Patrimonio Cultural Imaterial e Povos Indigenas Baixa Resolucao

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IepCom apoio de vrias instituies, o Iep vem desenvolvendo um programa de aes educativas para a valorizao dos patrimnios culturais das comunidades indgenas com as quais trabalha, no Amap e norte do Par. Este livro apresenta conceitos bsicos para o reconhecimento e a salvaguarda do patrimnio cultural imaterial, ilustrados com exemplos dos grupos Tiriy, Katxuyana, Aparai, Wayana, Wajpi, Galibi do Oiapoque, Karipuna, GalibiMarworno e Palikur. Promover o reconhecimento desses grupos como detentores de formas de expresso cultural particulares e permanentemente recriadas, uma das metas do projeto Valorizao e gesto de patrimnios culturais indgenas, que o Iep desenvolve com apoio da Petrobrs. Acreditamos que a ampliao dos contextos valorativos desse patrimnio cultural indgena contribui aos esforos empreendidos por esses povos para seu fortalecimento cultural, social e poltico.

PATRIMNIO CULTURAL IMATERIAL E POVOS INDGENAS

Patrimnio Cultural Imaterial e Povos Indgenas

Iep2006

Realizao:

Instituto de Pesquisa e Formao em Educao Indgena

Apoio para a publicao deste livro:

Dominique Tilkin Gallois (organizadora)

Patrimnio Cultural Imaterial e Povos Indgenas Exemplos no Amap e norte do Par

Iep2006

2006. Iep

Coordenao, redao e edio: Dominique Tilkin Gallois Pesquisa complementar: Denise Fajardo Grupioni, Lux Boelitz Vidal Colaborao para a edio: Luis Donisete Benzi Grupioni, Lcia Szmrecsnyi Projeto grfico: Catherine Gallois Diagramao, capa e produo grfica: Ana Marconato - Prata Design Grfico Tratamento de imagens: Gabriela Menezes

SumrioApresentao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 I. O que patrimnio cultural imaterial? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 1. Como diferenciar material de imaterial? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 2. Alguns conceitos bsicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10 3. A transformao da noo de patrimnio na histria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 3.1 De patrimnio familiar a patrimnio nacional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 3.2 Aspectos da relao entre diversidade cultural e desenvolvimento . . . . . . . . . . . . 13 3.3 A criao da UNESCO, defensora da diversidade cultural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 4. Atualizando o conceito de cultura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 4.1 Vises estticas e fechadas de cultura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 4.2 As interaes e as inovaes culturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 4.3 A sustentabilidade do Patrimnio Imaterial depende de sua renovao . . . . . . . . . 22 28 28 36 40 46 52 58 58 60 64 72 73 75 77 79 82 82 83 84 86

II. Exemplos indgenas, no Amap e norte do Par . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Modos de conhecer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Modos de dizer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Modos de ver . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Modos de trocar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Modos de fazer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . III. Contextos e experincias de salvaguarda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1. Por que valorizar os patrimnios culturais indgenas? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. Estratgias em favor dos povos indgenas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Experincias de valorizao de culturas indgenas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. Como proteger bens imateriais? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.1 Quem se responsabiliza por um inventrio? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.2 Para quem documentar tradies culturais? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.3 Como registrar a origem e a transformao das tradies? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.4 Como documentar tradies vivas? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IV. Fontes de informao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1. Instrumentos internacionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2. Programas desenvolvidos pela UNESCO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3. Dispositivos legais e programas em consolidao no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4. Leituras recomendadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89 Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 Crditos das fotos e ilustraes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

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ApresentaoEste livro tem origem no trabalho que o Iep desenvolve junto aos povos indgenas que vivem no Amap e norte do Par. Esse trabalho visa promover o reconhecimento dos povos indgenas como detentores de expresses culturais particulares, permanentemente recriadas, e leva em considerao as profundas transformaes que vm afetando os contextos de produo e de transmisso de saberes tradicionais, na atualidade. Neste livro, tratamos de um campo relativamente novo: o do patrimnio cultural imaterial, ou intangvel. Na primeira parte, procuramos explicar como surgiu a atual poltica de preservao da UNESCO, que tambm est sendo adotada pelo governo brasileiro. Retraamos brevemente as mudanas conceituais na abordagem das chamadas culturas tradicionais e populares e ressaltamos aspectos que nos parecem promissores para a valorizao, interna e externa s prprias comunidades, das formas de pensamento, dos conhecimentos, das prticas culturais e das artes indgenas. Na segunda parte, ilustramos alguns mbitos do patrimnio cultural imaterial, a partir de exemplos dos Tiriy e Katxuyana, dos Wayana e Aparai, dos Wajpi e dos povos indgenas do Oiapoque. Na terceira parte, apresentamos uma breve discusso em torno de medidas adequadas para a salvaguarda do patrimnio cultural imaterial, citando algumas experincias e aes em curso, no Brasil e em outros pases. Na ltima parte, indicamos fontes de informao, para saber mais a respeito dos instrumentos e programas desenvolvidos no contexto das polticas nacionais e internacionais. Os exemplos selecionados para ilustrar os diferentes mbitos do patrimnio imaterial representam, evidentemente, uma frao muito pequena dos ricos acervos culturais dos grupos indgenas do Amap e norte do Par. No se trata, portanto, de um livro

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sobre as manifestaes culturais desses povos, mas sim da apresentao de alguns aspectos que nos parecem relevantes para uma primeira aproximao a esse vasto patrimnio ainda mal conhecido. Como j mostramos no primeiro livro do Iep, Povos indgenas no Amap e norte do Par (2003), os grupos que vivem hoje na regio de fronteira entre o Brasil, a Guiana Francesa e o Suriname se constituram a partir de redes de relaes histricas e de processos seculares de troca. Adotamos a mesma perspectiva neste livro, para evidenciar como, atravs dessa dinmica, muitos elementos culturais diferentes so compartilhados por todos os povos da regio. Se nos parece inadequado identificar e isolar patrimnios tnicos ou seja, patrimnios culturais isolados, como se fossem acervos de cada etnia ressaltamos como os componentes compartilhados por estes grupos so constantemente re-elaborados em contextos particulares, permitindo a cada grupo reconhecer e valorizar o que considera parte de seu prprio patrimnio cultural. Este livro no poderia ter sido elaborado sem o apoio da Petrobrs. Por meio do projeto Valorizao e gesto de patrimnios culturais indgenas no Amap e norte do Par, a equipe do Iep vem realizando atividades educativas em vrias aldeias da regio, com o objetivo de iniciar a formao de pesquisadores indgenas. Nosso objetivo que estes pesquisadores possam assumir, a mdio e longo prazo, os processos de produo, registro, seleo e difuso dos patrimnios orais e artsticos de seus grupos. Para algumas comunidades, o interesse recuperar conhecimentos e modalidades de transmisso ora em desuso, para outras a prioridade aprender formas novas de registro e difuso desses saberes. Com uma conscincia mais aguada da riqueza de suas prticas tradicionais, os jovens e adultos indgenas que participam desse programa de atividades preparam-se para gerir seu patrimnio cultural em acordo com os diferentes enfoques e interesses de suas comunidades.

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I. O que patrimnio cultural imaterial?1. Como diferenciar material de imaterial ? Para iniciar, convidamos o leitor a acompanhar a explicao oferecida por Joo Asiwefo Tiriy1, com apoio do desenho reproduzido abaixo:Patrimnio cultural imaterial, patrimnio material? tudo misturado! Para explicar, desenhamos um rapaz que est todo enfeitado. Desenhamos esse nosso parente enfeitado para a gente entender melhor onde est o patrimnio material e onde est o patrimnio imaterial. De um lado, colocamos o patrimnio material, do outro o imaterial. Todos ns sabemos que o imaterial a fonte do patrimnio material. Para ns, entu, fonte. Est na cabea desse rapaz que desenhamos, est no pensamento dele. Se ele no tiver esse conhecimento dentro dele, como que ele vai fazer os enfeites que ele est usando aqui, como que ele vai poder repassar para os filhos dele? O patrimnio imaterial o conhecimento que foi repassado para esse rapaz. o invisvel que est dentro, que comanda tudo. O conhecimento que ele tem para fazer os adornos que ele vai tecendo. Isso quer dizer que ele no deixou acabar o conhecimento.

Como sugere Joo Asiwefo Tiriy, para apreciarmos a riqueza dos patrimnios culturais indgenas, necessrio considerar essa mistura entre aspectos materiais e imateriais e, sobretudo, procurar as variadas fontes do conhecimento, para alm dos saberes tecnolgicos. No deveramos, portanto, abordar uma cultura pelo vis de seus modos de saber-fazer, como ainda fazem muitos livros escolares que caracterizam os povos indgenas a partir da simplicidade de sua cultura material: os ndios moram em casas de palha e no em casas de tijolo, eles tm arco e no armas de fogo, etc. At hoje, muitas pessoas continuam avaliando o grau de civilizao dos povos indgenas em funo de seu legado

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material s futuras geraes, contrapondo assim um nvel de tecnologia primitiva ao alto grau de desenvolvimento conquistado pelos povos ocidentais. Somada a essa deficincia evolutiva em termos tecnolgicos, temos tambm a caracterizao de suas sociedades como simples, dada a ausncia de Estado, de propriedade privada, de escrita, etc. Os primeiros colonizadores descreveram os ndios brasileiros como povos sem lei, sem f, sem rei. Aos olhos dos ocidentais, como disse o antroplogo Pierre Clastres, so sempre definidas como sociedades da falta. No por acaso, quando se concebe alguma sociedade indgena que se aproxime da civilizao, imediatamente aparecem os exemplos dos Astecas do antigo Mxico ou dos Incas do antigo Peru. Em acordo com esse tipo de avaliao preconceituosa, arraigada no senso-comum, os Astecas e os Incas seriam mais civilizados ou mais desenvolvidos que os grupos indgenas que vivem na Amaznia, por terem construdo pirmides, cidades e uma forma de organizao poltica centralizada prxima do que conhecemos hoje como estado. Essa comparao, que sempre associa povos com Estado a povos com tecnologia, ignora o imenso legado de modos de vida, de experincias e saberes de inmeros povos em todos os continentes que, como os grupos indgenas que vivem atualmente na Amaznia, apresentam formas de organizao social e cosmolgica extremamente complexas independentemente de terem produzido formaes estatais ou no. O que hoje denominamos povos indgenas ou nativos, tanto nas Amricas como na frica, sia, Oceania e inclusive na Europa, so sociedades que optaram por uma formao scio poltica na qual a existncia de um poder centralizado e hierarquizado como o Estado foi descartada histrica e filosoficamente. Esses povos representam 5% da populao mundial, num total de cerca de 350 milhes de pessoas. Hoje inseridos em estados nacionais com as mais diversas orientaes polticas, criaram e continuam produzindo diversificados conjuntos de saberes, que vem sendo incorporados ao que chamamos de cincia. Curiosamente, essa cincia ocidental apresenta ainda imensas dificuldades em reconhecer a propriedade intelectual dos povos indgenas sobre esses conhecimentos.

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Glossrio3Criatividade: capacidade inerente aos seres humanos de inventar significaes, modos de expresso e mundos imaginrios originais. Criador um membro de uma comunidade que atua na transformao e modificao das prticas sociais e das representaes. Formas de expresso oral: representaes e expresses pblicas da poesia, da histria, dos mitos e outras formas narrativas, alm da msica e do canto. Prticas sociais (ou usos): atividades que expressam conceitos, conhecimentos e competncias, em permanente transformao, vinculadas s relaes sociais, aos modos de tomada de deciso e s aspiraes da comunidade. Representaes: sinais visuais, sonoros, gestos e textos que identificam uma comunidade cultural ou, pelo menos, importantes aspectos de suas prticas sociais.

O reconhecimento dos valiosos sistemas de conhecimentos produzidos pelos povos indgenas um processo lento, que ainda est em curso. Dentre outros fatores histricos, a reviso da noo de cultura conduzida pela Antropologia, tem possibilitado a construo de instrumentos para que esse conjunto de saberes possa ser reconhecido pelos estados nacionais e por organizaes internacionais. Nesse processo de reviso, destaca-se a importncia que os patrimnios imateriais adquiriram na cena cientfica, onde se critica o excesso de foco dado at agora ao patrimnio material e aos saberes tecnolgicos. 2. Alguns conceitos bsicos A atual definio oficial de patrimnio cultural imaterial2 a seguinte:As prticas, representaes, expresses, conhecimentos e tcnicas assim como os instrumentos, objetos, artefatos e espaos culturais que lhes so associados que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, indivduos reconhecem como fazendo parte integrante de seu patrimnio cultural. Esse patrimnio cultural imaterial que se transmite de gerao em gerao constantemente recriado pelas comunidades e grupos em funo de seu entorno, de sua interao com a natureza e sua histria, e lhes fornece um sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo assim a promover o respeito pela diversidade cultural e a criatividade humana.

De acordo com essa definio, o patrimnio cultural imaterial se manifesta em particular nos seguintes mbitos: as tradies e expresses orais, incluindo a lngua como veculo do patrimnio cultural imaterial, dana, msica e artes da representao tradicionais, as prticas sociais, os rituais e eventos festivos,

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os conhecimentos e os usos relacionados natureza e ao universo, as tcnicas artesanais tradicionais. Adiante, voltaremos aos diferentes aspectos desta definio. Mas importante considerar que a atual conceituao do Patrimnio Cultural Imaterial inclui a dimenso social, sempre presente nos saberes e fazeres, como tambm inclui as interpretaes e transformaes que necessariamente acompanham a transmisso de saberes. 3. A transformao da noo de patrimnio na histria 3.1. De patrimnio familiar a patrimnio nacional A palavra patrimnio vem de pater, que quer dizer pai em latim, uma das lnguas faladas na antiguidade, na Europa. Essa idia de patrimnio como aquilo que se herda do pai se transformou, ao longo de muitos sculos, para designar tudo aquilo que uma famlia recebia de seus ancestrais. O tempo passou e, na Europa do sculo XVIII, a palavra patrimnio se estendeu para o domnio das cidades e das naes. Do ponto de vista de cada famlia, era importante cuidar de seu patrimnio para que este pudesse ser transmitido aos membros das prximas geraes. Da mesma forma, do ponto de vista do conjunto dos cidados de um pas, passou a ser considerado importante cuidar de um conjunto de bens histricos e artsticos, visto como propriedade de uma nao inteira. Isso aconteceu quando, em 1789, na Frana, grupos revoltados com os muitos privilgios das famlias reais e nobres resolveram lutar para derrubar o poder dos reis e criar um novo sistema de governo baseado em trs ideais que ficaram famosos no mundo inteiro: igualdade, fraternidade e liberdade. Os revolucionrios queriam tambm acabar com os castelos, monumentos e obras de arte representativas da monarquia que acabavam

Eventos festivos: reunio coletiva durante a qual eventos importantes para uma comunidade cultural so proclamados, celebrados, comemorados ou valorizados por meios diversos e habitualmente acompanhados de danas, msica e outras manifestaes. Artes da interpretao: alm da msica instrumental e vocal, da dana, os contos, a poesia cantada e outras prticas do espetculo, que testemunham da criatividade das comunidades. Espaos culturais (ou lugares): ambiente cultural produzido pelas praticas sociais, a partir do uso ou da apropriao de estruturas construdas, de espaos ou stios naturais. Cabe lembrar aqui que natureza e universo no so percebidos universalmente da mesma forma, nem so dados da natureza. Tornam-se suporte do patrimnio cultural na medida em que cada comunidade lhes atribui valores e significados diferenciados.

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de derrubar, para comear uma nova histria e criar uma nova tradio, a da Repblica. Foi em reao a essas idias to radicais que surgiu na Frana o primeiro movimento de proteo de um patrimnio nacional de que se tem notcia, por volta de 1830. Um grupo contrrio destruio do patrimnio deixado pelas famlias nobres, defendia que tudo que havia sido de propriedade desses nobres fosse apropriado como herana de todos os cidados franceses e, portanto, considerado como patrimnio da Nao. O que aconteceu na Frana se repetiu em vrios outros pases, que foram passando por mudanas radicais em seus modos de organizao social, poltica e econmica, quando formas tradicionais iam sendo substitudas por formas consideradas mais modernas. E foi nesse contexto que os governos perceberam que, se no fossem criadas instituies e polticas voltadas preservao de seu passado, as naes perderiam a memria de suas origens e de suas realizaes mais antigas. Com a adoo das primeiras prticas de conservao (como por exemplo a transformao de palcios privados em museus pblicos), os bens histricos e artsticos se tornavam smbolos nacionais que fomentavam sentimentos patriticos. At o comeo do sculo XX, o patrimnio nacional designava apenas bens materiais. A idia de um patrimnio cultural que no fosse feito apenas de monumentos, de esculturas e quadros e artistas famosos, mas tambm de saberes imateriais, nasce paralelamente ao surgimento da Antropologia. Um dos pais-fundadores da disciplina, Edward Tylor, foi o primeiro a propor uma definio de cultura que resume o pensamento antropolgico da poca. Segundo ele, cultura este todo complexo que inclui conhecimentos, crenas, arte moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hbitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade4. As polticas nacionais de proteo de patrimnios abriram caminhos novos durante as dcadas de 1900 a 1950, incorporando progressivamente no s alguns bens no-materiais, mas os conhecimentos e costumes tradicionais, ou seja, incorporando o que h de mais rico nas culturas humanas: os saberes, as prticas e os modos de criao cultural.

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Estava plantada a semente das atuais polticas em defesa desse tipo de patrimnio. Porm, muitos obstculos deveriam ser enfrentados para consolidar essas polticas. 3.2. Aspectos da relao entre diversidade cultural e desenvolvimento O surgimento de um conceito de patrimnio cultural imaterial, muito recente, deve ser entendido como parte de um longo processo de preocupao de diversos paises e instituies com a diversidade cultural. Um dos focos dessas preocupaes eram os efeitos homogeneizadores dos processos de desenvolvimento, inclusive dos programas educacionais conduzidos sem ateno s diversidade social, cultural e lingstica dos paises tidos como sub-desenvolvidos. Assim, durante muito tempo, as discusses centraram-se na difcil questo da relao entre desenvolvimento e padres culturais. Alguns pases do ocidente historicamente atriburam o sub-desenvolvimento ao suposto atraso cultural. Ou seja, consideravam que traos culturais no-ocidentais impediam o desenvolvimento. Por isso, defendiam que as diferenas culturais se dissolvessem atravs de processos de homogeneizao. Pouco importava que o resultado desse processo fosse o empobrecimento cultural dos povos no ocidentais. Tal viso etnocntrica ainda predomina na perspectiva dos que privilegiam o desenvolvimento tecnolgico como padro para a apreciao da qualidade de vida, relegando as sociedades menos integradas ao modelo das sociedades industrializadas ao subdesenvolvimento. A mudana de viso da ONU Organizao das Naes Unidas a esse respeito resultou da luta dos pases em desenvolvimento, que contaram com contribuies significativas dos povos nativos. Em outra escala, um processo semelhante ocorreu no Brasil na dcada de 1970, quando lderes indgenas e as primeiras organizaes representativas desses povos exerceram forte presso sobre a poltica indigenista oficial, contestando a tutela exercida pelo Estado em funo da suposta incapacidade que seus traos culturais primitivos justificava at ento. Como resultado desta presso, a Constituio Federal de 1988 reverteu, ainda que parcialmente, o carter civilizador e assimilacionista da poltica indigenista.

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Assim, a cultura s deixa de ser vista como um impedimento ao desenvolvimento a partir dos anos 1980. Pouco a pouco, passa a ser tratada no mais como elemento externo, mas integrante do desenvolvimento5. Constri-se uma viso alternativa de desenvolvimento, com novos parmetros de qualidade de vida, focando o desenvolvimento humano e no apenas econmico. Um indicador dessa transformao so os financiamentos que os grandes bancos se dispuseram a oferecer, alm das obras de infra-estrutura necessrias industrializao do terceiro mundo, para iniciativas na rea da cultura, especialmente programas de restauro do patrimnio material e, ainda que timidamente, para aes de desenvolvimento de pequenas comunidades tradicionais. Outro foco de preocupaes, sobre o qual no iremos nos estender aqui, mas que contribuiu significativamente para a consolidao das atuais polticas de patrimnio, diz respeito delicada relao entre produtos culturais e mercados comerciais. Nos anos 1990, sob os efeitos da chamada mundializao, percebe-se que os produtos culturais passam a ser valorizados como mercadorias, ofuscando o que eles tm de mais significativo: so produtos expressam as identidades dos povos que os conceberam. A proteo desses produtos culturais passaria, ento, a ser debatida em foros internacionais6, em discusses que prosseguem at hoje. 3.3. A criao da UNESCO, defensora da diversidade cultural Voltando evoluo do conceito de patrimnio na primeira metade do sculo XX, preciso contextualizar, mesmo que rapidamente, o surgimento dos instrumentos e programas internacionais dirigidos pela UNESCO, a Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura, criada em novembro de 1945. Nos crculos acadmicos e polticos da poca, a cultura passava a ser compreendida como uma capacidade universal, estendida aos homens de todas as pocas e regies do mundo, e no mais como o privilgio de uma parte da humanidade, ou de algumas naes que se consideravam mais capazes que outras. Era necessrio, ento, engajar todas as naes na preservao dos patrimnios culturais que refletiam a diver-

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sidade cultural no mundo para que toda a humanidade pudesse se reconhecer como herdeira das mais importantes e belas realizaes humanas. Foi ao longo desse percurso que a UNESCO, que integra a famlia de instituies das Naes Unidas, passou a se destacar na defesa da riqueza que resulta da diversidade cultural. Promovendo reunies internacionais, chamando especialistas e congregando os estados membros das Naes Unidas a adotarem instrumentos de proteo e a ratificar documentos. Um passo importante foi dado em 1989, com a Recomendao da UNESCO sobre a Salvaguarda da Cultura Popular e Tradicional, na poca definida como segue:O conjunto de criaes que emanam de uma comunidade cultural e so fundadas na tradio, expressas por um grupo ou por indivduos e reconhecidas porque atendem s expectativas da comunidade enquanto expresso da identidade cultural e social, das normas e dos valores que se transmitem oralmente, por imitao ou outros modos. Suas formas de expresso compreendem, entre outros: a lngua, a literatura, a msica, a dana, os jogos, a mitologia, os ritos, os costumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes.

Essa definio era ainda problemtica, por tentar identificar aspectos da cultura, como se fossem elementos isolados. Alm disso, ao priorizar formas de expresso como a literatura, a msica, a arquitetura, etc., dava-se maior importncia s criaes resultantes da tradio de um povo, em detrimento dos prprios processos criativos. Naquela poca, as culturas populares ainda eram abordadas a partir de uma seleo de produtos acabados, um foco caracterstico nas polticas de preservao do patrimnio material. No entanto, essa Recomendao j apontava para o entrelaamento dos aspectos sociais, econmicos, culturais e polticos presentes na cultura tradicional, levando em considerao seu papel na histria dos povos e o lugar que ocupam na vida dos povos contemporneos. A cultura tradicional seria, assim, definida como cultura viva. Reconheciase, ento, que as culturas podem tambm morrer. Esse argumento teve algum impacto

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ao chamar a ateno para a situao das populaes indgenas, considerando a extrema fragilidade de certas formas da cultura tradicional e popular e, particularmente, a de seus aspectos correspondentes tradio oral, bem como o perigo de que estes aspectos se percam... e o perigo que correm em face de outros mltiplos fatores.A partir dessa abordagem, a UNESCO promoveu a adoo, pelos estados nacionais, de medidas e programas que visaram, primeiro, a preservao e, depois, a valorizao das culturas tradicionais. O primeiro programa, implantado em 1989, foi o programa Tesouros Humanos Vivos. Incentivou a criao de sistemas nacionais de identificao e reconhecimento oficial de indivduos considerados por suas comunidades como depositrios e praticantes da tradio. O Brasil acatou a proposio e criou alguns instrumentos para a valorizao os detentores de saberes tradicionais como, por exemplo, no Cear onde os mestres de cultura popular vem ganhando visibilidade crescente. O segundo programa, implantado dez anos depois, foi a Proclamao das Obras Primas do Patrimnio Oral e Imaterial da Humanidade que j est em sua 3 edio e concedeu esse ttulo, ou distino, a mais 90 obras primas7, selecionadas entre candidaturas encaminhadas pelos governos de todos os continentes. A adeso do Brasil a esse programa foi inaugurada por uma candidatura indgena proposta pelo Conselho das Aldeias Wajpi Apina e encaminhada pelo Museu do ndio FUNAI e pelo Ministrio da Cultura em 2002: as expresses orais e grficas dos Wajpi do Amap integram a 2 lista; j em 2005, o Samba de Roda do Recncavo Baiano foi reconhecido como Obra Prima na 3 lista. A experincia desse programa foi determinante para o avano das discusses em torno de medidas mais eficazes de valorizao cultural, que no se limitem s distines honorficas. Para chegar Conveno para a Salvaguarda do Patrimnio Imaterial, promulgada em 20038, foram necessrias inmeras reunies de especialistas e de representantes dos governos, para debater conceitos e medidas adequadas de proteo que seriam adotadas pelos pases membros das Naes Unidas. O Brasil j havia adotado medidas nesse sentido, em conformidade sua longa experincia de polticas de patrimnio9. Nos artigos 215 e 216 da Constituio promulgada em 1988, o conceito de Patrimnio Cultural abarca tanto o as obras arquitetnicas e artsticas, como manifestaes das culturas populares, de natureza imaterial. No ano 2000, o Decreto no 3.551, instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimnio cultural brasileiro, criando o Programa Nacional do Patrimnio Imaterial10. Os bens de natureza imaterial so registrados em um dos quatro livros existentes at o momento11:

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Dos saberes: conhecimentos e modos de fazer, enraizados no cotidiano das comunidades; Das celebraes: rituais e festas que marcam a vivencia coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras praticas da vida social; Das formas de expresso: manifestaes literrias, musicais, plsticas, cnicas e ldicas; Dos lugares: mercados, feiras, santurios, praas e demais espaos onde se concentram e reproduzem praticas culturais coletivas.

significativo que esse dispositivo legal empregue a figura do registro e do inventrio permanente, ao invs do tombamento, um instrumento que reservado aos bens materiais. Como se reconhece a transformao como uma caracterstica importante do patrimnio cultural imaterial, determina-se, inclusive, a reavaliao de cada bem registrado a cada dez anos. Um bem imaterial registrado constitui, assim, apenas um testemunho de seu tempo. 4. Atualizando o conceito de cultura 4.1. Vises estticas e fechadas de cultura Percorrido todo esse caminho rumo adoo de instrumentos legais e implantao de polticas de valorizao do patrimnio imaterial, devemos nos perguntar se as novas feies da idia de cultura que sustentam esses programas esto devidamente incorporadas no dia a dia das pessoas. E indagar se tal abordagem foi apropriada na prtica corrente das polticas pblicas voltadas aos povos indgenas. Uma avaliao rpida da situao no Brasil permite verificar que, infelizmente, as iniciativas de valorizao da diversidade cultural, especialmente as que foram promovidas por instncias supranacionais como a UNESCO e adotadas pelo Ministrio da Cultura no Brasil, continuam esbarrando, no cotidiano das relaes que variados setores da sociedade nacional mantm com os ndios, em concepes muito estticas de cultura. Quando se compara a prpria cultura com a dos outros ainda difcil, para a maior parte da populao brasileira, superar os obstculos do preconceito. Pr-conceito remete, nesse contexto, s idias que as pessoas possuem de antemo sobre o valor

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de costumes e saberes, selecionando e julgando elementos culturais a partir de uma viso prpria, sem considerar o ponto de vista dos seus criadores e detentores. E quando esses outros apresentam sua cultura com formas e contedos que no estavam previstos nessa idia pr-moldada, essa cultura acaba sendo rejeitada ou desvalorizada. Na viso pr-conceituosa, s se apreciam os traos e caractersticas dadas na configurao idealizada da cultura do outro. Assim, para a maior parte dos brasileiros, o ndio continua sendo concebido como um silvcola, que para ser reconhecido como portador de cultura indgena deve viver no mato, morar em ocas, fazer pajelana, usar cocar, etc. Essas idias arraigadas a respeito do que seja a cultura indgena impedem que se atribua valor a inmeros aspectos menos conhecidos, ou s adaptaes criativas de saberes ancestrais que, localmente, cada grupo indgena produz, de maneira dinmica e sempre articulada a seu ambiente, sua histria e suas relaes com outras comunidades culturais. Para superar essas dificuldades e combater as diversas formas de racismo e os antagonismos internos e externos s naes, a UNESCO investiu em campanhas, defendendo o princpio da igualdade entre os homens. Essas campanhas apoiaram-se na concepo antropolgica de cultura, que inclui todas as realizaes da vida em sociedade, desde aquelas de valor reconhecido pelas elites de um pas, at aquelas das chamadas culturas tradicionais e populares, menos visveis nos cenrios nacionais. Todos esses esforos, acompanhados de estudos e debates, colocaram em evidncia a pluralidade cultural que atravessa as fronteiras nacionais, em todos os continentes. Em acordo com o objetivo declarado da UNESCO, tal pluralidade uma condio essencial para o convvio pacfico entre culturas. Hoje, sem dvida, no mbito de uma conferncia internacional, de uma exposio num grande museu, na comemorao de um prmio atribudo a uma manifestao da cultura popular, as tenses diminuram. Afinal, foram mais de cinco dcadas de esforos por parte de vrias instituies supranacionais, para que pases, religies ou grupos tnicos em franco desentendimento consigam reconhecer conjuntamente, mas apenas formalmente, a importncia do desafio proposto. Uma aposta significativa, especialmente

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porque continua diariamente contradita por conflitos tnicos, religiosos e polticos. Na prtica, sobretudo no mbito comercial que se pode constatar a convivncia de feies culturais do mundo todo, testemunhando um tempo de mercados ampliados. A circulao de objetos exticos, que afinal sempre foram mercadorias de valor, um bom exemplo para refletir sobre as dificuldades de aceitao do pluralismo cultural. Para ser efetivo, deveria remeter no s circulao de produtos, mas de idias e solues para a vida em sociedade. Comerciantes do extico notaram que s tm sucesso de venda aqueles objetos que correspondem ao prottipo que construmos a respeito de tal ou tal cultura e temos dificuldades em aceitar que produtos que se tornam mais parecidos com os nossos, seja na forma, materiais ou propriedades de uso. Assim, por exemplo, o verdadeiro cesto indgena no pode ser feito de lascas de plstico como o reinventaram os ndios Guarani em So Paulo nem o verdadeiro cocar poder ser composto com penas de galinha tingida como o adaptaram os ndios do Nordeste. O problema central , portanto, a viso esttica que embasa a idia de cultura, profundamente arraigada no senso comum e que se manifesta freqentemente na busca de autenticidade. Esse pressuposto equivocado provavelmente um dos principais empecilhos no indispensvel processo de reviso do conceito de cultura, que no consegue superar uma definio datada dos anos 1950, que a Antropologia da poca definia a partir dos conhecimentos, crenas, arte, leis, costumes, capacidades e hbitos que constituiriam o conjunto dos traos distintivos de um grupo social, no plano espiritual, material, intelectual, emocional e incluindo, alm das artes e da literatura, os estilos de vida, os modos de vida em comum, os sistemas de valores, as tradies e as crenas12. Essa abordagem de traos culturais foi abandona h mais de 50 anos pelos especialistas, mas continua orientando a apreciao das culturas indgenas. No Brasil especialmente, em funo do alto valor simblico atribudo a tudo que se refere ao ndio, tende-se a congelar uma imagem idealizada do que seja a cultura indgena. uma imagem persistente que continua congelando a cultura a deles, em particular concebendo a mudana como um percurso em que se perdem traos e se dilui a pressuposta autenticidade cultural.

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4.2. As interaes e as inovaes culturais Como nos ensina a Antropologia, apoiando-se em estudos e comparaes realizados no mundo todo, a transformao um processo inerente prpria definio de cultura. Por isso, no mbito das polticas internacionais, j se reconhece h muito tempo a inovao como parte da cultura. o que estabelecia a definio de cultura tradicional acordada em 1982: Prticas sociais e representaes que um grupo social considera ter adquirido por transmisso ao longo de sucessivas geraes, mesmo quando se trata de invenes recentes, e s quais o grupo atribui um estatuto diferenciado13. com esta abordagem que a Conveno sobre a Diversidade Biolgica, ratificada pelo Brasil em 1998, descreve o saber tradicional como incluindo conhecimentos, prticas e sobretudo - inovaes. O que tradicional no saber tradicional no sua antiguidade, mas a maneira como ele adquirido e como usado Ou seja, os saberes tradicionais no so enciclopdias estabilizadas de conhecimentos ancestrais, mas formas particulares, continuamente colocadas em prtica na produo dos conhecimentos14. As sucessivas reunies de especialistas que procuram aperfeioar os instrumentos legais decorrentes da Conveno de 2003 para a Salvaguarda do Patrimnio Cultural Imaterial nunca deixam de frisar que o termo autenticidade, tal como aplicado ao patrimnio material, no adequado para identificar e salvaguardar o patrimnio cultural imaterial, considerando que este constantemente recriado15. Razo pela qual as interpretaes relativas autenticidade de uma expresso ou tradio cultural s podem ser avaliadas no contexto especfico em que so produzidas e transmitidas. Como se viu, uma das principais dificuldades na reviso do conceito de cultura relaciona-se idia de cultura atomizada, ou seja, a idia de cultura delimitada apenas por meio de traos que seriam produtos caractersticos de um povo, grupo ou comunidade localizada, sem considerar a troca de conhecimentos e experincias que, necessariamente, um grupo mantm com outros. Hoje, tanto a Antropologia como as polticas culturais consideram fundamental levar em conta todos os modos de interao atravs dos quais conhecimentos, expresses e prticas culturais so apropriadas e apreciadas.

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Um exemplo dessa dificuldade em aceitar a atualizao permanente dos modos de produo cultural considerar que os povos indgenas transmitem seus conhecimentos apenas de forma oral, enquanto ns ocidentais e modernos transmitimos nossos saberes na forma escrita, acumulando saberes em bibliotecas, etc. Esquecemos que escolas funcionam h muitas dcadas em aldeias indgenas, que escritores indgenas no s publicam obras que chegam s livrarias das grandes cidades, como esto superando dificuldades que no se relacionam s suas culturas, mas profunda desigualdade no acesso s universidades, onde defendem teses de mestrado e doutorado etc. E ao mesmo tempo, desprezamos o papel que a transmisso oral continua tendo em nossas vidas, esquecendo quanto reduzido o nmero de pessoas que freqentam bibliotecas, ou acreditando que na escola s se aprende nos livros. H muito trabalho a fazer ainda, para promover e difundir uma noo de cultura que integre a dinmica e a criatividade. Se ainda difcil superar a idia segundo a qual cultura remete a coisas do passado, mais complicado ser superar outra impresso, relacionada primeira, que pressupe a fragilidade das culturas. E particularmente preocupante o fato de tal fragilidade ser sempre atribuda aos setores menos favorecidos, ou minoritrios como so os povos indgenas. Quase sempre descritos como uma humanidade em vias de extino, enquanto a fragilidade da cultura dos povos hegemnicos quase nunca mencionada... Na verdade, as culturas descritas ora como dominadas, ora como subalternas continuam incrementando suas experincias de atualizao cultural, em processos muito interessantes que vrios antroplogos se dedicaram a estudar e divulgar, contrapondose idia da suposta homogeneizao conduzida por culturas ditas hegemnicas. Como demonstra a antroploga Manuela Carneiro da Cunha, malgrado a extraordinria difuso da mdia, a cultura global no existe. O que importa compreender e, portanto, valorizar, o ponto de vista local. na escala local que so selecionados, traduzidos e apropriados objetos ou saberes que circulam no sistema mundial16. Por isso, como a UNESCO j recomendava em 1989, fundamental que se leve em considerao, alm dos valores que fundamentam as expresses artsticas de uma

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comunidade, tambm os processos criativos que permitem sua emergncia e os modos de interao atravs dos quais estes produtos so apropriados e apreciados17. 4.3. A sustentabilidade do Patrimnio Imaterial depende de sua renovao Como definia Joo Tiriy do grupo que se autodenomina Tarno - o patrimnio imaterial entu, uma fonte que se alimenta necessariamente de variados aportes. o que ele explicava com outro exemplo: a apropriao das miangas de vidro, usadas por seu grupo e por muitos outros povos indgenas.Nossos objetos no podem sumir, tem que ser passados para os nossos filhos. Os objetos que a gente faz no vo existir se no tivermos o patrimnio imaterial. Porque tudo que a gente tem, devemos incorporar nos nossos conhecimentos. isso que ns pensamos. A est a mianga que ns chamamos de samura. Est certo que o branco que fabrica, mas a mianga s material l na loja ainda. Quando ela chega na mo do ndio, ela j vai se transformando. Ela vai se transformar em patrimnio material? No, em patrimnio imaterial tambm. Automaticamente vai se transformando. Pelo conhecimento dele, que invisvel. O nosso pensar, o nosso conhecer, todo gravado na nossa cabea. As mulheres vo enfiando mianga em metros e metros de linha, todo dia, no sei como... Ento, na medida que a mulher vai trabalhando, enfiando a mianga, ela j est transformando a mianga em imaterial, ela est enfiando o conhecimento dela dentro da mianga.

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Para o Tarno, o material que ele arranja de outro, como por exemplo a mianga, porque reala, destaca mais. Mianga com que ns ndios fazemos muitas coisas. Tem que saber fazer! O conhecimento para enfiar, tecer, fazer nossos artesanatos, Tudo o que adquirimos de outros no quer dizer que acabou com o nosso modo de preparar nosso artesanato, e sim que esse modo est dentro. Invisivelmente, o jeito de fazer cinto, o jeito de tecer tanga est dentro do fio, junto com o fio, no perdeu nada, nadinha. No de ontem, mas de muito, muito tempo mesmo que usamos mianga. Naquele tempo os ndios viviam espalhados, e antigamente tinha os negros que vinham l do Suriname, trazendo mianga, terado, pano vermelho... Tarno gosta de incorporar do outro aquilo que lhe atrativo ou til. E assim que a cultura dos Tarno, que a dos Tiriy, foi sendo construda ao longo de muitas geraes, e est sendo repassada at hoje. Passar isso, passar o patrimnio imaterial que ns chamamos entu, que quer dizer fonte. Se no tiver a fonte, podem at existir as coisas, mas no tem mais como fazer, no tem como a gente dar a direo, ou dar incio.

Esse exemplo ilumina o conceito que nos ocupa nesse livro, de patrimnio vivo. Dinmicas de renovao que programas internacionais e aes locais como se ver na terceira parte deste livro - procuram enfatizar:O que importa preservar sob a forma de patrimnios culturais no apenas da ordem da memria, mas da ordem do projeto: preciso garantir e tornar renovvel o fato da diversidade cultural e no fixar a resultante atual de evolues seculares, produtos de dilogos constantes. preciso garantir o que est adquirido para tornar esse patrimnio renovvel18.

Aplicado s expresses e prticas culturais dos povos indgenas que vivem no Amap e no norte do Par, esse conceito traz importantes esclarecimentos, ao mesmo tempo em que aponta para dificuldades. Esse patrimnio constitudo de elementos amplamente compartilhados, frutos de intercmbios histricos que se perpetuam, em novos contextos, at hoje. Por esta razo, no seria possvel nem adequado mapear elementos culturais de grupos, como se fossem isolados entre si. Recortes tnicos separando itens culturais dos Wayana, dos Wajpi, dos Tiriy, dos Katxuyana, dos Karipuna, dos Galibi, etc. representam uma armadilha que se coloca hoje no s aos estudiosos, mas s prprias comunidades, quando so incentivadas a identificar sua cultura. Como se fosse possvel listar um conjunto de itens especficos de um grupo, originais desde sempre e que, se aparecerem em outro grupo, porque foram indevidamente apropriados.

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Etnicizar o patrimnio cultural imaterial uma tendncia que resulta de intervenes mal informadas a respeito dos processos de apropriao e valorizao cultural em curso h sculos, atravs de redes de troca que no reconhecem fronteiras tnicas. A prpria noo de grupo tnico tambm questionvel, pelas mesmas razes. A cultura de grupos particulares, da regio do Amap e norte do Par como de outras partes do mundo, no pode ser abordada como um conjunto fixo de elementos, que resistiriam inertes ao passar do tempo. O processo inclui perdas, mas tambm acrscimos. E a incorporao de elementos novos ilustra exatamente a vitalidade de uma cultura, como explica Joo Tiriy, ao falar das miangas. o que dizem tambm os Wajpi, para quem todos os importantes saberes veiculados at hoje e, especialmente cantos e danas, foram literalmente roubados de outros, sejam eles animais, inimigos, ou grupos vizinhos. essa interpretao a respeito da origem de saberes e fazeres dos mais diversos, rememorada por meio de narrativas e constantemente atualizada nas prticas especficas dos Wajpi, que constitui, justamente, seu patrimnio cultural imaterial. Definido desta maneira, o patrimnio cultural imaterial tanto decorre como alimenta o dilogo entre pequenos grupos, entre povos, civilizaes e mesmo continentes. O reconhecimento das condies de criao e de renovao cultural, assim como das redes de intercmbio, podero assim contribuir com a tolerncia. A diversidade cultural se configura, cada vez mais claramente, como uma condio essencial para o desenvolvimento. Pois nenhuma comunidade poderia se desenvolver sem o reconhecimento poltico de sua contribuio particular criao e transmisso de valores culturais. Como afirma o antroplogo Claude Lvi-Strauss: A tolerncia no uma posio contemplativa... uma atitude dinmica, que consiste em prever, compreender e promover o que quer existir. A diversidade das culturas humanas est atrs de ns, nossa volta e nossa frente. A nica exigncia que podemos fazer a seu respeito que cada cultura contribua para a generosidade das outras19.

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Confeco da tinta de jenipapo, usada para a pintura corporal, pelos Tiriy e Katxuyana.

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II. Exemplos indgenas, no Amap e norte do ParNas pginas que seguem, selecionamos um conjunto de domnios da vida cultural dos grupos indgenas dessa regio, com o objetivo de identificar alguns elementos de seu patrimnio imaterial. No se trata de um catlogo exaustivo, mas de uma seleo de exemplos que consideramos significativos, por vrias razes. Os domnios escolhidos abrangem os modos de conhecer, os modos de ver, os modos de dizer, os modos de trocar e os modos de fazer. Com esses recortes, procuramos enfatizar o quanto importante entender os sistemas de conhecimento que fundamentam as prticas culturais dos grupos indgenas. So modos de perceber, de classificar e de relacionar seres e objetos no mundo, compondo sistemas de conhecimento muito diversificados. Incluem saberes usados no cotidiano ou em contextos rituais. So transmitidos por pessoas comuns ou por especialistas. Remetem a aspectos visveis ou invisveis da vida social, tanto dos humanos, como de outros seres do universo. Todos esses saberes se transformam dinamicamente, sendo objeto de experincia e de atualizao constantes. Esperamos que essa diversidade de modos e jeitos de saber e de fazer, ilustrada com alguns exemplos dos grupos indgenas do Amap e norte do Par, possa enriquecer a descrio convencional das crenas e dos costumes indgenas. Especialmente por considerarmos que as manifestaes culturais mais conhecidas desses povos entre elas seus mitos e rituais devem ser compreendidos de forma articulada aos demais aspectos de sua vida social e poltica. Interessa-nos, portanto, consolidar uma maneira alternativa de abordar suas manifestaes e prticas culturais, sem submet-los aos recortes com os quais estamos acostumados, caractersticos de nosso modo de vida, que separa as esferas da economia e da arte, a cincia da religio, e assim por diante. Veremos que, na perspectiva indgena, os saberes sobre plantas e animais no so apenas teis para a subsistncia, sendo tambm relacionados aos jeitos de identificar pessoas e

Fonte das informaes:Os textos apresentados nas prximas pginas foram editados a partir de contribuies ou de estudos j disponveis, por seis pesquisadoras que trabalham junto aos grupos do Amap e norte do Par. Antonella Tassinari (informaes sobre o casamento entre os Karipuna), Denise Fajardo Grupioni (textos sobre os subgrupos, a liderana das aldeias, o casamento, as etiquetas e o jeito de fazer sakura, entre os Tiriy e Katxuyana), Dominique T. Gallois (textos sobre o uso de nomes,categorias de outros,

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povos, aos jeitos de organizar rituais, aos jeitos de curar, etc. Os modos de diferenciar pessoas e grupos no se limitam esfera dos humanos, mas apiam-se numa lgica mais ampla de classificao de todos os seres do universo, que no separa como fazemos uma ordem humana de outra ordem natural. Grafismos e marcas constituem uma das manifestaes dessa lgica, relacionando no s todas as esferas do universo, como diferentes tempos, momentos da histria das comunidades. Da mesma maneira, as festas no constituem apenas celebraes dos humanos, mas momentos em que todas as categorias de seres se fazem presentes, compartilhando jeitos de danar, de cantar, de comer e de beber. Finalmente, nos parece importante assinalar o amplo compartilhamento, em toda a regio, tanto dos aspectos cosmolgicos como das formas de organizao da vida comunitria. So bem conhecidos os intensos circuitos de troca entre todos os povos da regio, documentados desde o sculo XVIII. Prosseguem at hoje, embora de maneira menos autnoma, por estarem agora vinculadas s polticas indigenistas. As redes de intercmbio envolvem no s a troca de bens, de tcnicas e outros saberes, mas tambm trocas matrimoniais, trocas rituais e, obviamente, incluem a troca de agresses e sua contrapartida, a troca de curas. Essas trocas foram e continuam sendo concretizados atravs de modalidades diversas, entre as quais se destaca um modo especfico de formalizar a relao entre duas pessoas (de grupos locais ou tnicos distintos) que passam a se considerar parceiros e se tratam reciprocamente como iep (ou pawana, ou panary). Esse modo de constituir parceiros para a troca compartilhado entre muitos grupos da regio, especialmente os Wajpi, os Wayana, Aparai, Tiriy, Waiwai, etc. Esperamos que os exemplos que seguem representem um incentivo para a consolidao de um campo novo de reflexes e estudos. Especialmente se consideramos que esses domnios do patrimnio imaterial constituem, h muito tempo, temas privilegiados na pesquisa antropolgica realizada junto aos povos do Amap e norte do Par.

concepo sobre os donos entre , os Wajpi), Joana Cabral de Oliveira (classificao das plantas entre os Wajpi), Lcia Hussak van Velthem (motivos grficos wayana) e Lux B. Vidal (informaes sobre a avifauna, a festa do tur, as marcas, o caxiri e a arte de fazer cuias, entre os povos indgenas do Oiapoque). Esses textos incluem alguns depoimentos indgenas, identificados por seus respectivos autores. Os trechos da crnica de Carlos Drummond de Andrade sobre a etiqueta katxuyana foram extrados de: O kaxuyana, esse bem-educado Jornal do Brasil, 24/10/1978 p. 5.

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Modos de conhecer Jeito de conhecer as plantas Na lngua wajpi no h uma palavra que d conta dos vegetais como um todo, tal como planta em portugus. A categoria de maior abrangncia denominada temitgwer e designa todas as espcies cultivadas. Por oposio, as plantas selvagens so chamadas de temite, que significa literalmente no-cultivado. Se a agricultura um marcador importante nessa classificao, porque se trata de uma atividade no apenas relacionada subsistncia, mas cosmologia dos Wajpi. Segundo sua tradio, no tempo das origens, todos os seres que viviam na terra eram como a gente e compartilhavam hbitos e corpos semelhantes. Mas, devido ao comportamento abusivo da primeira humanidade, a terra foi destruda e, quando recriada, ocorreu uma separao entre humanos e no humanos, que passaram a ocupar domnios especficos. Nessa recriao, a floresta surge como o domnio dos animais e dos espritos. Os homens precisam criar seu prprio espao e o fazem atravs da agricultura. Como toda aldeia nasce de uma roa, as plantas cultivadas so emblemas dessa apropriao de um domnio propriamente humano. A distino entre plantas cultivadas e no-cultivadas no a nica forma de classificao, existindo muitas outras, usadas pelos Wajpi em contextos especficos. Quando esto trabalhando nas suas roas, classificam as plantas em categorias genricas, tais como: manio (o grupo das mandiocas), avasi (o grupo dos milhos), jity (o grupo das batatas), etc. Essas categorias so dividi-

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das em outras, especficas, como: maniotawa (mandioca amarela), maniopir (mandioca vermelha), mani osukyry (mandioca branca), avasipij (milho preto), avasiviri (milho mido), jitysov (batata roxa), jitype (batata redonda), etc. Todas elas baseadas nas caractersticas externas dos vegetais, como colorao, forma, tamanho, textura, etc. Mas os critrios para a classificao de uma planta mudam conforme o contexto. Por exemplo, quando se est na roa, as mandiocas so reconhecidas, identificadas e classificadas por caractersticas de suas folhas e caules. J nas aldeias, onde chegam apenas os tubrculos de mandiocas a serem processados para o consumo, os critrios empregados para reconhec-las sero outros aspectos, como as cores e texturas da casca, da entrecasca e da parte interna da raiz. Assim, comum que uma mesma variedade de mandioca receba mais de um nome, de acordo com o sistema de classificao acionado em um determinado contexto. H ainda outro sistema de classificao, relacionado reproduo. Alguns vegetais so classificados como -wemarer, indicando que determinado mamo, mandioca, batata ou car so originrios de sementes ou tubrculos armazenados no solo, por ocasio de uma antiga plantao. So, portanto, produtos indiretos da atividade agrcola. J as plantas que nascem de sementes, so classificadas como -potyrer. Assim, as classificaes informam a prtica. Atravs delas sabe-se o que pode ou no nascer de um armazenamento espontneo nos solos, como tambm o que nasce de sementes, de tubrculos ou ramos, o que serve para comer e o que serve como veneno, entre outros inmeros exemplos.

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Jeito de conhecer as aves O conhecimento dos povos do Oiapoque a respeito das aves se apia na rememorao de episdios dos tempos mticos, quando todos os seres adquiriram suas atuais caractersticas. Por trs dessas caractersticas, as aves so gente como ns e tm poderes de cura. H trs mundos: o de cima, dos espritos e das almas, o mundo do meio, onde vivemos, o mundo de baixo, que o mundo das guas onde vivem os animais. Nesse mundo, os animais so como ns, so gente... Nesse mundo das guas, os pssaros fizeram uma festa e cada um se vestiu de forma exuberante: as araras, os tucanos, os patos, os mutuns e assim por diante. Todos danaram e beberam por toda a noite. Quando chegou o fim da festa, cada pssaro escolheu um lugar para morar... (Suzana Primo dos Santos, Belm). Os pssaros fizeram uma festa e danaram no Tur. Jacamim comeou uma briga, foram brigar e cada qual pegou seu rumo. O macolocolo (anu) e o jacamim tranaram a porrada perto do fogo. O macolocolo jogou o jacamim em cima das cinzas e ele ficou com as costas brancas. A o jacamim pegou o macololo e o atirou nas cinzas e por isso, ele ficou assim, preto (Antnio. Aldeia Manga).

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Tem a histria do tuburrega, um gavio que pega peixe, mas mal, do cairipa. O tuburrega era bom de flecha para pegar peixe. O caripira viu ele pegando peixe e teve inveja. Pediu sua flecha emprestado e levou embora com ele, no devolveu mais. Ento, o tuburrega no podia mais comer, pegou umas flechas e flechou uns peixinhos. Por isso, at hoje, o tuburrega panema (Armndio. Aldeia Esprito Santo). Para os Galibi-Marworno as aves assumem um papel de destaque com relao s prticas de cura, sendo auxiliares dos pajs. Por ocasio das festas do Tur, realizadas pelos pajs para retribuir as curas, os espritos das aves so chamados, por meio de cantos, para receber homenagens e recompensas pelas curas realizadas. Na festa, elas so convidadas a sentarem em bancos esculpidos em madeira e pintados em cores vivas bancos que representam alguma ave cuja forma e ornamentao so transmitidas aos pajs pelos espritos das aves. Os espritos, mesmo invisveis aos participantes humanos da festa do Tur, recebem bebida caxiri e fumo de tauari. Assim acontece com Tucano, chamado Gh Papa Gho Bec. Ele um tuxaua antigo, at hoje ele representa os tucanos, mas ele invisvel. S o paj entra em contato com ele durante o Tur, atravs de seu canto. Ele vem e toma caxiri... Ele vem para dar apoio, atravs do canto. Ele est no meio da gente diz o paj, mas ns no o enxergamos ( como um telefone). Ele d apoio em caso de doena e pode mandar fazer um remdio do mato para curar, porque ele do mato. O tucano gosta de brincar na festa, beber, est alegre, danando, bebendo caxiri e fumando tauari (Getlio, Aldeia Kumarum).

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Jeito de reconhecer as pessoas Para os Tiriy, a diferena entre os seres animais e vegetais simboliza a diferena entre diferentes grupos de pessoas que existem no mundo. Na lngua tiriy, os finais yana, y, so e koto so os mais freqentemente usados para designar diferentes gentes ou povos. Assim, temos, entre os Tiriy atuais, gente que se identifica como Aramayana (gente abelha), Aramiso (gente pombo), Maraso (gente guia), Okomoyana (gente vespa), Akuriy (gente cotia), Piyanokoto (gente gavio), Prouyana (gente flecha) e ainda Prop e Sakta. Na literatura histrica sobre a regio do Amap e norte do Par, estas e muitas outras gentes so mencionadas como constituindo subgrupos que deram origem s atuais etnias da regio. Entre elas, os prprios Tiriy, os Katxuyana, os Waiwai, os Aparai e os Wayana. A cada subgrupo conhecido, so atribudas origens diferenciadas, reas de moradia, tipos fsicos ou sangue distintos, sotaques diferenciados, alm de jeitos prprios de se comportar. Todos os subgrupos que ainda hoje existem na regio possuem uma longa histria de relaes, seja de guerras, seja de casamentos, ou de trocas de bens e de conhecimentos entre si. assim que a incorporao de modos de viver do outro, seja ele aliado ou inimigo, algo que se tornou parte do prprio modo de ser dos Tiriy. Os atuais Prouyana contam que dos Aky que tiramos as msicas que danamos ao redor do jabuti e do jacar em nossas festas (Achef Tiriy). Este apenas um, de uma lista infinita de exemplos que mostram que entre os Tiriy, uma vez que se conhece uma outra pessoa ou grupo, o ato de conhecer se completa atravs de algo que se pega desse outro e se incorpora para si. Ou seja, entre os Tiriy, buscase pegar do outro para si aquilo que se acha bonito e que considerado bom, kure, incluindo-se pessoas para casar, bens materiais e conhecimentos.

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Jeito de diferenciar os outros Quando os Wajpi conversam a respeito dos grupos indgenas vizinhos, raramente usam as denominaes tnicas como Wayana, Tiriy, Karipuna, etc. Esses nomes foram criados pelos no-ndios e foram apropriados por esses grupos no contexto das relaes com agncias de assistncia. Por este motivo, quando conversam entre si, os Wajpi continuam usando categorias prprias, que fazem parte de seus sistemas de classificao de pessoas e grupos. O prprio nome wajpi tampouco era utilizado, na medida em que encobre uma diversidade interna de grupos locais. Uma dessas classificaes diferencia grupos em acordo com o modo como foram criados, no incio dos tempos. Os Wajpi consideram que apenas eles (e alguns outros grupos classificados como janekwer, gente como ns) so descendentes dos primeiros homens que nasceram da flauta, tocada pelo heri criador. Por se considerarem crias diretas de Janejar, o dono da humanidade, eles denominam a si mesmos como janejar reminwer, as crias de nosso dono. s suas crias, Janejar deu a palavra (hoje se diz a lngua waipi) e ensinou a cultivar a mandioca, a process-la para preparar o caxiri; o criador tambm ensinou a tocar as clarinetes tur, que ele continua ouvin-

O mesmo ocorre entre os Zo, que vivem na regio do rio Cuminapanema, ao sul da Terra Indgena Parque do Tumucumaque. Os Zo, que tambm falam uma lngua tupi-guarani, no usam nomes tnicos para designar os povos indgenas vizinhos, ou os grupos com os quais mantiveram contato ao longo de sua histria. Eles se referem a esses grupos com palavras que identificam seu carter pacfico ou agressivo, ou explicitam se so parecidos ou no com eles, se vivem em regio de floresta ou de lugares distantes, como as cidades. Assim, eles classificam os grupos indgenas que vivem na regio em duas grandes categorias: ou so zo que significa ns e tambm como ns ou so inimigos. Para distinguir entre esses inimigos, usam categorias distintas: de um lado, os grupos que vivem a leste e matavam os ancestrais com bordunas, designados como tapyyi, do outro, os temveis apam, canibais, que vivem a oeste das aldeias dos Zo.

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do, mesmo que de longe, j que ele resolveu, depois, ir embora. Os demais grupos humanos surgiram depois, em contextos bem diferentes. Os Wajpi consideram que a maior parte dos grupos que so hoje seus vizinhos nasceram dos ovos de cabas e vespas, brotando no cadver de uma cobra grande. Por isso so denominados moju tapurukwer os resduos dos vermes da cobra grande. Como so variados os tipos de abelhas e vespas, so tambm infinitamente diversos os grupos humanos que brotam desse processo. Segundo as narrativas, os primeiros humanos at tentaram criar as crianas que nasciam desse processo, mas era em vo, dado o carter agressivo dos filhos da cobra. Por isso, essas pessoas foram afastadas e se transformaram nos grupos inimigos, que os Wajpi designam como ap. Os no-ndios, genericamente designados como karai k, nascem de outro processo. Eles simplesmente caem do cu, na forma de pedras de diferentes cores, das quais saem criancinhas que crescem com os traos das diferentes raas, ou, como dizem hoje os Wajpi brancos, negros e franceses. Diz-se tambm que eles vm da chuva e que so to numerosos quanto as suas gotas dgua, pois foi num dia de guas torrenciais que as pedras caram. Eles so amana ra'yry, filhos da chuva.

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Modos de dizer Jeito de dar nome s crianasOs Wajpi tm jeito certo de dar nomes para os filhos recm-nascidos. Os avs, quando esto vivos, escolhem os nomes para as crianas recm-nascidas. Seno, so os pais que pensam nos antepassados para usar o mesmo nome nas crianas. Esses antepassados tm que ser de muitos anos atrs, e ningum pode j ter, usar esse nome. Pode dar o mesmo nome do pai do av ou do av, se ele no estiver vivo faz muito tempo. importante dar o nome logo que o beb nasce. Porque seno jurupari vai dar o prprio nome para a criana e a criana pode ficar pequena, doente e at morrer. Os nomes no podem ser iguais aos nomes de pessoas que moram perto. Por exemplo, d pra pegar um nome igual ao dos Wajpi do Camopi porque l longe. Alguns nomes vieram de outros povos indgenas, como os Panary k (grupos com os quais a gente troca, como os Wayana, Aparai e outros) porque so nomes que os Wajpi acham bonitos. Hoje em dia, alguns jovens tm dado nome de karai k (os no-ndios) para seus filhos, porque acham os nomes dos tam k (nossos antepassados) feios. Isso est enfraquecendo o conhecimento dos Wajpi sobre os nomes. (Texto coletivo escrito pela turma de pesquisadores wajpi).

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At muito recentemente, os Wajpi no costumavam usar seus nomes em pblico. Um nome , de fato, algo to pessoal e privado que no pode ser pronunciado sem cuidados. At hoje, os mais velhos no gostam de dizer seus prprios nomes, nem apreciam que se pronunciem seus nomes em qualquer contexto. Aceitam serem chamados dessa maneira pelos no-ndios, por entenderem que esse um hbito dos karai k. Mas, entre eles, a etiqueta de boa conduta no permite o uso dos nomes, evitando assim sentimentos de vergonha ou mesmo de raiva. Dizem os mais velhos que, antigamente, pronunciar o nome de algum em pblico era considerado como uma atitude muito agressiva. Entre eles, os Wajpi assim como os demais grupos indgenas da regio utilizam termos de parentesco, ou seja palavras que identificam categorias de parentes, classificadas como pais, mes, filhos, filhas, irms, irmos, ou como no-parentes, como so, em sua concepo, as irms do pai, os irmos da me, etc. O uso dessa terminologia permite que qualquer indivduo saiba, desde sua infncia, quais so seus parentes, no s em sua prpria aldeia, mas em qualquer outra. Assim, ele saber desde cedo com quem ele pode, ou no pode, casar. Saber tambm a quem recorrer quando est visitando uma comunidade distante.

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Jeito de respeitar e de sentir vergonha Kutuma se refere a um sentimento muito importante entre os Tiriy, relacionado s formas de respeito no tratamento pessoal. Essa forma de tratamento se aplica principalmente s relaes entre um genro ou uma nora e seus sogros. Assim, para preservar esta relao de respeito, denominada kutuma, um homem ou uma mulher no podem chegar e falar diretamente com seus sogros, devem primeiro falar para sua esposa ou esposo, que devem, ento, se dirigir aos seus pais para transmitir o assunto que o marido ou esposa quer tratar. De modo inverso, a mesma forma respeitosa adotada quando o sogro ou sogra de algum quer falar algo para um genro ou nora: devem dirigir-se a seu filho ou filha casada, para que eles transmitam ao marido o assunto que se quer tratar. Dizem os Tiriy que respeitar sogro e sogra como uma lei para eles e at hoje isso muito importante. O mesmo tipo de tratamento respeitoso tambm obrigatrio na relao entre cunhados. Os cunhados tiriy se chamam entre si de kono e devem se tratar da melhor maneira possvel. No podem, por exemplo, fazer brincadeiras, insinuaes, falar bobagens, nem conversar sobre mulheres, ou outras coisas relacionadas vida dos outros. Ns temos esse respeito muito grande que j vem dos antepassados, isso como uma lei de respeitar sogro e sogra, at agora no perdemos isso (Joo Tiriy).

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A etiqueta e a fala formal katxuyana elogiada em crnica de Carlos Drummond de Andrade No sei como anda a vida dos ndios kaxyana, que [em 1959] eram apenas uns 50, e [em 1969] se mudaram da beira do rio Cachorro, afluente do rio Trombetas, no Par, indo instalar-se no Parque Nacional do Tumucumaque. Devem ter melhorado a situao. E mereciam. O estudo de Protsio Frikel sobre o cdigo de civilidade deles despertoume simpatia por essa boa gente. Como no simpatizar com esses selvagens bem educados quando na sociedade urbana, dita civilizada, nem h mais cdigo nenhum para reger as maneiras? Os kaxyana vo ao requinte de usar quatro formas de linguagem: a comum ou ordinria, a litrgica ou religiosa, a elevada e o baixo calo. Ns aqui no asfalto teremos no mximo duas, a primeira e a quarta, se no for apenas a quarta infiltrada na primeira. O kaxyana, porm, sabe aplicar na hora e lugar devidos cada tipo de linguagem. E cada uma tem seu tom de voz peculiar, sua msica, digamos assim (...) As visitas obedecem a cerimonial, coisa que no se v mais na sociedade promscua em expanso. Se a visita coletiva no se entra em bando, sem hierarquia. A figura principal vai frente, os outros demoram um pouco. o tempo de amarrar os cachorros. E de permitir s mulheres o preparo de bebidas e coisas boas de merendar. O kaxyana capricha em comes-e-bebes. Mingau de banana como quebra-jejum, almoo de peixe com beiju, merenda de car ou batata doce, jantar tambm base peixe ou carne de anta, vinho de frutas, garapa, tudo muito bem preparado, limpo. Ovos de tracaj, camaleo e jacar so delcias especiais (...) Observar, mas no reparar: o princpio estabelecido pelos kaxyana para a conversa. Gostam de bater papo sem olhar muito para a cara do visitante, pois isso poderia gerar mal-entendidos e desconfianas. Deve-se mesmo virar um pouco de lado, e chega-se ao extremo de polidez virando as costas ao interlocutor. Como quem diz: no estou vigiando voc, faa o que quiser nesta casa. Em suma, e na opinio do autor, o cdigo de civilidade dos nossos irmos kaxyana reflete um nvel cultural superior. Mas suas observaes foram colhidas em contato com a tribo no ano remoto de 1940. E o prprio Frikel, quase 30 anos depois, reconhece que muitas dessas finezas de comportamento se perderam com a aproximao dos castanheiros e caadores de peles, nos ltimos tempos. pena. Se no fosse isto, bem que a Funai poderia mandar vir do Par meia dzia de kaxyanas para ensinar boas maneiras gente. Agora tarde.

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Modos de ver Jeito de ver no sonho e nos espelhos do paj Os humanos no so donos da diversidade existente na terra. As diferentes espcies animais, as rvores, as plantas da roa tm seus respectivos donos (-jar). Assim, jane jar o dono da humanidade, yy jar o dono das guas, mijar jar o dono da caa, e assim por diante. Elementos que se costuma considerar inanimados, como terra e pedras, tambm tm seus prprios donos. Assim como o vento, a neblina, a escurido... A principal atribuio dos donos de todos esses seres consiste em tomar conta de suas criaturas, cuidando de seu crescimento e de seu bem-estar. Eles controlam o movimento de suas crias, como se faz com xerimbabos (-rima). porque tudo tem dono que os Wajpi mantm relaes comedidas com as criaturas controladas por cada jar. No matam em excesso animais que no iro consumir, por exemplo. Garantem, assim, a reproduo de todos, com seus modos de vida e espaos definidos. A caracterizao dos donos de cada categoria de seres, a localizao de seus domnios, as formas de acesso e o relacionamento adequado que se deve estabelecer com cada um deles so assuntos muito discutidos, no cotidiano das aldeias. Isso porque os jar no so vistos por todo mundo da mesma maneira. Para as pessoas comuns, eles no aparecem em sua verdadeira forma, que de gente. Somente os

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pajs cuja capacidade de viso simbolizada por espelhos acessam diretamente os donos das espcies animais e vegetais, vendoos como pessoas, com caractersticas fsicas e atitudes prprias. Quem no paj ver os jar durante o sonho, quando eles aparecem como pessoas muito bonitas e sedutoras, para anunciar algum problema, ou dar algum conselho. Os desenhos de Jamy mostram esses diferentes modos de ver manio jar, o dono da mandioca. Normalmente, ele visto como uma grande minhoca, enrolada em torno dos ps de mandioca. No sonho, as mulheres podem ser seduzidas por ele, quando se manifesta como um rapaz muito bem adornado. J, quem tem paj poder ver o dono da mandioca com um ser orelhudo e peludo.

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Jeito de tranar para ver Entre os Wayana e Aparai como entre os outros grupos indgenas do Amap e norte do Par as tcnicas usadas para a decorao de corpos e objetos constituem um modo de re-introduzir eventos e personagens do tempo das origens. Por isso, os Wayana dizem no possurem padres grficos. Dizem que, quando fazem pinturas corporais, quando tranam cestos ou quando decoram outros objetos, apenas esto repassando para esses suportes os desenhos que pertencem Cobra grande. Segundo os Wayana e os Aparai, qualquer um dos habitantes do universo pode ser identificado de acordo com o local onde vive. Esta referncia aos espaos de moradia de cada um dos seres do universo importante por indicar onde eles podem ser procurados para a caa ou, ao contrrio, para saber como evit-los. Segundo os Wayana, os humanos podem ser caados por esses outros seres. A identificao do lugar tambm significativa para compreender o comportamento, a aparncia, a alimentao de cada um dos seres. O espao aqutico muito importante na cosmologia dos grupos da regio e especialmente dos Wayana e Aparai. Para estes, a gua o domnio de tulupere, uma cobra muito grande, monstruosa, que se apresenta toda adornada com pinturas. So essas as pinturas que inspiram at hoje a esttica que os Wayana e Aparai materializam na decorao de objetos e na sua pintura corporal. por ser muito perigosa que essa cobra to bela. Seu comportamento agressivo excepcional, no podendo ser comparado com o modo de ser de seus parentes zoolgicos, da espcie jibia (ou constritor). A monstruosidade a essncia desse ser sobrenatural, to importante na cosmologia dos Wayana, dos Aparai e de todos os

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povos da regio, na medida em que ela se apresenta como o prottipo dos provadores de nossa carne. O que mais importante que sua monstruosidade bela e exerce seduo sobre os humanos, para conduzi-los aos seus redutos e ento devor-los. Em acordo com essa concepo do mundo, ilustrada com elementos da cosmologia wayana e aparai, os padres grficos utilizados para a pintura corporal e os objetos so portanto muito mais do que uma simples decorao. No so, de fato, motivos para serem vistos. So antes motivos que permitem ver os seres primordiais. Por esta razo, na lngua wayana, estabelece-se uma diferena importante entre a imagem designada como ukutop e o motivo grfico chamado mirikut. Desenhos ukutop reproduzem elementos anatmicos, de modo figurativo. J os grafismos mirikut so uma captura das criaturas do tempo primordial, uma transposio de sua presena. Atravs desses desenhos complementados por narrativas orais essas criaturas so trazidas ao tempo presente. Essa uma distino muito importante para entender a arte desse grupo indgena que no se limita ao seu significado, mas sua eficcia visual. So desenhos concebidos de forma que permitam ver esses seres. So desenhos que fabricam, trazem de volta o mundo das origens. O que significa que, para os Wayana e Aparai, a arte grfica nem simplesmente representa, nem apenas significa. Sua principal funo de estabelecer uma comunicao com os seres primordiais e permitir uma interao com eles.

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Jeito de marcar os artefatos As marcas ou mac, em patu, formam um conjunto especfico de motivos decorativos, pintados, gravados, tranados, recortados, em diferentes suportes, objetos da vida cotidiana ou cerimonial, ou ainda no corpo ou num beiju destinado fabricao do caxiri. Estas marcas so bastante numerosas, mas algumas so mais freqentes do que outras, mais usadas em alguns locais do que em outros ou por opo individual, preferidas por um ou outro arteso. Assim, as marcas ddelo e kuahi so as mais utilizadas. Apesar da padronizao dos motivos, cada artes ou cada arteso tem seu prprio estilo, sua excelncia tcnica e artstica. Novas marcas podem ser inventadas, e algumas, meio esquecidas podem ser relembradas. Tradicionalmente, estas marcas so sempre motivos geomtricos, abstratos e nomeados. Representam espcimes da flora e da fauna, especialmente a pele, as escamas ou o casco de animais, ou ainda cascas de rvores que apresentem desenhos. Podem tambm ser caminhos, rastros, elementos naturais como estrelas ou nuvens e mesmo movimentos e aes. Atualmente h desenhos mais figurativos, com diferentes tipos de cenas do cotidiano, da mitologia ou copiados de revistas e livros. As marcas so ensinadas pelos karuan, espritos encantados, nos sonhos e isso acontece geralmente pela mediao do paj, que as repassa para os artesos responsveis pela manufatura de mastros e dos bancos cerimoniais. As mulheres dizem seguir a tradio ou fazer algo orientado pelo seu prprio esprito. Pode-se falar, portanto, de um acervo convencional de marcas, mas aberto a variaes e novos padres. Quando as marcas so pintadas, usam-se cores naturais de origem vegetal ou mineral, especial-

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mente o urucu, o jenipapo e cumat, ou corantes comprados no comrcio da cidade de Oiapoque. Alguns exemplos de motivos so xemem ou caminho (caminho do caramujo, caminho da formiga etc); outro exemplo so os desenhos ddelo, uma linha ondulada, e kuahi, um losango. Os motivos geomtricos e estilizados representam tambm escamas e espinhas de peixe, o casco da tartaruga, os plos do porco do mato, e ainda as folhas da palmeira aa, a estrela dalva e nuvens matinais; temas mais ligados mitologia e natureza, enfim, ligados a este e a outros mundos. As marcas esto intimamente articuladas com a prpria ao de fabricar os artefatos. Verifica-se que as matrias-primas possuem nomes de plantas ou de animais ou referncias ao corpo humano ou de algum bicho. H marcas associadas a certos karuna especficos, que representam cobras-grandes, bichos e djab d bua, (jurupari), destacando Orok, morador sobrenatural das matas que possui seis bocas em seu peito e o dono de alguns grafismos utilizados pelos Galibi-Marworno. Os suportes nos quais so aplicadas as marcas so os seguintes: o corpo, os tranados (jamaxins, abanos, peneiras, tipitis, cestos, paneiros, krukru, pakar, cesto do paj etc), maracs, potes de cermica, cuias, flechas (amarrao com fios de algodo), ralador, bancos de todos os tamanhos, mastros e s vezes, tambores (Palikur). Certas marcas, feitas com compasso, representando a Estrela DAlva ou a Rosa-dos-Ventos, so encontradas nos raladores, remos, caixes morturios. Usam ainda marcas para indicar o dono de um objeto. Enfim, pode-se dizer que os ndios do Oiapoque como bem afirmou um deles vem as marcas em todo o Universo.

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Modos de trocar Jeito de fazer poltica Para os Tiriy, assim como tudo que existe no universo possui dono, toda aldeia tambm tem seu dono, que chamado de pataentu, ou seja, o dono do lugar. O pataentu aquele que identificou, escolheu o local e nele reuniu um conjunto de parentes e aliados que vieram a constituir a populao de sua aldeia. E ser o tamanho desta populao, bem como a qualidade das relaes entre um pataentu e seus co-residentes que definir a qualidade de vida de uma comunidade local. A tendncia que dentre os co-residentes do fundador de cada aldeia, incluam-se um genro ou mais, dependendo do nmero de filhas que este possua, e um cunhado ou mais, dependendo do nmero de irms que co-residam com este pataentu. A sua principal tarefa zelar pelo bem estar dos membros de sua comunidade local e pela harmonia das relaes entre eles, enquanto estiver vivo. S assim poder garantir a prosperidade de sua aldeia. Alm disso, o pataentu que for bem sucedido em suas relaes com os donos de outras aldeias, prximas ou distantes, tem mais chance de se tornar reconhecido como um lder importante, no apenas localmente, mas tambm regionalmente. A certa altura de sua vida, quando j tiver netos, um pataentu

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que tenha construdo uma boa trajetria de relaes polticas internas e externas ser reconhecido como um tamutup, ou seja, como algum que capaz de representar no apenas sua aldeia, mas uma linha de ancestrais importantes que se sucedem ao longo do tempo. Assim, alado condio de tamutup, um pataentu acumula tarefa de zelar pela harmonia das relaes internas de sua comunidade local, a tarefa de zelar pela harmonia da rede de relaes intercomunitrias mais ampla que tenha conseguido consolidar ao longo de sua vida. Para chegar condio de tamutup, ter um bom auxlio espiritual fundamental, Por isso, muito comum que o tamutup seja tambm paj. S assim ele poder contar diretamente com o apoio de uma rede de espritos aliados, que intervenham por ele na outra dimenso do mundo, invisvel, mas fundamental para definir as relaes no mundo visvel.

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Jeito de casar entre os Katxuyana Para os Katxuyana, assim como para os demais povos da regio, o casamento envolve grandes responsabilidades no apenas entre os noivos, mas principalmente entre estes e suas famlias. Por isso que quando indagado, em um evento da Semana do ndio em Macap, por uma platia de estudantes, sobre a possibilidade de um homem branco casar com uma ndia, Juventino Kaxuyana respondeu: O casamento de um Branco com uma ndia no permitido no. Se o branco tenta casar com a ndia ele vai ter que trabalhar na roa, ele vai ter que sustentar a famlia, vai ter que sustentar o sogro. Isso vocs vo querer fazer? Isso branco no vai querer fazer!.Jeito de casar entre os KaripunaOs Karipuna que vivem na rea do Ua apresentam preferncias matrimoniais bem parecidas com as preferncias dos Katxuyana, mas tambm concebem um tipo de casamento que os antroplogos chamam de avuncular, que a unio entre o irmo da me e a filha da irm, ou seja, entre um tio materno e uma sobrinha. Por outro lado, por toda sua histria de intensos contatos com a populao regional, que abrange ndios e no-ndios, os Karipuna habituaram-se tambm aos casamentos com pessoas de fora. Essas duas tendncias de casamentos parecem se opor uma outra. O primeiro tipo de casamento opta por um certo fechamento entre as famlias, ou outro consiste numa abertura unies com pessoas de fora. Ambas as solues constituem parte do modo prprio dos Karipuna de organizarem suas relaes sociais.

O que este pai de famlia katxuyana queria dizer que o casamento deve fazer parte de um acerto familiar prvio, e no bom que os noivos provenham de famlias muito distantes entre si, pois esta distncia pode ser no apenas espacial, mas de modos de ser e pensar incompatveis com as expectativas a respeito do jeito certo de se casar e constituir famlia entre os Katxuyana. Se por um lado, a diferena que existe entre os Katxuyana e os no-ndios vista como um srio empecilho ao sucesso de um casamento, para os Katxuyana o casamento entre pessoas que se consideram parentes entre si, como no caso de avs

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e netos, pais e filhos, e irmos, algo no apenas desaconselhvel, mas proibido. Para os Katxuyana, os pais de uma criana no so apenas o pai e a me biolgicos, mas tambm o irmo do pai e a irm da me. Sendo assim, se consideram irmos tanto os irmos propriamente ditos, quanto os filhos do irmo do pai e os filhos da irm da me, o que significa que uma parte daqueles a quem ns chamamos de primos, os Katxuyana chamam de irmos. Este um ncleo no interior do qual os Katxuyana e os demais grupos indgenas da regio no aceitam casamentos. Entre a diferena radical representada pelos no-ndios e a identidade de parentesco que existe entre os parentes acima definidos, encontram-se os filhos e filhas do irmo da me e os filhos e filhas da irm do pai de uma pessoa. Estes, para os no-ndios, seriam tambm primos, mas para os Katxuyana compem justamente o ncleo onde ocorrem os casamentos ideais, aqueles que os pais sonham para seus filhos e filhas. E sempre que encontram um indivduo assim posicionado na rede de relaes entre parentes e no-parentes, desde que ele tenha a idade adequada para casar com sua filha ou filho, fazem gosto pela unio entre essas pessoas.

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Jeito de fazer festa Os Turs so festas realizadas pelos pajs para retribuir as curas realizadas aos karuna, seus espritos auxiliares e moradores do "outro mundo". O contato dos pajs com os karuan um dos aspectos mais importantes na cosmologia dos Galibi-Marworno. O Tur normalmente realizado na poca da seca e da derrubada das roas. Mas tem sido pouco realizado atualmente. Para os Galibi-Marworno, fazer um Tur coisa muito sria e sobretudo perigosa. Deve ser realizado segundo regras bem definidas para ser motivo de alegria e no de desgraas. O Tur uma festa de agradecimento aos seres sobrenaturais e encantados, chamados karuna, pelas curas que eles propiciam atravs das prticas dos pajs. a ocasio em que a comunidade dana, canta e bebe muito caxiri junto com esses seres sobrenaturais, que vm se alegrar na festa e ouvir o paj cantar durante vrias noites sem repetir as canes. O Tur pode ser realizado a qualquer momento, mas o verdadeiro ritual feito durante a lua cheia de outubro. Fazem parte do Tur os mastros enfeitados, os grandes bancos da cobra grande ou do jacar, onde se sentam os convidados, no espao sagrado chamado lakuh ou piroro. Junto ao mastro fica o banco do paj e o seu pakar, cesto onde guarda o marac e os cigarros tawari. A bebida caxiri, muito apreciada pelos karuna, preparada pelas mulheres, com mandioca apropriada e colocada em grandes potes de cermica. Cada participante prepara seus instrumentos, que incluem o marac, o tur tambm chamado de sinal que um clarinete feito de bambu que pode ser de diferentes tamanhos e o cuti, instrumento de sopro de tamanho

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maior. Como vestimenta os homens usam o calimb, um pano vermelho amarrado na cintura, usam ainda a coroa ou o famoso chapu de penas e o colar de miangas com pendentes de algodo e, na ponta, asas de besouro que fazem barulho durante a dana. As mulheres usam saia e corpete vermelhos, alm da coroa e colares. Apenas o paj pode convocar a festa e saber quais os karuna convidados e os cantos a serem executados. Os seus ajudantes cantam juntos e h sempre dois guardas que vigiam para que no haja desrespeito ao ritual.

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Modos de fazer Jeito de fazer sakura Os Tiriy preparam vrios tipos de bebida, que chamam em geral de tnunsen. Para suas festas, fazem bebidas fermentadas base de mandioca, como o caxiri conhecido em toda a regio, mas tambm fazem sakura, umani e kurura. A receita deve ser preparada por mulheres que se dispem a cumprir todos os cuidados necessrios durante o seu preparo, como por exemplo, no ter relaes sexuais, no estarem menstruadas, no usar perfume, nem maquiagem. Ingredientes: Leva mais ou menos 5 litros de gua, cinco quilos de batata roxa ou amarela. Mais ou menos 20 quilos de mandioca brava. Tem vrios tipos: karoiyp, tunareha, e kawiririp, mas s vai de um tipo, no se pode mistur-los. Modo de fazer: Primeiro coloca-se os cinco litros de gua no fogo, para ferver. Depois a mandioca ralada para cozinhar junto. Acrescenta-se a batata no mesmo dia para cozinhar por mais ou menos 12 horas, at que fique uma massa grossa e bem cozida. A est pronto. Quem quiser tomar a bebida ainda fraquinha e doce ca e bebe em seguida. Mas se a inteno que a bebida fique com mais teor alcolico deve-se deixar uma semana e meia ou duas semanas fermentando, antes de coar e servir. Contam as mulheres tiriy que na poca das festas grandes, como acontece no final do ano, tem gente que deixa a bebida fermentando na canoa ou panela por at um ms.

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Jeito de fazer caxiri Nas aldeias dos povos indgenas do Oiapoque, o caxiri consumido durante rituais como o Tur. Neste contexto, o caxiri considerado uma entidade convidada a participar dos festejos atravs dos cantos do paj. Conta-se que os seres sobrenaturais possuem a capacidade de produzir enormes quantidades de caxiri. No mito de Iacaicani, a Cobra Grande levada a tomar dezenas de potes de caxiri, servidos por sua mulher, para no agredir o menino que caiu em seus aposentos. Durante o Tur, o caxiri servido pelas mulheres de maneira ritualizada. A bebida pode tambm servir como castigo aos infratores das regras que regem o Tur, quando, sentados em um banco de urubu-rei, fora do laku, so obrigados a beber quantidades exageradas dessa bebida. Durante o Tur, h o canto de pegar a bebida, porque o caxiri gente do Tur. Entre os Galibi de Oiapoque, mulher menstruada no pode fabricar o caxiri sob pena de que ele estrague. Os potes nos quais fabricado o caxiri so feitos apenas pelos Palikur, que os fornecem a todas as localidades indgenas da regio. Os Galibi do Oiapoque faziam potes parecidos, mas hoje no os fazem mais. Os Karipuna tambm servem o caxiri durante os grandes mutires de roa. Alm dessas oportunidades, a bebida sempre oferecida durante as festas catlicas do Esprito Santo pelos Karipuna, ou de Santa Maria, pelos GalibiMarworno. tambm servida nas festas de santos. Hoje no h grandes Assemblias sem caxiri servido aos visitantes.

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As receitas podem variar um pouco, mas so basicamente as mesmas. Em um contexto ritual, um grupo de mulheres que se encarrega do preparo, longe do olhar dos homens. Preparam no platine um grande beiju de mandioca ralada e prensada. Para revirar o beiju, o desenham e recortam em fatias, um gesto que se chama pataje kasab, como a marca (padro decorativo) usada em muitos suportes, especialmente nos tranados. Este beiju colocado com gua em um pote grande, adicionando-se acar ou mel, s vezes um xarope de abacaxi. Antes de ser deixado para descansar e fermentar, as mulheres se renem ao redor do pote, cantam e