Patrística - Comentário aos Salmos (1-50) - Vol. 9/1 · salmo 14 comentÁrio salmo 15 comentÁrio...

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  • ndice

    APRESENTAOINTRODUO

    1. Os salmos na vida judaica antiga2. Autores e tempo de composio3. Os salmos na vida de santo Agostinho4. O Comentrio aos SalmosBIBLIOGRAFIA

    SALMO 1COMENTRIO

    SALMO 2COMENTRIO

    SALMO 3COMENTRIO

    SALMO 4COMENTRIO

    SALMO 5COMENTRIO

    SALMO 6COMENTRIO

    SALMO 7COMENTRIO

    SALMO 8COMENTRIO

    SALMO 9COMENTRIOSALMO 9 (2 PARTE)

    SALMO 10COMENTRIO

    SALMO 11COMENTRIO

    SALMO 12COMENTRIO

    SALMO 13COMENTRIO

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  • SALMO 14COMENTRIO

    SALMO 15COMENTRIO

    SALMO 16COMENTRIO

    SALMO 17COMENTRIO

    SALMO 18I. COMENTRIOII. SERMO AO POVO

    SALMO 19COMENTRIO

    SALMO 20COMENTRIO

    SALMO 21I. COMENTRIOII. SERMO AO POVO

    SALMO 22COMENTRIO

    SALMO 23COMENTRIO

    SALMO 24COMENTRIO

    SALMO 25I. COMENTRIOII. SERMO AO POVO

    SALMO 26I. COMENTRIOII. SERMO AO POVO

    SALMO 27COMENTRIO

    SALMO 28COMENTRIO

    SALMO 29I. COMENTRIOII. SERMO AO POVO

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  • SALMO 30I. COMENTRIOII. SERMO ISERMO IISERMO III

    SALMO 31I. COMENTRIO

    SALMO 32I. COMENTRIOII. SERMO ISERMO II

    SALMO 33SERMO ISERMO II

    SALMO 34SERMO ISERMO II

    SALMO 35SERMO AO POVO

    SALMO 36SERMO ISERMO IISERMO III

    SALMO 37SERMO AO POVO

    SALMO 38SERMO

    SALMO 39SERMO AO POVO

    SALMO 40SERMO AO POVO

    SALMO 41SERMO AO POVO

    SALMO 42SERMO AO POVO

    SALMO 43SERMO AO POVO

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  • SALMO 44IV das Nonas de setembro. Quarta-feira. Sermo pronunciado na baslicaRestituda.

    SALMO 45SERMO AO POVO

    SALMO 46SERMO AO POVO

    SALMO 47SERMO AO POVO

    SALMO 48SERMO ISERMO II

    SALMO 49SERMO AO POVO

    SALMO 50SERMO

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  • APRESENTAO

    Surgiu, pelos anos 40, na Europa, especialmente na Frana, um movimento deinteresse voltado para os antigos escritores cristos e suas obras conhecidos,tradicionalmente, como Padres da Igreja, ou Santos Padres. Esse movimento,liderado por Henri de LUBAC e Jean DANILOU, deu origem coleo SourcesChrtiennes, hoje com mais de 300 ttulos, alguns dos quais com vrias edies. Como Conclio Vaticano II, ativou-se em toda a Igreja o desejo e a necessidade derenovao da liturgia, da exegese, da espiritualidade e da teologia a partir das fontesprimitivas. Surgiu a necessidade de voltar s fontes do cristianismo.No Brasil, em termos de publicao das obras destes autores antigos, pouco se fez.Paulus Editora procura, agora, preencher este vazio existente em lngua portuguesa.Nunca tarde ou fora de poca para se rever as fontes da f crist, os fundamentos dadoutrina da Igreja, especialmente no sentido de buscar nelas a inspirao atuante,transformadora do presente. No se prope uma volta ao passado atravs da leitura eestudo dos textos primitivos como remdio ao saudosismo. Ao contrrio, procura-seoferecer aquilo que constitui as fontes do cristianismo para que o leitor as examine,as avalie e colha o essencial, o esprito que as produziu. Cabe ao leitor, portanto, atarefa do discernimento. Paulus Editora quer, assim, oferecer ao pblico de lnguaportuguesa, leigos, clrigos, religiosos, aos estudiosos do cristianismo primevo, umasrie de ttulos, no exaustiva, cuidadosamente traduzidos e preparados, dessa vastaliteratura crist do perodo patrstico.Para no sobrecarregar o texto e retardar a leitura, procurou-se evitar anotaesexcessivas, as longas introdues estabelecendo paralelismos de verses diferentes,com referncias aos emprstimos da literatura pag, filosfica, religiosa, jurdica, sinfindas controvrsias sobre determinados textos e sua autenticidade. Procurou-sefazer com que o resultado desta pesquisa original se traduzisse numa ediodespojada, porm, sria.Cada autor e cada obra tero uma introduo breve com os dados biogrficosessenciais do autor e um comentrio sucinto dos aspectos literrios e do contedo daobra suficientes para uma boa compreenso do texto. O que interessa colocar o leitordiretamente em contato com o texto. O leitor dever ter em mente as enormesdiferenas de gneros literrios, de estilos em que estas obras foram redigidas: cartas,sermes, comentrios bblicos, parfrases, exortaes, disputas com os herticos,tratados teolgicos vazados em esquemas e categorias filosficas de tendnciasdiversas, hinos litrgicos. Tudo isso inclui, necessariamente, uma disparidade detratamento e de esforo na compreenso de um mesmo tema. As constantes, e por vezeslongas, citaes bblicas ou simples transcries de textos escritursticos, devem-se aofato que os Padres escreviam suas reflexes sempre com a Bblia numa das mos.Julgamos necessrio um esclarecimento a respeito dos termos patrologia, patrstica e

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  • padres ou pais da Igreja. O termo patrologia designa, propriamente, o estudo sobre avida, as obras e a doutrina dos pais da Igreja. Ela se interessa mais pela histriaantiga incluindo tambm obras de escritores leigos. Por patrstica se entende o estudoda doutrina, as origens dessa doutrina, suas dependncias e emprstimos do meiocultural, filosfico e pela evoluo do pensamento teolgico dos Pais da Igreja. Foi nosculo XVII que se criou a expresso teologia patrstica para indicar a doutrina dosPadres da Igreja, distinguindo-a da teologia bblica, da teologia escolstica, dateologia simblica e da teologia especulativa. Finalmente, Padre ou Pai daIgreja se refere a um escritor leigo, sacerdote ou bispo, da antiguidade crist,considerado pela tradio posterior como testemunho particularmente autorizado daf. Na tentativa de eliminar as ambiguidades em torno desta expresso, os estudiososconvencionaram em receber como Pai da Igreja quem tivesse estas qualificaes:ortodoxia de doutrina, santidade de vida, aprovao eclesistica e antiguidade. Mas,os prprios conceitos de ortodoxia, santidade e antiguidade so ambguos. No espereo leitor encontrar neles doutrinas acabadas, buriladas, irrefutveis. Tudo estava aindaem ebulio, fermentando. O conceito de ortodoxia , portanto, bastante largo. Omesmo vale para o conceito de santidade. Para o conceito de antiguidade, podemosadmitir, sem prejuzo para a compreenso, a opinio de muitos especialistas queestabelece, para o Ocidente, a Igreja Latina, o perodo que, a partir da geraoapostlica, se estende at Isidoro de Sevilha (560-636). Para o Oriente, a Igreja grega,a antiguidade se estende um pouco mais at a morte de s. Joo Damasceno (675-749).Os Pais da Igreja so, portanto, aqueles que, ao longo dos sete primeiros sculos,foram forjando, construindo e defendendo a f, a liturgia, a disciplina, os costumes, eos dogmas cristos, decidindo, assim, os rumos da Igreja. Seus textos se tornaramfontes de discusses, de inspiraes, de referncias obrigatrias ao longo de todatradio posterior. O valor dessas obras que agora Paulus Editora oferece ao pblicopode ser avaliado neste texto: Alm de sua importncia no ambiente eclesistico, osPadres da Igreja ocupam lugar proeminente na literatura e, particularmente, naliteratura greco-romana. So eles os ltimos representantes da Antiguidade, cuja arteliterria, no raras vezes, brilha nitidamente em suas obras, tendo influenciado todasas literaturas posteriores. Formados pelos melhores mestres da Antiguidade clssica,pem suas palavras e seus escritos a servio do pensamento cristo. Se excetuarmosalgumas obras retricas de carter apologtico, oratrio ou apuradamente epistolar,os Padres, por certo, no queriam ser, em primeira linha, literatos, e sim, arautos dadoutrina e moral crists. A arte adquirida, no obstante, vem a ser para eles meiopara alcanar este fim. () H de se lhes aproximar o leitor com o corao aberto,cheio de boa vontade e bem disposto verdade crist. As obras dos Padres se lherevertero, assim, em fonte de luz, alegria e edificao espiritual (B. Altaner; A.Stuiber, Patrologia, S. Paulo, Paulus, 1988, pp. 21-22).

    A Editora

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  • INTRODUO

    Numa traduo fiel e redao excelente, Paulus Editora apresenta ao pblico brasileiro ea todos os leitores de lngua portuguesa, o Comentrio aos Salmos (Enarrationes inpsalmos) de Santo Agostinho. Os salmos tm sido e continuam sendo fonte riqussima dainspirao de um dos legados bblicos mais fecundos para a espiritualidade da civilizaoocidental. Seu emprego entre os cristos se constata desde os primrdios, criando umadas tradies mais firmes e inquestionveis da vida crist. Talvez o pouco peso docontexto histrico, o refletir os verdadeiros sentimentos humanos de angstia, de alegria,de tristeza, de sofrimento, de abandono ou de triunfo, de vitria, de esperana, tornamos salmos sempre atuais e facilitam sua leitura, compreenso e acomodao tanto na vidapessoal do fiel quanto na vida da comunidade. Essa falta de concretude histrica, ageneralidade das emoes, tornam os salmos aplicveis a uma larga variedade desituaes, contribuindo para que sejam fonte inesgotvel de inspirao para milhares degeraes, at nossos dias.

    1. Os salmos na vida judaica antiga

    Os judeus do aos salmos o nome de tehillim, cntico de louvor, ou tefillot, preces. NosLXX, psalms a traduo de mizmor, que significa cntico acompanhado de uminstrumento de cordas. Psalms, que se traduziu para o latim tardio por psalmus,significa, de fato, cantar ao som da ctara, vibrar as cordas de um instrumento, tocarum instrumento de cordas. Fora da coleo dos 150 salmos, que forma o Livro dosLouvores, encontram-se cnticos e hinos semelhantes como em Ex 15,1-19: Hino aoDeus libertador; 1Sm 2,1-10: Orao de Ana, esperana de um reino justo, onde Lucasse inspirou para compor o Magnficat; Is 38,10-20: Cntico de Ezequias, rei de Jud, porocasio da cura que obteve; Jn 2,3-9: Orao que Jonas dirige a Jav, do ventre do peixeque o havia engolido; Hab 3,2-19: Orao do profeta cheio de esperana na intervenode Jav.Nos salmos, Israel canta incessantemente o nome de Jav. O louvor confisso dasgrandezas de Deus: o espetculo da natureza; a atividade divina no mundo e na histria;perigos, tentaes e alegrias que invadem a vida do justo; a realeza de Jav, a soberaniade Deus que rege o mundo e a histria de Israel.Como se v, os temas que se encontram nesta coletnea de poesia lrica-religiosa doAntigo Testamento so abundantes. Contudo, tradicionalmente, so divididos em quatrocategorias principais, conforme o contedo e a forma: hinos de exaltao, lamentaesindividuais ou coletivas, ao de graas e salmos imprecatrios.Os hinos de exaltao ou salmos de louvor decantam a bondade, a grandeza, a justia, afora e a ao-presena de Jav na natureza e na histria de Israel. J os salmos delamentaes so destinados para os dias de jejum e de penitncia (Sl 44; 60; 74; 79; 80).

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  • So numerosas as lamentaes individuais nas quais o poeta-compositor pede a Deus alibertao ou a salvao ou, ento, perdo dos pecados. No Templo, o cntico dossalmos acompanha principalmente o sacrifcio de louvor, sacrifcio pacfico seguido deuma refeio sagrada, muito alegre.Especialmente a partir da construo do Templo, o louvor aparece ligado liturgia, participao viva do povo, alegre, sobretudo por ocasio das festas anuais, da sagraodo novo rei, da comemorao de uma vitria. As aclamaes traduzem o entusiasmo daassembleia: Amm, Aleluia, os estribilhos Pois eterno seu amor, o perfume doincenso, a msica e os cnticos. sem dvida para fins de louvor cultual que foramcompostos numerosos salmos que se encontram nos trs grupos tradicionais: o PequenoHallel (Sl 113 a 118), o Grande Hallel (Sl 136), o Hallel final (146-150). Compostostambm para solenidades do culto, salmo de romaria e de entrada.Alguns salmos pertencem literatura sapiencial; outros, como 37 e 73, tratam doproblema da retribuio. Contudo, entre os salmos, o que sempre causou estranheza edificuldades para a interpretao e a adaptao vida crist, foram os salmosimprecatrios. Oprimido ou perseguido pelos inimigos, o salmista prorrompe emveementes maldies contra seus adversrios (5,11; 7,10.16; 35,4-6, por exemplo), oucontra os inimigos de Israel (79,6.12; 83,10-19; 129,5-8). Dessa forma, os salmosconstituem-se na grande sntese dos temas, dos sentimentos e das emoes do povoisraelita. Se h uma diversidade de temas, h, por outro lado, uma unidade de estilopotico, de esprito: so o espelho da alma religiosa de Israel com a qual milhares degeraes se identificaram.

    2. Autores e tempo de composio

    Criou-se o hbito, na Igreja, de se atribuir a autoria dos salmos ao rei Davi. Mas, hojeest demonstrado que o livro dos salmos rene peas que foram compostas ao longo desetecentos anos; como, ento, determinar seus autores? As disciplinas histricas prximasdas cincias do homem e da literatura esclarecem os acontecimentos e os ambientesculturais nos quais os salmos tiveram origem. Alguns salmos empregam conceitosarcaicos, pr-monotestas (89,5-10, por exemplo). Alguns julgam que sua composioter-se-ia efetuado na poca ps-exlica. Outros analistas admitem a possibilidade deexistirem salmos pr-israelitas, ulteriormente retocados e readap-tados f javista. NoTexto Masortico, 73 salmos so atribudos a Davi, 12 a Asaf, 11 aos filhos de Cor, 1 aMoiss, 1 a Salomo, 1 a Heman e 50 so annimos.Se Davi no pode ser tomado como o autor absoluto dos salmos, no se pode negar suainfluncia sobre este gnero de orao. Davi era conhecido no s como valenteguerreiro, mas tambm como poeta-trovador e msico (cf. 1Sm 16,16-23; 1Cr 23-29;Am 6,5). Alm de reorganizar o exrcito e a administrao pblica, regularizou o culto,organizou, classificou e estabeleceu funes especficas para o clero e os levitas. No difcil, portanto, admitir que tenha composto cnticos para o culto. Dos 73 salmos quelhe so atribudos, nem todos so propriamente de sua autoria. So-lhe atribudos

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  • maneira de patrocnio, de patrono. Alguns salmos so reconhecidos como obra dascorporaes de profissionais do Templo, especialmente os que se referem ao monte Sioou ao Templo. Um grande nmero de salmos foi revisto, completado ou adaptado ao usolitrgico. Assim, os ttulos, diferentes do texto hebraico e nas diversas verses, advm,provavelmente, dos ltimos colecionadores e no dos prprios autores.

    3. Os salmos na vida de santo Agostinho

    A leitura e a meditao dos salmos estiveram presentes na vida de Agostinho desde oincio de seu catecumenato. Encontrando certa dificuldade de compreenso na leitura dostextos do profeta Isaas, o bispo de Milo, Ambrsio, indicou-lhe os salmos:Comuniquei por carta a teu santo bispo Ambrsio os meus erros passados e a minhainteno presente, pedindo-lhe que me sugerisse qual dos teus livros eu deveria depreferncia ler, a fim de melhor me preparar para receber to grande graa. Prescreveu-me a leitura do profeta Isaas (). Achando, no entanto, incompreensvel o incio, ejulgando fosse todo assim, suspendi a leitura, com a inteno de retom-la quandoestivesse exercitado na palavra do Senhor (Conf. IX, 5,13). Quanto te invoquei, meuDeus, ao ler os salmos de Davi, cnticos de f, hinos de piedade contrastantes comqualquer sentimento de orgulho, eu, novato ainda no caminho do teu verdadeiro amor,catecmeno em frias (). Quantas exclamaes me inspirava a leitura desses salmos, ecomo eles me inflamavam no teu amor! Desejava ardentemente recit-los, se possvel,para todo o mundo, a fim de rebater o orgulho do gnero humano. E, no entanto, socantados no mundo inteiro, e nada pode furtar-se ao teu calor (Conf. IX, 4,8).Agostinho encontrava, na leitura dos salmos, as luzes que lhe iluminavam os mistriosdivinos, provocavam seus afetos, suas alegrias, suas esperanas de catecmeno. Dessemodo, o Comentrio aos Salmos ser obra de toda a vida de Agostinho. A leitura dossalmos ainda como catecmeno o cativou e, apenas ordenado sacerdote, comeou aexpor os salmos sem ordem determinada. Mesmo que no pudesse pregar ao povo, nodeixou de escrever um comentrio sobre cada um dos salmos; como se sabe, nem todosos comentrios foram expostos aos fiis na forma de sermo. Como pastor,compreendeu bem cedo a utilidade pastoral dos salmos. Esta parece ter sido a norma queo orientou a levar a termo, com enorme esforo e dedicao exclusiva, o comentrio,conforme escreve a seu amigo Evdio: Ditei a exposio de trs novos salmos, o 67, 71e 77, com bastante amplido. Todos esperam e exigem com afinco os que ainda no diteinem estudei. No quero que me afastem desta tarefa e me retardem em qualquer outrasquestes que me apaream. Nem sequer quero continuar agora os livros Sobre aTrindade que h tempos trago entre as mos e que ainda no conclu (Epist. 169,1).Mas a dimenso e o alcance pastoral dos salmos ficam claros neste texto das Confissesquando revela as tentaes do ouvido: Ainda agora encontro algum descanso noscnticos vivificados pelas tuas palavras () verdade que essas melodias exigem nopequeno lugar em seu corao () Se aquelas palavras so cantadas assim, nossas almasso impelidas a um fervor de piedade mais devoto e ardente (). Outras vezes, pelo

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  • contrrio, () exagerando em precaver-me desse perigo, peco por excessiva severidade,a ponto de querer privar meus ouvidos, e consequentemente os de toda a Igreja, das suasmelodias usadas para acompanhar o Saltrio de Davi. Nessas condies, me parece maisseguro seguir o costume de Atansio, bispo de Alexandria: segundo ouvi dizer, ele fazialer os Salmos com modulao de voz to discreta, que mais parecia uma recitao queum canto. Todavia, quando me lembro das lgrimas derramadas ao ouvir os cnticos detua Igreja nos primrdios de minha converso f, e ao sentir-me agora atrado,cantados em voz lmpida e modulao apropriada, reconheo de novo a grande utilidadedeste costume. Assim oscilo entre o perigo do prazer e a constatao de seus efeitossalutares. () Inclino-me a aprovar o costume de cantar na igreja, para que os espritosmais fracos possam, atravs do prazer dos ouvidos, elevar-se na devoo (Conf. X, 23,49.50).Nesse texto, destacam-se trs itens importantes que gostaramos de apontar. O primeirodiz respeito ao drama interno de Agostinho, que oscilando entre o perigo de ceder stentaes do deleite, transformando o uso litrgico do cntico dos salmos numa ocasiode pecado, e a eficcia pastoral dessa prtica, opta por esta ltima. O segundo revela ouso j difundido desta prtica do cntico dos salmos, fazendo referncia igreja deAlexandria e s decises do bispo Atansio que a dirigia. Por fim, o terceiro fala sobre asorigens do emprego do cntico pelos fiis, nos primrdios de sua converso, na cidade deMilo. De fato, no livro das Confisses IX, 7,15, relata a maneira como se introduziu ocostume de cantar os salmos e hinos na igreja de Milo, por obra de Ambrsio: Nohavia muito tempo que a igreja de Milo comeara a adotar o consolador e edificantecostume de celebrar com grande fervor os ritos com o canto dos fiis, que uniam num scoro as vozes e o corao. () A multido dos fiis velava na igreja, pronta a morrercom seu bispo (). Foi ento que comeou o uso de cantarem hinos e salmos como osorientais, a fim de que os fiis no se acabrunhassem com o tdio e a tristeza. Esse usosubsiste at hoje e foi imitado pela maior parte das comunidades de fiis, espalhados portodo mundo.Dado que o saltrio estava entre os livros das Escrituras mais lidos, ao lado dosEvangelhos e das Cartas dos apstolos, Agostinhho intenciona dar a conhecer aos fiisque j conheciam as letras dos salmos, o seu sentido espiritual, o que no estava aoalcance de todos. Por isso os fiis instavam para que ele lhes apresentasse o Comentrioaos Salmos.

    4. O Comentrio aos Salmos

    Ao inciar seu Comentrio aos Salmos, Agostinho se colocava dentro de uma slidatradio patrstica, pois grande parte dos Padres da Igreja e escritores eclesisticoshaviam elaborado comentrios totais ou parciais aos salmos. Orgenes, Atansio, Baslio,Ambrsio, Gregrio de Nissa, Ddimo, Diodoro de Tarso, Teodoro de Mopsustia,Eusbio de Cesareia e Jernimo, para citar os mais conhecidos, dedicaram seu tempo econhecimentos no comentrio aos salmos; nenhum, porm, alcanou o xito do

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  • comentrio de Agostinho.O Comentrio nasce no contexto litrgico, mesmo as partes que foram apenas redigidase nunca pregadas. ali que os salmos so lidos, cantados, apreciados, comentados emeditados. Por essa razo, no se encontra no Comentrio uma elaborao teolgicasistemtica, mas sente-se nele a fala do pastor, o pregador popular, o catequista.Comentando os salmos, tem ocasio de tocar em todas as grandes questes de seutempo: teolgicas, bblicas, morais, espirituais. Ao longo do comentrio vo surgindotodas as classes da sociedade: o escravo, o bbado, o bispo, o monge, a virgem.Problemas da vida matrimonial, dos jovens, dos espetculos, dos clrigos e da vidamonstica. A todos quer convencer que se pode ser perfeito no prprio estado em quecada um se encontra, desde que pertencendo a Cristo e aceitando a vontade de Deus. Agraa coroar a obra do esforo e do trabalho de cada um. Indica soluo para osproblemas da f, para o drama da existncia humana: amarrar-se a Cristo, cruz, meditaras tribulaes de Cristo, tomar como bandeira a ressurreio. Esta a nica sada destevale em que caiu a existncia humana.Assim, o Comentrio serve para instruir os fiis, isto , dar-lhes a inteligncia do texto einform-los de uma problemtica bem mais ampla e complexa. Despojado de polmica,de inspirao inteiramente pastoral, no tem a profundidade das obras dogmticas e nemsua aridez e dificuldades de compreenso. Ele mesmo reconhece, numa carta a Evdio,que o tratado Sobre a Trindade rido e de proveito para poucos: Estes escritos do-me demasiada fadiga, e me imagino que so poucos os que havero de entend-los(Epist. 169,1). Poucos leitores sero capazes de acompanhar suas reflexes sobre aTrindade.No Comentrio aos Salmos, Agostinho buscava sempre uma passagem paralela nosEvangelhos ou nas Cartas dos Apstolos qual fazia referncia. Neles, tem ocasio depr em prtica todas as normas que havia traado, anteriormente, em sua obra sobre Adoutrina crist, para a interpretao das Escrituras.Sua exegese no extraordinria. No vai alm dos moldes da exegese de seu tempo,carregada sempre da dupla influncia de sua formao escriturstica: do maniquesmo ede Ambrsio. Seus comentrios no so, por isso obra de especialista nem dirigidos aespecialistas. Agostinho, portanto, no elabora obra de cientista bblico, mas de pastorque visa diretamente a alimentar o seu rebanho. Sua tarefa consistia em fazer ver, aohomem pecador, desesperanado, filho de um imprio que rua, a possibilidade desalvao.Embora defensor do sentido literal, sabe que isto diz muito pouco ao esprito dos fiis.Como as Escrituras, especialmente os salmos, devem produzir um efeito espiritual ecomo tudo no Antigo Testamento era figura, anncio do Novo, aps aclarar o sentidoliteral do texto, Agostinho desenvolve o sentido espiritual ou figurado dos salmos. Tratamais de afirmar a f, nutrir a esperana, do que fazer estudos sobre o estilo, o gneroliterrio, a estrutura dos salmos. O crente que nos salmos geme, sente-se em cativeiro,sente-se perseguido, ameaado, enfermo, suplica cura, alvio, libertao. Por essa razo,no Comentrio sobressaem trs aspectos que a graa produz no crente: libertao, cura e

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  • deleite. No comentrio ao Sl 102, Agostinho sublinha seis benefcios da graa: perdodos pecados; a cura das enfermidades da alma; a libertao da morte eterna; a coroa davitria; a satisfao dos desejos de bem e a renovao da juventude; desveste a alma dasobras do velho homem e a veste com as do novo.Mas o que Agostinho destaca com maior frequncia a presena de Cristo nos salmos.Cristo aparece, para ele, em cada salmo. Cristo quem fala nos salmos. Os textos queno se aplicam diretamente ao Cristo real, cabea, aplicam-se a seu corpo, a Igreja, aseus membros. Insiste na unidade de Cristo com todos os membros e dos membros entresi. Por isso, para ele, Cristo e a Igreja so uma nica realidade, uma s alma, uma spessoa. sempre a voz de Cristo que se ouve nos salmos, voz que repercute em seuCorpo, a Igreja, na humanidade redimida.

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  • SALMO 1

    COMENTRIO

    1 1 Feliz o homem que no entrou no conselho dos mpios. Trata-se de nosso SenhorJesus Cristo, homem e Senhor1. Feliz o homem que no entrou no conselho dosmpios, como o homem terreno, que consentiu na sugesto da mulher, enganada pelaserpente, e desobedeceu aos preceitos de Deus. No se deteve no caminho dospecadores. Cristo, de fato, veio pelo caminho dos pecadores, ao nascer como ospecadores, mas no se deteve, porque no o retiveram as sedues do mundo. Nem sesentou em ctedra pestfera. Recusou o reinado terrestre e a soberba, com razoconsiderada ctedra pestilencial, pois quase no existe quem esteja isento da ambio dedominar e do desejo de glria humana. A peste epidemia que em larga escala sepropaga e atinge a todos, ou quase todos. Em sentido acomodatcio, ctedra pestferarepresentaria antes uma doutrina perniciosa, a corroer como gangrena (2Tm 2,17). Emseguida, observemos a ordem das palavras: entrou, se deteve, sentou-se. Entrou quemde Deus se afastou; deteve-se quem se deleitou no pecado; sentou-se o obstinado nasoberba, que no retrocedeu enquanto no foi libertado por quem no entrou noconselho dos mpios, no se deteve no caminho dos pecadores, nem se sentou emctedra pestfera.

    2 2 Mas aderiu lei do Senhor e dia e noite a meditar. A lei no destinada aojusto, diz o Apstolo (1Tm 1,9). Difere estar dentro da lei e estar sob a lei. Quem seacha dentro da lei, age conforme a lei; quem esta sob a lei coagido por ela. O primeiro livre, o segundo escravo. Por conseguinte, uma coisa a lei escrita, imposta aoescravo e outra, a lei apreendida pelo intelecto de quem pode dispensar a letra. Dia enoite a meditar, sem interrupo; ou ento, por dia entende-se a alegria e por noiteas tribulaes. Pois, foi dito: Abrao exultou por ver o meu dia (Jo 8,56); e diz-se datribulao: At de noite adverte-me o corao (Sl 15,7).

    3 3 Ser como a rvore plantada beira das guas correntes, isto , ao lado da prpriaSabedoria, que se dignou assumir a natureza humana, para nossa salvao. O prpriohomem seria a rvore plantada beira das guas correntes. Pode-se adotar estainterpretao tambm para uma passagem de outro salmo: O rio de Deus encheu-se degua (Sl 64,20). Talvez se refira ao Esprito Santo, conforme a palavra: Ele vosbatizar com o Esprito Santo (Mt 3,11). E ainda: Se algum tem sede, venha a mim ebeba (Jo 7,37). E: Se conhecesses o dom de Deus e quem que te diz: D-me debeber, tu que lhe pedirias e ele te daria gua viva, e quem dela beber, nunca mais tersede. Pois tornar-se- nele uma fonte de gua que jorra para a vida eterna (Jo4,10.13.14). Ou talvez, beira das guas correntes, isto , os pecados dos povos,

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  • porque no Apocalipse (Ap 17,15), guas significam os povos. No absurdo entenderpor correntes uma queda, referente a delito. A rvore, a saber, nosso Senhor, produzirfruto, estabelecer igrejas, formadas de guas correntes, os povos pecadores, que eleatrai ao caminho, s razes de sua doutrina. Em tempo oportuno, depois de glorificadopela ressurreio e ascenso ao cu. Ento ele produziu o fruto das Igrejas, aps terenviado o Esprito Santo aos apstolos, fortificando-lhes a confiana e destinando-os aospovos. Sua folhagem no murchar, sua palavra no ser v, toda carne feno e todaa sua graa como a flor do feno; secou o feno murchou a flor, mas a palavra do Senhorsubsiste para sempre (Is 40,6-8). Tudo o que fizer h de prosperar, tudo o que aquelarvore produzir. Tudo, frutos e folhas, isto , obras e palavras.

    4 4 Bem diversa ser a sorte dos mpios, poeira que o vento carrega da superfcie daterra. Terra aqui significa a estabilidade em Deus, de acordo com a palavra: O Senhor a poro de minha herana. A minha herana excelente (Sl 15,5.6). Confia noSenhor, segue seus caminhos e ele te exaltar, dando-te a terra (Sl 36,34). Talcomparao aduzida porque a terra visvel nutre e contm o homem exterior; o mesmoacontece terra invisvel em relao ao homem interior. Da superfcie desta terra, ovento carrega o mpio, quer dizer, a soberba que incha. Dela se precavendo, pede quemse inebriava com a abundncia da casa de Deus e bebia da torrente de suas delcias:No me pisoteie a soberba (Sl 35,9.12). A soberba carregou desta terra aquele queasseverou: Porei meu trono no aquilo, e serei semelhante ao Altssimo (Is 14,13.13).Da superfcie desta terra o vento carregou tambm aquele que, tendo consentido eprovado do fruto proibido para se tornar como Deus, escondeu-se da face de Deus (Gn3,6.8). Pode-se entender especialmente ser essa terra relativa ao homem interior, e tersido o homem de l expulso por causa da soberba, conforme est escrito: De que seorgulha quem terra e cinza, um ser que, vivendo, lana fora as vsceras? (Eclo10,9.10) No absurdo afirmar que ele mesmo se lanou para fora do lugar de onde foraexpulso.

    5 5 Os mpios no se levantaro no juzo, porque como a poeira sero carregados dasuperfcie da terra. Com razo se afirma serem os soberbos privados do queambicionam, o poder de julgar. Torna-se isso mais compreensvel na frase seguinte:Nem os pecadores no conselho dos justos. Costuma-se repetir assim, de modo maisexplcito, o que j fora declarado. Pecadores so os mpios. Acima se encontra: nojuzo. Aqui, no conselho dos justos. Ou certamente, se mpios e pecadores no seidentificam, porque todo mpio pecador, todavia nem todo pecador mpio. Os mpiosno prevalecero no juzo, quer dizer, ressurgiro, mas no para serem julgados, porquej esto condenados a penas bem determinadas. Os pecadores, porm, no ressurgem naassembleia dos justos para julgar, mas provavelmente para serem julgados, conforme sedisse a respeito deles: O fogo provar o que vale o trabalho de cada um. Se a obrasubsistir, o operrio receber uma recompensa. Aquele, porm, cuja obra for queimadaperder a recompensa. Ele mesmo, entretanto, ser salvo, mas como que atravs dofogo (1Cor 3,13-15).

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  • 6 6 Porque o Senhor conhece o caminho dos justos. Como se afirma que a medicinaconhece a sade e no as doenas, embora as doenas sejam descobertas pela artemdica, assim possvel dizer que o Senhor conhece o caminho dos justos e ignora odos mpios. O Senhor nada ignora; no entanto, declara aos pecadores: Nunca vosconheci (Mt 7,23). Foi dito que o caminho dos mpios leva perdio, como sedissesse: O Senhor no conhece o caminho dos mpios. Mas explicitamente se diz queser ignorado pelo Senhor equivale a perecer, e ser conhecido por ele significapermanecer. O ser relaciona-se com a cincia de Deus, o no ser ao desconhecimento daparte dele, porque o Senhor diz: Eu sou aquele que . E: Eu sou me enviou at vs(Ex 3,14).

    1 Retract. 5, 18,11

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  • SALMO 2

    COMENTRIO

    1 1.2 Por que as naes se agitaram e os povos tramaram em vo? Os reis da terra sesublevaram e os prncipes unidos conspiraram contra o Senhor e o seu Cristo. Porque em vez de em vo. Pois, eles no conseguiram realizar o intento de pr termo vida de Cristo. Trata-se dos perseguidores do Senhor, citados tambm nos Atos dosApstolos (At 4,26).

    2 3 Quebremos suas cadeias e sacudamos o seu jugo. Embora possa ter outro sentido,aplica-se melhor s pessoas das quais se disse que tramaram em vo. Quebremos suascadeias e sacudamos o seu jugo. Cuidemos de que a religio crist no nos prenda nemnos seja imposta.

    3 4 Rir-se- deles o que habita nos cus. Deles zombar o Senhor. repetio. Aoinvs de dizer o que habita nos cus, da segunda vez encontra-se o Senhor. Emlugar de rir-se- temos zombar. No se tomem carnalmente essas expresses, comose Deus se risse, ou zombasse, torcendo a boca ou o nariz. Mas, ho de ser entendidasno sentido da fora concedida por Deus a seus santos. Estes, olhando o futuro, isto , onome de Cristo e o seu domnio estendido aos vindouros e alcanando todas as gentes,compreendam que aqueles tramaram em vo. Tal capacidade de previso constitui airriso e zombaria da parte de Deus. Rir-se- deles o que habita nos cus. Se os cusso as almas santas, por meio delas, Deus, que conhece o futuro, rir-se- e zombardeles.

    4 5 Ento h de amea-los em sua ira, aterroriz-los em seu furor. Mostrando maisclaramente como lhes falar, declarou: Aterroriz-los-, de modo que sua ira sejaidntica a seu furor. Ira e furor do Senhor no so perturbao da mente e sim foravindicativa, inteiramente justa, pois serve-o submissa toda a criao. Principalmente seconsidere e mantenha o que consta nos escritos de Salomo: Senhor poderoso, julgascom tranquilidade, e tudo dispes com grande indulgncia (Sb 12,18). A ira de Deus,portanto, a comoo da alma, conhecedora da lei de Deus, ao ver o pecador transgredira mesma lei. Grande a reivindicao desta comoo das almas justas. Ainda possvelentender a ira de Deus como o prprio obscurecimento da mente dos transgressores dalei de Deus.

    5 6 Eu, porm, fui por ele constitudo rei em Sio, sua montanha santa, para pregar omandamento do Senhor. Trata-se, evidentemente, da pessoa de nosso Senhor JesusCristo. Se conforme a opinio de alguns a palavra Sio significa contemplao, a nadamais devemos aplic-la do que Igreja, onde cotidianamente a ateno do esprito se

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  • eleva contemplao da glria de Deus, segundo diz o Apstolo: E ns todos que, coma face descoberta, contemplamos a glria do Senhor (2Cor 3,18). O sentido , portanto,o seguinte: Eu, porm, fui por ele constitudo rei de sua santa Igreja, denominada monte,devido elevao e firmeza. Fui por ele constitudo rei, eu cujas cadeias elespretendiam quebrar e cujo jugo queriam sacudir. Para pregar o mandamento doSenhor. Quem no o percebe, se isto continuamente acontece?

    6 7 Disse-me o Senhor: Tu s meu Filho, eu hoje te gerei. Embora parea a profeciareferir-se ao dia do nascimento de Jesus, enquanto homem, no entanto, tm sentidodivino as palavras: Eu hoje te gerei, pois hoje significa o presente e na eternidade noh passado, como se algo ainda no existisse, mas apenas no presente, porque aquilo que eterno existe sempre. Por isso, a autntica f catlica prega a gerao eterna do poder eda sabedoria de Deus, que o Filho unignito.

    7 8 Pede-me e dar-te-ei as naes por herana. Isto j no tempo lhe acontece,enquanto homem, que se ofereceu em sacrifcio, como substituio de todos ossacrifcios, e que tambm intercede por ns (Rm 8,34). Assim a palavra pede-me refere-se a toda a economia temporal, realizada em prol do gnero humano, a saber, que asnaes se unam sob o nome de crists e por conseguinte sejam redimidas da morte epossudas por Deus. Dar-te-ei as naes por herana, e possu-las-s para a salvaodelas e colhers frutos espirituais. E como propriedade os confins da terra. Repete-se.Confins da terra em vez de naes: mas, com maior clareza, para entendermos todas asnaes. A propriedade, porm, chama-se acima herana.

    8 9.10 Hs de govern-las com cetro de ferro, com justia inflexvel. E esmigalh-lasqual vaso de argila, isto , esmagars as ambies terrenas, as preocupaes lamacentasdo velho homem, tudo o que do limo do pecado foi contrado e implantado. Agora, reis, entendei. Agora, quer dizer, j renovados, j estraalhados os revestimentos debarro, isto , os recipientes carnais do erro, pertencentes vida passada. Agora entendei.J sois reis, capazes de reger tudo o que em vs existe de servil e animal, e aptos para aluta, mas no como quem fere o ar, e sim tratando duramente os vossos corpos ereduzindo-os servido (1Cor 9,26.27). Instru-vos, juzes da terra. Nova repetio:Instru-vos em lugar de entendei; juzes da terra em vez de reis. A expressojuzes da terra significa os espirituais. Julgamos o inferior a ns e tudo o que est abaixodo homem espiritual denomina-se, com razo, terra, porque atingido pela ndoa terrena.

    9 11 Servi ao Senhor com temor, a fim de no se transformar em soberba ainterpelao: reis, juzes da terra. E exultai diante dele com temor. timo oacrscimo: exultai, para no parecer equivalente a infelicidade a frase: Servi ao Senhorcom temor. De outro lado, evitando uma efuso temerria, acrescentou o salmista,com temor, como precauo e guarda circunspecta da santificao. ainda possvel osentido seguinte: Agora, reis, entendei, a saber, agora que fui constitudo rei, no vosentristeais, reis da terra, como se vos tivesse sido arrebatado um bem prprio. Ao

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  • contrrio, entendei e instru-vos. Ser-vos- proveitosa a sujeio quele que vos dentendimento e instruo. No vos convm dominar temerariamente; mas servi aoSenhor de todos com temor, e exultai por causa da bem-aventurana segura e genuna,precavidos e bem avisados, para de l no cairdes pela soberba.

    10 12 Abraai a disciplina, para no se irritar o Senhor e no perecerdes no caminho dajustia. o mesmo que acima: entendei e instru-vos. Entender e ser instrudo iguala abraar a disciplina. No entanto, a locuo abraai bem indica certo refgio e defesacontra tudo o que poderia causar dano, se no se abraasse com grande cuidado. Parano se irritar o Senhor foi dito condicionalmente; no quanto viso do profeta, que segura, mas relativamente queles que so admoestados; pois se costuma duvidar da irade Deus quando no claramente revelada. Deviam eles dizer a si mesmos: Abracemos adisciplina para no se irritar o Senhor e no perecermos no caminho da justia. Acima foiexposto como tomar a expresso: No se irritar o Senhor. E no perecerdes no caminhoda justia. Eis o grande castigo, temido por aqueles que prelibaram a doura da justia.Quem se desvia do caminho da justia, h de vagar na maior misria pelas sendas dainiquidade.

    11 13 Quando em breve se inflamar a sua clera, felizes todos os que nele confiam,isto , quando vier o castigo preparado para os mpios e pecadores, no atingir os queconfiam no Senhor e ainda lhes ser de grande utilidade, instruindo-os e exaltando-os emvista do reino. No afirmou: Quando em breve se inflamar a sua clera, estaro emsegurana todos os que nele confiam, como se dissesse apenas que no sero punidos,mas denominou-os felizes. Representa isso o resumo e o cmulo de todos os bens. Ameu ver, em breve, significa algo de repentino, que advir enquanto os pecadoresestiverem pensando que ser remoto e em futuro longnquo.

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  • SALMO 3

    COMENTRIO

    1 1Salmo de Davi, quando fugia de seu filho Absalo. A locuo: Adormeci, ca emsono profundo. Despertei porque o Senhor me acolher persuade-nos a aplicar estesalmo pessoa de Cristo. De modo mais adequado se refere paixo e ressurreio doSenhor do que histria de Davi a fugir do filho, em guerra contra ele (2Sm 15,17).Estando escrito a respeito dos discpulos de Cristo: Os amigos do esposo no jejuamenquanto o esposo est com eles (Mt 9,15), no de admirar que esse filhodesnaturado represente o discpulo impiedoso que o traiu. Embora seja possvel o sentidohistrico relativo fuga de Cristo da presena do traidor, quando havendo Judas sadoele se apartou com os demais para o monte, no entanto, espiritualmente o Filho de Deus,isto , a virtude e a sabedoria de Deus, abandonou o esprito de Judas e o diabo oinvadiu totalmente, conforme est escrito: O diabo entrou em seu corao (Jo 13,2).Com razo entende-se ter Cristo fugido dele. No quer dizer que Cristo cedeu ao diabo,mas quando Cristo se afastou, o diabo se apossou de Judas. Penso que neste salmo seuafastamento se denomina fuga por causa da pressa com que se realizou. A palavraaparece na declarao do Senhor: Faze depressa o que tens de fazer (Jo 13,27). Nstambm costumamos dizer: Fugiu-me, quando no nos lembramos de alguma coisa; e deum homem muito douto afirmamos: Nada lhe escapa. A verdade, portanto, fugiu damente de Judas, ao deixar de ilumin-lo. O nome de Absalo na opinio de alguns setraduz por: paz do pai. Pode causar estranheza o significado de paz do pai, seja nahistria dos Reis, onde vemos Absalo guerreando contra o pai, seja na histria do NovoTestamento, pois Judas traiu o Senhor. Mas, lendo com ateno, verifica-se que naquelaguerra Davi foi pacfico em relao ao filho, cuja morte chorou com grande dor,exclamando: Absalo, meu filho, por que no morri eu em teu lugar! E na histria doNovo Testamento, embora estivesse o traidor agitado pela luta interna de um desgniocriminoso, bem se percebe ter nosso Senhor lhe oferecido a paz, por meio daquela togrande e admirvel pacincia, com a qual por tanto tempo o suportou, como se fossehomem de bem, apesar de no ignorar seus planos, e quando o admitiu ceia, onde lheconfiou e entregou aos discpulos o mistrio de seu corpo e de seu sangue, e finalmenterecebeu um beijo no prprio ato da traio (Mt 26,49). Absalo paz do pai, porque opai possua a paz; ele, no.

    2 2.3 Senhor, como se multiplicaram os que me afligem! So tantos que no faltou,nem mesmo do nmero dos discpulos, quem aumentasse o nmero dos perseguidores.Numerosos so os que se insurgem contra mim! So muitos a dizer a minha alma: Paraele no h salvao junto de Deus. bvio que no o matariam se no houvessemperdido a esperana de que ele ressuscitaria. Em tal sentido so vlidas as palavras: Se

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  • s Filho de Deus, desce da cruz (Mt 27,40) e: A outros salvou, a si mesmo no podesalvar! (Jo 27,42). Nem Judas, portanto, o trairia, se no fosse do nmero dos quedesprezaram a Cristo, dizendo: Para ele no h salvao junto de Deus.

    3 4 Tu, porm, Senhor, s o meu abrigo. Dirige-se a Deus, enquanto homem, porque oVerbo se fez carne assumindo a natureza humana. Minha glria. Declara tambm queDeus sua glria, aquela que o Verbo recebeu de tal modo que, com ele, se tornasseDeus. Aprendam os soberbos que no ouvem de bom grado que se lhes pergunte: Que que possuis que no tenhas recebido? E, se o recebeste, por que haverias de teensoberbecer como se no tivesses recebido? (1Cor 4,7). E ergues a minha cabea. Ameu ver, cabea aqui o esprito humano, chamado, com justeza, cabea da alma, aqual aderiu e se uniu a excelente supereminncia do Verbo, que assumira a naturezahumana, de tal sorte que no foi deposta nem diante da grande humilhao da paixo.

    4 5 Clamei ao Senhor com minha voz. No a voz do corpo, que se emite golpeandoruidosamente o ar, mas a do corao, silenciosa perante os homens, todavia clamorosadiante de Deus. Por meio desta voz Susana foi atendida (Dn 13,44). Com tal voz oprprio Senhor ordenou que se ore de portas fechadas, isto , no segredo do corao,sem rudo (Mt 6,6). No exata a afirmao de que rezamos menos quando nenhumapalavra proferimos corporalmente, porque se rezarmos no corao calados, mas compensamentos interpostos, alheios ao afeto do orante, ainda no podemos dizer: Elevei aoSenhor minha voz. Tem o direito de proferi-lo apenas a alma que, sozinha, e sem levarpara a orao nada de carnal e de preocupaes materiais, falar ao Senhor l onde s eleouve. Isso se chama clamor, devido a sua intensidade. E ele me ouviu de seu montesanto. O profeta d ao Senhor o nome de monte, na passagem onde est escrito que apedra deslocada, sem interveno de mo alguma, cresceu at o tamanho de um monte(Dn 2,35). Mas isto no se pode referir a sua pessoa, a menos que tenha querido afirmar:De mim, como de seu monte santo, ouviu-me, desde que habitava em mim, isto , noprprio monte. Seria, contudo, mais simples e fluente entender que Deus o ouviu porcausa de sua justia; pois era justo que Deus ressuscitasse dos mortos o inocente, ao qualo bem fora retribudo com o mal, e desse aos perseguidores a condigna paga. Lemos, defato: A tua justia como as montanhas de Deus (Sl 35,7).

    5 6 Adormeci, ca em sono profundo. Pode-se observar com acerto ter sido escritoeu para denotar ter ele suportado a morte voluntariamente, segundo a palavra: O Paime ama, porque dou a minha vida para retom-la. Ningum ma arrebata, mas eu a doulivremente. Tenho poder de retom-la (Jo 10,17.18). No fostes vs, disse ele, que meprendestes e matastes contra a minha vontade, mas eu adormeci, ca em sono profundo.Despertei, porque o Senhor me acolher. Inumerveis passagens das Escrituras trazemsono ao invs de morte, segundo diz tambm o Apstolo: Irmos, no queremos queignoreis o que se refere queles que adormeceram (1Ts 4,12). desnecessrio procurara razo por que se acrescentou ca em sono profundo, se j fora dito adormeci. AsEscrituras empregam tais repeties. J mostramos muitas no salmo segundo. Alguns

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  • cdices trazem adormeci, dormi, e outros ainda empregam termos diferentes, numatentativa de traduzir do grego: eg d ekoimthen ka hpnosa. A no ser que se concebao adormecer para o moribundo e o sono para a morte, de tal forma que o adormecer sejaa passagem ao sono, como o acordar a passagem para o estado de viglia. Nojulguemos vos ornamentos de linguagem estas repeties nos livros divinos. Comacerto, portanto, interpreta-se adormeci, ca em sono profundo da seguinte maneira:Permiti que me sobreviesse a paixo e se seguisse a morte. Despertei, porque o Senhorme acolher. Note-se que numa s frase os verbos esto no pretrito e no futuro, poisdisse: Despertei no passado, e: me acolher, no futuro. Na verdade, eu noressuscitaria sem aquele apoio. Nas profecias, porm, o futuro se mistura perfeitamentecom o passado, para significar ambos, uma vez que as coisas profetizadas, segundo otempo so futuras; no intelecto dos profetas, contudo, so tidas por realizadas. Mesclam-se igualmente com verbos no presente, os quais, quando ocorrem, sero tratados em seulugar.

    6 7 No temerei a multido que me cerca. Consta no Evangelho ter sido grande amultido ao redor do Senhor, padecente e crucificado (Mt 27,39ss). Ergue-te, Senhor!Salva-me, meu Deus! No a um Deus adormecido ou prostrado que se clama:Ergue-te! Mas, costume das Sagradas Escrituras atribuir a Deus aquilo que ele fazem ns, embora no em todas as passagens, e sim onde tal se pode dizer de maneiraconveniente. Por exemplo, diz-se que ele fala, quando por sua graa falam os profetas,ou os apstolos, ou algum pregador da verdade. Da a palavra: Procurais uma prova deque Cristo que fala em mim (2Cor 13,3). No declara: Falo quando ele me ilumina eordena, mas atribui a prpria fala quele por cujo dom falava.

    7 8 Feriste a todos os que sem motivo me hostilizam. No se considere uma frase s:Ergue-te, Senhor! Salva-me, meu Deus, porque feriste a todos os que sem motivo mehostilizam. No o salvou porque feriu os inimigos; ao invs, salvou-o e depois os feriu.Liga-se, portanto, ao que segue, de sorte que o sentido o seguinte: Feriste a todos osque sem motivo me hostilizam. Quebraste os dentes aos pecadores, isto , quebraste osdentes aos pecadores, porque feriste a todos os que me hostilizam. O castigo dosinimigos consistiu em terem os dentes quebrados, quer dizer, as palavras dos pecadores,que dilaceravam com injrias o Filho de Deus, foram anuladas, reduzidas a p. Pordentes entendamos as palavras maldizentes, s quais se refere o Apstolo: Mas se vosmordeis, cuidado, no acontea que vos elimineis uns aos outros (Gl 5,15). possveltambm dar a dentes dos pecadores a acepo de prncipes dos pecadores, por cujaautoridade algum se separa da sociedade dos honestos e se incorpora de certo modo aosque vivem mal. Opostos a tais dentes so os da Igreja, por cuja autoridade os fiis seapartam do erro dos gentios e de vrias seitas e se transferem para a Igreja, Corpo deCristo. Com estes dentes, Pedro recebeu a ordem de comer dos animais imolados (At10,13), isto , de matar nos gentios o que eles eram e transform-los no que era oprprio Pedro. Destes dentes da Igreja se disse: Teus dentes so como um rebanhotosquiado que sobe do lavadouro, cada ovelha com seus gmeos, nenhuma delas sem

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  • cria (Ct 4,2; 6,5). So os que mandam com retido e vivem conforme o que ordenam;praticam o preceito: Brilhem vossas obras diante dos homens, para que glorifiquemvosso Pai que est nos cus (Mt 5,16). Impressionados pela autoridade daqueles, porcujo intermdio Deus fala e opera, os homens acreditam; separados do sculo, ao qual sehaviam conformado, passam a ser membros da Igreja. Com razo, esses intermedirioschamam-se dentes semelhantes a ovelhas tosquiadas: largaram o peso das preocupaesterrenas e subindo do lavadouro, da abluo das imundcies do sculo, pelo sacramentodo batismo, do luz gmeos. Praticam, efetivamente, os dois preceitos, dos quais seafirmou: Desses dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas (Mt 22,40),amando a Deus de todo o corao, de toda a alma e de todo o esprito, e ao prximocomo a si mesmos. Entre eles no existe estril, visto produzirem tais frutos para Deus.Neste sentido se entende: Quebraste os dentes aos pecadores, a saber, aniquilaste osprncipes dos pecadores, ferindo a todos os que me hostilizavam sem motivo. Segundo anarrativa evanglica, perseguiram-no os prncipes, enquanto a multido de posioinferior o honrava.

    8 9 Do Senhor vem a salvao. Sobre o teu povo, a tua bno. Em uma s sentenamostrou aos homens o que devem crer e orou pelos fiis; pois ao asseverar do Senhorvem a salvao, dirige-se aos homens. Se prossegue: Sobre o teu povo, a tua bno,no se refere tudo aos homens, mas se volta para o prprio Deus, em favor do povo aoqual foi afirmado: do Senhor vem a salvao. Disse, portanto, apenas o seguinte:Ningum presuma de si mesmo, porque a salvao da morte do pecado provm doSenhor; pois, Infeliz de mim! Quem me libertar deste corpo de morte? A graa deDeus, por Jesus Cristo, Senhor nosso (Rm 7,24.25). Tu, porm, Senhor, abenoa o teupovo, que de ti espera a salvao.

    9 Este salmo aplicvel ainda pessoa de Cristo de outro modo, isto , que fala comoum todo. Todo, digo, com o Corpo do qual ele a Cabea, segundo a palavra doApstolo: Vs sois o corpo de Cristo e sois os seus membros (1Cor 12,27); portanto,ele a Cabea deste corpo. Por esta razo, diz o Apstolo em outra passagem:Seguindo a verdade em amor, cresceremos em tudo em direo quele que a Cabea,Cristo. por ele que todo o corpo coordenado e unido (Ef 4,15.16). Falam pois,segundo o Profeta, simultaneamente a Igreja e sua Cabea, no meio das procelas dasperseguies em todo o orbe da terra, conforme sabemos j haver acontecido: Como,Senhor, se multiplicaram os que me afligem! Numerosos os que se insurgem contramim! querendo exterminar o nome dos cristos. So muitos a dizer a minha alma: Paraele no h salvao junto de Deus. No contariam arruinar a Igreja, largamentedifundida, se acreditassem estar ela sob os cuidados de Deus. Tu, porm, Senhor, s omeu abrigo, a saber, em Cristo. Pois, naquela natureza humana tambm a Igreja foiassumida pelo Verbo, que se fez carne, e habitou entre ns (Jo 1,14). Tambm nos fezsentar com ele nos cus (Ef 2,6). A Cabea precede, seguem-se os demais membros.Quem nos separar do amor de Cristo (Rm 8,25)? Com toda razo exclama igualmentea Igreja: Tu s o meu abrigo, a minha glria. No atribui a si mesma a exaltao,

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  • sabendo donde lhe provm tal graa e misericrdia. E ergues a minha cabea, a saber,aquele que, sendo o primognito dentre os mortos, subiu ao cu. Elevei a minha voz aoSenhor e ele me ouviu de seu monte santo. Eis a orao de todos os santos, odor suaveque sobe presena do Senhor. A Igreja, portanto, j ouvida do prprio monte, que ainda a sua Cabea; ou por aquela justia de Deus, que liberta os seus eleitos e pune osperseguidores deles. Fale igualmente o povo de Deus: Adormeci, ca em sono profundo.Despertei, porque o senhor me acolher, para se unir e aderir a sua Cabea. Este povofoi interpelado: tu, que dormes, desperta e levanta-te de entre os mortos, que Cristote tocar (Ef 5,14)1, porque foi tirado do meio dos pecadores, sobre os quais foi dito,em geral: Quem dorme, dorme de noite (1Ts 5,7). Prossiga ainda: No temerei amultido que me cerca, os povos sitiantes, para extinguir, se possvel, o nome decristo. Mas como sero temidos, se o sangue dos mrtires em Cristo leo que inflamao ardor da caridade? Ergue-te, Senhor! Salva-me, meu Deus! o que o corpo podedizer Cabea. O povo se salvou quando a Cabea se ergueu, subiu ao alto, levouconsigo os cativos, distribuiu dons aos homens (Sl 67,19). Afirma-o o Profeta, visando predestinao, enquanto a messe madura mencionada no Evangelho (Mt 9,37) fez descernosso Senhor terra. A salvao desta messe se encontra na ressurreio daquele quepor ns se dignou morrer. Feriste a todos os que sem motivo me hostilizam. Quebrasteos dentes aos pecadores. J est reinando a Igreja. Os inimigos do nome de cristoforam cobertos de vergonha e esto reduzidas a nada as suas maldies, o seuprincipado. Acreditai, portanto, homens. Do Senhor vem a salvao. E tu, Senhor,faze descer a tua bno sobre o teu povo.

    10 Cada um de ns tambm pode dizer, quando a multido dos vcios e desejos arrasta,sob a lei do pecado, a mente que resiste: Senhor, como se multiplicaram os que meafligem. Numerosos os que se insurgem contra mim! Visto que, muitas vezes, devido aoacmulo de vcios, insinua-se a desesperana da cura, como se os prprios vciosassaltassem a alma, ou ainda agissem tambm o diabo e seus anjos, com ms sugestes,para desesperarmos, bem verdade que so muitos a dizer a minha alma: Para ele noh salvao junto de Deus. Tu, porm, Senhor, s o meu abrigo. A esperana reside emque o Senhor se dignou assumir a natureza humana em Cristo. A minha glria,segundo a norma de que ningum atribua a si mesmo coisa alguma. E ergues a minhacabea. Seja a Cabea de todos ns, ou o esprito de cada um, que serve de cabea alma e carne. Pois, a cabea de todo o homem Cristo, a cabea da mulher ohomem (1Cor 11,3). A mente exaltada, se lhe j possvel afirmar: Pela razo sirvo lei de Deus (Rm 7,25), de maneira que as outras partes do homem pacificadas sesubmetam, quando pela ressurreio da carne, a morte for absorvida na vitria (1Cor15,54). Elevei a minha voz, clamei ao Senhor, com aquela voz ntima, muito intensa.E ele me ouviu de seu monte santo, daquele monte pelo qual nos socorre, por cujamediao ele nos atende. Adormeci, ca em sono profundo. Despertei, porque o Senhorme acolher. Qual o fiel que assim no se pode expressar, lembrado da morte causadapor seus pecados e do dom da regenerao? No temerei a multido que me cerca.

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  • Alm das tribulaes que a Igreja em geral suportou e suporta, cada qual tem as suastentaes, e quando se v cercado por elas exclama: Ergue-te, Senhor! Salva-me, meuDeus! isto , faze com que me levante. Feriste a todos os que sem motivo mehostilizam. Com acerto se afirma a respeito da predestinao que o diabo e seus anjosse enfurecem no s contra todo o corpo de Cristo, mas ainda contra cada um emparticular. Quebraste os dentes aos pecadores. Todo homem tem seus caluniadores einstigadores de vcios, empenhados em amput-lo do Corpo de Cristo. Mas do Senhorvem a salvao. Precavido contra a soberba diga ele: A minha alma aderiu a ti (Sl62,9). Sobre o teu povo, a tua bno, isto , sobre cada um de ns.

    1 Em vez de (iluminar) Sto. Agostinho lia (tocar) (N. dos Maurinos)

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  • SALMO 4

    COMENTRIO

    1 1 Para o fim. Salmo. Cntico de Davi. A finalidade da lei Cristo para a justificaode todo o que cr (Rm 10,4). Fim, aqui, siginifica perfeio, no aniquilamento. vivel a pergunta se todo cntico salmo, ou se qualquer salmo cntico, ou ainda seexistem cnticos que no devam ser denominados salmos e salmos aos quais no convmo nome de cnticos. Mas, verifique-se nas Escrituras se cnticos no indicariam alegria,enquanto salmos seriam as composies acompanhadas ao saltrio. Narra a histria ter oprofeta Davi utilizado o saltrio (1Cor 13,8 e 16,5), no grande mistrio do culto. Noseria oportuno agora dissertar sobre a questo, que exige diuturna pesquisa e longadiscusso. Por enquanto vejamos este salmo como palavras do homem-Senhor, aps aressurreio, ou na Igreja, do homem que nele cr e espera.

    2 2 Ao invoc-lo, ouviu-me Deus, minha justia. Ao invoc-lo, ouviu-me Deus, doqual procede a minha justia. Na tribulao, puseste-me ao largo. Das angstias datristeza conduziste-me amplido das alegrias. Tribulao e angstia para todo aqueleque pratica o mal (Rm 2,9). Mas quem declara: Ns nos gloriamos tambm nastribulaes, sabendo que a tribulao produz a perseverana, at o trecho: Porque oamor de Deus foi derramado em nossos coraes pelo Esprito Santo que nos foi dado(Rm 5,3.5), no sente angstia no corao, embora os perseguidores a incutam de fora.Se a mudana de pessoa: da terceira, ouviu, imediatamente segunda, me dilataste,no foi introduzida para variar e suavizar as expresses, acho estranho que primeiroparea indicar aos homens que foi ouvido e s depois fazer exigncias quele que oatendeu. A no ser que, aps ter declarado como foi ouvido, pelo alvio que teve nocorao, preferiu falar com Deus. Deste modo mostrou o que alvio para o corao, asaber, j ter a Deus infuso em seu corao. Com ele fala em seu ntimo. Isto bem seaplica quele que, acreditando em Cristo, foi iluminado. No vejo, porm, como possaconvir ao homem-Senhor, assumido pela Sabedoria de Deus, pois no foi em tempoalgum abandonado por ela. Mas, como a sua prpria splica antes indcio de nossafraqueza, assim deste repentino alvio do corao pode o mesmo Senhor falar em lugardos fiis, cujas vezes ele fez tambm quando disse: Tive fome e no me destes decomer, tive sede e no me destes de beber (Mt 25,35) etc. Por isso, igualmente, podedizer aqui, me dilataste, em lugar de um dos pequeninos que so seus, dirigindo-se aDeus, cuja caridade foi difundida em seu corao pelo Esprito Santo, que nos foi dado.Compadece-te de mim, e ouve a minha orao. Por que roga novamente, se jdeclarou que foi ouvido e aliviado? Ser por nossa causa, uma vez que foi declarado: Ese esperamos o que no vemos, na perseverana que o aguardamos (Rm 8,25), oupara que se complete no fiel o que foi comeado?

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  • 3 3 Filhos dos homens, at quando tereis o corao empedernido? Se ao menos s ato advento do Filho de Deus perdurasse o vosso erro. Por que depois ainda tendes ocorao empedernido? Quando haveis de pr termo s mentiras, se mesmo na presenada verdade no o conseguis? Por que amais a iluso e procurais a mentira? Por quebuscais a felicidade em futilidades? S a verdade, que torna verdadeiras todas as coisas,faz-nos felizes. A vaidade dos frvolos, e tudo vaidade. Que proveito tira o homem detodo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol? (Ecl 1,2.3). Por que vos deterdes noamor s coisas temporais? Qual o motivo de irdes atrs de coisas nfimas, isto , devaidade e mentira, como se fossem o principal? Desejais que permaneam convoscotodas essas coisas que passam como sombras.

    4 4 E compreendei que o Senhor fez maravilhas em seu santo. Qual santo senoaquele que Deus ressuscitou da regio dos mortos e colocou no cu sua direita? Ognero humano convidado a finalmente se converter do amor deste mundo para oSenhor. Se algum ficar intrigado com o acrscimo da conjuno e ao verbocompreendei, no lhe ser difcil descobrir nas Escrituras a frequncia desta espcie delocuo na lngua em que os profetas falaram. Muitas vezes se encontra este incio: E oSenhor lhe falou. E foi-lhe dirigida a palavra do Senhor. Se a sentena anterior no se liga subsequente, a conjuno talvez insinue de modo admirvel que a enunciao daverdade pela voz se une viso do corao. A frase anterior Por que amais a iluso eprocurais a mentira? poderia equivaler a: No ameis a vaidade nem busqueis a mentira.Dito isso, segue-se com plena exatido: E compreendei que o Senhor fez maravilhas emseu santo. Mas a interposio do diapsalma impede a juno desta frase com aanterior.Diapsalma pode vir do hebraico, conforme opinio de alguns, e significa: faa-se; oudo grego, e marca intervalo na salmodia. Denomina-se salmo o que cantado, ediapsalma, a pausa na salmodia. Como simpsalma significa a unio das vozes no canto,diapsalma representaria a separao entre elas, certa pausa, interrupo. Seja isso, aquiloou ainda outra coisa, h muita probabilidade de que onde se achar intercalado odiapsalma no se deve continuar, nem unir o sentido.

    5 O Senhor me ouvir, quando a ele clamar. Creio tratar-se de uma exortao aimplorarmos o auxlio de Deus com grande ardor do corao, com clamor ntimo eespiritual. mister congratular-nos com as luzes recebidas nesta vida; e cabe-nos suplicaro repouso depois dela. Por isso, quer se aplique ao fiel evangelizador, quer ao prprioSenhor, entenda-se: O Senhor vos ouvir quando a ele clamardes.

    6 5 Irai-vos e no pequeis. possvel ocorrer a pergunta: Quem ser digno de serouvido, ou como no clamar o pecador em vo ao Senhor? Por isso diz o salmista:Irai-vos e no pequeis. H dois modos de se entender isso. Ou: Mesmo se vos irardes,no pequeis, isto , apesar de surgir a emoo, que no est em vosso poder emconsequncia do pecado, ao menos a razo e o esprito no consintam, eles que foramregenerados interiormente segundo Deus, de modo que pela mente sirvamos lei de

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  • Deus, se ainda pela carne servimos lei do pecado (Rm 7,26). Ou ento: Fazeipenitncia, isto , irai-vos contra vs mesmos por causa dos pecados passados edoravante deixai de pecar. O que dizeis em vossos coraes. Subentende-se: Dizei-o,de sorte que a frase integral seria: O que dizeis, proferi-o em vossos coraes, isto , nosejais o povo do qual se afirmou: Honra-me com os lbios, mas o seu corao estlonge de mim (Is 29,13). Tende compuno em vossos leitos. repetio do que foidito supra: Em vossos coraes. So os aposentos, dentro dos quais o Senhor nosexorta a orarmos com as portas fechadas (Mt 6,6). Tende compuno, porm, ou serefere dor da penitncia, de sorte que a alma, castigando-se a si mesma, se arrependa afim de no ser condenada no juzo de Deus e atormentada, ou relativo ao despertar eusa de um estmulo para vermos bem despertos a luz de Cristo. Alguns, todavia,preferem a leitura: abri-vos e no: arrependei-vos, porque no saltrio grego acha-sekatanogete, em referncia abertura do corao necessria para se receber a efuso dacaridade, realizada pelo Esprito Santo.

    7 6 Oferecei um sacrifcio de justia e esperai no Senhor. A mesma coisa encontra-seem outro salmo: Sacrifcio a Deus o esprito contrito (Sl 50,10). No absurdoconsiderar aqui sacrifcio de justia o efetuado atravs da penitncia. Que de mais justodo que aborrecer antes os prprios pecados do que os alheios, e castigando-se a simesmo, sacrificar-se a Deus? Ou sacrifcio de justia seriam as obras justas depois dapenitncia? Pois o diapsalma intercalado talvez insinue com justeza a passagem de umavida velha a uma vida nova, de tal maneira que extinto ou enfraquecido pela penitncia ovelho homem, se oferea a Deus um sacrifcio de justia, segundo a regenerao dohomem novo, quando a prpria alma, j purificada, a si mesma se oferta e coloca sobreo altar da f, para ser consumida pelo fogo divino, o Esprito Santo. O sentido seriaento: Oferecei um sacrifcio de justia e esperai no Senhor, isto , vivei com retido eesperai o dom do Esprito Santo, a fim de que a verdade, na qual acreditastes, vosilumine.

    8 7 Mas, esperai no Senhor frase incompleta. O que se espera seno os bens? Cadaqual deseja obter de Deus o bem que ama; difcil, contudo, encontrar quem ame osbens interiores, pertencentes ao homem interior, nicos dignos de serem amados; e osdemais devem ser utilizados segundo a necessidade e no por prazer. Por isso, o salmistatendo dito admiravelmente: Esperai no Senhor, acrescentou: Muitos dizem: Quem nosdar a felicidade? Tal palavra, tal interrogao de todos os dias da parte dos estultos emaus. Ou dos desejosos da paz e tranquilidade da vida no sculo, que no asencontram por causa da perversidade do gnero humano; em sua cegueira ousam acusara ordem do universo, enquanto envolvidos no que merecem, julgam os tempos atuaispiores do que os passados. Ou dos ainda hesitantes ou desesperados em relao vidafutura, a ns prometida, que dizem muitas vezes: Quem sabe se verdade, ou quemvoltou dos infernos para contar essas coisas? Esplndida e brevemente mostrou osalmista, mas somente aos que veem interiormente, quais os bens desejveis,respondendo interrogao: Quem nos dar a felicidade? Est assinalada em ns,

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  • Senhor, a luz de tua face. Esta luz constitui o bem total e verdadeiro do homem, vistano com os olhos, mas com o intelecto. Assinalada em ns. Como o cenrio cunhadocom a efgie do rei, o homem foi feito imagem e semelhana de Deus (Gn 1,26), maspecando corrompeu-a. , portanto, seu bem verdadeiro e eterno ser assinalado, aorenascer. Conforme a opinio prudente de alguns, penso que foi por isto que o Senhor,tendo observado a moeda de Csar, disse: Dai a Csar o que de Csar, e a Deus o que de Deus (Mt 22,21), como se quisesse declarar: Csar exige de vs o cunho de suaimagem; o mesmo reclama Deus. Como se restitui a moeda a Csar, se restitua a Deus aalma iluminada e assinalada pela luz de sua face. Tu me deste alegria ao corao. Porconseguinte, aqueles que ainda tm o corao empedernido, amam a vaidade e procurama mentira, no busquem a alegria fora de si, e sim no interior, onde est assinalada a luzda face de Deus. Cristo habita no homem interior (Ef 3,17), diz o Apstolo. A essehomem cabe a verdade, pois Cristo afirmou: Eu sou a Verdade (Jo 14,6). E ao falarCristo no Apstolo, que perguntava: Procurais uma prova de que Cristo que fala emmim? (2Cor 13,3), no se dirigia a ele exteriormente, mas no prprio corao, a saber,naquele recinto onde se deve orar (cf. Mt 6,6).

    9 8.9 Os homens, certamente muito numerosos, que andam busca de bens temporais,apenas souberam dizer: Quem nos dar a felicidade? porque no sabem ver os bensverdadeiros e certos dentro de si mesmos. Por conseguinte, ainda se diz a seu respeito:No tempo de seu trigo, vinho e leo se multiplicaram. No suprfluo o acrscimo dapalavra seu. H tambm um trigo de Deus, na verdade, o po vivo descido do cu (Jo6,51); existe igualmente um vinho de Deus, pois inebriar-se-o na abundncia de tuacasa (Sl 35,9). Existe ainda um leo de Deus, do qual se disse: Ungiste com leo aminha cabea (Sl 22,5). Todavia, os muitos que dizem: Quem nos dar a felicidade? eno veem o reino dos cus dentro de si mesmos (Lc 17,21), no tempo de seu trigo,vinho e leo se multiplicaram. Multiplicao nem sempre significa abundncia. Porvezes significa penria. A alma entregue aos prazeres temporais arde de desejosinsaciveis e dissipada em inmeros e atribulados pensamentos, acha-se impedida de vero bem em sua simplicidade. Assim acontece alma da qual se diz: Um corpocorruptvel pesa sobre a alma tenda de argila oprime a mente pensativa (Sb 9,15).Esta alma, pelas vicissitudes dos bens temporais, isto , no tempo de seu trigo, vinho eleo, cheia de inumerveis fantasias, sente-se de tal modo dispersa que ficaimpossibilitada de praticar o preceito: Pensai no Senhor com retido, procurai-o comsimplicidade de corao (ib. 1,1). Tal disperso ope-se diametralmente quelasimplicidade. Por isso, deixando de lado tantos homens, dissipados devido ambio dosbens temporais, que perguntam: Quem nos dar a felicidade?, felicidade esta que noh de ser procurada exteriormente com os olhos e sim no ntimo do corao simples, ofiel exultante profere: Em paz, logo adormecerei e descansarei em profundo sono.Destes espera-se, com razo, afastamento espiritual completo das coisas passageiras eesquecimento das misrias deste mundo, significadas de maneira conveniente e profticacom os termos adormecer e sono, l onde a paz suprema no interrompida por tumulto

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  • algum. Tal meta no se alcana nesta vida, mas na outra. Mostram-no os prprios verbosno futuro. No se disse: Adormeci e dormi profundamente, ou: Adormeci e durmoprofundamente, e sim: Adormecerei e descansarei em profundo sono. Ento este corpocorruptvel se revestir de incorruptibilidade, e este corpo mortal estar revestido daimortalidade; ento a morte ser absorvida pela vitria (1Cor 15,54). Da se declarar: Ese esperamos o que no vemos, na perseverana que o aguardamos (8,25).

    10 10 Por isso, se acrescenta no final com toda convenincia: Por que tu, Senhor, demodo singular me firmaste na esperana. No disse: firmars, mas firmaste. Paraquem j possui tal esperana, vir sem dvida tambm o que se espera. E com justeza seafirma: de modo singular. Provavelmente tais palavras foram aduzidas contra osmuitos que no tempo de seu trigo e leo dizem: Quem nos dar a felicidade?Desaparece esta multiplicidade e subsiste a unidade entre os santos de que falam os Atosdos Apstolos: A multido dos fiis era um s corao e uma s alma (At 4,32).Devemos, portanto, chegar unidade e ser simples, isto , separados da multido e daturba das coisas que nascem e morrem, ser amantes da eternidade e da unidade, sequeremos aderir ao nosso nico Deus e Senhor.

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  • SALMO 5

    COMENTRIO

    1 1 O salmo intitula-se: Em favor daquela que recebe a herana. Entende-se ser,portanto, a Igreja, que recebe a herana da vida eterna, por nosso Senhor Jesus Cristo, afim de possuir o prprio Deus. Aderindo a ele torna-se bem-aventurada, segundo apalavra: Bem-aventurados os mansos, porque herdaro a terra (Mt 5,5). Que terra,seno aquela da qual se diz: Tu s meu abrigo, minha herana na terra dos vivos (Sl141,6). Ou a passagem ainda mais clara: O Senhor a poro de minha herana e demeu clice (Sl 15,5). A Igreja, por sua vez, chama-se herana de Deus, segundo apalavra: Pede-me e dar-te-ei as naes por herana (Sl 2,8). Deus , portanto,denominado nossa herana, porque ele nos alimenta e mantm. E ns somos chamadosherana de Deus, porque ele nos administra e governa. Neste salmo, por este motivo,encontra-se a voz da Igreja, chamada a herana, para se tornar ela mesma herana doSenhor.

    2 2 Escuta, Senhor, minhas palavras. Aquela que chamada invoca o Senhor, paraque auxiliada, por ele, v alm da maldade deste sculo e chegue at ele. Entende o meuclamor. Mostra muito bem qual este clamor, que chega a Deus do ntimo do corao,sem rudo material; pois a voz corporal ouvida, a espiritual, porm, entendida. Este tambm o modo de Deus ouvir, no com ouvido carnal, mas pela presena de suamajestade.

    3 3 Fica atento voz de minha prece, voz suplicante a Deus, para que a escute. Osalmista j insinuar qual , dizendo: Entende o meu clamor. Fica atento voz de minhaprece, meu rei e meu Deus. O Filho Deus, o Pai Deus, e o Pai e o Filhosimultaneamente so um s Deus; e se interrogarmos a respeito do Esprito, sobteremos a resposta de que Deus. Se nomearmos juntos o Pai e o Filho e o EspritoSanto, no entendamos seno um s Deus. No entanto, a Escritura costuma dar ao Filhoo nome de rei. Segundo, pois, a palavra: Por mim se vai ao Pai (Jo 14,6), com acertose diz primeiro: meu rei, e em seguida: meu Deus. Tambm no disse: Ficai atentos,mas: Fica atento. A f catlica no anuncia dois ou trs deuses, e sim a Trindade, ums Deus; nem que a mesma Trindade possa uma vez ser o Pai, outra o Filho, outra oEsprito Santo, como Sablio opinou; mas, que o Pai s Pai, o Filho s Filho e oEsprito Santo s Esprito Santo, e esta Trindade um s Deus. Quando o Apstolodizia: Tudo dele, e por ele e para ele (Rm 11,36), acredita-se que aludia prpriaTrindade. E no acrescentou: A eles a glria, e sim: A ele a glria.

    4 4 Senhor, implorar-te-ei. Desde a manh ouvirs minha voz. O que ele quer dizer?Acima pediu: ouve, como se desejasse ser ouvido no presente, e agora afirma: desde

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  • a manh ouvirs e no: ouves. E tambm: implorar-te-ei e no: eu te imploro; emseguida, igualmente: de manh estarei de p diante de ti e verei e no: estou e vejo. Amenos que sua orao anterior mostre o que invoca. s escuras, no meio das procelasdeste sculo, sente que no v aquilo que deseja, e no entanto no desiste de esperar.Ver o que se espera, no esperar (Rm 8,24). Sabe, contudo, por que razo no v. Anoite ainda no passou, isto , as trevas em consequncia dos pecados. Diz, portanto,Senhor, implorar-te-ei, por seres tu, a quem imploro, to grande, de manh ouvirsminha voz. Impossvel seres visto por aqueles perante cujos olhos ainda no terminou anoite dos pecados. Passada a noite de meu erro, e dissipadas as trevas ocasionadas pormeus pecados, ouvirs a minha voz. Por que acima no disse: ouvirs, e sim ouve?Ser que depois de ter clamado: ouve e no ter sido atendida, sentiu o que precisasuperar para ter a possibilidade de ser ouvida? Ou acima foi ouvida, mas ela no percebeainda que foi atendida, por no ver quem a atendeu; e se agora diz: de manh ouvirs,quis dizer: de manh perceberei que fui atendida? Tal como na expresso: Ergue-te,Senhor! (Sl 3,7), isto , faze com que me erga. Aplica-se, contudo, ressurreio deCristo. Quanto seguinte expresso: E o Senhor vosso Deus vos experimenta, parasaber se de fato o amais (Dt 13,4), certamente no se pode entender seno: Para quesaibais atravs dele, e se vos manifeste quanto progredistes no seu amor.

    5 5-7 De manh estarei de p diante de ti e verei. O que significa estarei de p seno:no estarei jogado por terra? Jazer por terra repousar na terra, procurar a felicidade nosprazeres terrenos. Estarei de p e verei. No nos apeguemos, pois, s coisas terrenas,se queremos ver a Deus, que s coraes puros podem contemplar. No s um Deus aquem agrade a iniquidade. No habitar o mau contigo, nem permanecero os injustosdiante de teus olhos. Detestas a todos os obreiros da iniquidade e destris o mentiroso. OSenhor abominar o sanguinrio e o doloso. Iniquidade, malignidade, mentira,homicdio, fraude e outras coisas semelhantes so a noite, aps a qual vem a manh,quando se v a Deus. Expus o motivo de estar de p pela manh e ver: No s um Deusa quem agrade a iniquidade. Se Deus amasse a iniquidade, poderia ser visto pelosinquos; e no seria visto de manh, isto , aps ter passado a noite da iniquidade.

    6 No habitar o mau contigo, quer dizer, no ver de forma a aderir. Por isso, sesegue: Nem permanecero os injustos diante de teus olhos. Os olhos deles, isto , suasmentes repeliro, reverberando-a, a luz da verdade, por causa das trevas do pecado.Habituados a estas, no suportam o julgar do reto entendimento. Por isso, os que veemapenas algumas vezes, isto , os que entendem a verdade, todavia continuam injustos,nela no permanecem, pois amam aquilo que os aparta da verdade. Levam consigo a suanoite, a saber, no somente o hbito, mas ainda o amor ao pecado. Se esta noite passar,se desistirem de pecar e afugentar o amor e o hbito de pecar, faz-se manh. Ento, nos entendem, mas ainda aderem verdade.

    7 Odeias a todos os obreiros da iniquidade. dio em Deus tem o sentido destaexpresso: Todo pecador odeia a verdade. Parece igualmente que a verdade odeiaaqueles que ela no permite permanecerem em si. No permanecem, porm, os

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  • incapazes de suport-la, destris o mentiroso. Mentira o oposto da verdade. Mas,para no se julgar que existe substncia ou natureza contrria verdade, entenda-se quea mentira pertence ao que no , no ao que . Se falamos aquilo que , dizemos averdade. Se dizemos ser o que no , mentira. Por isso, destris o mentiroso, que seaparta do que e desvia-se para o que no . Muitas mentiras, de fato, parecem ditaspara a salvao ou o bem de alguma pessoa, no provenientes de malcia e sim debondade. Foi o caso das parteiras, citadas no xodo, que deram resposta falsa ao fara(Ex 1,19), para no serem mortos os meninos israelitas. Mas aqui tambm no se louva aao, e sim o motivo da mentira. Mentir apenas desta maneira merece algumas vezesescusa de qualquer mentira. Nos perfeitos, contudo, nem este tipo de mentira se tolera. Aestes se ordena: Seja o vosso sim, sim, e o vosso no, no. O que passa disto vemdo Maligno (Mt 5,37). Com razo, est escrito em outra passagem: A boca mentirosamata a alma (Sb 1,11), para no pensar algum que o homem perfeito e espiritual devementir por causa desta vida temporal, cuja perda no mata sua alma, nem a de qualqueroutro. Mas, uma coisa mentir, outra ocultar a verdade, pois difere dizer o que falso ecalar a verdade. Se algum, acaso, no quer entregar um homem morte visvel, oculte averdade, mas no profira mentira. No entregue, nem minta, para no matar a suaprpria alma, por causa do corpo de outrem. Se, porm, nem isto pode, ou fornecessrio proferir somente essa espcie de mentira, se quer se ver livre tambm destanica restante e receber a fora do Esprito Santo, despreze qualquer tipo de sofrimentoem prol da verdade. Duas so as espcies de mentira que no constituem culpa grave,mas no so isentas de culpa, a saber, mentir por gracejo, ou para o bem de outrem. Oprimeiro, o gracejo, no muito prejudicial, porque no engana. Sabe o outro que alvode um gracejo. O segundo mais leve, por incluir certa benevolncia. No mentira oque no provm de duplicidade. Por exemplo, confia-se uma espada a algum quepromete devolv-la ao dono quando a pedir; se acaso o dono, estando furioso, reclamarsua espada, claro que no deve receb-la de volta, enquanto no recuperar a razo,para no matar a si ou a outrem. O primeiro no agiu com duplicidade, porque aoreceber a espada e prometer devoluo ao ser reclamada, no pensou na possibilidade deser exigida pelo dono, em estado furioso. O Senhor tambm ocultou a verdade, quandodisse aos discpulos ainda incapazes de ouvi-la: Tenho ainda muito a vos dizer, mas nopodeis agora compreender (Jo 16,12); e o apstolo Paulo ao declarar: Quanto a mim,irmos, no vos pude falar como a homens espirituais, mas to-somente como a homenscarnais (1Cor 3,1). Evidencia-se no haver culpa de muitas vezes em calar a verdade.Todavia, mentir no lcito aos perfeitos.

    8 7.8 O Senhor abominar o sanguinrio e o doloso. Esta frase pode, com acerto, sertomada como repetio do que foi dito acima: Odeias a todos os obreiros da iniquidade.Destris o mentiroso. Refira-se sanguinrio a quem pratica a iniquidade. Doloso,porm, mentira. Dolo consiste em fazer uma coisa e fingir outra. O salmista usou umtermo adequado: abominar. costume chamar de abominveis os deserdados. Estesalmo, no entanto, em favor daquela que recebe a herana, a qual introduz aqui a

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  • exultao de sua esperana, dizendo: Eu, porm, cercado pela multido de tuasmisericrdias, entrarei em tua casa. Pela multido das misericrdias talvez se refira multido dos perfeitos e bem-aventurados, de que constar aquela futura cidade, agoragerada e progressivamente dada luz pela Igreja. Quem negaria serem com razo osnumerosos regenerados e perfeitos denominados multido das misericrdias de Deus,desde que foi dito com toda verdade: Que o homem para dele te lembrares, ou o filhodo homem para o visitares (Sl 8,5)? Entrarei na tua casa, a meu ver como a pedra entrano edifcio. Que a casa de Deus seno o templo de Deus, do qual se disse: O templode Deus santo e esse templo sois vs (1Cor 3,17)? Pedra angular deste edifcio aquele que a coeterna Virtude do Pai e Sabedoria de Deus assumiu.

    9 Adorarei diante de teu santo templo, cheio de temor. Diante do templo, quer dizer,perto do templo. Pois no disse: adorarei em teu templo santo, mas: Adorarei diante deteu santo templo. Entenda-se no se tratar da perfeio, mas do progresso no caminhoda perfeio; a locuo: entrarei em tua casa significaria a perfeio. Mas, para talacontecer, antes adorarei diante de teu santo templo. Talvez por essa razoacrescentou cheio de temor, o qual grande auxlio aos que caminham para a salvao.Naquele que a alcanar, realizar-se- o que foi dito: O perfeito amor lana fora o temor(1Jo 4,18), pois j no temem o amigo aqueles aos quais foi dito: No mais vos chamoservos, mas eu vos chamo amigos (Jo 15,15), quando tiverem obtido o que lhes foraprometido.

    10 9-10 Senhor, guia-me, em tua justia, por causa de meus inimigos. O salmista assazdeclarou estar a caminho, isto , progredindo em direo perfeio, no ainda naprpria perfeio, enquanto ainda deseja ardentemente ser conduzido at ela. Em tuajustia, no naquela que imaginam os homens. Pagar o mal com o mal, parece justia;mas no a justia de Deus, de quem se disse: Faz nascer o sol igualmente sobre osmaus e os bons (Mt 5,45). Ao punir os pecadores, Deus no lhes inflige malproveniente de si prprio, mas abandona-os aos males derivados deles mesmos: Eis queo mau gerou a injustia, concebeu o trabalho e pariu a iniquidade. Abriu uma fossa,escavou-a e cair na fossa que abriu. Seu trabalho recair-lhe- na prpria cabea e a suamaldade descer-lhe- sobre a fronte (Sl 7,15-17). Quando Deus castiga, pune como fazo juiz queles que menosprezam a lei, no lhes infligindo por si mesmo o mal, masexpulsando-os para o lugar de sua prpria escolha, a fim de que se consuma a misria emgrau extremo. O homem, porm, ao pagar o mal com o mal, levado por mau desejo, jse tornou mau, querendo punir o mal.

    11 Em tua presena dirige o meu caminhar. bem claro. Recomenda-o enquanto tempo. Tal caminho no atravessa lugares terrenos, mas consta de afetos da alma. Emtua presena dirige o meu caminhar, isto , l onde no se encontra observadorhumano, pois os homens no so dignos de crdito se louvam ou criticam. Ningumpode absolutamente julgar a conscincia alheia, por onde passa o caminho para Deus.Assim acrescenta: Porque no h verdade em sua boca, nos lbios daqueles que nomerecem crdito quando julgam. Refugiemo-nos, pois, no ntimo de nossa conscincia e

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  • na presena de Deus. Seu corao s vaidade. Como pode haver verdade na bocadaqueles cujo corao se engana a respeito do pecado e da pena do pecado? Porconseguinte, os homens so novamente interpelados por aquela voz: Por que amais ailuso e procurais a mentira? (Sl 4,3)

    12 11 Sua garganta um sepulcro escancarado. Pode ser referncia voracidade, que causa frequente de mentirem os homens, com adulao. E est expresso de modoadmirvel sepulcro escancarado, porque tal voracidade permanece sempre vida, aocontrrio dos sepulcros, que se fecham aps receberem os cadveres. possvel tambmentender-se que eles atraem a si com mentiras e vis lisonjas aqueles que seduzem aopecado e devoram, induzindo-os a levar vida igual a sua. Como esses morrem assim pelopecado, com razo os sedutores so denominados sepulcros escancarados, porquetambm eles de certo modo esto mortos, privados da vida da verdade, e recebem em sios que eles mataram com palavras mentirosas e corao ftil, tornando-os semelhantes asi. Para enganar empregavam as suas lnguas, lnguas ms. Parece ser este osignificado de suas. Os maus tm ms lnguas; falam o mal, quando proferem mentira.O Senhor lhes diz: Como podeis falar coisas boas, se sois maus? (Mt 12,34)

    13 Julga-os, Deus. Malogrem os seus ardis. profecia, no maldio. O salmista nodeseja que acontea, mas discerne o que h de suceder. Realiza-se, mas no porque eleaparentemente o desejou, e sim porque eles so tais que suceder conforme merecem.Assim tambm com o que diz em seguida: Alegrem-se todos os que em ti esperam. um dito de certa maneira proftico, porque v que eles se alegraro. Igualmente emprofecia foi escrito: Desperta teu poder e vem (Sl 79,3), porque o profeta via que elehaveria de vir. Embora se possam tambm entender as palavras: Malogrem os seusardis, acreditando-se ter o salmista desejado o melhor, que desistam de seus ardis e jno planejem maldades. Mas as palavras seguintes no permitem tal interpretao:Expulsa-os, porque de modo algum se h de tomar em bom sentido que algum sejarepelido por Deus. Entenda-se, portanto, como profecia, e no malevolncia. Foiassegurado que necessariamente tal coisa adviria aos que perseverassem nos pecadosmencionados. Malogrem seus ardis, diz o salmista. Desistam de seus planos, que osacusam, e tambm o atesta sua conscincia, conforme declara o Apstolo: Acusam-nos,ou defendem-nos seus pensamentos, na revelao do justo juzo de Deus (Rm 2,15.16).

    14 Por seus numerosos crimes expulsa-os, repele-os para longe. Por seus numerososcrimes sejam em igual medida repelidos. Os mpios so excludos da herana que sepossui entendendo e vendo a Deus, assim como os olhos mrbidos fogem do fulgor daluz, pois constitui para eles sofrimento o que para os outros alegria. Eles, portanto, demanh no estaro de p, nem vero. Tal excluso se torna castigo to grande quanto grandioso o prmio, do qual se diz: Para mim s h um bem: estar unido a Deus (Sl78,28). O oposto deste castigo a palavra: Entra na alegria de teu Senhor (Mt 25,23),bem como semelhante a esta expulso : Lanai-o l fora nas trevas (Mt 25,30).15 Porque, Senhor, te causaram amargura. Disse ele: Eu sou o po que desceu docu (Jo 6,51); e Trabalhai pelo alimento que permanece (ib 27); e provai e vede

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  • quo suave o Senhor (Sl 33,9). Para os pecadores amargo o po da verdade; porisso, odeiam a boca que profere a verdade. Amarguram a Deus os que, pecando,contraram uma doena tal que no suportam o alimento da verdade, fel para eles, alegriadas almas sadias.

    16 12 Mas alegrem-se todos os que em ti esperam, que provaram quo suave oSenhor. Exultaro eternamente e habitars no meio deles. Haver, portanto, eternaexultao quando os justos se tornarem templo de Deus e for sua alegria aquele que neleshabita. E gloriar-se-o em ti os que amam teu nome, tendo presente para sua fruio obem que amam. E com razo se diz em ti, enquanto so possuidores da heranareferida no ttulo do salmo, e eles mesmos constituem a herana daquele a quem alude apalavra habitars no meio deles. Deste bem acham-se privados os que Deus repele porseus numerosos crimes.

    17 13 Porque abenoars o justo. A bno consiste em gloriar-se em Deus e ter aDeus habitando em si. Esta santificao concedida aos justos; mas para que sejustifiquem precede o chamado, proveniente no dos mritos e sim da graa de Deus.Todos pecaram e esto privados da glria de Deus (Rm 3,23). Os que chamou,tambm os justificou; e os que justificou, tambm os glorificou (ib 8,30). Uma vez queo chamado no deriva de nossos mritos, mas da benevolncia e misericrdia de Deus,acrescentou: Senhor, como um escudo, nos cercaste de benevolncia. A boa vontadede Deus precede a nossa, chamando os pecadores penitncia. Tais armas vencem oinimigo, contra o qual se diz: Quem acusar os eleitos de Deus? e: Se Deus estconosco, quem estar contra ns (ib 8,31,33). Se quando ramos inimigos, Cristomorreu por ns, com muito mais razo, estando j reconciliados, seremos salvos da irapor ele (ib 5,9.10). Eis o escudo invencvel, que repele o inimigo a sugerir desespero dasalvao, atravs de multido de tribulaes e tentaes.

    18 Todo o texto do salmo, portanto, uma orao para ser ouvida, desde: Escuta, Senhor, minhas palavras at: meu rei e meu Deus. Em seguida, a explanao dosimpedimentos viso de Deus, para o salmista saber que a orao foi ouvida, desde:Senhor, implorar-te-ei, desde a manh me ouvirs at: O Senhor abominar osanguinrio e o doloso. Em terceiro lugar, o salmista espera que haver de estarfuturamente na casa de Deus e agora se aproxima com temor, antes da consumao, queh de lanar fora o temor, desde a passagem: Eu, porm, cercado pela multido de tuasmisericrdias at: Adorarei em teu santo templo, cheio de temor. Em quarto lugar,entre obstculos palpveis, o salmista, progredindo e adiantando-se, reza para serajudado no seu ntimo, que nenhum homem v, para no se deixar arrastar pelas mslnguas, e isto de onde est escrito: Senhor, guia-me em tua justia, por causa de meusinimigos at: Para enganar empregavam as suas lnguas. Em quinto lugar, profecia arespeito do castigo reservado aos mpios, do qual o justo escapar com dificuldade, e doprmio a ser obtido pelos justos, que sendo chamados vieram e tudo suportaramvirilmente at chegarem ao termo, desde: Julga-os, Deus, at o fim do salmo.

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  • 40

  • SALMO 6

    COMENTRIO

    1 1 Salmo de Davi. Para o fim. Entre os hinos sobre o oitavo. Oitavo, expressoobscura; as outras palavras do ttulo so mais claras. Opinam alguns tratar-se do dia dojuzo, do tempo da vinda de nosso Senhor, para julgar os vivos e os mortos. Acredita-seque tal vinda, contando os anos desde Ado, se dar aps sete mil anos, de sorte que ossete mil anos passaro como sete dias. Em seguida, vir outra poca, que constituir ooitavo dia. A palavra do Senhor: No vos compete conhecer os tempos e os momentosque o Pai reservou a seu poder (At 1,7), e: Daquele dia e da hora, ningum sabe, nemos anjos dos cus, nem o Filho, mas s o Pai (Mt 24,36), e o que est escrito: O dia doSenhor vir como ladro (1Ts 5,2), mostra que ningum h de arrogar-se oconhecimento da data, calculando os anos. Se for dentro de sete mil anos que h de viraquele dia, qualquer pode saber a ocasio da vinda, computando os anos. Como, ento,nem o Filho o sabe? Assim foi afirmado, no porque o Filho mesmo no o saiba, e simporque os homens no obtero esse conhecimento por meio do Filho, segundo a locuo:O Senhor vosso Deus vos experimenta para saber (Dt 13,3), isto , para que saibas.Ergue-te, Senhor (Sl 3,7), quer dizer, levanta-nos. Se, pois, assevera-se que o Filhodesconhece o dia, no porque o ignore, mas porque faz com que o desconheam aquelesaos quais no convm saber, isto , no o mostra, no sei que presuno esta demarcar, com toda a certeza, o dia do Senhor, aps sete mil anos!

    2 Ignoremos de boa mente aquilo que Deus no quis que soubssemos e procuremos osignificado deste ttulo: Sobre o oitavo. possvel, sem nenhum clculo temerrio deanos, entender-se o d