Paul Veyne [=] História da carochinha

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  • 7/26/2019 Paul Veyne [=] Histria da carochinha

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    AUL VEYNE

    HISTRIA DACAROCHINHA

    Entrevista a Martine Fournier

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    Especialista na Antigidade greco-romana,

    grande erudito e leitor insacivel, Paul Veyne

    no fica limitado a fronteiras acadmicas enunca permanece dentro das correntes consti-

    tudas, como testemunham suas difceis re-

    laes com a Escola dos Annales. Em 1976, pu-

    blicou sua tese Le pain et le cirque (O po e ocirco, ed. Seuil), um estudo fascinante sobre a

    sociedade romana, que lhe valeu uma cadeira

    no Collge de France. Desde ento escreveu

    vrias obras que unem reflexo epistemolgicasobre o conhecimento histrico e anlise do

    mundo greco-romano. Como Michel Foucault,

    Paul Veyne afirmou que a histria a histria

    das prticas e das crenas. Ele repudia qualquerideia de racionalidade da histria, de ser mo-

    vida por fatores profundos como progresso ou

    luta de classes. Sua reflexo sobre o estatuto da

    verdade o leva a demonstrar a dificuldade da

    explicao histrica: no mximo o historiador

    pode tentar explicitar fatos e historicizar noes

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    (o Estado, o poder, a religio etc.). Para Paul

    Veyne, no se pode tirar nenhuma lio da his-

    tria. Ele afirma a subjetividade de toda narra-tiva histrica e coloca em xeque o estatuto da

    verdade.

    MF Em O po e o circo [ed. brasileira:

    Unesp, 2015], o sr. prope um estudo inovador

    do funcionamento poltico da cidade romana por

    meio da prtica do evergetismo, ou seja, as

    doaes pblicas que os notveis faziam ci-

    dade. Por que escolheu essa abordagem?

    PAUL VEYNE A doao ocupava um lu-gar muito importante na sociedade romana: po

    (sob a forma da distribuio de trigo), circo (or-ganizao de lutas de gladiadores) e festins p-blicos para o povo, mas tambm distribuio deterras, presentes para marcar o incio do ano,

    presentes para o imperador e seus funcionriosetc. A maioria dos monumentos pblicos das ci-

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    dades greco-romanas (anfiteatros, baslicas, ter-mas etc.) foi oferecida por notveis. Eu estava

    convencido de que essas doaes no guardavamrelao nenhuma com uma tentativa de despoli-tizao e de manobra dos poderosos para afastaro povo da poltica. Na sociedade romana, os no-

    tveis no eram senhores que viviam em seuscastelos, mas nobres que viviam na cidade como, alis, aconteceria mais tarde, na Itlia me-dieval , e essa nobreza enxergava a cidade

    como sua propriedade, que ela governava. Emlugar de embelezar seus castelos, os nobres em-belezavam a prpria cidade, com o mecenato:construam monumentos pblicos e assim, com

    sua generosidade, mostravam que eram ricos epoderosos. Essas doaes ostentatrias tambmeram destinadas a mostrar que a cidade no po-dia viver seno graas a eles. No se trata de uma

    despolitizao dos espritos, mas de um clculopoltico mais sbio. Essa minha tese foi inspirada

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    por Ensaio sobre a ddiva [ed. brasileira: Co-sac Naify, 2013] de Marcel Mauss.

    MF Apesar de sua preveno com relao s

    cincias sociais, o sr. faz referncias frequentes a

    Max Weber em sua obra. Qual foi a contribuio

    desse socilogo?

    VEYNE A obra de Max Weber, justa-mente, mostra que toda noo historicizada.Sua sociologia abrangente no procura formu-lar leis. Ela rene e classifica os casos particula-

    res de um mesmo tipo de acontecimento aolongo dos sculos. Seus tipos ideais so um ins-trumento de interpretao, de hermenuticadentro de uma problemtica em que a histria

    concebida como conhecimento da individuali-dade. Voltemos ao exemplo do mecenato na An-tiguidade. Podemos enxergar a doao comouma espcie de invarivel ao longo dos sculos

    e especular sobre categorias gerais: doao, im-posto, troca... Ou podemos nos espantar pelofato de os nobres romanos terem dado po e

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    circo ao povo. A cidade era, de certo modo, seucastelo coletivo. Em nossos tempos, se um bilio-

    nrio francs quisesse pagar parte do oramentodo Estado, ele seria rapidamente suspeito de terdesgnios obscuros. Como se explica que o me-cenato de Estado, pblico, fosse admitido na An-

    tiguidade e seja impensvel em nossa poca? Emlugar de procurar invariveis, passamos ento aprocurar nuanas, maneira de Weber. O ci-dado romano no visto como um sujeito abs-

    trato, como o o cidado de direito da Revo-luo Francesa, mas como um personagem quecontribui concretamente para a cidade, pelo fatode fazer parte dela. A cidade o prprio grupo

    de notveis. Cada exemplo especfico, porquefaz parte de um momento da histria e, por-tanto, nos convida a raciocinar em termos con-cretos. O caso mais extremo o da democracia

    antiga: como estabelecer um conceito geral quepostule uma continuidade entre a democraciamoderna e a dos gregos? Elas tm em comum

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    apenas a palavra.

    MF Poderamos dizer, ento, que a histria

    serve apenas para contar belas histrias?

    VEYNE De um lado, eu responderia quetodo trabalho histrico parcial e subjetivo. No

    existe uma narrativa cannica nica da histriada Frana, e seria impossvel faz-la. Somos obri-gados a escolher um ngulo de apresentao, oda estruturao do espao francs ou o da vida

    cotidiana dos franceses, a histria da nao ouda sucesso dos poderes etc. Existe necessaria-mente um corte. E, se voc quiser fazer umahistria total, perceber muito rapidamenteque no fez mais do que reunir esses diferentescaptulos e mais: que se esqueceu da histriadas mulheres e que isso no tem fim. Por outrolado, penso que a histria no tem mais utili-dade que a astrologia. um assunto de pura cu-riosidade ou, pelo menos, preciso trat-la comotal. A histria no demonstra nada e no permitetirar lies eternas. Algumas pessoas a utilizam

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    para encontrar razes fundadoras: o caso daSrvia atualmente, que est reconstruindo sua

    histria a partir de todos os pedaos, enquantoos jovens historiadores israelenses desconstroema histria do Estado de Israel. Vamos visitar ru-nas que podem ser informes: o caso da maioria

    das runas de Roma. No visitamos esses monu-mentos por suas qualidades de relquia nem porseu valor esttico, mas porque so um pedao dopassado. Existe um interesse pelo passado hu-

    mano, simplesmente por ele prprio. A que sedeve esse fascnio? Todos ns temos a tendnciaa imaginar uma natureza humana que teria ne-cessidade de religio ou de uma atitude de pie-

    dade em relao aos ancestrais ou de ideais gran-diosos como verdade, justia etc. Nesse caso, oculto ao passado seria uma transformao dapulso religiosa. Mas a partir disso podemos di-

    zer tudo ou seja, nada.MF Em Les grecs ont-ils cru leurs mythes?

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    [Os gregos acreditavam em seus mitos?, ed. bra-

    sileira: Unesp, 2014), o sr. mostra que a prpria

    noo de verdade historicizada. Existe, o sr. diz,

    uma pluralidade de programas de verdade ao

    longo dos sculos.

    VEYNE Os gregos acreditavam muitofirmemente em seus deuses. Por exemplo, nin-gum punha em dvida a existncia do deusBaco. Mas Baco era cercado de figuras fantsti-cas as bacantes, os stiros em quem nin-gum acreditava e cujas histrias eram conside-radas fantasias que as babs contavam s cria-nas para distra-las. Para ns, seria impossveldissociar essas crenas. O fato de contos puerise falsos serem associados histria de Baco con-

    taminaria a crena nesse deus. Os gregos abor-davam seus deuses como um leitor de Os trsmosqueteiros que zomba da realidade histricae mergulha no romance de Alexandre Dumas

    sem se preocupar em saber se D'Artagnan, At-hos, Porthos e Aramis existiram realmente. Eu

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    quis mostrar nesse ensaio que, ao longo dos s-culos, as pessoas acreditaram firmemente em

    verdades que no eram verdades a tal pontoque podemos enxergar a histria do passadocomo uma sequncia de crenas falsas. Nas cin-cias exatas, porm, desde Isaac Newton, pode-

    ramos dizer, as verdades so cientificamenteembasadas. O estatuto da fsica no o da astro-logia e, em dado momento, a alquimia virou qu-mica, e a astrologia, astronomia. Por volta de

    1800, a medicina comeou a se tornar sria,quando antes no passava de uma srie decrenas estarrecedoras. A mesma coisa aconte-ceu com as cincias humanas por volta de 1860.

    Esse momento corresponde contestao radi-cal do cristianismo. A partir desse corte, desco-brimos que tudo histrico, e a partir da queas cincias humanas se desenvolvem, libertando-

    se de todos os preconceitos de nossos antepassa-dos. Essa mudana marcada pelo filsofo Frie-drich Nietzsche [1844-1900]. Ele foi o primeiro

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    a mostrar que as noes ditas eternas tinham, naverdade, uma histria.

    MF Qual foi a importncia de Foucault para os

    historiadores?

    VEYNE Foucault demonstrou que as

    convices, por mais fortes que possam ser, de-vem ser analisadas dentro de seus contextos his-tricos. Se voc me perguntar qual a verda-deira democracia, no poderei lhe responder.

    Posso lhe dizer o que eu entendo por democra-cia, o que desejo e no que voto, aquilo que noestou disposto a colocar em dvida. Os trabalhosde Foucault sobre a priso e a loucura so umademonstrao cabal da historicidade das con-

    vices; para os historiadores, foram uma reve-lao. Foucault descreve as prticas e analisa osdiscursos. Ele no procura definir o que seria averdadeira loucura, mas descreve concepesdiferentes que dominaram no passado. A ver-dade est, portanto, nessa descrio da maneiracomo a loucura foi vista e tratada segundo as

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    diferentes pocas.

    MF O sr. questionou o estatuto da verdade.

    Ao mesmo tempo, em cada um de seus livros, o

    sr. se distancia da corrente relativista, para a

    qual, na histria, tudo questo de ponto de

    vista. Suas posies no so contraditrias?

    VEYNE Sobre esse ponto, os historiado-res sociolgicos se safam muito bem: para eles,a verdade mostrar as crenas e as represen-taes que o homem construiu ao longo do

    tempo. evidente que a histria sria no podecolocar em dvida a existncia dos campos deconcentrao ou o desaparecimento de famlias

    judias nas cmaras de gs. Existe uma verdade

    do passado. Mas no existe uma vocao hu-mana para ater-se verdade: com a exceo doshistoriadores que exercem sua profisso seria-mente, as pessoas so capazes de negar as cma-

    ras de gs ou de zombar delas ou, ainda, de in-ventar outras que no existiram.

    MF Isso assustador.

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    VEYNE No sem inquietude que nosdizemos que possvel que dentro de cem anos

    os direitos humanos aos quais damos tanta im-portncia no faam mais sentido nenhum paraas pessoas. Imagine um homem que lutou naPrimeira Guerra, que quase se deixou matar por

    sua ptria, mas que descobre, 66 anos maistarde, que visto como vtima ou como algumque se deixou enganar. de fato uma ideiamuito angustiante. Mas felizmente ou infe-

    lizmente? a percepo da fragilidade da ver-dade no abala os homens em suas convices.

    Sciences HumainesTraduo de Clara Allain