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Paul Theroux

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  • Paul Theroux

  • Viagem por ÁfricaDo Cairo à Cidade do Cabo

    Tradução de Maria José Figueiredo

    QUETZAL serpente emplumada | Paul Theroux

  • Para a minha mãe,Anne Dittami Theroux, pelos seus 91 anos.

  • «Sombreado de folhas largas e de pés numerosos,Que deus governa em África, que forma,

    Que avuncular homem-nuvem mais radiante do que as lanças?»

    WALLACE STEVENS,The Greenest Continent

  • 1Desaparecer num ápice

    AS NOTÍCIAS QUE NOS CHEGAM DE ÁFRICA são sempre más. Aoouvi-las, eu ficava com vontade de lá ir, mas não por causa dos hor-rores, dos pontos quentes, das histórias de massacres e terramotosque se leem nos jornais; queria voltar a sentir o prazer de estar emÁfrica. Voltar a ter a sensação de que era um continente tão amplo,que continha muitas histórias por contar, bem como alguma espe-rança, alguma graça, alguma doçura — a sensação de que África nãoera apenas a miséria e o terror; desejava voltar a mergulhar no bun-du, como chamávamos ao mato, e vaguear pelo interior arcano docontinente. Onde vivera e trabalhara, e fora feliz, há quase quarentaanos: no coração do continente verde.

    Escrevo este livro quase um ano depois, acabado de regressarde África, tendo feito o meu longo safari. Estava redondamente en-ganado — fizeram-me demorar, dispararam sobre mim, gritaram--me aos ouvidos, roubaram-me. Não houve massacres nem terramo-tos, mas o calor era tremendo e as estradas horríveis, os comboiosestavam ao abandono e nem vale a pena falar dos telefones. Os agri-cultores brancos, exasperados, diziam-me: «Está tudo de pernas parao ar!» África encontra-se hoje, em termos materiais, mais decrépitado que quando eu lá estive da primeira vez — mais faminta, maispobre, menos educada, mais pessimista, mais corrupta, e os políticosnão se distinguem dos feiticeiros. Os africanos, menos estimados doque nunca, parecem-me ser as pessoas do mundo a quem mais semente — são manipulados pelos próprios Governos, queimados pelosespecialistas estrangeiros, iludidos pelas instituições de solidariedade

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    e enganados em tudo. Qualquer chefe africano era um ladrão, masos evangélicos roubaram ao povo a inocência e as organizações não--governamentais deram-lhe falsas esperanças, o que ainda é pior. Osafricanos reagiram arrastando os pés ou tentando emigrar; ou pedin-do, suplicando, exigindo dinheiro e presentes com a insolente e bi-zarra sensação de quem tem direito a eles. É verdade que África nãoé toda igual. É um sortido de repúblicas heterogéneas e dirigentesgastos. Adoeci, perdi-me, mas nunca me entediei: na verdade, a mi-nha viagem foi uma delícia e uma revelação. Um parágrafo como es-te precisa de ser explicado — pelo menos com um livro; porque nãoeste mesmo livro?

    Como estava a dizer, nos tempos sem história da minha ativi-dade de professor no bundu, as pessoas circulavam por caminhos domato, que começavam no final de estradas de barro vermelho, pas-sando por aldeias de palhotas. Uma nova bandeira nacional substi-tuíra a bandeira britânica, acabavam de obter o direito de voto, al-guns deles tinham uma bicicleta, muitos falavam da possibilidade decomprar o primeiro par de sapatos da sua vida. Estavam cheios deesperança, e eu também, eu, um professor que vivia perto de umaaldeia de palhotas de lama, no meio de árvores poeirentas e camposqueimados pelo sol; as crianças guinchavam nas suas brincadeiras; asmulheres dobravam-se — a maior parte delas com um bebé às cos-tas — apanhando milho e feijão; e os homens deixavam-se estarsentados à sombra, estuporando-se com chibuku, a cerveja da zona,ou com kachasu, o gin local. Era esta, no ver de todos, a ordem na-tural das coisas em África: as crianças brincavam, as mulheres traba-lhavam, os homens permaneciam ociosos.

    Aqui e ali, havia problemas, uma pessoa atravessada por umalança, rixas de bêbedos, violência política — batalhões de rufias que,com a blusa do partido no poder vestida, soltavam os horrores doinferno. Em geral, contudo, a África que eu conheci era soalheira eencantadora, um deserto de um verde suave, de árvores baixas comcopas planas e de arbustos densos, guinchos de aves, gargalhadas demiúdos, estradas vermelhas, penhascos castanhos, fendidos e quebra-diços, que pareciam acabados de cozer ao sol, colinas azuis recorda-das, animais às pintas e outros de pele amarela e de garras, e toda a

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    espécie de seres humanos — desde os plantadores de faces rosadasde socas e calções até aos indianos de pele castanha e aos africanosde caras brilhantes de negro e, no extremo do espectro, pessoas depele tão escura que era púrpura. E o som predominante da savanade África não era o marchar dos elefantes nem o rugir dos leões, erao arrulhar da rola.

    Depois de eu ter saído de África, deu-se uma erupção de másnotícias: desastres naturais, ações de tiranos, guerras tribais e epide-mias, inundações e fome, comissários políticos com mau feitio, esoldados adolescentes que estropiavam pessoas — «Mangas compri-das?», perguntavam irónicos, e decepavam-lhes as mãos; quando di-ziam «mangas curtas», era porque iam decepar-lhes o braço todo.Nos massacres de 1994, no Ruanda, morreram um milhão de pes-soas, principalmente tútsis. As estradas de África continuaram a servermelhas, mas estavam agora cobertas de refugiados andrajosos,com os seus haveres às costas, em fuga.

    Os jornalistas iam atrás deles. Incitados pelos respetivos edito-res, que queriam alimentar o público com provas da selvajaria huma-na, os repórteres postavam-se ao lado de africanos famintos nos últi-mos estertores de aturdimento, entoando notícias que seriam vistasna televisão por pessoas que engoliam aperitivos sentadas no sofá desua casa, assistindo horrorizadas ao espetáculo. «E estes» — foramum primeiro plano de um estertor de morte — «estes são os que ti-veram sorte».

    E a pessoa pensa: «Quem é que disse?» Mas talvez algumacoisa tenha mudado desde que eu lá estive. Queria descobrir isso.O meu plano era viajar do Cairo até à Cidade do Cabo, de umaponta à outra, e ver tudo o que houvesse no meio.

    A verdade é que as notícias de África eram tão horríveis comoos boatos: dizia-se que era um continente desesperado — indescrití-vel, violento, coberto de epidemias, faminto, sem esperança, a mor-rer de pé. E estes são os que tiveram sorte! Mas eu achei — eu que ti-nha tempo de sobra e nada que me apressasse — que poderia ligaros pontos, atravessar as fronteiras e ver o interior, em vez de circularde capital em capital, acolhido por untuosos guias turísticos. Naque-le momento, não tinha a menor vontade de ver parques de caça,

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    embora presumisse que, a determinada altura, iria ter. «Safari» éuma palavra suaíli que significa «viagem» e que nada tem a ver comanimais; uma pessoa que está «num safari» está, muito simplesmen-te, ausente, fora de alcance, incontactável.

    Era incontactável em África que eu queria estar. O desejo dedesaparecer é a mola que impele muitos viajantes. Se a pessoa estivercompletamente farta de que a mandem esperar, seja em casa ou noemprego, o ideal é ir viajar: serem as outras pessoas a esperar porela, para variar. Ir viajar é uma espécie de vingança por nos teremdeixado à espera, por termos de deixar mensagens em gravadores,sem sabermos o número da extensão da outra pessoa, por termos depassar grande parte da nossa vida ativa à espera — ou seja, pelascoisas irritantes a que está sujeito um escritor preso em casa. Masa verdade é que esperar faz parte da condição humana.

    Pensei: Os outros que expliquem onde estou, e imaginei o diálogo.— Quando é que o Paul regressa?— Não sabemos.— Onde é que ele está?— Não temos bem a certeza.— Podemos entrar em contacto com ele?— Não.Viajar na savana de África pode ser também uma espécie de

    vingança do telemóvel e do fax, do telefone e do jornal diário, dosaspetos mais incómodos da globalização, que permite a qualquerpessoa que o deseje pôr-nos em cima as insinuantes mãos. Eu tinhavontade de estar fora de alcance. Doente como estava, o Sr. Kurtztentou escapar do barco de Marlow rastejando como um animal,procurando fugir para a floresta. Eu percebia porquê.

    Eu ia para África pelas melhores razões — com espírito dedescoberta; e também pela razão mais mesquinha — para desapare-cer, para me desligar, com uma insinuação de: Atrevam-se a tentarencontrar-me.

    A vida em minha casa tinha-se tornado uma rotina, e as rotinasfazem com que o tempo passe depressa. Eu vivia mergulhado numarotina previsível: as pessoas sabiam a que horas podiam telefonar--me, sabiam a que horas eu estaria a trabalhar à secretária. A coisa

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    estava a funcionar com uma regularidade tal que era como se tivesseum emprego, que é um tipo de vida que eu odeio. Estava farto dereceber telefonemas e de ser importunado, de que me pedissem fa-vores, de que me pedissem dinheiro. Se estivermos à sua disposiçãodurante muito tempo, as pessoas começam a impor-nos os seus pró-prios prazos:

    «Preciso disto a 25...»; «Por favor, leia-me isto até sexta-fei-ra...»; «Tente acabar isto durante o fim de semana...»; «Organizámosuma conferência para quarta-feira...» Telefone-me... Mande-me umfax... Mande-me uma mensagem por e-mail... Pode telefonar-me quan-do quiser para o telemóvel — o número é o seguinte.

    O facto de toda a gente estar disponível a qualquer momentoneste mundo totalmente acessível dava-me uma sensação de purohorror. Dava-me vontade de encontrar um sítio que fosse absoluta-mente inacessível... sem telefones, sem faxes, sem correio sequer, ummundo maravilhoso, um mundo antigo inalcançável; em suma, ummundo distante.

    Bastava ir-me embora. Adorava não ter de pedir licença a nin-guém e a verdade é que as coisas também tinham começado a tor-nar-se um tanto previsíveis na minha vida doméstica — o Sr. Paulestava em casa ao fim da tarde quando a Sra. Paul chegava do em-prego. «Fiz molho de esparguete...»; «Sequei umas postas deatum...»; «Estou a descascar umas batatas...» O escritor de avental,cheirando o molho bechamel, sempre com o telefone ao pé. E nãoé possível deixar de o atender, porque está a tocar-nos ao ouvido.

    Tinha vontade de largar tudo. As pessoas diziam-me: «Compraum telemóvel...»; «Usa o FedEx...»; «Inscreve-te no Hotmail...»«Frequenta os cafés com internet...»; «Dá uma vista de olhos ao meusite na internet...»

    Eu respondia: não, obrigado. Se me queria ir embora, era justa-mente para fugir de tudo isto — para estar inalcançável. A maiorjustificação para a viagem não era o meu próprio aperfeiçoamento,era antes levar a cabo um ato de desaparecimento, eclipsar-me semdeixar rasto. Como dizia Huck, desaparecer num ápice e reaparecerem novo território.

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    África é um dos últimos locais do mundo onde a pessoa podedesaparecer. Era isso que eu queria. Eles que esperem. Têm-me dei-xado à espera tempo de mais, vezes de mais.

    Vou-me pôr a andar, pensei. O próximo site da web que vou vi-sitar vai ser o da aranha venenosa da África Central, que se alimentade aves.

    Um aspeto mórbido da minha partida para África foi começara receber condolências. A pessoa parte para uma zona perigosa e osamigos começam a fazer-lhe telefonemas de solidariedade, como setivesse apanhado uma doença grave que pudesse vir a ser mortal.Acontece, porém, que eu achei essas mensagens inesperadamenteestimulantes, uma consoladora antecipação do que seria o meu fale-cimento. Uma data de lágrimas! Uma data de penas! Mas também,sem dúvida alguma, muita gente a gabar-se solenemente: «Eu bemlhe disse para não se meter nisso! Fui uma das últimas pessoas a falarcom ele.»

    Tinha chegado ao Baixo Egito e dirigia-me para sul, no meuhabitual estado de espírito quando viajo na esperança do pitoresco,à espera do miserável, preparado para o pavoroso. A felicidade eraimpensável porque, embora a felicidade seja desejável, como temade viagem é banal; portanto, África parecia-me o ideal para umalonga viagem.