Passeio Noturno

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A FAMÍLIA PÓS-MODERNA NO CONTO “PASSEIO NOTURNO” DE RUBEM FONSECA. Silvana Perrella Brito Mestranda em Letras - orientadora: Helena Bonito Couto Pereira INSTITUIÇÃO: Instituto Presbiteriano Mackenzie. RESUMO: Este trabalho pretende fazer uma análise, à luz da pós-modernidade, de uma família de classe média alta representada no conto “Passeio Noturno” de Rubem Fonseca. Considerando a família uma das instituições divinas, pela qual o Senhor oferece promessas de bênçãos, esse conto é uma oportunidade de se refletir a respeito do que a família tem se tornado. O conto narra a trajetória de um empresário que sai a noite com seu carro importado, um jaguar, para atropelar pessoas pobres e indefesas, como forma de aliviar o estresse do dia-a-dia; enquanto isso, sua família está envolvida em futilidades, sem desconfiar, ou pelo menos se importar, com os objetivos dos passeios noturnos desse chefe da família. Vê-se, então, a alienação, o isolamento e a fragmentação do sujeito pós-moderno na célula básica da formação da sociedade, a família. ABSTRACT: The present study intends to analyze, in post-modernity light, a high middle class family represented in Rubem Fonseca's story " Passeio Noturno." Considering the family one of the divine institutions, from which the Lord offers promises of blessings, this story is an opportunity to reflect about, and to contemplate, what the family is turning to. The story narrates the trajectory of a businessman who goes out at night with his imported car, a Jaguar, to run over poor and defenseless people, as way to relieving the daily stress; meanwhile, his family is involved in trivialities, without distrusting, or at least caring about, with the objectives of his night “walks”. Then, the

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Transcript of Passeio Noturno

  • A FAMLIA PS-MODERNA NO CONTO PASSEIO NOTURNO DE RUBEM FONSECA.

    Silvana Perrella Brito

    Mestranda em Letras - orientadora: Helena Bonito Couto Pereira

    INSTITUIO: Instituto Presbiteriano Mackenzie.

    RESUMO:

    Este trabalho pretende fazer uma anlise, luz da ps-modernidade, de uma famlia

    de classe mdia alta representada no conto Passeio Noturno de Rubem Fonseca.

    Considerando a famlia uma das instituies divinas, pela qual o Senhor oferece

    promessas de bnos, esse conto uma oportunidade de se refletir a respeito do

    que a famlia tem se tornado. O conto narra a trajetria de um empresrio que sai a

    noite com seu carro importado, um jaguar, para atropelar pessoas pobres e

    indefesas, como forma de aliviar o estresse do dia-a-dia; enquanto isso, sua famlia

    est envolvida em futilidades, sem desconfiar, ou pelo menos se importar, com os

    objetivos dos passeios noturnos desse chefe da famlia. V-se, ento, a alienao, o

    isolamento e a fragmentao do sujeito ps-moderno na clula bsica da formao

    da sociedade, a famlia.

    ABSTRACT: The present study intends to analyze, in post-modernity light, a high middle class

    family represented in Rubem Fonseca's story " Passeio Noturno." Considering the

    family one of the divine institutions, from which the Lord offers promises of blessings,

    this story is an opportunity to reflect about, and to contemplate, what the family is

    turning to. The story narrates the trajectory of a businessman who goes out at night

    with his imported car, a Jaguar, to run over poor and defenseless people, as way to

    relieving the daily stress; meanwhile, his family is involved in trivialities, without

    distrusting, or at least caring about, with the objectives of his night walks. Then, the

  • alienation, the isolation and the post-modern person's fragmentation can be seen in

    the basic cells of the society formation, the family.

    A FAMLIA PS-MODERNA NO CONTO PASSEIO NOTURNO DE RUBEM FONSECA

    Este trabalho pretende fazer uma anlise, luz da ps-modernidade, de uma

    famlia de classe mdia alta representada no conto Passeio Noturno1 de Rubem

    Fonseca; mostrando a crtica, a ironia, a fragmentao do sujeito ps-moderno e o

    hiper-realismo grotesco dentro de uma sociedade massificada. Considerando a

    famlia uma instituio divina e fundamentando esta anlise em conceitos propostos

    por tericos da ps-modernidade, pretende-se uma reflexo sobre o que tem se

    tornado a famlia em algumas situaes que, embora possivelmente pouco

    freqentes, so bastante significativas.

    O conto narra as aventuras de um executivo pertencente a classe mdia alta

    do Rio de Janeiro , que sai todas as noites para dar um passeio com a finalidade

    de relaxar as tenses de um dia rduo de trabalho, depois de ter jantado com a

    esposa e os filhos. O ponto alto desse passeio se d quando ele atropela vtimas

    indefesas com seu carro importado, deixando-as mortas em ruas desertas, voltando

    satisfeito e relaxado para casa. Homem ou mulher? Realmente no fazia grande

    diferena, (...) Ento vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos

    emocionante (FONSECA, 2004, p.244). Esse conto um conto urbano que critica a

    sociedade de massa. Essa crtica, que se estende por todo o conto, tanto na Parte

    I quanto na Parte II, ajuda a revelar como se constri a ironia, a partir da qual so

    questionados os valores estabelecidos. Nesse conto, o discurso irnico do narrador

    leva ao questionamento de determinado modelo de instituio, a famlia, pois o

    impulso ps-moderno no buscar nenhuma viso total. Ele se limita a questionar.

    (HUTCHEON, 1991, p.73).

    1 Conto no Anexo 1

  • O consumismo e a futilidade so as caractersticas da famlia apresentada no

    conto.

    A sociedade de consumo , a um s tempo, sofisticada e brbara. Imagem do caos e da agonia de valores que a tecnocracia produz num pas de Terceiro Mundo a narrativa brutalista de Rubem Fonseca que arranca sua fala direta e indiretamente das experincias da burguesia carioca. (BOSI, 1997, p.17).

    A me, nessa famlia, alcolatra. Ao chegar do trabalho, o narrador assim

    se refere a ela: Minha mulher, jogando pacincia na cama, um copo de usque na

    cabeceira (FONSECA, 2004, p.242). No menos irnica a referncia aos filhos

    que, embora adultos, vivem futilmente a suas vidas, e so apresentados ao leitor

    por sons, j que a famlia no se destaca pelo dilogo entre as pessoas: Minha filha

    no quarto dela treinando impostao de voz, a msica quadrifnica do quarto do

    meu filho (FONSECA, 2004, p.242).

    O autor coloca em foco um modelo de famlia egosta, no qual cada pessoa

    est envolvida apenas com os seus interesses. Seus laos esto baseados nas

    relaes financeiras de uma famlia doente e desestruturada, na qual o objetivo ter

    dinheiro, posio social, e bens materiais. Pela ironia com que o relato chega at o

    leitor, podemos nos pergunta, se dessa forma seria possvel atingir a felicidade:

    Meu filho pediu dinheiro quando estvamos no cafezinho, minha filha me pediu

    dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nos tnhamos conta bancria

    conjunta (FONSECA, 2004, p. 243).

    Vivendo num padro de vida muito elevado, a famlia extremamente

    consumista. Alis, o consumismo uma das marcas da sociedade de massa e ps-

    moderna. Tentando aliviar seus conflitos interiores, preencher as lacunas que ficam

    nas relaes e camuflar os vazios, essa sociedade se lana no mundo do consumo.

    Quando o protagonista quer sair, ele precisa manobrar porque Os carros dos

    meninos bloqueando a porta da garagem.... Outro sinal de riqueza mostrado de

    modo sucinto no cotidiano da famlia, pois, no jantar a copeira servia francesa...

    (FONSECA, 2004, 243).

  • Ao mostrar essa famlia, Rubem Fonseca lana um olhar para o passado,

    para a famlia que sempre foi considerada a base da sociedade, porque, afinal, o

    ps-moderno no nega tanto (o passado) nem to utpico (quanto ao futuro) [...]

    Ele incorpora seu passado dentro do prprio nome e procura, parodicamente,

    registrar sua crtica com relao a esse passado. (HUTCHEON, 1991, p.72). Ao

    olhar para esse modelo estabelecido de famlia, ele tenta demonstrar quantas

    mudanas negativas e degradantes ocorreram em tempos recentes.

    Com a desestruturao da famlia enquanto instituio, e de seus membros

    como indivduos que no se comunicam efetivamente entre si, o conto expe o

    sujeito ps-moderno, que se tornou isolado, fragmentado e, ao mesmo tempo,

    massificado. Esse sujeito perdeu as suas referncias enquanto sujeito. O

    personagem de Passeio Noturno no tem nome, ele o narrador que conduz o

    relato em primeira pessoa. Ele visto por outras personagens, hipoteticamente,

    atravs do cargo que ocupa: industrial?; traficante? (FONSECA, 2004, p. 248). As

    pessoas de sua famlia tambm no tm nome; elas so representadas numa

    relao de posse: minha mulher; meu filho; minha filha (FONSECA, 2004, 243).

    A nica personagem que tem nome no conto no da famlia; ngela, uma

    jovem cujo nome faz referncia a anjo, mas cuja atividade no nada angelical. Ela

    a prostituta que aborda o executivo na rua, ela no faz parte da famlia. Assim

    como ocorre no ambiente familiar, tambm fora de casa as relaes do personagem

    se baseiam em interesse. ngela tem interesse no dinheiro e bens de seu cliente, e

    ela nem de longe suspeita que ele tem interesse nela como vtima. O narrador

    proporciona aqui uma viso irnica da sociedade: a jovem se interessa pelo carro e

    no pelo sujeito; ser o objeto de desejo de ngela aquilo que a atrai, que a seduz,

    o instrumento de sua destruio. Sem imaginar o desfecho violento que o

    protagonista prepara para o breve caso entre ambos, ela diz ironicamente ao

    protagonista: E voc no l essas grandes coisas. O teu carro melhor do

    voc... (FONSECA, 2004, p.249). Essa ironia muito presente na sociedade

    fragmentada. Buscam-se bens materiais para suprir as necessidades emocionais e

    espirituais das quais as personagens esto esvaziadas (no tm sequer noo

    dessa falta), e essa busca obsessiva pode conduzir aos piores resultados possveis

    para o sujeito.

    Esse sujeito ps-moderno solitrio e no busca relacionar-se com as

    pessoas: Fui biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como

  • sempre no fiz nada (FONSECA, 2004, p. 243). Ele finge trabalhar para no

    estabelecer contato pessoal com a prpria famlia, pois seu relacionamento mais

    ntimo e prazeroso com seu carro. o que lhe traz emoes e ajuda a preencher

    seu vazio: Ao ver os pra-choques salientes do meu carro, o reforo especial duplo

    de ao cromado, senti o corao bater apressado de euforia (FONSECA, 2004,

    p.244). Quando esse indivduo se relaciona com a sua vtima, ngela, ele no est

    interessado na pessoa, mas sim no ato que cometer depois. O que o motiva a

    violncia do atropelamento, e tudo o que acontece antes apenas induz o leitor a

    impresso, depois desfeita, de que ele se aborrecia com o relacionamento pessoal,

    mas estaria motivado para um relacionamento sexual com a jovem: Aquela

    situao, eu e ela dentro do restaurante me aborrecia. Depois ia ser bom

    (FONSECA, 2004, p.248). Trata-se de um personagem doentio, solitrio e alienado

    que, apesar disso, age como se suas condutas fossem normais. O protagonista de

    Passeio Noturno um caso extremo dos indivduos que, segundo Hall, so

    facilmente encontrados no mundo urbano ps-moderno: Encontramos, aqui, a figura

    do indivduo isolado ou alienado, colocado contra o pano-de-fundo do exilado ou

    alienado da multido ou da metrpole annima e impessoal (HALL, 2002, p.32).

    A personalidade desse sujeito ps-moderno no estvel, ela muda, se

    desloca, pois as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo

    social, esto em declnio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o

    individuo moderno... (HALL, p.7). No escritrio, o personagem central do conto o

    executivo atarefado: cheguei em casa carregando a pasta cheia de papis,

    relatrios, estudos, pesquisas, propostas e contratos (FONSECA, 2004, p.243). Em

    casa desempenha os papis de marido e pai, mesmo que tenha por funo somente

    abastecer a conta bancria de todos. Na rua, ele o assassino implacvel. Peguei

    a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a

    esquerda, um golpe perfeito... (FONSECA, 2004, p.244). Essa desestabilidade na

    personalidade faz que esse sujeito no tenha dramas de conscincia, pois ele no

    tem uma personalidade fixa, ele se adapta s situaes e, ento, o fato de ele matar

    pessoas para relaxar parece no exercer nenhum efeito negativo em sua vida

    diria: Vou dormir, boa-noite para todos, respondi, amanh vou ter um dia terrvel

    na companhia (FONSECA, 2004, p.244).

    Outra crtica, carregada de ironia, direcionada questo da impunidade,

    pois todos as noites o corpo de algum, da classe social menos favorecida, ficava

  • abandonado em algum lugar que podia ser na Lagoa, na curva do Cantagalo ou

    numa rua mal iluminada, cheia de rvores escuras (FONSECA, 2004, p.244).

    Nenhuma conseqncia disso chegava at o personagem, empresrio rico, que

    continuava saindo todas as noites para o seu passeio: noite, sa, como sempre

    fao (FONSECA, 2004, p. 245). Notemos que o advrbio sempre indica um fato

    que vem se repetindo constantemente. Mas, afinal, quem se importa com pobres e

    prostitutas?

    Muitos adversrios do ps-modernismo consideram a ironia como sendo fundamentalmente contrria seriedade, mas isso um equivoco e uma interpretao errnea sobre a fora critica da dupla expresso. [...] Na verdade talvez a ironia seja a nica forma de podermos ser srios nos dias de hoje(HUTCHEON, 1991, p. 62).

    A ironia tambm est presente no uso que o personagem central faz de seu

    carro, pois ele usa um veculo to caro e sofisticado para matar e intimamente s

    para os seus leitores, j que sua atividade ignorada pelos demais personagens

    se orgulha disso: Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade

    no uso daquelas mquinas (FONSECA, 2004, p. 244). Aqui o carro representa a

    posse, o dinheiro, que no torna o ser humano melhor, mas que ajuda a trazer

    tona todas as suas psicopatias. Talvez o narrador pretenda mostrar o quanto a

    classe mdia-alta abandonou valores autnticos e passou a dar importncia

    exclusivamente aos bens materiais, e ainda a desvalorizar a vida dos outros seres

    humanos. Estes, no caso do conto, tornam-se apenas objeto para diverso, j que o

    protagonista considera que mat-los no significa nada.

    O realismo de Rubem Fonseca mrbido, misturando a aparncia de normalidade burguesa com o instinto amoral. Seja no romance, seja no conto, o tom agressivo e ameaador, enquanto a linguagem, ao menos nos trabalhos iniciais, coloquial e cheia de terminologia convencionalmente proibida (SILVERMAN, 2000, p.120)

    So escritores como Rubem Fonseca que tentam retratar a cidade como um

    abismo urbano no qual seus heris so sujos, e a transgresso bem-sucedida. A

  • violncia, a impunidade, o descaso com a vida e o crime so facetas de uma

    realidade que passou a ser parte da rotina das pessoas nas cidades grandes. O

    autor mostra, de forma irnica, que a sociedade est massificada e no se importa

    com o que est acontecendo: A famlia estava vendo televiso. Eu sabia que ela

    no ia, era hora da novela. (FONSECA, 2004, p. 243-244).

    importante ressaltar que toda a crueldade de que se reveste a narrativa, ou

    o modo irnico como o conto se constri, tem por objetivo expor uma denncia,

    estabelecendo a discordncia do autor em relao a essa massificao e ao

    embrutecimento presente em todas as classes sociais, inclusive nas mais

    privilegiadas. Portanto o relacionamento do ps-moderno com a cultura de massa,

    no apenas de envolvimento; tambm de crtica (HUTCHEON, 1991, p.65).

    Aquilo que quero chamar de ps-modernismo na fico usa e abusa

    paradoxalmente das convenes do realismo e do modernismo, e o faz com o

    objetivo de contestar a transparncia dessas convenes... (HUTCHEON, 1991,

    p.79). Nesse sentido, Rubem Fonseca nos apresenta um hiper-realismo grotesco ao

    pintar com cores fortes os assassinatos cometidos por seu personagem.

    Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois osses [...] ( FONSECA, 2004, p.244); Bati em ngela com o lado esquerdo do pra-lama, jogando seu corpo um pouco adiante, e passei, primeiro com a roda da frente e logo atropelei com a roda traseira, um golpe de misericrdia, pois ela j estava liquidada, [...] (FONSECA, 2004, p. 249).

    Passeio Noturno Parte I e Parte II, retrata a sociedade urbana que se tornou

    niilista, perdendo seus valores, inclusive o valor da vida humana. , igualmente, um

    reflexo das famlias burguesas que se tornaram egostas, esvaziando-se do sentido

    de existirem como famlias, tornando o relacionamento entre seus membros algo

    mecnico e comercial. Com a ausncia de um relacionamento mais profundo dentro

    da famlia, que deveria ser o lugar onde as pessoas verdadeiramente se conhecem,

    o ser humano tornou-se alienado com relao aos outros seres humanos. A ironia

    a principal caracterstica ps-moderna adotada por Rubem Fonseca, como forma de

    crtica, mas ele recorre tambm fragmentao do sujeito ps-moderno, ao hiper-

  • realismo e massificao para mostrar cada indivduo como apenas mais um; mais

    um que mata ou mais um que morre. Seu desencanto com o mundo contemporneo

    se revela nessas pginas da mais amarga ironia, com o objetivo de despertar os

    seus leitores do entorpecimento em que se encontram.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS BOSI, Alfredo. Situao e Formas do Conto Brasileiro Contemporneo, in: O conto

    Brasileiro Contemporneo. SP: Cultrix, 1997.

    FONSECA, Rubem. Passeio Noturno, Parte I e Passeio Noturno Parte II, in: 64

    contos de Rubem Fonseca. SP: CIA das Letras, 2004.

    HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. 7 ed. RJ: DP&A, 2002.

    HUTCHEON, Linda. Potica do Ps-Modernismo. 3 ed. RJ: Imago, 1991.

    SANTOS, Jair Ferreira dos. O que Ps-Moderno. SP: Brasiliense, 2006.

    SILVERMAN, Malcolm. Protesto e o novo romance brasileiro. RJ: Civ.Brasileira,

    2000.

  • ANEXO 1

    PASSEIO NOTURNO PARTE I Rubem Fonseca

    Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papis, relatrios, estudos,

    pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando pacincia na cama, um

    copo de usque na mesa da cabeceira, disse, sem tirar os olhos das cartas, voc

    est com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto dela treinando

    impostao de voz, a msica quadrifnica do quarto do meu filho. Voc no vai

    largar essa mala? Perguntou minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho,

    voc precisa aprender a relaxar. Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde eu gostava de ficar isolado e como

    sempre no fiz nada. Abri o volume de pesquisa sobre a mesa, no via as letras e

    nmeros, eu esperava apenas. Voc no para de trabalhar, aposto que os teus

    scios no trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha

    mulher na sala com o copo na mo, j posso mandar servir o jantar?

    A copeira servia francesa, meus filhos tinham crescido, eu e minha mulher

    estvamos gordos. aquele vinho que voc gosta, ela estalou a lngua com prazer.

    Meu filho me pediu dinheiro quando estvamos no cafezinho, minha filha me pediu

    dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, ns tnhamos conta bancria

    conjunta.

    Vamos dar uma volta de carro? Convidei. Eu sabia que ela no ia, era hora da

    novela. No sei que graa voc acha em passear de carro todas as noites, tambm

    aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu que cada vez me apego

    menos aos bens materiais, minha mulher respondeu.

    Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu

    tirasse o meu carro. Tirei o carro dos dois, botei na rua, tirei o meu, botei na rua

    coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras

    todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os pra-choques salientes do meu

    carro, o reforo especial duplo de ao cromado, senti o corao bater apressado de

    euforia. Enfiei a chave na ignio, era um motor poderoso que gerava sua fora em

    silncio, escondido no cap aerodinmico. Sai, como sempre, sem saber para onde

  • ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas.

    Na avenida Brasil, ali no podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal

    iluminada, cheia de rvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente

    no fazia grande diferena, mas no aparecia ningum em condies, comecei a

    ficar tenso, isso sempre acontecia, eu at gostava, o alvio era maior. Ento vi a

    mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais

    fcil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinrio,

    coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia

    rvores na calada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma

    grande dose de percia. Apaguei as luzes do carro e acelerei, Ela s percebeu que

    eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-

    fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco

    mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os

    dois osses, dei uma guinada rpida para a esquerda, passei como um foguete

    rente a uma das rvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto.

    Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilmetros em onze segundos. Ainda deu

    para ver que o corpo todo desengonado da mulher havia ido parar, colorido de

    sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa do subrbio.

    Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mo de leve pelos

    pra-lamas, os pra-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro,

    igualavam a minha habilidade no uso daquelas mquinas.

    A famlia estava vendo televiso. Deu a sua voltinha, agora est mais calmo?

    Perguntou minha mulher, deitada no sof, olhando fixamente o vdeo. Vou dormir,

    boa-noite para todos, respondi, amanh vou ter um dia terrvel na companhia.

    PASSEIO NOTURNO PARTE II Rubem Fonseca

    Eu ia para casa quando um carro encostou no meu, buzinando

    insistentemente. Uma mulher dirigia, abaixei os vidros do carro para entender o que

    ela dizia. Uma lufada de ar quente entrou com o som da voz dela: No est mais

    conhecendo os outros?

  • Eu nunca tinha visto aquela mulher. Sorri polidamente. Outros carros

    buzinaram atrs dos nossos. A avenida Atlntica, s sete horas da noite, muito

    movimentada.

    A mulher, movendo-se no banco do seu carro, colocou o brao para direito

    para fora e disse, olha um presentinho para voc.

    Estiquei meu brao e ela colocou um papel na minha mo. Depois arrancou

    com o carro, dando uma gargalhada.

    Guardei o papel no bolso. Chegando em casa, fui ver o que estava escrito.

    ngela, 287-3594.

    noite, sa, como sempre fao.

    No dia seguinte telefonei. Uma mulher atendeu. Perguntei se ngela estava.

    No estava. Havia ido aula. Pela voz, via-se que devia ser a empregada. Perguntei

    se ngela era estudante. Ela artista, respondeu a mulher.

    Liguei mais tarde. ngela atendeu.

    Sou aquele cara do Jaguar preto, eu disse.

    Voc sabe que eu no consegui identificar o teu carro?

    Apanho voc s nove horas para jantarmos, eu disse.

    Espera ai, calma. O que foi que voc pensou de mim?

    Nada.

    Eu lao voc na rua e voc no pensou nada?

    No. Qual o teu endereo?

    Ela morava na Lagoa, na curva do Cantagalo. Um bom lugar.

    Estava na porta me esperando.

    Perguntei onde queria jantar. Ela respondeu que em qualquer restaurante,

    desde que fosse fino. Ela estava muito diferente. Usava uma maquilagem pesada,

    que tornava seu rosto mais experiente, menos humano.

    Quando telefonei da primeira vez disseram que voc tinha ido aula. Aula de

    qu?, eu disse.

    Impostao de voz.

    Tenho uma filha que tambm estuda impostao de voz. Voc atriz, no ?

    Sou. De cinema.

    Eu gosto muito de cinema. Quais foram os filmes que voc fez?

  • S fiz um, que est agora em fase de montagem. O nome meio bobo, As

    virgens desvairadas, no um filme muito bom, mas estou comeando, posso

    esperar, tenho s vinte anos.

    Na semi-escurido do carro ela parecia ter vinte e cinco.

    Parei o carro no Bartolomeu Mitre e fomos andando a p na direo do

    restaurante Mrio, na rua Ataulfo de Paiva.

    Fica muito cheio em frente ao restaurante, eu disse.

    O porteiro guarda o carro, voc no sabia? ela disse.

    Sei at demais. Uma vez ele amassou o meu.

    Quando entramos, ngela lanou um olhar desdenhoso sobre as pessoas

    que estavam no restaurante. Eu nunca havia ido quele lugar. Procurei ver algum

    conhecido. Era cedo e havia poucas pessoas. Numa mesa um homem de meia-

    idade com um rapaz e uma moa. Apenas trs outras mesas estavam ocupadas,

    com casais entretidos em suas conversas. Ningum me conhecia.

    ngela pediu um Martini.

    Voc no bebe? ngela perguntou

    s vezes.

    Agora diga, falando srio, voc no pensou nada mesmo quando eu te passei

    o bilhete?

    No. Mas se voc quer, eu penso agora, eu disse.

    Pensa, ngela disse.

    Existem duas hipteses. A primeira que voc me viu no carro e se

    interessou pelo me perfil. Voc uma mulher agressiva, impulsiva e decidiu me

    conhecer. Uma coisa instintiva. Apanhou um pedao de papel arrancado de um

    caderno e escreveu rapidamente o nome e o telefone. Alis, quase no deu para eu

    decifrar o nome que voc escreveu.

    E a segunda hiptese?

    Que voc uma puta e sai com uma bolsa cheia de pedaos de papel

    escritos com o seu nome telefone. Cada vez que voc encontra um sujeito num

    carro grande, com cara de rico e idiota, voc d o nmero para ele. Para cada vinte

    papelinhos distribudos, uns dez telefonam para voc.

    E qual a hiptese que voc escolhe? ngela disse.

    A segunda. Que voc uma puta, eu disse.

  • ngela ficou bebendo Martini como se no tivesse ouvido o que eu havia dito.

    Bebi minha gua mineral. Ela olhou para mim, querendo demonstrar sua

    superioridade, levantando a sobrancelha era m atriz, via-se que estava

    perturbada e disse: voc mesmo reconheceu que era um bilhete escrito s

    pressas dentro do carro, quase ilegvel.

    Uma puta inteligente prepararia todos os bilhetinhos em casa, dessa maneira,

    antes de sair, para enganar os seus fregueses, eu disse.

    E se eu jurasse a voc que a primeira hiptese a verdadeira. Voc

    acreditaria?

    No. Ou melhor, no me interessa, eu disse.

    Como que no interessa?

    Ela estava intrigada e no sabia o que fazer. Queria que eu dissesse algo que

    a ajudasse a tomar uma deciso.

    Simplesmente no interessa. Vamos jantar, eu disse.

    Com um gesto chamei o maitre. Escolhemos a comida. ngela tomou mais

    dois Martinis.

    Nunca fui to humilhada em minha vida. A voz de ngela soava ligeiramente

    pastosa.

    Eu se fosse voc no bebia mais, para poder ficar em condies de fugir de

    mim, na hora em que for preciso, eu disse.

    Eu no quero fugir de voc, disse ngela esvaziando de um gole o que

    restava na taa. Quero outro.

    Aquela situao, eu e ela dentro do restaurante, me aborrecia. Depois ia ser

    bom. Mas conversar com ngela no significava mais nada para mim, naquele

    momento interlocutrio.

    O que que voc faz?

    Controlo a distribuio de txicos na zona sul, eu disse.

    Isso verdade?

    Voc no viu o meu carro?

    Voc poderia ser um industrial.

    Escolhe a sua hiptese. Eu escolhi a minha, eu disse.

    Industrial.

    Errou. Traficante. E no estou gostando desse facho de luz sobre a minha

    cabea me lembra as vezes em que fui preso.

  • No acredito numa s palavra do que voc diz.

    Foi a minha vez de fazer uma pausa.

    Voc tem razo. tudo mentira. Olha bem para o meu rosto. V se voc

    consegue descobrir alguma coisa, eu disse.

    ngela tocou de leve no meu queixo, puxando meu rosto para o raio de luz

    que descia do teto e me olhou intensamente.

    No vejo nada. Teu rosto parece o retrato de algum fazendo uma pose, um

    retrato antigo, um desconhecido, disse ngela.

    Ela tambm parecia um retrato antigo de um desconhecido.

    Olhei o relgio.

    Vamos embora?, eu disse.

    Entramos no carro.

    s vezes a gente pensa que uma coisa vai dar certo e d errado, disse

    ngela.

    O azar de um a sorte do outro, eu disse.

    A lua punha na lagoa uma esteira prateada que acompanhava o carro.

    Quando eu era menino e viajava de noite a lua sempre me acompanhava, varando

    as nuvens, por mais que o carro corresse.

    Vou deixar voc um pouco antes de sua casa, eu disse.

    Por qu?

    Sou casado. O irmo de minha mulher mora no teu edifcio. No aquele que

    fica na curva? No gostaria que ele me visse. Ele conhece o meu carro. No h

    outro igual no Rio.

    A gente no vai se ver mais?, ngela perguntou.

    Acho difcil.

    Todos os homens se apaixonam por mim.

    Acredito.

    Voc no l essas grandes coisas. O teu carro melhor do que voc, disse

    ngela.

    Um completa o outro, eu disse.

    Ela saltou. Foi andando pela calada, lentamente, fcil demais, e ainda por

    cima mulher, mas eu tinha que ir logo para casa, j estava ficando tarde.

    Apaguei as luzes e acelerei o carro. Tinha que bater e passar por cima. No

    podia correr o risco de deix-la viva. Ela sabia muita coisa a meu respeito, era a

  • nica pessoa que havia visto o meu rosto, entre todas as outras. E conhecia tambm

    o meu carro. Mas qual era o problema? Ningum havia escapado.

    Bati em ngela com o lado esquerdo do pra-lama, jogando o seu corpo um

    pouco adiante, e passei primeiro com a roda da frente e senti o som surdo da

    frgil estrutura do corpo se esmigalhando e logo atropelei com a roda traseira, um

    golpe de misericrdia, pois ela j estava liquidada, apenas talvez ainda sentisse um

    distante resto de dor e perplexidade. Quando cheguei em casa minha mulher estava

    vendo televiso, um filme colorido, dublado.

    Hoje voc demorou mais. Estava muito nervoso?, ela disse.

    Estava. Mas j passou. Agora vou dormir. Amanh vou ter um dia terrvel na

    companhia.

    64 contos de Rubem Fonseca. SP: CIA das Letras, 2004

    ABSTRACT:REFERNCIAS BIBLIOGRFICASANEXO 1PASSEIO NOTURNO PARTE IRubem FonsecaPASSEIO NOTURNO PARTE IIRubem Fonseca