muito próximo da poesia francesa do

século XIX. Interessava-se pelos poemas de Rimbaud, inclusive sabendo-os de cor. Quando

Celan já está morando em Paris, ele traduz “Le Bateau Ivre” para o alemão. Foi como “um ato

de naturalização”351 (em relação a língua francesa) e “como um dom feito à língua alemã”352.

Com esta tradução, ele dá provas de sua dedicação à língua francesa. Este gesto, que também

347 FELMAN, Shoshana. “Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino” in Catástrofe e Representação. São Paulo: Escuta, 2000, p. 39. 348 CELAN, Paul. Arte Poética, O Meridiano e outros textos. Op.cit. p.34. 349 CELAN, Paul. Arte Poética, O Meridiano e outros textos. Op.cit. p.34. 350 BADIOU, Bertrand. “Au coeur d’une correspondance” in Revista Europe número 861-862/ Janvier-Février 2001, p.192. 351 Ibidem. p. 192. 352 Ibidem. p. 192.

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pode ser lido como um ato terá uma melhor definição quando ele traduz La Jeune Parque de

Paul Valéry. A tradução desse poema de Valéry tinha sido considerada por Rilke como uma

tarefa impossível. Em uma de suas cartas, Paul Celan diz que há uma dimensão de aposta em

seu gesto. Em uma outra carta, endereçada a Gisele, no dia do aniversário dela, ele fala de sua

alegria por ter feito esta tradução:

Para você, minha querida, este poema que veio renascer em nossa casa Pelo seu aniversário pelo 19 de março de 1960

Paul353

A nota a esta carta esclarece ainda, que Celan escreveu uma carta (não enviada) a

seu amigo Petre Solomon, datada do dia 15.3.1960, falando da importância desta tradução:

“Por estes dias será publicada minha tradução de La Jeune Parque. É a primeira tradução

alemã, Rilke, ele mesmo, considerava ‘impensável’ uma tal tradução.”354

Paul Celan transitava de língua em língua com uma facilidade enorme, mas tinha

uma necessidade imperiosa de traduzir os textos para o alemão. Era algo da ordem de uma

urgência quase vital. Além disso, este trânsito desimpedido entre as línguas o alimentava.

Estas línguas embabellent355 o seu alemão de poeta, conforme dizia Celan. Esta palavra

(embabellent) nos faz reportar a Babel, que é ao mesmo tempo um nome próprio e um nome

comum. Derrida diz em seu texto “Torres de Babel”, que Babel, enquanto nome próprio

deveria permanecer intraduzível. No entanto, este nome deriva de “um nome comum

significando o que nós traduzimos como confusão”.356 E isto nos leva a uma construção

inacabada – a própria “torre de Babel”: “o mito da origem do mito, a metáfora da metáfora, a

tradução da tradução”,357 configurando uma multiplicidade de línguas e um não acabamento

na própria construção de um sistema, seja ele arquitetônico, lingüístico ou literário.

353 “Pour vous, ma Chérie,/ ce poème qui est venu renaître/ dans notre Maison/ Pour votre anniversaire/ pour le 19 mars 1960/ Paul”. CELAN, Paul. LESTRANGE -CELAN, Gisèle. Correspondence. Lettres. Vol I. Op. cit. p.116. 354 Cito: “ces jours-ci paraît ma traduction de la Jeune Parque. C’est la première traduction allemande, Rilke lui-même tenait pour ‘invraisemblable’ une telle traduction.”CELAN, Paul. LESTRANGE -CELAN, Gisèle. Correspondence. Commentaires et illustrations Vol II. Op. cit. p. 135. 355 A palavra parece sugerir movimento. Movimento das línguas que balançam, que entusiasmam. Assim, embabeller pode se pensado a partir das palavras Babel e emballer. Babel se refere à confusão das línguas. Emballer é empacotar, mas também pode ser entusiasmar-se. 356 DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora da UFMG. 2002. p.12. 357 DERRIDA, Jacques. Ibidem. p.11.

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No processo de escrita de Paul Celan a “experiência da língua” é de crucial

importância na construção de sua poética. Paul Celan nos mostra que a relação que ele tem

com a língua alemã é puramente poética. Sabemos a partir de Derrida, que o sujeito falante,

ao utilizar uma língua para transmitir algo, não consegue se apropriar dela. Celan, ao escolher

o alemão como a língua de escrita de seus poemas teve que “suportar um corpo a corpo com

ela”.358 Para Derrida, a questão levantada pela “experiência da língua” aponta a singularidade

de um escritor ao habitar o idioma. Isto indica também que temos que pensar o idioma a partir

de duas vertentes: 1)- o idioma quer dizer “o próprio justamente, o que é próprio”. 2)- a

assinatura no idioma da língua (ou seja, a forma do poeta “precisar” este idioma). Ao mesmo

tempo, nos defrontamos com a impossibilidade de apropriação da língua. No caso de Celan,

ele habitava a língua deixando nela uma marca singular. Derrida reconhece que Celan deixou

a marca de

uma contra-assinatura da língua alemã e ao mesmo tempo algo que advém a língua alemã, que advém nos dois sentidos deste termo: que se aproxima da língua alemã, que a socorre, sem entregar-se a ela, mas ao mesmo tempo fazendo com que a escritura poética advenha, isto é, que seja um acontecimento que marque a língua.

359

O poeta é aquele que faz uma passagem com acontecimentos de escrita, e produz

um corpo novo à língua. Então, quando Celan cria uma obra, ele dá um “novo corpo à língua,

dá à língua um corpo tal que esta verdade da língua apareça ali como tal, apareça e

desapareça”.360

Em Celan, a questão da língua tem relação com a noção de cicatriz. Segundo

Derrida, o poeta trabalha com a língua e

a faz mover-se, lhe deixa um destino de cicatriz, de marca, de ferida. Modifica a língua alemã, toca a língua, mas, para tocá-la, é necessário que a reconheça não como sua língua, posto que (...), a língua nunca pertence, senão como a língua com a qual elegeu expressar-se361.

Na carta escrita em 2.4.1966 Celan diz: “Das Narbenwahre (A Verdadeira

cicatriz), eis o resultado de minhas diversas cogitações”362. Nesta mesma carta, ele manda um

358 DERRIDA, Jacques (entrevista feita por Évelyne Grossman) Diário de poesia (número 59). Buenos Aires. 2001. p. 16. 359 Ibidem. p. 16. 360 Ibidem. p. 16. 361 Ibidem. p. 16. 362 Cito: “Das Narbenwahre (Le Vrai-cicatrice), voici le résultat de mes diverses cogitations”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol.I. Op. cit. p. 414.

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poema que se inicia com os seguintes versos e que já foi transcrito integralmente no capítulo

cinco, referente às cartas como registro de uma poética: “A verdadeira-‘cicatriz sempre em

movimento’, enganchada/ no Extremo/ impossível de se desenredar” 363 (aqui seguindo a

tradução proposta pelo “Dicionário Celan”), já sinaliza o difícil desenredar de suas questões

traumáticas. A questão da cicatriz (cicatrice) e da suas variações cicatricement364 e cicatriciel

(tradução proposta por Bertrand Badiou) aqui pode ser pensada na noção derridiana da

experiência da língua. Esta experiência, em Celan, fala de sua singularidade ao habitar o

idioma.

Celan revelava em seus escritos “uma cicatriz que não se fecha: a cicatriz de

nosso tempo” 365. Uma cicatriz que trazia a marca de seu tempo, de seu trauma: uma perda

irreparável. Este ponto da cicatriz é crucial na escrita de Paul Celan. Ele vai criar uma palavra

na correspondência com Gisèle Lestrange-Celan para falar desta questão: cicatricement. Um

advérbio, inventado pelo poeta, oriundo do francês cicatrice. Ainda uma palavra em

movimento. Aqui vale lembrar, que “há sempre um real da língua a coagir, a forçar uma

fronteira entre o possível e o impossível de dizer, entre o que é dizível e o que é indizível”. 366

Talvez, em Celan, esta coação do real da língua atue em sua radical tentativa de inscrição,

como no verso de Corona quando Celan diz que “é tempo que a pedra se decida a florir”.367

Nesse tempo, “no meio de tantas perdas, uma coisa permaneceu acessível, próxima e salva – a

língua”.368 Ela “teve que atravessar o seu próprio vazio de respostas”, 369 e abrir espaço em

meio “as mil trevas de um discurso letal”.370 A língua atravessou esses acontecimentos

reermegindo “enriquecida” com tudo isso. Nesses anos de travessia, Celan tentou escrever

poemas na língua alemã. Poesia ferida, com palavras feridas, sempre em busca da realidade.

Sua “verdadeira cicatriz” é uma cicatriz que nunca se fecha: cicatricement, sempre em

movimento. Movimento incessante, melancólico.

363 “Le vrai-‘cicatricement’ accroché/ dans l’Extrême, impossible à dévider”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 415. 364 Cicatricement é um advérbio que Celan inventou e que pode ser traduzido também por "cicatrizmente". Este neologismo celaniano também pode ser pensado como uma palavra substantivada. 365 “una cicatriz que no se cierra: la cicatriz de nuestro tiempo”. in GAY, José Maria Pérez. Paul Celan: Una cicatriz que no se cierra. in site Nexos virtual (www.nexos.com.mx) p. 2. 366 MORAES, Marcelo Jacques de. O Saber e a verdade na língua: a questão da literatura in Revista de Estudos de Literatura. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Vol. 2, p.138. 367 CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Antologia poética. Lisboa: Editora Cotovia Ltda. 1996 p.15. 368 CELAN, Paul. Arte Poética, O Meridiano e outros textos. Op. cit. p. 33. 369 Ibidem. p.33 370 Ibidem. p. 33.

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Há um breve poema de Paul Celan, escrito entre os anos de 1967/1968 que foi

publicado postumamente no livro Schneepart (1970/1971) intitulado “E FORÇA E DOR” que

fala também deste movimento de cicatricement:

E FORÇA E DOR

e o que me empurrou

e impulsionou e sustentou?

Anos de júbilo

bissextos,

rumor de pinheirais, uma vez,

a caça ilícita da convicção

de que isso deve ser dito de outra forma

que não assim.371

O lingüista alemão Harold Weinrich comenta em seu livro Lete, arte e crítica do

esquecimento sobre a importância do “e” conectivo nos versos iniciais do poema. O “e”

“confere ao poema um forte ímpeto de movimento” 372. Neste poema encontramos, apesar de

sua brevidade, um tom narrativo, no estilo bíblico (“E Deus disse...” 373). Celan se pergunta,

nos primeiros versos, sobre o que produziu a dor. Pela força das formas verbais usadas “no

tempo narrativo pretérito perfeito” 374, a saber, “empurrou”, “impulsionou” e “sustentou”,

podemos pensar que o que produziu a dor foi um acontecimento violento: um trauma, sem

dúvida. Weinrich diz que:

obviamente é uma ‘ferida de lembrança’ não curada, da qual Celan fala em outro poema e que também é a força que impele a dor da lembrança da ‘ferida da morte’, bem como todo o seu poetar: o Holocasto, a inesquecível Shoah.375

Esta “‘ferida de lembrança’ não curada”, vai de encontro à questão da cicatriz que

não se fecha. Ela é uma ferida que traz em seu seio uma impossibilidade de cicatrização.

A experiência poética é feita na “errância espectral das palavras”, 376 em carne

viva. E para ter esta experiência, a cada instante, o poeta deve viver a morte da língua. Deve

371 CELAN, Paul. “E FORÇA E DOR”. Apud WEINRICH, Harold. Lete, arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2001. p. 246-247. 372 WEINRICH, Harold. Lete, arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2001. p. 247. 373 Ibidem. p. 247. 374 Ibidem. p. 247. 375 Ibidem. p. 247. 376 DERRIDA, Jacques. (entrevista feita por Évelyne Grossman) Diário de poesia (número 59). Op. cit. p. 17.

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vivê-la em muitos lugares. Segundo Derrida, a experiência em “carne viva” é decorrência

desta outra experiência com a morte da língua, e se dá de diversas maneiras:

em todos aqueles lugares onde sentiu que a língua alemã era assassinada de alguma maneira, por exemplo, por sujeitos de língua alemã que faziam certo uso dela: que a lastimavam, a matavam, lhe davam morte porque a faziam falar de tal ou qual modo. A experiência do nazismo é um crime contra a língua alemã. O que se disse em alemão, sob o nazismo é uma morte. Há outra morte que é a simples banalização da língua. E logo há outra morte que é aquela que não pode advir à língua, senão a causa do que ela é, quer dizer: repetição, letargia, mecanização, etc.377

Então, o poeta deve, com seu ato, enfrentar todas estas nuances da língua e

realizar uma “ressurreição”. A todo instante, ele tem que “tratar permanentemente com uma

língua que morre e que ele ressuscita, não oferecendo um verso triunfante senão o fazendo

regressar às vezes, como um ressuscitado ou um fantasma”.378 E esta ressurreição da língua

não se dá “como um corpo imortal nem como um corpo glorioso”379, mas como um corpo

mortal, frágil e vulnerável. O ato poético desperta a língua, mas para se ter esta experiência do

despertar e do retorno à vida da língua, em carne viva, será preciso encontrar-se muito

próximo de “seu cadáver”. Isto significa que o poeta, em seu ato, deve estar o mais próximo

possível de seus restos, de seus despojos.

Celan trabalha próximo da morte, em um “desenraizamento da língua”, além do

canto que ainda resta cantar. É uma experiência de limite. Escutemos seu canto:

ESTÁS PARA ALÉM

de ti

para além de ti

se estende teu destino,

de olhos brancos, fugido a

um cântico, algo se aproxima dele,

isto ajuda

ao desenraizamento da língua,

também ao meio dia, fora.380

377 DERRIDA, Jacques. (entrevista feita por Évelyne Grossman) Diário de poesia (número 59). Op. cit. p. 17. 378 Ibidem. p. 17. 379 Ibidem. p. 17. 380 CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Op. cit. p. 175.

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Nestes momentos mais radicais de um poema, onde a destruição toca a língua,

onde o poeta precisa se haver com a língua em seu extremo fim, em seu desenraizamento, o

poeta ressuscita a língua e a traz em “carne aberta”, nas palavras de Novarina.

Na carta do dia três de agosto de 1965, Celan recomenda a Gisèle, que estava com

um problema sério em um dente, que quando for ao dentista, pergunte a ele se não poderia

conservar a raiz do dente para colocar um pivô. Entre parênteses Celan acrescenta: “Para

mim, homem sem raiz, não existe eixo”381. Aqui vale uma pequena reflexão sobre o homem

sem raiz. No que se refere a Paul Celan, a questão da raiz, ou da origem de uma língua que

estabeleça um solo para ele ou a questão da língua materna, é muito mais complexa do que

em outros autores. Em Celan, a língua está sempre na referência a um projeto a se realizar,

“projeto de realidade”, como já foi dito neste trabalho. Um solo ainda a ser conquistado ou

nunca adquirido. Talvez por isto surja uma língua celaniana, como um horizonte possível,

diante da impossibilidade de encontrar um solo firme que o sustente. Horizonte possível, mas

melancólico.

6.2. PAUL CELAN: UMA POÉTICA DA MELANCOLIA

A poética de Celan trabalha com um “lirismo da dor”, nas palavras de Martine

Broda. Este lirismo tem por conseqüência uma perspectiva nova de leitura da história e da

literatura que se dá a partir de “um jogo de luto”382. Luto que opera uma nova poética: a

melancolia. E esta poética é alegórica, no sentido barroco, pois que “o sentido subjacente à

vida e à história, como na época do drama barroco, é para ele a morte”.383 Aqui, a

aproximação com Walter Benjamin se faz fundamental. Em Benjamin, seguindo o

pensamento de Martine Broda, tradutora de Celan e estudiosa de sua poética,

o significado subjacente à alegoria barroca é o cadáver ou a caveira, ‘facies hippocratica’ da história, enquanto que a alegoria moderna (Baudelaire) se funda sobre a lembrança. Em Celan, a morte é o que dá sentidoà vida384.

381 “Pour moi, homme sans racine, point de pivot”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 273. 382 “un jeu de deuil”. BRODA, Martine. “Celan et Benjamin” in Dans la main de personne, essai sur Paul Celan et autres essais. Op. cit. p. 135. 383 “le sens sous-jacent à la vie et à l’histoire, comme à l’époque du drame baroque, est pour lui la mort”. Ibidem. p. 135. 384 Cito: “le signifié sous-jacent à l’allégorie baroque est le cadavre ou la tête de mort, ‘facies hippocratica’ de l’histoire, alors que l’allégorie moderne (Baudelaire) se fonde sur le souvenir. Chez Celan, la mort est ce qui donne sens (Bedeutung und Richtung) à la vie.” Ibidem. p. 135.

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Esta “facies hippocratica” da história trazida por Benjamin, a saber, a caveira, nos

revela uma ausência de liberdade simbólica de expressão. “Não existe, nela, (...) nenhuma

harmonia clássica da forma”385, diz Benjamin, acrescentando que:

(...) em suma, nada de humano, essa figura, de todas a mais sujeita à natureza, exprime, não somente a existência humana em geral, mas, de modo altamente expressivo, e sob a forma de um enigma, a história biográfica de um indivíduo. Nisso consiste o cerne da visão alegórica: a exposição barroca, mundana, da história como história mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios de declínio.386

Esta visão alegórica benjaminiana se aproxima, em muito da visão celaniana da

morte, que também podemos chamar aqui de alegórica.

Adorno, inspirado em Benjamin, diz que a obra de Celan é constituída de uma

extrema radicalidade, não jogando mais o jogo da comunicação, no qual o teor de verdade é

de caráter negativo, o que Adorno vai chamar de “caráter anorgânico” da linguagem

celaniana, “linguagem do que é morte nas estrelas e nas pedras”387. Na alegoria, encontramos

uma escrita hieroglífica, que sempre está na referência a um sentido perdido, com uma

imagem fragmentada. Como alegoria, cada coisa pode significar outra. A alegoria se opõe ao

símbolo, que aponta uma totalidade, uma clareza e uma harmonia. Ela é, ao contrário, obscura

e tendendo às sombras. Celan nos fala de uma “escrita de sombras sobre as pedras”.388 Jeanne

Marie Gagnebin diz que “na relação simbólica, o elo entre a imagem e a sua significação (...)

é natural, transparente, imediato, o símbolo articulando, portanto, uma unidade harmoniosa de

sentido. (...) Na relação alegórica o elo é arbitrário, fruto de uma laboriosa construção

intelectual”.389

No mundo barroco, o homem se apresenta com fragilidade. O drama barroco se dá

no “espaço interno do sentimento” e pressupõe “espectadores inseguros, submergidos na

iminência do movimento da história, condenados a refletir melancolicamente sobre problemas

insolúveis”.390 Estes espectadores do drama barroco “já não contam com valores absolutos”.

385 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução, apresentação e notas: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 188. 386 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Op. cit. p. 188. 387 BRODA, Martine. “Celan et Benjamin”. in Dans la main de personne, essai sur Paul Celan et autres essais. Op. cit. p. 135. 388 “écriture d’ombres sur les pierres”. Ibidem. p.136. 389 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993. p. 41. 390KONDER, Leandro. Apud GERALDO, Sheila Cabo. “Origem do Drama Barroco Alemão, leitura e tentativa de compreensão das noções de origem, redenção, mônada, alegoria, melancolia e linguagem”. in Revista número 6, O que nos faz pensar – Cadernos do departamento de filosofia da Puc-Rio. Rio de Janeiro. 1992. p. 98.

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São os dilacerados da história, são os homens de luto”.391 O luto, para Walter Benjamin “é o

estado de espírito em que o sentimento reanima o mundo vazio sob a forma de uma máscara,

para obter da visão desse mundo uma satisfação enigmática”.392

A teoria do luto surge para se contrapor à teoria da tragédia e “só pode ser

desenvolvida por meio da descrição do mundo que se abre ao olhar melancólico. Este é o

olhar da ruminação, da meditação, que está no olhar da gravura Melancolia de Dürer”.393 Esta

gravura foi uma das primeiras fontes de inspiração de Walter Benjamin em sua construção do

tema do anjo, que nos interessa aqui em seu aspecto de melancolia e de perda. Esta “imagem

da melancolia alada düreriana”394 aparece acompanhada de um anjo. Em 1933, Benjamin,

fugindo do nazismo que já se impunha, viaja para Ibiza, na Espanha. Lá, ele escreve o texto

“Agesilaus Santander”, que é “uma das chamadas notas de Ibiza”395. Em sua segunda versão,

o texto foi muito estudado por Gerschom Scholem. Ele buscava desvendar o hermetismo

deste texto. O que nos interessa aqui é a referência que Susana Kampff Lages faz à melancolia

e à autobiografia. Sabemos, a partir deste estudo de Scholem, que a obsessão pessoal de

Benjamin em relação ao tema dos anjos

rendeu frutos à reflexão teórica do filósofo berlinense e como certos traços pessoais de caráter, a paciência, o gosto em presentear e, sobretudo, a melancolia, acompanham esse movimento de passagem da biografia para a teoria. Como anota Scholem, o escrito de Benjamin constitui uma espécie de auto-reflexão, tendo em vista sua condição pessoal de escritor, judeu e suas relações amorosas.396

Esta condição de escrever em língua alemã e de ser judeu o colocava em uma

situação semelhante à de Paul Celan. Podemos lembrar que, em Celan, a cultura judaica e a

língua alemã se entrelaçavam. Como ele próprio diz em carta a familiares, que viviam em

Israel, datada de agosto de 1948: “Acaso sou um dos últimos que devem viver até o final, o

destino da cultura judia na Europa. Por que escrevo ‘devem viver’? Porque um poeta não

pode deixar de escrever, muito menos se é judeu e seu idioma de escrita o alemão”.397

391 GERALDO, Sheila Cabo. “Origem do Drama Barroco Alemão, leitura e tentativa de compreensão das noções de origem, redenção, mônada, alegoria, melancolia e linguagem”. in Revista número 6, O que nos faz pensar – Cadernos do departamento de filosofia da Puc-Rio. Op. cit. p. 98. 392 BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. Ibidem. p.162. 393 GERALDO, Sheila Cabo. “Origem do Drama Barroco Alemão, leitura e tentativa de compreensão das noções de origem, redenção, mônada, alegoria, melancolia e linguagem”. Ibidem. p. 99-100. 394 LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: Tradução e melancolia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. p. 103. 395 LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: Tradução e melancolia. Op. cit. p. 103. 396 Ibidem. p. 103. 397 GAY, José Maria Pérez. Paul Celan: Uma cicatriz que no se cierra in Ventana a la literatura y la filosofia alemana (na Internet, site www.nexos.com.mx), p.3.

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Walter Benjamin, no texto “Agesilaus Santander” já citado, “identifica-se como

‘filho de Saturno’, ou seja, reconhece abertamente seu temperamento melancólico, cuja

descrição coincide com elementos da tradição que liga a melancolia a um influxo planetário

de Saturno”.398 A teoria da melancolia, na ciência árabe está ligada à doutrina das influências

astrais, e entre elas, “a mais fatídica era exercida por Saturno que governa o melancólico” 399.

O sujeito melancólico, acrescenta a historiadora Sheila Cabo Geraldo:

é aquele que penetra no objeto até que ele se revele e até a morte do objeto, que coincide com essa revelação. O melancólico está sob a influencia de Saturno, planeta que predestina para a clarividência, para a tenacidade, para a meditação. Toda a sabedoria do saturnino vem do abismo: ela é obtida pela imersão no mundo das coisas criadas.400

A dedicação dos melancólicos para com as coisas chega ao ponto deles retirarem

todo conteúdo histórico das coisas, descontextualizando-as de suas conexões espaço-

temporais, para depois elas ressurgirem com uma forte significação alegórica. É neste

percurso que se dá a essência do barroco. Em Benjamin, este processo barroco, critíco por

excelência, o faz mergulhar no objeto almejado, com a intenção de salvá-lo. No entanto, neste

processo, ele paga o preço deste mergulho, se perdendo no objeto.

Celan também era um filho de Saturno. O influxo que o atingia apontava para um

silêncio. Silêncio temporal, silêncio espacial além do silêncio nos espaços entre as palavras.

Na carta do dia 22.6.1954, (n.42) Celan envia um poema a Gisèle, traduzido por ele mesmo,

que traz questões concernentes à melancolia:

INSELHIN

Inselhin, neben den Toten,

dem Einbaum waldher vermählt,

von Himmeln umgeiert die Arme,

die Seelen saturnisch beringt:

so rudern die Fremden und Freien,

die Meister vom Eis und vom Stein,

umläuter von sinkenden Bojen,

398 LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: Tradução e melancolia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. Ibidem. p. 103. 399 GERALDO, Sheila Cabo. “Origem do Drama Barroco Alemão, leitura e tentativa de compreensão das noções de origem, redenção, mônada, alegoria, melancolia e linguagem”. Op. cit. p. 100. 400 Ibidem. p. 100.

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umbellt von der haiblauen See.

Sie rudern, sie rudern, sie rudern –:

Ihr Toten, ihr Schwimmer – voraus!

Umgittert auch dies von der Reuse!

Und morgen verdampft unser Meer!

22.6.1954.

Vers l’île, aux côtés des morts,

Époux de la piroque depuis la forêt,

les bras “envautourés” par des ciels,

les âmes ‘annelées saturnement” :

Ainsi rament les Etranges et Libres,

les Maîtres de la Glace et du Roc,

parmi les cloches des bouées qui sombrent,

parmi les aboiements de la mer bleu-requin.

Ils rament, rament, rament –:

O Morts, ô Nageurs, en avant!

Ceci – encore entouré par les grilles des nasses!

Et demain notre Mer s’evapore!

[Traduction mot à mot de Paul Celan]401

Encontramos no verso “as almas ‘saturninamente aneladas’” (les âmes ‘annelées

saturnement’) uma referência explicita à melancolia. E em “E amanhã nosso mar se evapora”

(Et demain notre Mer s’évapore) uma referência à dimensão da perda do poeta. O “Mar”, que

se evapora aponta para uma seca percepção de mundo. Um mar sem água é o fim da vida.

No poema “Chant du solstice”, não incluido no livro Papoula e memória, escrito

durante o inverno de 1942, Celan “fica sabendo da morte de sua mãe e se imagina em sonho a

401“Em direção à ilha, junto dos mortos,/ casados com a canoa desde o bosque/ com os céus enrolados nos braços como abutres,/ as almas saturninamente aneladas:/ assim vogam os Estranhos e os Livres/ os Mestres do Gelo e da Pedra/ rodeados pelo barulho de bóias que se afundam,/ e pelos latidos do mar azul-tubarão./ Eles remam, remam, remam:/ Oh Mortos, Nadadores, adiante! Cercado também isto com nassa!/ E amanhã o nosso mar que se evapora. “Em direção à ilha” (Tradução de João Barrento, exceto as palavras em itálico, que seguiram a risca a tradução de Celan do alemão para o francês). CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Op. cit. p.71.

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carregá-la para a terra, ela que ele nomeia ‘sua bem amada cega’” 402. O poema foi escrito

pleno de remorsos de ter ficado vivo: “Oh mastros de pedra da melancolia! Oh eu que estou

entre você e vivo! / Ô eu entre você e vivo e bonito, e ela não pode me sorrir...” 403. Marc

Sagnol diz que Celan religa a natureza à historia, e “ vê a melancolia não somente tomar conta

de seu coração, mas do conjunto da natureza, quando da morte de sua mãe” 404.

Sagnol diz que há uma travessia no decorrer destes poemas da juventude. Celan,

no poema “Papoula”, acreditava descobrir a sua bem amada, “seu coração, negro de

melancolia” 405. Este estado de espírito irá mudar e o “negro de melancolia” começará a fazer

parte da vida e da poesia de Celan. No poema “Do azul” esta travessia é bem exemplificada.

Cito dois versos do poema: “o granizo preto da melancolia/ cai num lenço, todo branco de

dizer adeus” 406. A queda do “granizo preto da melancolia” aponta para a dolorosa perda

materna: “Luto insuperável e insuperado da mãe” 407. Encontramos nos versos de Celan a

referência implícita ao verso “sol negro da melancolia” do poema “El Desdichado” de Gerard

de Nérval. Cito a primeira estrofe:

Sou o tenebroso – o viúvo – o inconsolado,

O príncipe na torre abolida de Aquitânia;

Morta minha única estrela – meu alaúde constelado

Porta o Sol negro da Melancolia.408

Sabemos que Paul Celan traduziu este poema de Nérval anos mais tarde e que

teve um intenso efeito sobre o poeta. “El Desdichado” é usado pelo poeta francês no sentido

de deserdado e não de infeliz ou miserável, como em geral é empregado. Mas, ele é

“deserdado de quê?” 409, pergunta a psicanalista Julia Kristeva. Ele foi privado de algo – “de

um território não-nomeável, que se poderia evocar ou invocar, estranhamente, do exterior, de

402 “apprend la mort de sa mère et s’imagine en rêve la porter en terre, elle qu’il nomme ‘sa bien-aimée

aveugle’”. SAGNOL, Marc. “Sable et tristesse. La Bucovine et l’Ukraine chez Paul Celan”. in Germanistique. Paul Celan. Poésie et poétique. Klincksieck, 2002. p. 45 403 “Ô mâts de pierre de la mélancolie! Ô moi qui suis parmi vous et vivant!/ Ô moi parmi vous et vivant et

beau, et elle ne peut pas me sourire...”. Ibidem. p. 45. 404 “voit la mélancolie non seulement s’emparer de son coeur mais de l’ensemble de la nature à la mort de sa

mère”. SAGNOL, Marc. “Sable et tristesse. La Bucovine et l’Ukraine chez Paul Celan”. Op. cit. p. 45. 405 Ibidem. p. 45. 406 CELAN, Paul. Sete Rosas mais tarde. Op. cit. p. 19. 407 “deuil insurmontable, et insurmonté de la mère”. SAGNOL, Marc. “Sable et tristesse. La Bucovine et l’Ukraine chez Paul Celan”. Op. cit. p. 49. 408 KRISTEVA, Julia. Sol negro – depressão e melancolia. Rio de Janeiro: Editora Rocco Ltda, 1989. p. 133. 409 Ibidem. p. 136.

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um exílio constitutivo” 410. Essa qualquer coisa (“um território não-nomeável”) seria anterior

a um objeto discernível. Imaginariamente, ela toma a “consistência da mãe arcaica que,

entretanto, nenhuma imagem precisa consegue englobar” 411. Além disso, esta “qualquer

coisa” guardaria um “horizonte secreto e intocável de nossos amores e de nossos desejos” 412.

Há um aspecto inapreensível desta Coisa 413: ela é sempre perdida para o sujeito, que

separado do objeto pode se tornar um ser falante. O melancólico, do ponto de vista

psicanalítico parece exercer um domínio, tanto amoroso quanto odioso, sobre essa Coisa. Já o

poeta, nas palavras de Kristeva, “encontra o meio enigmático de estar, ao mesmo tempo, sob

sua dependência e... em outro lugar” 414. A escrita do poeta é o embate necessário entre a

busca incessante da Coisa perdida e a perda da Coisa.

A questão do luto e da melancolia foi trazida por Freud, em 1915, em meio as

suas pesquisas sobre o inconsciente. O luto, de modo geral, é “a reação à perda de um ente

querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a

liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante” 415.

Em algumas pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em vez de luto.

Podemos pensar aqui a melancolia como um luto atípico, um luto não previsto no programa.

O luto, em Freud, não é considerado como uma condição patológica. Confia-se

que seja ultrapassado após algum período de tempo. Já na melancolia, as questões são mais

complexas, principlamente em relação aos sentimentos chamados de auto-estima. É verdade

que tanto no luto quanto na melancolia, os traços psíquicos característicos são semelhantes,

com exceção da diminuição da auto-estima. Encontramos, em comum, nos dois processos, um

“desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da

capacidade de amar e a inibição de toda e qualquer atividade”. 416 No entanto, na melancolia

há uma pertubação da auto-estima, com “uma diminuição dos sentimentos de auto-estima, a

ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa

expectativa delirante de punição”.417 No luto, “o mundo se torna pobre e vazio” 418, enquanto

que na melancolia é o próprio “eu” que é atingido. Em relação ao termo alemão Selbstgefühl

410 Ibidem. p. 136. 411 Ibidem. p. 136. 412 Ibidem. p. 136. 413 Referência ao conceito freudiano Das Ding (A Coisa) que fala de um objeto perdido e sempre buscado. 414 KRISTEVA, Julia. Sol negro – depressão e melancolia. Op. cit. p. 137. 415 FREUD, Sigmund. “Luto e melancolia”. Volume XIV. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. São Paulo: Imago Editora, 1974. p. 275 416 FREUD, Sigmund. “Luto e melancolia”. Volume IV. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Op. cit. p. 276. 417 Ibidem. p. 276. 418 Ibidem. p. 278

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que foi traduzido por auto-estima, encontramos que “literalmente significa sentimento de si,

convicção do próprio valor e poder” 419. Lembremos aqui que Paul Celan buscava recuperar o

“sentimento de si” em vários momentos da vida. No seu diário, já citado neste texto, lemos a

referência a esta busca: “Selbstbegegnung (‘Encontro de si mesmo’)” 420.

Se no luto, o sujeito sabe exatamente o que perdeu, na melancolia, ele “sabe quem

ele perdeu, mas não sabe o que perdeu nesse alguém. Isso sugeriria que a melancolia está de

alguma forma relacionada a uma perda objetal retirada da consciência” 421, isto é, existe algo

de inconsciente nela. Há um não-saber na melancolia que opera no sujeito.

Para Freud, “o complexo melancólico se comporta como uma ferida aberta

atraindo para si, de toda parte, energias de investimento” 422. Ele esvazia o “eu” até o

empobrecimento total. Para dar conta da ferida aberta – uma ferida narcísica – o sujeito

melancólico necessita de toda energia disponível. No entanto, por se tratar de uma ferida que

não se fecha, não há energia suficiente para suprir tal demanda.

A “ferida aberta” trazida por Freud, em Celan vai tomar uma direção distinta. O

termo cicatricement fala de uma cicatriz sempre em movimento: uma ferida aberta que deixa

uma cicatriz que nunca fecha. Na poética de Celan, podemos pensar que este “buraco” de

melancolia, que em Freud pode ser lido como uma ferida na “esfera psíquica” 423, sofre uma

torção. E produz, em outro lugar, poemas. Isto implica uma produção poética, que, no caso de

Paul Celan era muito rica, especialmente, mas não sempre, em seus momentos de internação.

A partir do estudo realizado por Jeanne Marie Gagnebin sobre os anjos, que eram

figuras essenciais do pensamento benjaminiano, a dimensão de perda se mostra fundamental

para entendermos a questão da melancolia na construção da obra benjaminiana. A dimensão

de perda, nas palavras de Susana Kampff Lages, confere um lugar importante aos anjos, pois:

faz com que essas figuras que povoam o texto benjaminiano, ora como fulgurações quase ofuscantes, ora discretamente, quase secretamente, mas sempre como aparições efêmeras, imprimam a seu texto um tom fundamentalmente melancólico.424

419 FREUD, Sigmund. “Luto e melancolia”. Novos Estudos – Cebrap. Número 32 – março de 1992. (apresentação, tradução do original alemão, notas de tradução e discussão de Marilene Carone). p. 131 420 CELAN, Paul. LESTRANGE-CELAN, Gisèle. Correspondance.Commentaires et illustrations. Vol I I. Op. cit. p. 522. 421 FREUD, Sigmund. “Luto e melancolia”. Volume IV. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Op. cit. p. 277-278. 422 FREUD, Sigmund. “Luto e melancolia”. Novos Estudos – Cebrap. Número 32. Op. cit. p. 137. 423 FREUD, Sigmund. “Rascunho G – Melancolia”. Volume I. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. São Paulo: Imago Editora, 1974. p.282. 424 LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: Tradução e melancolia. Op. cit. p. 104.

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A melancolia não é um reflexo especular do temperamento melancólico de

Benjamin. Mas um operador que constrói seu texto, em meio a ruínas e fragmentos.

Retomando aqui a alegoria, em Benjamin toda escrita alegórica é uma escrita de ruínas. Em

seu livro Origem do drama barroco alemão, Benjamin comenta que: “Na esfera da intenção

alegórica, a imagem é fragmento, ruína.” 425 E a estética das ruínas e do fragmento é uma

estética barroca. Ela está ancorada em um trabalho “construtivista”, diz Walter Benjamin,

onde as ruínas e os fragmentos são suas matérias primas. Nas palavras de Benjamin: “o que

jaz em ruínas, o fragmento significativo, o estilhaço: essa é a matéria mais nobre da criação

barroca”426. Ao mesmo tempo em que a visão alegórica se instaura a partir de fragmentos,

também, nas palavras de Gagnebin, “a identidade do sujeito se esfacela, incapaz que é de

recolher a significação desses fragmentos.”427

O texto benjaminiano nos traz uma história configurada não como um processo de

uma vida eterna, mas como um processo de uma decadência inevitável. Para Walter

Benjamin, “o mundo está em pedaços e a história se assemelha a um “amontoado de

ruínas.”428 Esta visão alegórica de Benjamin da história é uma visão que nos faz olhar além da

beleza. As alegorias são, para Benjamin, “no reino dos pensamentos, o que as ruínas são no

reino das coisas”429. Ruínas que penetram na história, alegorias que penetram o pensamento.

A criação barroca serve-se de cacos da história, das ruínas de seu passado, explorando o

máximo o fragmento. No drama barroco, segundo Benjamin, “no rosto da Natureza está

escrito História, com os caracteres de caducidade.” 430 E o poeta, deste tempo barroco, se

servia da Natureza em sua caducidade. Com o olhar saturnino, ele podia “identificar a

História” na Natureza. Nas palavras de Benjamin, encontramos certa compreensão do texto

freudiano. Isto se dá a ver quando ele comenta o movimento de alegorização do objeto.

Vejamos:

Quando, sob o olhar melancólico, o objeto se torna alegórico, quando ela lhe retira a vida, ele (o objeto) permanece morto, mas salvo na eternidade; assim se apresenta o objeto, entregue aos caprichos do alegorista. Quer dizer: de agora em diante é totalmente incapaz de irradiar uma significação, um sentido; tem o significado que o alegorista lhe dá431.

425 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Op.cit. p.198. 426 Ibidem. p. 200. 427 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993. p. 45. 428 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin. Op. cit. p. 66. 429 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Op.cit p. 200. 430 BENJAMIN, Walter. Documentos de Cultura. Documentos de barbárie. (Escritos Escolhidos). Seleção e apresentação Willi Bolle. São Paulo: Editora Cultrix, 1977. 431 Ibidem. p. 36.

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A partir de agora, o objeto, antes repleto de vida, torna-se “algo diferente, pelo seu

intermédio, fala de algo diferente”. Este movimento alegórico interessa aqui para pensarmos a

poética de Paul Celan: escrita que também toca as ruínas, no que sobreviveu em meio às

ruínas, em especial nas pedras fragmentadas, nos cacos de memória, e nas “vesículas de

lembrança”.

A escrita de Paul Celan também tende para uma escrita alegórica. No livro

Atemwende, traduzido para o português como “Sopro, Viragem” (tradução de João Barrento)

e para o francês como Renverse du Souffle (tradução de Jean-Pierre Lefebvre) tem um poema

que nos coloca diante da questão da alegoria e da verdade, temas importantes na poética de

Celan. O poema a que me refiro chama-se Ein Dröhnen 432 e vamos introduzir três traduções

do poema, duas em francês e uma em português. O nosso trabalho de leitor dos poemas de

Paul Celan vai de encontro ao trabalho de Edmond Jabès, leitor e amigo de Celan. Ele diz que

a leitura de Celan penetrava nele pela voz do poeta, que em várias ocasiões leu poemas em

sua casa. Isto facilitava a sua leitura. É como nos esclarece Jabès:

A voz (de Paul Celan), lendo em minha casa, para mim, alguns de seus poemas, não emudeceram. (...) Esta voz está no centro da leitura que faço de seus poemas; pois só posso ler Paul Celan traduzido; mas, com os meios de que disponho para abordar seus textos, com a ajuda da inesquecível voz do poeta, tenho quase sempre, a convicção de não trai-lo433.

Prossigo a leitura sem a voz de Celan no centro de minha leitura, mas com a

convicção (“quase sempre”) de poder me aproximar de seus poemas, somente a partir de suas

traduções. Vejamos as três traduções do poema:

“Coup de tonnerre:

c’est la Vérité même

qui s’avance

parmi les hommes au coeur d’un

tourbillon de métaphores”434. (trad. Martine Broda)

432 Ein Dröhnen: es ist/ die Wahrheit selbst/ unter die Menschen/ getreten/ mitten ins/ Metapherngestöber. In CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Op. cit. p. 132. 433 “La voz (de Paul Celan), leyendo en mi casa, para mi, algunos de sus poemas, no há enmudecido. (...) Esta voz está en el centro de la lectura que hago de sus poemas; pues solo puedo leer a Paul Celan traduzido; pero con los medios de que dispongo para abordar sus textos, con la ayuda de la inolvidable voz del poeta, tengo, casi siempre, la convicción de no traicionarlo”. JABÈS, Edmond. “La memoria de las palabras (Cómo leo a Paul Celan)” in Rosa Cúbica – Revista de Poesia. Inverno 1995-1996 (número 15-16) Paul Celan: rosa de nadie. Op. cit. p. 42. 434 BRODA, Martine. Tradução pessoal. “Paul Celan, la politique d’un poète après Auschwitz”. in Dans la main de personne, essai sur Paul Celan et autres essais. Op. cit. p. 155.

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“Un vacarme: c’est

la vérité même qui

est entrée,

parmi les hommes,

au beau milieu

des bourrasques de métaphores”435. (trad. Jean-Pierre Lefebvre)

“Um ribombar: é a

própria verdade

que chegou

às pessoas

no meio do

turbilhão de metáforas”436.

A verdade que interessa a Celan é cortante como um golpe de “trovão” (na

tradução de Martine Broda) e “pulveriza as metáforas em uma mutiplicidade turbilhante que

as anula, como na escrita tardia de Celan que tende cada vez mais em direção a alegoria”437.

Na nota de rodapé, Martine Broda esclarece que: “esta (a alegoria), nós o sabemos, é

profundamente de essência metonímica e não metafórica na medida em que há dispersão de

sentido, mesmo se ela pode ter aparência de metáforas” 438. E este “turbilhão de metáforas”

trazido por Celan vai de encontro da concepção benjaminiana da alegoria, que fala “de uma

erupção de imagens que recaem em uma chuva caótica de metáforas” 439. Além disso, observa

Gagnebin, a própria palavra alegoria “fala de outra coisa que não de si mesma (allos, outro, e

agorein, falar, em grego)” 440. E este falar de outra coisa traz a tona uma ineficácia da

alegoria, que nunca se basta a si própria, “necessitando recorrer sempre a um sentido exterior” 441.

Na figura alegórica, como já vimos, as coisas tem um olhar fixo de fragmentos.

Na alegoria falta uma aspiração à totalidade simbólica. “Desde Goethe e do romantismo

435 “CELAN, Paul. Renverse du Souffle. Traduit de l’allemand et annoté par Jean-Pierre Lefebvre. Op. cit. p. 102 436 CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Op. cit. p. 133. 437 “pulvérise le métaphores dans une multiplicité tourbillonnante qui les annule, comme dans l’ecriture tardif qui tend de plus en plus vers l’allégorie”. BRODA, Martine. “Paul Celan, la politique d’un poète après Auschwitz”. in Dans la main de personne, essai sur Paul Celan et autres essais. Op. cit. p. 156. 438 “celle-ci on le sait est en profondeur d’essence métonymique et non métaphorique dans la mesure où il y a dispersion du sens, même s’il peut y avoir en apparence des métaphores”. Ibidem. p. 156. 439 “ d’une eruption d’images qui retombent en une pluie chaotique de métaphores ”. BRODA, Martine. “Celan et Benjamin” in Dans la main de personne, essai sur Paul Celan et autres essais. Op. cit. p. 136. 440 GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin. Op. Cit. p. 41. 441 Ibidem. p. 41.

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alemão, o símbolo é sinônimo de totalidade, de clareza e de harmonia” 442, diz Jeanne Marie

Gagnebin. Na leitura dos teóricos românticos, se colocamos em uma balança a alegoria junto

com o símbolo, a alegoria vai ser considerada “demasiadamente leve”, diz Benjamin. A

alegoria vai ser recusada por estes teóricos também por ter um caráter obscuro e por ser

ineficiente. No livro Origem do drama barroco alemão, há uma citação importante de

Benjamin que nos interessa aqui especialmente porque mostra a distância que existe entre o

símbolo e a alegoria. No texto, ele cita Friedrich Creuzer em seu estudo sobre o símbolo e a

mitologia, que mantém uma posição romântica: “À alegoria (Sinnbild) alemã falta totalmente

aquela dignidade altamente significativa. Por isso, deve ser restrita à esfera inferior, e

totalmente excluída de sentenças simbólicas” 443. É claro que aqui não estamos pensando em

uma inferioridade da alegoria, mas esta citação serve para pensar a total exclusão simbólica

que a alegoria tem. E, para Benjamin, nos tempos de hoje: “do primado da coisa sobre a

pessoa, do fragmento sobre a totalidade, a alegoria, por isso mesmo, seja o pólo oposto do

símbolo, enfrentando-o com poder igual” 444.

Para Georges Didi-Huberman,

a forma por excelência na qual Benjamin via a possibilidade de produzir imagens dialéticas como instrumento de conhecimento será a forma alegórica, particularmente considerada sob o ângulo de seu valor crítico (por diferença ao símbolo) e “desfigurativo” (por diferença com a representação mimética)445.

Alem disso, lembra Didi-Huberman, no pensamento benjaminiano é “a

desfiguração das coisas que as transformam em algo de alegórico” 446. A alegoria, em

Benjamin, era mantida em uma dupla dimensão de pathos, acrescenta Did-Huberman.

Seguindo o raciocínio deste autor, vemos, “de um lado, uma espécie de melancolia que

correspondia segundo suas próprias palavras (de Benjamin), a implicação fatal de um

elemento de perda no exercício do olhar; a alegoria tornava-se então um signo de luto” 447. De

outro lado, uma espécie de ironia vinha tentar ultrapassar esse sentimento de perda. Uma

ironia critica que se opunha a posição metafísica ou religiosa que propunha o “desvelamento

puro e simples, ou então a revelação definitiva” 448. A ironia traz a tempestade que levanta a

442 Ibidem. p. 41. 443 BENJAMIN, Walter. Documentos de Cultura. Documentos de barbárie. (Escritos Escolhidos). Seleção e apresentação Willi Bolle. Op. cit. p. 38. 444 Ibidem. p. 38 445 HUBERMAN-DIDI, George. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998. p. 185. 446 Ibidem. p. 185 (citação retirada de Zentralpark de Walter Benjamin, p. 227). 447 HUBERMAN-DIDI, George. O que vemos, o que nos olha. Ibidem. p. 185. 448 Ibidem. p. 185.

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cortina “diante da ordem transcendental da arte” 449 fazendo um movimento de desvelamento

e de mistério. A ironia e a melancolia estão presentes no conceito de alegoria, em um duplo

movimento, sempre tendo “um sentido agudo da perda” 450.

Desde o livro A Rosa de Ninguém, Celan caminha em direção à alegoria, fazendo

o significante “rosa” deslizar (metonimicamente) infinitas significações. O que interessa neste

deslizamento é a tensão que existe entre o poema e a história. No caso do vocábulo “rosa”,

por exemplo, todo o conteúdo histórico que ela carrega, inclusive, na referência à Rosa de

Ninguém, que fala da ausência de Deus. Tanto quanto Benjamin, Celan vai relacionar a obra

(o poema) com a história. O importante é que os dois autores respeitam a função essencial da

obra: a de fazer relações com a história preservando a possibilidade de se “descolar do tempo

e do espaço históricos em que foi produzida” 451.

Em resposta a uma enquete da livraria Flinker de Paris, em 1958, Celan diz que a

poesia alemã segue um caminho diferente da poesia francesa. Segundo nota do tradutor esta

enquete dirigia-se a personalidades da Filosofia e da Literatura, com o intuito de obter

informações sobre os seus trabalhos e projetos em curso. As palavras do poeta nos falam um

pouco do caminho da poesia alemã:

trazendo na memória o que há de mais sombrio, tendo à sua volta o que há de mais problemático, por mais que atualize a tradição em que se insere, ela já não consegue falar a linguagem que alguns ouvidos benevolentes parecem ainda esperar dela. A sua linguagem tornou-se mais sóbria, mais factual, desconfia do “belo”, tenta ser verdadeira.452

Celan, ainda nesta resposta à livraria Flinker, diz estar procurando a sua expressão

no campo do visual:

não perdendo de vista a policromia de uma pretensa atualidade – uma linguagem ‘mais cinzenta’, uma linguagem que, entre outras coisas, também quer ver a sua ‘musicalidade’ situada em um lugar onde ela já não tenha nada em comum com aquela ‘harmonia’ que, mais ou menos despreocupadamente, se ouviu com o que há de mais terrível, ou ecoou a seu lado.453

449 Ibidem. p. 185. 450 Ibidem. p. 187. 451 ROSEN, Charles. Poetas românticos, críticos e outros loucos. São Paulo; Ateliê Editorial, 2004. p. 162. 452 CELAN, Paul. “Resposta a um inquérito da Librarie Flinker, Paris” in Arte poética,O meridiano e outros textos. Op. cit. p. 29. 453 CELAN, Paul. Ibidem. p. 30.

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Linguagem cinzenta, de cinzas, sem esperanças, “baseada na memória do fogo, na

palavra que renasce de suas cinzas para voltar a arder” 454. Este renascimento nos leva a

pensar na questão da morte roubada. A poeta Nelly Sachs, muito próxima a Celan, falando de

Auschwitz, diz que “foi a própria morte que foi roubada daqueles que morrerram e foram

exterminados”455. Esta morte roubada foi afirmada por muitos outros autores, entre eles,

Primo Levi e Jean Améry, e fala de um desaparecimento da morte. A partir desta experiência

de Auschwitz, podemos falar de um roubo, não só da morte, mas também do corpo. No

poema “Fuga da morte”, Celan fala deste corpo sem lugar nos versos “cavamos um túmulo

nos ares aí não ficamos apertados”. Vale lembrar aqui Artaud que falou do corpo roubado por

Deus e também pela medicina. Celan, enquanto sobrevivente, recolheu rastros destas mortes,

seus resíduos e suas cinzas e pode testemunhar, através da sua palavra o que era da ordem do

inominável. Este ato do poeta busca restituir “pela palavra, a figura roubada da morte” 456.

454 MASSOT, Josep. Noticias sobre Celan no Jornal digital espanhol La Vanguardia digital no site www.lavanguardia.es . 455 Cito: “c’est la mort même qui a été volée à ceux qui mouraient et furent exterminés”. TEIXEIRA, Vincent. Maurice Blanchot et Paul Celan, Voix sans visage, voix du silence. (Introdução. Retirada do site sobre Maurice Blanchot: www.mauriceblanchot.net . 456 “par la parole la figure volée de la mort”. Ibidem.

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7. CONCLUSÃO

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A correspondência de Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange carrega importantes

questões literárias. Pois, parte deste ponto onde escrever traduz-se na imagem extrema, como

um caminhar no fio da escrita tendo o céu como abismo. As passagens ao poético destacadas

no texto da dissertação, indicam toda a riqueza da correspondência de um escritor com um

não-escritor (neste caso aqui Gisèle). Como Kafka, em sua correspondência a Felice, Celan

produz várias passagens ao poético nesta troca epistolar com Gisèle. Um dos pontos que nos

interessou, especialmente, foi a questão da invenção do Dicionário Celan. Nesta questão que

introduz o cicatricement, a cicatriz sempre em movimento, traduz-se seu estilo poético: uma

“escrita de sombras sobre as pedras.”

As passagens ao poético pinçadas neste nosso estudo, comprovam que a poesia de

Celan se constrói não só a partir da experiência, da leitura e da escrita, mas também a partir

desta troca epistolar; fonte de matéria de escrita. A correspondência entre Celan e Gisèle

revela ao leitor o trabalho poético entrelaçado com a vida do poeta, nos demonstrando que a

questão da bio-grafia, destacada nesta dissertação, é pertinente para refletirmos sobre o que

chamamos, junto de Roger Laporte e também de Paul Celan, de “escrita de vida”.

Como vimos no primeiro capítulo, a bio-grafia fala do poema e do homem.

Acrescentamos que a vida do homem não deve ser separada da escrita. Então, acompanhando

a reflexão de Roger Laporte e Marko Pajevic, a vida só chega com a escrita e como escrita, a

saber, com o ato de escrever. Escrever, nessa concepção apresentada por nós neste estudo, é

viver. Retomo aqui uma carta de Celan escrita ao amigo Erich Einhorn que diz: “Eu jamais

escrevi uma linha que não tivesse a ver com a minha existência” 457. Além disso, para o poeta,

a troca epistolar, especialmente com Gisèle, tinha um valor enorme, pois ele não se sentia

tendo uma pátria nem uma língua para sustentá-lo. O poeta habitava um país que ele chamava

de Celanie. A correspondência tinha, portanto, um valor de sustentação de vida e de escrita.

Paul Celan, nas palavras de Jacques Dupin, chegou muito longe “na escavação de

sua vida” 458, e na exploração do espaço da poesia levando em si “o magnetismo do abismo

captado na flor da terra” 459. Abismo que o acompanhou durante todo o seu percurso poético.

Celan, no discurso “O Meridiano” cita a imagem construída por “Lenz” de

Büchner que dizia: “...mas às vezes era-lhe desagradável não poder andar de cabeça para

457 “À voir les choses que j’ai jetées là sur le papier, tu sauras sans doute où j’en suis de ma vie et de mes pensées. (Je n’ai jamais écrit une ligne qui n’êut à voir avec mon existence)” Correspondance Paul Celan/ Erich Einhorn”. Revista Europe número 861-862/ Janvier-Février 2001. Op. cit. p. 57. 458 “excavación de sua vida”. DUPIN, Jacques. “Paul Celan” In ROSA CÚBICA – Revista de Poesia. Inverno 1995-1996 (número 15-16) Paul Celan: rosa de nadie. Op. cit. p. 13. 459 “magnetismo del abismo captado a flor de tierra.”Ibidem. p. 13.

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baixo” 460. E prossegue fazendo a relação do caminhar de Lenz com o abismo: “Quem anda de

cabeça para baixo, minhas Senhoras e meus Senhores, quem anda de cabeça para baixo tem o

céu por abismo debaixo de si” 461. Desta forma, ele mostra sua implicação com esta

permanente experiência de confrontação diante do mundo e diante dos homens de seu tempo.

A experiência poética da data, considerada por nós como uma passagem ao

poético, conta e reconta as datas importantes para o poeta. Demonstramos a partir de sua troca

epistolar com Gisèle, a crucial importância de manter viva a memória das datas.

A poesia de Paul Celan diz de uma experiência, que acontece com o ato poético,

em sua singularidade. Um ato singular onde o poeta escreve o que é do campo do inomeável.

No entanto, sua escrita parte de um encontro faltoso, na medida em que os acontecimentos

que atravessam sua poética apresentam-se como questões impossíveis de simbolizar.

Paul Celan escreve uma carta, que não envia, mas também não destrói, para o

poeta René Char, que fala de “pedaços destacados” do seu “eu”. Esta carta nos lançou uma

questão interessante para refletirmos sobre o “eu” e sobre o Je. O “eu” (moi) foi pensado, na

referência à pessoa como totalidade, sinalizando a busca de Celan pelo encontro consigo

mesmo. Busca que resultou em fracasso. O poeta não escreve a partir de seu “eu”, mas em

uma travessia onde estão implicados o desconhecimento e o inconsciente. A questão do “eu”

trazida pelo poeta é esclarecida pela noção do desconhecimento (méconnaissance) que vai

implicar o sujeito (Je) de que fala Rimbaud, em sua fórmula “Eu é um outro”.

Destacamos, nesta disertação, o estudo sobre o luto e a melancolia a partir de

Sigmund Freud e Walter Benjamin. O nosso intuito não foi aproximar Paul Celan da estrutura

psíquica psicótica, mas enfatizar uma poética da melancolia, ou seja, o conteúdo literário que

a melancolia porta a partir dos estudos de Benjamin.

Jacques Lacan escreve algo novo a respeito da psicose de Schreber, já tão

estudada no meio psicanalítico. Ele lança sua pergunta: O que falta aqui ao louco, por mais

escritor que ele seja? E prossegue trazendo uma diferenciação precisa entre o chamado louco

e o poeta: “(...) Se Schreber é com toda certeza um escritor, não é um poeta. Schreber não nos

introduz numa dimensão nova da experiência. Há poesia toda vez que um escrito nos introduz

num mundo diferente do nosso” 462. Estabelece-se com o leitor uma relação fundamental, pois

a poesia irá atingir o leitor e convidá-lo a participar do poema. Lacan ainda diz que a poesia

faz “com que não possamos duvidar da autenticidade da experiência de São João de la Cruz,

460 CELAN, Paul. “O Meridiano”. In Arte Poética. O Meridiano e outros textos. Op. cit. p. 53. (Referência de Celan ao texto “Lenz” de Georg Büchner). 461 Ibidem. p. 53. 462 LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 3. as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1992. p. 94.

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nem da de Proust ou de Gérard de Nerval” 463. Também a poesia de Paul Celan produz o

mesmo efeito de autenticidade destes autores. O sujeito poeta, radicalmente diferente do

sujeito dito psicótico, estabelece uma nova relação simbólica com o mundo. Nas palavras de

Lacan: “a poesia é criação de um sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica

com o mundo. Não há absolutamente nada disso nas Memórias de Schreber” 464. Em Paul

Celan encontramos, além da experiência simbólica, uma experiência com o real, como já foi

trabalhado nesta dissertação. Uma poesia que é escrita trazendo alguma coisa do real, que

toca o poeta em sua experiência.

A questão da melancolia perpassa todo o caminho poético do poeta. Desde os seus

poemas iniciais, Celan fala da melancolia, em tom negro. Quando fica sabendo da morte da

mãe, por exemplo, sente remorso de estar vivo e faz alguns poemas, com o coração “negro de

melancolia” na travessia de juventude. Nas cartas, “o peso melancólico” suportado de muitas

maneiras, marcava um “ritmo pendular”. Em seu poema “Todesfuge” (“Fuga da morte”) a

melancolia comparece marcando o passo. Nos versos iniciais, “Leite negro da madrugada

bebemo-lo ao entardecer / bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite/ bebemos

e bebemos”, encontramos a referência à morte conforme já falamos. No entanto, também

lemos nas palavras “leite negro da madrugada”, deste verso inicial que percorre todo o poema,

a marca da melancolia. “Leite negro” é também o “granito preto da melancolia” do poema

“Do azul” que fala deste traço melancólico presente na poética de Paul Celan.

Na melancolia, o sujeito se defronta com situações impossíveis de serem

simbolizadas. O problema é que não há marcas deste fora-simbólico. Assim, o que não veio à

luz do simbólico surge no real e o sujeito diante disto fica com uma impossibilidade de se

dirigir à realidade. Há um movimento de esvaziamento do sujeito “que o faz escavar seu

próprio vazio” 465. O vazio escavado pelo poeta, repleto de real, encontra o “ponto de poesia”

para trazer à tona um poema. Nas palavras de Celan: “O escrito cava-se” 466. E o poeta que

escava os “fatos” que o atingem, ali “onde a memória se inflama” 467, trabalha com camadas

que precisam ser cautelosamente exploradas para também trazer outras camadas que, ficaram

fora de simbolização, mas que foram atravessadas anteriormente pelo real.

463 LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 3. as psicoses. Op. cit. 94. 464 Ibidem. p 94. 465 LAMBOTTE, Marie-Claude. O Discurso melancólico. Op. cit. p. 87. 466 CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Op. cit. p. 129. 467 Ibidem. p. 131.

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8. BIBLIOGRAFIA DE PAUL CELAN

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8.1 EM TRADUÇÃO FRANCESA CELAN, Paul. Choix de poèmes: augmenté d’un dossier inédit de traductions revues par Paul Celan. Trad. et présentation par Jean-Pierre Lefebvre. Paris: Gallimard, 1999. CELAN, Paul. Contrainte de lumière [Lichtzwang]. Trad. De Bertrand Badiou et Jean-Claude Rambach. Paris : Belin, 1989. CELAN, Paul. De seuil en seuil. [Von Schwelle zu Schwelle] Trad. de Valérie Briet. Paris: Christian Bourgois Editeur, 1991. CELAN, Paul. “Discours de Brême”. In Poèmes. Trad. de John E. Jackson. Paris: Editions Unes, 1987. p. 15-17 CELAN, Paul. Enclos du temps – Zeitgehöft. Trad. de Martine Broda. Paris: Clivages, 1985. CELAN, Paul. Entretien dans la montagne. Trad. de John E. Jackson e André du Bouchet. Paris : Fata Morgana, 1996. CELAN, Paul. Grille de parole [Sprachgitter]. Trad. de Martine Broda. Paris: Christian Bourgois Editeur, 1991. CELAN, Paul. La rose de personne [Die Niemandsrose]. Trad. de Martine Broda. Paris: José Corti, 2002. CELAN, Paul. Le Méridien. Trad. de André du Bouchet. Paris: Fata Morgana, 1994. CELAN, Paul. Le Méridien et autres proses. Trad. de Jean Launay. Paris: Seuil, 2002. CELAN, Paul. Part de neige [Schneepart]. Trad. De Fabrice Gravereaux, Michael Speier e Rosella Benusiglio-Sella. In Po&sie n. 21, 1982,. p. 3-46. CELAN, Paul. Pavot et memóire [Mohn und Gedächtnis]. Trad. de Valérie Briet. Paris: Christian Bourgois Editeur, 1987. CELAN, Paul. Renverse du souffle [Atemwende]. Trad. de Jean-Pierre Lefebvre. Paris: Seuil, 2003.

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8.2 EM PORTUGUÊS CELAN, Paul. A morte é uma flor. Poemas do espólio. Trad. de João Barrento. Lisboa, 1998. CELAN, Paul. Arte Poética, O Meridiano e outros textos. Lisboa: Editora Cotovia Ltda., 1996. CELAN, Paul. Cristal. São Paulo: Iluminuras, 1999. CELAN, Paul. Sete Rosas Mais Tarde. Lisboa: Edições Cotovia Ltda, 1993.

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9. BIBLIOGRAFIA

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