Paulo J. Almeida Departamento de Matem atica da...

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Teoria dos N´ umeroseAplica¸c˜oes Paulo J. Almeida Departamento de Matem´atica da Universidade de Aveiro

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Teoria dos Numeros e Aplicacoes

Paulo J. Almeida

Departamento de Matematica da Universidade de Aveiro

Conteudo

1 Introducao 3

2 Os Inteiros 72.1 Conceitos basicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72.2 Divisibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112.3 Algoritmo de Euclides . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162.4 Teorema Fundamental da Aritmetica . . . . . . . . . . . . . . 212.5 Equacoes Diofantinas Lineares . . . . . . . . . . . . . . . . . . 272.6 Factorizacao de Fermat . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

3 Congruencias 333.1 Introducao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 333.2 Testes de Divisibilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 383.3 Congruencias Lineares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 413.4 Sistemas de Congruencias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 433.5 Metodo ro de Pollard . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 493.6 Armazenamento de ficheiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 503.7 Deteccao de erros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52

4 Funcao de Euler 554.1 Sistema Reduzido de Resıduos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 554.2 Pequeno teorema de Fermat e Teorema de Euler . . . . . . . . 564.3 pseudoprimos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 604.4 Sistema criptografico RSA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63

5 Congruencias polinomiais 665.1 Resıduos quadraticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 665.2 Congruencias Polinomiais gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . 76

1

5.3 Atirar moedas ao ar electronicamente . . . . . . . . . . . . . . 865.4 Prova de conhecimento nulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 885.5 Raızes Primitivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

6 Funcoes Aritmeticas 946.1 A funcao de Mobius, µ(n) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 946.2 As funcoes d(n) e σ(n) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 996.3 Numeros perfeitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

7 Equacoes Diofantinas 1047.1 Introducao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1047.2 Congruencias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1067.3 Metodo descendente de Fermat . . . . . . . . . . . . . . . . . 1107.4 Soma de dois quadrados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114

8 Fraccoes Continuadas 1208.1 Introducao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1208.2 Fraccoes Continuadas finitas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1218.3 Fraccoes continuadas simples . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1258.4 Fraccoes continuadas periodicas . . . . . . . . . . . . . . . . . 1308.5 Equacoes de Pell . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132

2

Capıtulo 1

Introducao

A teoria dos numeros e das areas mais antigas da matematica, tendo sido es-tudada pelo ser humano ha varios milenios. Nesta introducao iremos dar umabreve descricao da razao pela qual esta area e tao fascinante e importante.

De uma forma geral, em teoria dos numeros estudamos numeros e suaspropriedades. Neste curso, lidaremos especialmente com os inteiros 0,±1,±2,,. . . , e iremos discutir varias propriedades e relacoes entre estes numeros. Ire-mos tambem ver variadas aplicacoes da teoria dos numeros, nomeadamentea ciencia da computacao e a criptologia. Desde ha 5000 anos que se desen-volvem metodos para representar os inteiros, tendo, as que utilizam sistemascom bases, permitido algoritmos1 muito mais eficientes de fazer aritmetica.Os Babilonios criaram a base 60, que actualmente ainda utilizamos nas nos-sas medicoes de tempo. Os Maias utilizaram a base 20, tendo introduzidoum sımbolo para representar o zero. A base 10 foi pela primeira vez utilizadana India ha aproximadamente seis seculos. Actualmente, os computadoresutilizam a base 2. O desenvolvimento de algoritmos eficientes para efectuararitmetica tem sido extremamente importante, devido, por exemplo, ao factode a criptologia necessitar de inteiros com centenas ou milhares de algaris-mos. Durante este curso iremos mencionar alguns destes algoritmos e a suaimportancia.

Os gregos, da escola de Pitagoras (sec VI a.C.), fizeram pela primeiravez a distincao entre numeros primos e numeros compostos. Questoes sobreprimos tem interessado os matematicos desde a antiguidade:

Apos termos visto alguns primos, uma das primeiras questoes que surge

1O termo algoritmo, que agora se aplica a qualquer procedimento para resolver umproblema, originalmente referia-se a procedimentos aritmeticos.

3

e sobre se existe um numero infinito deles. Esta questao foi resolvida de umaforma muito elegante por Euclides (sec IV a.C.). Iremos ver este resultadomais tarde.

Outra questao que surge com naturalidade e se existem formulas que nosfornecam todos os primos. O polinomio

n2 + n+ 41

da valores primos para n ∈ {0, 1, . . . , 39} mas quando n e 40 ou 41, o valorde n2 + n+ 41 ja nao e primo. Iremos ver que nao ha polinomios que deemsempre numeros primos.

Pierre de Fermat (1601-1665), um grande matematico do seculo XVII,conjecturou que os numeros da forma

Fn = 22n

+ 1

sao primos para qualquer n ≥ 0. Fermat verificou que os primeiros valores,F0 = 3, F1 = 5, F2 = 17, F3 = 257 e F4 = 65537, sao realmente primos.O seguinte valor e F5 = 4294967297, um numero demasiado grande para sertestado a mao. Em 1732, Leonard Euler (1707-1783) provou que 641 divideF5, e, portanto, F5 e composto. Desde entao, foi provado que muitos outrosFn sao compostos, e, ate agora, nao foi encontrado nenhum primo da formaFn, para n > 4.

Qual e o n-esimo primo? Para qualquer n, esta questao pode ser respon-dida ao fim de um limitado perıodo de tempo. Por exemplo, o primeiro primoe 2, o quinto e 11 e o primo que esta na posicao 664999 e 10006721. Mas ateagora nunca foi encontrada uma maneira de saber o n-esimo primo, sem sesaber todos os primos anteriores.

Quantos primos sao menores que n? Legendre (1752-1833) e Gauss (1777-1855) conjecturaram que ha aproximadamente

n

log n

primos menores que n. Se dividirmos o numero de primos menores que n,por aquela fraccao, verificamos que quanto maior for n mais este cociente seaproxima de 1. Este resultado e conhecido como o Teorema dos NumerosPrimos, e foi pela primeira vez provado em 1896, por Hadamard (1865-1963)e por de la Vallee Poussin (1866-1962).

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Uma problema que e agora de importancia capital na criptologia e a dis-tincao entre numeros primos e compostos. O grego Eratostenes desenvolveuum metodo, a que actualmente chamamos crivo de Eratostenes que encon-tra todos os primos menores que um determinado limite. Os detalhes desteprocesso e a sua validade serao estudados neste texto.

Por vezes, e necessario determinar se um numero especıfico e primo. Omatematico iraquiano Ibn al-Haytham (c. 1000) verificou que um numero ne primo quando

n divide (n− 1)! + 1.

Por exemplo, 4! + 1 = 25, portanto 5 e primo, enquanto que 6 - (5! + 1),ou seja, 6 e composto. Este e um resultado muito interessante (conhecidopor Teorema de Wilson), no entanto, parece ser impraticavel usa-lo paradeterminar se numeros muito grandes sao primos ou nao.

Na China antiga, os matematicos pensavam que os numeros primos eramprecisamente os inteiros positivos n que dividissem 2n−2. Porem ha numeroscompostos que verificam esta propriedade, nomeadamente 341. A estes com-postos chamamos pseudoprimos. Mas se n nao dividir 2n − 2 entao n ede certeza composto. Esta propriedade e suas generalizacoes permitem-nosdesenvolver varios testes de primalidade.

Uma outra grande area da Teoria dos Numeros consiste em resolverquestoes aditivas:

• Quando e que um quadrado perfeito se pode escrever como soma dedois quadrados perfeitos?

Devido ao teorema de Pitagoras, este problema e equivalente ao problemade encontrar triangulos rectangulos com lados inteiros. Todos conhecemos otriplo (3, 4, 5) (i.e. 32 + 42 = 52). Quantos mais havera?

O problema anterior consiste em encontrar todas as solucoes inteiras daequacao x2 + y2 = z2. A este tipo de equacoes chamamos equacoes diofanti-nas, em honra ao matematico grego Diofanto (200?-284?), que foi o primeiroa tentar descobrir as solucoes inteiras de diversas equacoes. Fermat general-izou a equacao de Pitagoras, x2 + y2 = z2, e considerou a equacao

xn + yn = zn,

onde n ≥ 3. Na margem da sua copia de um livro sobre os resultados deDiofanto, Fermat escreveu que tinha uma magnıfica demonstracao de que a

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equacao nao tem quaisquer solucoes inteiras com x, y e z nao nulos. Infeliz-mente, Fermat tambem escreveu que a margem do livro era demasiado pe-quena para reproduzir essa demonstracao. Este resultado e conhecido comoo o ultimo teorema de Fermat, e foi finalmente provado em 1995 por AndrewWiles (1953-).

Uma outra questao aditiva famosa e a Conjectura de Goldbach (1690-1764). Esta conjectura afirma que todos os numeros pares sao soma de doisprimos. Em 2000, foi publicado um romance cujo tema e esta conjecturaintitulado O tio Petros e a Conjectura de Goldbach e uma editora inglesaofereceu um milhao de libras a quem a provasse.

O Teorema fundamental da aritmetica diz-nos que qualquer inteiro pos-itivo (maior que um) pode ser escrito de forma unica, como produto deprimos. Fermat, Euler, Pollard e muitos outros matematicos, desenvolveramtecnicas de factorizacao imaginativas, no entanto, utilizando a tecnica maiseficiente ate agora descoberta, ainda seriam precisos bilioes de anos de tempocomputacional para factorizar um numero com 200 algarismos.

O matematico alemao Carl Friedrich Gauss, considerado um dos maioresmatematicos de sempre, desenvolveu a teoria das congruencias, no inıcio doseculo XIX. As congruencias consistem essencialmente em substituir inteirospelos restos da sua divisao por um outro inteiro. Muitas questoes de teo-ria dos numeros podem ser expressas utilizando congruencias, sendo muitasvezes facilitada a sua resolucao. Usando congruencias, obtem-se testes de di-visibilidade, muito simples. Ha muitas aplicacoes das congruencias a cienciada computacao, incluindo aplicacoes ao armazenamento de dados, ou geracaode numeros pseudo-aleatorios.

Uma das mais importantes aplicacoes da teoria dos numeros a ciencia dacomputacao e a area da criptografia. Varios sistemas criptograficos utilizamcongruencias. O sistema RSA, e baseado num teorema de Euler que envolvecongruencias e na disparidade de tempos entre multiplicar dois numeros efactorizar o resultado desse produto. Outros sistemas importantes tem comobase outra questao de teoria dos numeros chamada problema do logaritmodiscreto. Iremos descrever em pormenor estes sistemas durante o curso.

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Capıtulo 2

Os Inteiros

2.1 Conceitos basicos

Em teoria dos numeros iremos estudar propriedades dos numeros inteiros, emparticular, propriedades aditivas e multiplicativas. O conjunto dos inteiros,com as operacoes adicao, +, e multiplicacao, ·, forma um domınio de integri-dade, i. e sao validas as seguintes propriedades, para quaisquer inteiros a, be c:

• a+ b e a · b sao inteiros;

• a+ b = b+ a e a · b = b · a;

• (a+ b) + c = a+ (b+ c) e (a · b) · c = a · (b · c);

• (a+ b) · c = a · c+ b · c;

• a+ 0 = a e a · 1 = a;

• a equacao a+x = 0 tem uma solucao inteira. Representamos a solucaodesta equacao por −a;

• Se c = 0 e a · c = b · c entao a = b.

Por convencao, escrevemos ab, em vez de a · b e b− a em vez de b+ (−a).

Os inteiros podem ser ordenados usando o conjunto dos inteiros positivos{1, 2, 3, . . . }. Temos a seguinte definicao:

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Definicao. Se a e b sao inteiros, escrevemos a < b (le-se a menor que b) oub > a (b maior que a), se b− a for um inteiro positivo.

Temos as seguintes propriedades

• a+ b e ab sao positivos sempre que a e b o forem;

• para qualquer inteiro a, a > 0, a = 0 ou a < 0;

• Se a < b e c > 0 entao ac < bc.

Precisamos de so mais uma propriedade para completar o nosso conjuntode axiomas:

• Princıpio da Boa ordenacao. Qualquer conjunto nao vazio de in-teiros positivos tem um elemento mınimo (ou primeiro elemento).

Por esta propriedade obtemos a existencia de um elemento maximo doconjunto dos inteiros menores ou iguais que um certo numero e permite-nosfazer a seguinte definicao:

Definicao. A parte inteira de um numero real x e o maior inteiro menor ouigual a x. Denotamos este inteiro por [x].

Exemplo. Temos [52] = 2, [−5

2] = −3, [π] = 3, [−2] = −2 e [0] = 0.

Recordemos que um numero x real e racional se e so se existem inteirosa e b, com b = 0, tais que x = a

b. Um numero real que nao seja rational e

irracional. Vamos agora ver uma aplicacao do Princıpio da Boa Ordenacao:

Teorema 2.1.√2 e irracional

Demonstracao: Suponhamos que√2 e racional. Entao existem inteiros

positivos a e b tais que√2 = a

b. Como b

√2 e um inteiro positivo, o conjunto

S = {k√2 | k, k

√2 sao inteiros positivos} e nao vazio, logo tem primeiro

elemento. Seja s = t√2 esse elemento. Entao s

√2 = 2t e um inteiro positivo.

Temos entao que u = s√2−s = (s−t)

√2 pertence a S, pois u = s(

√2−1) > 0

e s > t. Mas como s−u = s(2−√2) e

√2 < 2, obtemos u < s, o que contradiz

o facto de s ser o primeiro elemento de S. Portanto,√2 e irracional. 2

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Ao longo deste texto vamos assumir que o leitor esta familiarizado comos princıpios da inducao matematica, assim como com as notacoes∑

,∏

,

(m

n

)e as suas propriedades.

Exercıcios

1. Seja k um inteiro. Mostre que [x+ k] = [x] + k, para qualquer numeroreal x.

2. Seja x um numero real e n um inteiro positivo. Mostre que [ [x]n] = [x

n].

3. Mostre que o conjunto dos numeros racionais positivos nao tem ele-mento mınimo.

4. * Utilizando o Princıpio da Boa Ordenacao prove que√3 e irracional.

5. ** Sejam a e b numeros irracionais tais que 1a+ 1

b= 1. Mostre que

qualquer inteiro positivo pode ser escrito de maneira unica da forma[ka] ou [kb], para algum inteiro k.

6. Determine o valor das seguintes somas:

n∑i=1

1

i(i+ 1)

n∑i=1

1

i2 − 1

7. Mostre que, para todo o inteiro positivo n,

a)n∑

i=1

i =n(n+ 1)

2;

b)n∑

i=1

i2 =n(n+ 1)(2n+ 1)

6;

c)n∑

i=1

i3 =

(n∑

i=1

i

)2

.

9

8. ** Encontre uma formula de recorrencia paran∑

i=1

ip, para quaisquer

inteiros positivos n e p.

9. Mostre que, para quaisquer inteiros a e b e qualquer inteiro positivo n,

a) an − bn = (a− b)n−1∑i=0

aibn−1−i;

b) Se n for ımpar entao an + bn = (a+ b)n−1∑i=0

(−1)ian−1−ibi;

c) (a+ b)n =n∑

i=0

(n

i

)aibn−i, sendo o coeficiente binomial

(ni

)definido

por (n

i

)=

n!

i!(n− i)!.

10. * O coeficiente multinomial(

ni1i2c...ik

)e definido por(

n

i1i2 · · · ik

)=

n!

i1!i2! · · · ik!

com i1 + i2 + · · ·+ ik = n

a) Mostre que os coeficientes multinomiais sao numeros inteiros;

b) Mostre que, para quaisquer inteiros positivos n e k e quaisquerinteiros a1, a2, . . . , ak,(

k∑i=1

ai

)n

=∑

i1+i2+···+ik=n

(n

i1i2 · · · ik

)ai11 a

i22 · · · aikk .

11. Calcule os seguintes produtos

n∏j=2

(1− 1

j

) n∏j=2

(1− 1

j2

)

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12. A sequencia de Fibonacci e definida por recorrencia por

f0 = 0

f1 = 1

fn+1 = fn−1 + fn, para n ≥ 1

Determine fi para 2 ≤ i ≤ 15 e mostre que

a)n∑

i=1

fi = fn+2 − 1, para n ≥ 1.

b)n∑

i=1

f2i = fnfn+1, para n ≥ 1.

13. Sejam

α =1 +

√5

2, β =

1−√5

2

e seja fn o n-esimo numero de Fibonacci. Prove que

a) as solucoes da equacao x2 = x+1, sao α e β (α e o famoso numerode ouro);

b) para qualquer n ≥ 0,

fn =αn − βn

√5

;

c) fn ≥ αn−2, para n ≥ 1.

14. Mostre que todos os numeros inteiros, excepto as potencias de 2 saosomas de inteiros consecutivos.

2.2 Divisibilidade

Uma das nocoes fundamentais para o estudo dos numeros e a de divisibilidade:

Definicao. Sejam a e b dois inteiros. Se a = 0 e existir um inteiro c talque b = ac, dizemos que a divide b, e escrevemos a|b. Se a nao divide b,escrevemos a - b.

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Por exemplo

7|1001, 13|1001, 11|996710, 5|(78 − 1), 101 - (2100 − 3), 3 - 54865489796432

Alguns inteiros positivos, como 1, 2, 3, 13 e 10006721, so sao divisıveispor eles proprios e por 1. Estes numeros eram chamados numeros primospelos antigos, mas verificou-se, por razoes que veremos mais tarde, que erapreferıvel excluir 1 desta lista. Assim, a definicao moderna de um numeroprimo e a seguinte:

Definicao. A qualquer inteiro maior que 1 cujos unicos divisores positivossejam ele proprio e 1, chamamos numero primo. Um inteiro maior que 1 quenao seja primo e um numero composto

O seguinte resultado e conhecido como o algoritmo da divisao e afirmaque se a e b forem dois inteiros positivos entao existem dois unicos inteiros qe r, tais que

a = bq + r, 0 ≤ r < b

Teorema 2.2. Se a, b, d, r e s sao inteiros tais que d = 0, d|a e d|b entaod|(ra+ sb). Em particular d|(a+ b), d|a− b e d|ra.

Demonstracao: Por hipotese, existem inteiros u e v tais que a = du eb = dv. Donde

ra+ sb = rdu+ sdv = d(ru+ sv).

Como d = 0, temos d|(ra+ sb). 2

Teorema 2.3. Se a, b e c sao inteiros, a = 0, b = 0, a|b e b|c, entao a|c.

Demonstracao: Por hipotese, existem inteiros u e v tais que b = au ec = bv. Portanto, c = auv. Como a = 0, a|c. 2

Como aplicacao do resultado anterior obtemos:

Corolario 2.4. Se n e um inteiro maior que 1, entao o menor divisor de nmaior que 1 e primo

12

Demonstracao: Seja m o menor divisor de n maior que 1 (se n e primo,m = n). Se m nao fosse primo entao existia 1 < u < m tal que u|m. Masentao u|n o que contradiz o facto de m ser o menor divisor de n maior que1. Portanto m e primo. 2

Teorema 2.5. Se a, b e k sao inteiros, a = 0 e k = 0, entao a | b se e so seak | bk.

Demonstracao: Se a|b entao existe um inteiro u tal que b = au. Dondebk = aku. Como ak = 0, temos ak | bk. Se ak | bk entao existe um inteiro vtal que bk = (ak)v. Como k = 0 temos b = av. Como a = 0, obtemos a | b.

2

Teorema 2.6. Se n e um inteiro maior que 1 entao n e primo ou n e umproduto finito de primos.

Demonstracao: Suponhamos que existem inteiros maiores que 1 quenao sao primos, nem sao um produto finito de primos. Seja N o menordestes inteiros. Como N nao e primo, tem de ser composto. Seja 1 < u < Num inteiro que divide N . Entao N = uv para algum inteiro v. Note que1 < v < N . Portanto, por definicao de N , u e v sao primos ou um produtofinito de primos. Logo, tambem uv e um produto finito de primos. 2

Teorema 2.7.

Se n e um numero composto entao existe um primo p ≤√n tal que p|n.

Demonstracao: Se n e composto entao existem inteiros positivos a, b >1 tais que n = ab. Claramente, nao podemos ter a, b >

√n. Sem perda

de generalidade podemos assumir que a ≤ b. Entao a ≤√n. Se a e primo

obtemos o resultado. Se a nao e primo, seja p o menor divisor de a. Entaop ≤ a ≤

√n e p | n. 2

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O resultado anterior permite-nos obter o Crivo de Eratostenes (sec. IIIa.C.) que separa os numeros primos dos compostos. Comecemos por escrevertodos os numeros entre 2 e um limite desejado n (por exemplo 100). O 2 eo primeiro elemento, portanto nao lhe fazemos nada e marcamos os numerosde dois em dois. Marcamos assim os numeros 4, 6, 8, 10, . . . . O primeiroelemento que ainda nao foi marcado e o 3. Deixamo-lo ficar e marcamos osnumeros 6, 9, 12, 15, . . . . Este processo termina quando o primeiro elementoque ainda nao esta marcado for maior que

√n. Todos os numeros que nao

foram marcados sao primos.

Teorema 2.8 (Euclides). Ha um numero infinito de primos

Demonstracao: Suponhamos que ha um numero finito de primos, quedenotamos por p1, p2, . . . , pk. Seja

N = p1p2 · · · pk + 1.

Pelo teorema anterior, N tem um divisor primo, digamos p. Entao p = pipara algum 1 ≤ i ≤ k. Claramente, pi|(p1p2 · · · pk). Usando teorema 2.2,pi|(N − p1p2 · · · pk). Mas N − p1p2 · · · pk = 1 e obtemos uma contradicao.Portanto, ha um numero infinito de primos. 2

Exercıcios

1. Prove as seguintes afirmacoes:

a) se a = 0 entao a|0 e a|a;b) se d = 0 e d|a, entao d|(−a) e (−d)|a;c) se a|b e b|a, entao a = b ou a = −b;

d) d|a se e so se d | |a|.

2. Seja x um numero real positivo e d um inteiro positivo. Mostre que onumero de inteiros positivos menores ou iguais a x que sao divisıveispor d e igual a [x

d].

3. Determine o numero de inteiros positivos menores ou iguais a 1000 quesao divisıveis por 5, por 7, por 25 e por 49.

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4. Determine o numero de inteiros positivos menores ou iguais a 1000 quenao sao divisıveis por 3, 5 ou 7.

5. Mostre que 3 | (a3 − a), para qualquer inteiro a.

6. Mostre que o produto de dois inteiros da forma 4k + 1 e ainda destaforma.

7. Mostre que o quadrado de qualquer inteiro ımpar e da forma 8k + 1.

8. Utilize a inducao matematica para mostrar que a soma dos cubos detres inteiros consecutivos e divisıvel por 9.

9. Seja fn o n-esimo numero de Fibonacci. Mostre que

a) fn e par se e so se 3 | n;b) 3 | fn se e so se 4 | n.

10. * Mostre que fm+n = fmfn+1+fm−1fn, para quaisquer inteiros positivosm e n, com m > 1. Conclua que se m | n entao fm | fn.

11. * Mostre que (2 +√3)n + (2 −

√3)n e um inteiro par, para qualquer

inteiro n ≥ 0. Conclua que [(2 +√3)n] e sempre ımpar.

12. Utilize o crivo de Eratostenes para encontrar todos os primos menoresque 200.

13. Verifique se os numeros 323, 343 e 899 sao primos.

14. Mostre que, se p - n para qualquer primo p ≤ n13 , entao ou n e primo

ou n e produto de dois primos.

15. Numeros de Fermat. Aos numeros da forma Fk = 22k+ 1, k ≥ 0,

chamamos numeros de Fermat.

a) Mostre que, se 2n + 1 e primo entao n e uma potencia de 2;

b) Mostre que Fn = F0F1 · · ·Fn−1 + 2 e deduza que quaisquer doisnumeros de Fermat sao primos entre si;

c) Deduza da alınea anterior que ha uma infinidade de primos.

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16. Numeros de Mersenne. Aos numeros da forma Mk = 2p − 1, com pprimo, chamamos numeros de Mersenne. M2, M3, M5 e M7 sao primosmasM11 = 2047 = 23×89 ja nao e primo. Ate agora foram encontrados44 primos de Mersenne, o ultimo dos quais e 232582657 − 1, encontradoem Setembro de 2006 e que tem 9 808 358 algarismos. Mostre que sea, n > 1 e an − 1 e primo entao a = 2 e n e primo.

17. * Seja n > 1 inteiro e sejam p1, . . . , pt, os primos menores que n. Mostreque

t∏i=1

pi < 4n

18. * Sejam n > 3 inteiro e p um primo tal que 2n3

< p ≤ n. Mostre que

p -(2nn

).

19. ** A conjectura de Bertrand diz que, para qualquer inteiro n > 1, existeum primo p tal que n < p < 2n. Prove esta conjectura.

20. Se pn e o n-esimo primo, mostre que pn ≤ 2n.

2.3 Algoritmo de Euclides

Definicao. Sejam a e b dois inteiros tais que pelo menos um deles e naonulo. Chamamos maximo divisor comum ao maior elemento do conjunto dosdivisores comuns de a e b e denotamos este elemento por (a, b).

Sejam a e b dois inteiros positivos. Pelo algoritmo da divisao, existemdois inteiros q0 e r0, tais que

a = q0b+ r0, com 0 ≤ r0 < b

Se r0 = 0 podemos utilizar o algoritmo da divisao para os inteiros b e r0.Entao existem q1 e r1 tais que

b = q1r0 + r1, com 0 ≤ r1 < r0

Procedendo desta forma obtemos uma sequencia de inteiros nao negativosr0, r1, . . . , rn, tais que r0 > r1 > · · · > rn ≥ 0. Note que este processo temde terminar ao fim de um numero finito de passos e que o ultimo resto, quedenotamos por rk+1, e nulo.

16

Teorema 2.9. Se a e b sao dois inteiros positivos e rk e o ultimo resto naonulo obtido pelo algoritmo de Euclides, entao rk = (a, b). Mais, o algoritmode Euclides permite encontrar inteiros u e v tais que

au+ bv = (a, b)

Demonstracao: O algoritmo de Euclides pode ser esquematizado peloseguinte sistema de equacoes:

a = bq0 + r0b = r0q1 + r1r0 = r1q2 + r2...rk−2 = rk−1qk + rkrk−1 = rkqk+1

(2.1)

Seja d = (a, b). Vamos provar por inducao que d | ri e d | ri+1, paraqualquer 0 ≤ i ≤ k − 1. Como d|a e d|b, temos d|(a− bq0), i.e., d|r0. Comod|b e d|r0 entao d|(b − r0q1) = r1. Agora, suponhamos que d|ri e d|ri+1,queremos provar que d|ri+1 e d|ri+2. Usando a hipotese de inducao, obtemosque d|(ri − ri+1qi+2). Mas ri − ri+1qi+2 = ri+2. Portanto d|ri+2.

Acabamos de provar que d|ri para todo 0 ≤ i ≤ k. Em particular, d|rk.Como d, rk > 0, temos d ≤ rk.

Reciprocamente, a ultima equacao em (2.1) e o facto de rk = 0, diz-nosque rk|rk−1. Usando a penultima equacao, obtemos rk|rk−2. Por inducao,concluımos que rk|ri, para qualquer 0 ≤ i ≤ k. Usando a segunda equacao,temos rk|b e usando a primeira, rk|a. Logo, rk|d. Portanto, rk = d.

Agora, provamos a segunda parte do teorema. Seja r−2 = a e r−1 = b.Sabemos que

ri = ri−2 − ri−1qi, (2.2)

para qualquer 0 ≤ i ≤ k. Vamos provar por inducao que, para qualquer0 ≤ i ≤ k, existem inteiros ui e vi tais que ri = uia+ vib. Como r0 = a− bq0,o resultado e valido para i = 0. Suponhamos, por hipotese de inducao que oresultado e verdadeiro para i e para i− 1. Entao

ri+1 = ri−1 − riqi+1

= ui−1a+ vi−1b− (uia+ vib)qi+1

= (ui−1 − uiqi+1)a+ (vi−1 − viqi+1)b

= ui+1a+ vi+1b

17

Portanto, para qualquer 0 ≤ i ≤ k, ri = uia + vib. Em particular, existeminteiros u e v, tais que rk = ua+ vb. 2

Definicao. Sejam a e b inteiros e pelo menos um deles e nao nulo. Se(a, b) = 1 entao dizemos que a e b sao primos entre si.

Teorema 2.10. Seja d = (a, b). Um inteiro n divide a e b se e so se n|d.

Demonstracao: Suponhamos que n|d. Como d|a, temos n|a. Como d|b,temos n|b.

Reciprocamente, suponhamos que n|a e n|b. Entao existem inteiros u e v,tais que a = nu e b = nv. Por hipotese (a, b) = d, o que implica que existeminteiros s e t, tais que d = as+ bt. Mas entao

d = nus+ nvt = n(us+ vt),

i.e. n|d. 2

Teorema 2.11. Seja d = (a, b) e k um inteiro arbitrario. Entao

(a) (a, b+ ka) = (a, b);

(b) (ak, bk) = |k|(a, b);

(c)

(a

d,b

d

)= 1.

Demonstracao: Seja e = (a, b + ka). Como e|a, temos e|ka. Tambemtemos e|(b + ka), logo e|(b + ka − ka) = b. Pelo teorema anterior, e|d.Claramente, d|(b + ka) e d|a, donde d|e. Como ambos e e f sao positivos,temos e = d.

Seja f = (ak, bk). Queremos provar que f = |k|d. Como d|a e d|b,temos |k|d | ka e |k|d | kb. Donde, |k|d | f , i.e. existe um inteiro u tal quef = |k|du e u > 0, porque d, f > 0. Entao |k|du | ak. Pelo teorema 2.5, du|a.Analogamente, du|b. Pelo teorema anterior, du|d, i.e. existe um inteiro v, talque d = duv. Portanto, u = 1 e f = |k|d.

18

Pelo resultado anterior, d

(a

d,b

d

)= (a, b) = d. Portanto,

(a

d,b

d

)= 1.

2

Definicao. Sejam a1, a2, . . . , an inteiros nao nulos. Dizemos que estes nume-ros sao primos entre si dois a dois, se o maior divisor comum entre cada pardestes inteiros for 1.

Exercıcios

1. Mostre que dois numeros de Fibonacci consecutivos sao primos entresi.

2. Mostre que, se a, b e c sao primos entre si dois a dois entao (a, b, c) = 1.

3. Use o algoritmo de Euclides para encontrar o maior divisor comumentre

a) 77 e 91;

b) 182 e 442;

c) 2311 e 3701.

4. Escreva (17, 37) como combinacao linear de 17 e 37.

5. Escreva (399, 703) como combinacao linear de 399 e 703.

6. Mostre que, se a|c, b|c e (a, b) = 1 entao ab|c.

7. Encontre inteiros r e s tais que

a) 547r + 632s = 1;

b) 398r + 600s = 2;

c) 922r + 2163s = 7.

19

8. Averigue se ha inteiros r e s tais que 1841r + 3647s = 1. Justifique.

9. Mostre que, se nao existem primos p tais que p|a e p|b, entao (a, b) = 1.

10. Mostre que, se p e primo e a e um inteiro, entao ou (a, p) = 1 ou(a, p) = p.

11. Sejam a, b, c e d inteiros tais que b = 0, d = 0, (a, b) = 1, (c, d) = 1 eab+ c

de um inteiro. Mostre que |b| = |d|.

12. Considere o algoritmo de Euclides e seja rk = (a, b).

a) Mostre que

(i) a ≥ 2r0 e b ≥ 2r1;

(ii) ri ≥ ri+2, para qualquer 0 ≤ i ≤ k − 2;

(iii) a ≥ 2k2 .

b) Qual e o maior numero de passos de a ≤ 10n?

13. Teorema de Lame. Sejam a e b inteiros positivos tais que a > b e k

o comprimento do algoritmo de Euclides para a e b. Seja α =1 +

√5

2.

Mostre que

k ≤ log b

logα− 1.

Sugestao: Prove primeiro que

a) rk−i ≥ fi+2, para 0 ≤ i ≤ k;

b) b ≥ αk+1;

14. O mınimo multiplo comum de dois inteiros positivos a e b e o inteiro[a, b] que satisfaz as seguintes condicoes:

• [a, b] ≥ 1;

• a|[a, b] e b|[a, b];• Se a|c e b|c entao [a, b]|c;

Mostre que [a, b] existe e e unico. De facto ab = (a, b)[a, b].

15. * A Serie de Farey de ordem n consiste das fraccoes hkordenadas por

ordem crescente, onde h e k sao inteiros, 0 ≤ h ≤ k ≤ n e (h, k) = 1.

20

a) Encontre a serie de Farey de ordem 7;

b) Mostre que se ab, cde e

fsao termos sucessivos de uma serie de Farey

entaoc

d=

a+ e

b+ f;

c) Mostre que se abe c

dsao termos sucessivos de uma serie de Farey

entao ad− bc = −1;

d) Mostre que se abe c

dsao termos sucessivos de uma serie de Farey

entao b+ d > n.

2.4 Teorema Fundamental da Aritmetica

O teorema fundamental da aritmetica, tambem conhecido como o teorema dafactorizacao unica, afirma que se duas pessoas escreverem um inteiro n > 1como produto de primos, obterao o mesmo resultado, com a possıvel excepcaoda ordem pela qual os primos sao escritos nos dois produtos. Ao longo destecurso iremos constantemente usar este teorema que bem merece o seu nome.Comecemos por provar um resultado, que utilizaremos posteriormente paraprovar o teorema fundamental da aritmetica.

Teorema 2.12. Se p|(ab), entao p|a ou p|b.

Demonstracao: Suponhamos que p - a. Entao (a, p) = 1. Pelo teorema2.9, existem inteiros u e v, tais que au + pv = 1. Multiplicando ambos osmembros da ultima equacao por b, obtemos abu+pbv = b. Como p|ab, temosp|b. 2

A seguir generalizamos o resultado anterior de duas maneiras diferentes.

Teorema 2.13. Se p e um primo e p|(a1a2 · · · ak) entao p|aj, para algum1 ≤ j ≤ k. Em particular, se p|ak entao p|a.

Demonstracao: Vamos provar o resultado pretendido usando inducaoem k. Se k = 1 e trivial que o resultado e verdadeiro. Suponhamos, porhipotese de inducao que o resultado e valido para k, i. e., se p divide oproduto de k inteiros entao divide um desses inteiros. Suponhamos agoraque p | (b1b2 · · · bkbk+1).

21

Se p | (b1b2 · · · bk) entao, usando a hipotese de inducao, p|bj, para algum1 ≤ j ≤ k.

Se p - (b1b2 · · · bk), entao (p, b1b2 · · · bk) = 1, donde existem inteiros u e v,tais que pu+ b1b2 · · · bkv = 1. Multiplicando por bk+1, obtemos

pubk+1 + b1b2 · · · bkbk+1v = bk+1.

Portanto, p|bk+1. Portanto o resultado e valido para k + 1.Usando inducao, o teorema esta provado, para qualquer inteiro k. 2

Teorema 2.14. Se (n, a) = 1 e n|ab, entao n|b.

Demonstracao: Pelo teorema 2.9, se (n, a) = 1 entao existem inteiros ue v, tais que nu+ av = 1, donde nbu+ abv = b. Como n|ab, obtemos n|b. 2

Teorema 2.15 (Teorema Fundamental da Aritmetica). Seja n > 1 e supon-hamos que

n = p1p2 · · · pr = q1q2 · · · qs,

onde p1, p2, . . . , pr, q1, q2, . . . , qs sao primos. Entao r = s e as duas factori-zacoes de n sao iguais, com a possıvel excepcao da ordem dos factores.

Demonstracao: Suponhamos que o teorema e falso e seja N o menorinteiro para o qual o teorema e falso. Entao o teorema e verdadeiro paraqualquer inteiro 1 < n < N . Suponhamos que

N = p1p2 · · · pr = q1q2 · · · qs,

onde p1, p2, . . . , pr, q1, q2, . . . , qs sao primos. Como o teorema e certamenteverdadeiro para numeros primos, N e composto. Portanto, r, s ≥ 2. Como aordem dos factores nao e importante, podemos assumir que

pr ≥ pi, 1 ≤ i ≤ r − 1

eqs ≥ qj, 1 ≤ j ≤ s− 1

22

Primeiro provamos que nao podemos ter pr > qs. Se pr > qs entao pr > qj,para qualquer 1 ≤ j ≤ s. Portanto, pr - qj, para qualquer 1 ≤ j ≤ s. Mas

pr|(q1q2 · · · qs),

pelo teorema anterior, temos uma contradicao. Assim, pr ≤ qs. Se pr < qs,obterıamos tambem uma contradicao usando um processo analogo. Portanto,pr = qs.

AgoraN

pr= p1p2 · · · pr−1 = q1q2 · · · qs−1

e 1 <N

pr< N , porque r, s ≥ 2. Entao o teorema e valido para

N

pr, i. e.

r − 1 = s− 1 e as factorizacoes p1p2 · · · pr−1 e q1q2 · · · qs−1 sao iguais, com apossıvel excepcao da ordem dos factores. Portanto, r = s e, como pr = qs, asfactorizacoes de N em primos sao iguais, com a possıvel excepcao da ordemdos factores. Assim, o teorema e valido para N , o que contradiz a definicaode N .

Portanto, o teorema e valido para todo o n > 1. 2

Note que o teorema seria falso se considerassemos 1 como primo. Porexemplo, 2 = 1× 2 = 1× 1× 1× 2.

Como, por vezes, na factorizacao de um inteiro, temos primos repetidos,usaremos a notacao

n = pa11 pa22 · · · parr .

Teorema 2.16. Suponhamos que o primo p divide n e a factorizacao de nem primos e dada por

n = pa11 pa22 · · · parr .

Entao p = pj, para algum 1 ≤ j ≤ r.

Demonstracao: Pelo teorema 2.13, p|pj para algum 1 ≤ j ≤ r. Comop > 1 e os unicos divisores de pj sao 1 e pj, temos p = pj. 2

23

Teorema 2.17. Suponhamos que

n = p1p2 · · · pkq1q2 · · · qs

m = p1p2 · · · pkr1r2 · · · rtonde p1, p2, . . . , pk, q1, q2, . . . , qs, r1, r2, . . . , rt sao primos e nenhum dos q’s eigual a algum dos r’s (se k = 0 interpretamos o produto p1p2 · · · pk comosendo igual a 1, analogamente para s = 0 e t = 0). Entao

(n,m) = p1p2 · · · pk.

Demonstracao: Seja e = p1p2 · · · pk. Como e|m e e|n, temos e|(m,n).Portanto, existe um inteiro a, tal que (m,n) = ea. Logo, ea|eq1q2 · · · qs, oque implica que a|q1q2 · · · qs. Analogamente, a|r1r2 · · · rt. Queremos provarque a = 1, com vista a obtermos uma contradicao, suponhamos que a > 1.Entao existe um primo p que divide a, donde p|q1q2 · · · qs e p|r1r2 · · · rt. Peloteorema anterior, existem 1 ≤ i ≤ s e 1 ≤ j ≤ t, tais que p = qi e p = rj.Contradicao! Portanto, a = 1 e (n,m) = p1p2 · · · pk. 2

Terminamos esta seccao com dois resultados que dependem da factori-zacao unica. Comecamos com um teorema que sera muito importante maistarde.

Teorema 2.18. Suponhamos que a e b sao dois inteiros positivos tais que(a, b) = 1 e ab = cn. Entao existem inteiros positivos d e f tais que a = dn

e b = fn.

Demonstracao: Se a = 1 entao basta tomar d = 1 e f = c. Se b = 1,entao d = c e f = 1. Portanto, podemos assumir que a > 1 e b > 1. Como(a, b) = 1, podemos escrever

a = pa11 pa22 · · · parr e b = par+1

r+1 par+2

r+2 · · · par+s

r+s

onde pi e primo, para 1 ≤ i ≤ r + s, e pi = pj, para i = j. Suponhamos quea decomposicao de c em primos e dada por

c = qb11 qb22 · · · qbkk .

Entaopa11 · · · parr p

ar+1

r+1 · · · par+s

r+s = qnb11 · · · qnbkk .

24

Pelo teorema fundamental da aritmetica, r + s = k e os primos pi sao osmesmos que os primos qj (talvez ordenados de maneira diferente), e os cor-respondentes expoentes sao os mesmos. Podemos, portanto, numerar os q’stal que qj = pj, para 1 ≤ j ≤ r + s. Entao aj = nbj, para 1 ≤ j ≤ r + s.Logo,

a =(pb11 p

b22 · · · pbrr

)nb ==

(pbr+1

r+1 pbr+2

r+2 · · · pbr+s

r+s

)n2

O proximo teorema generaliza o famoso resultado, demonstrado por Pita-goras, de que

√2 e irracional.

Teorema 2.19. Sejam a e n inteiros positivos. Se n√a e racional entao n

√a

e inteiro.

Demonstracao: Suponhamos que n√a e racional. Entao existem inteiros

positivos r e s, tais que (r, s) = 1 e

n√a =

r

s.

Suponhamos que s > 1. Entao existe um primo p tal que p|s. Mas asn = rn,o que implica que p|r. Contradicao, pois (r, s) = 1. Portanto, s = 1 en√a = r, um inteiro. 2

Por exemplo, 1 <√2 < 2, logo

√2 nao e inteiro. Portanto,

√2 e irra-

cional. Como 2 < 3√10 < 3, temos que 3

√10 e irracional.

Exercıcios

1. Sejam p e q dois primos ımpares consecutivos. Mostre que qualquerfactorizacao de p + q em primos necessita de pelo menos tres primosnao necessariamente distintos. Por exemplo 5 + 7 = 2× 2× 3.

25

2. Suponha que

n = pa11 pa22 · · · parr e m = pb11 pb22 · · · pbrr

onde expoentes nulos sao permitidos. Mostre que

a) (n,m) = pmin(a1,b1)1 p

min(a2,b2)2 · · · pmin(ar,br)

r ;

b) [n,m] = pmax(a1,b1)1 p

max(a2,b2)2 · · · pmax(ar,br)

r ;

c) n|m se e so se ai ≤ bi, para qualquer 1 ≤ i ≤ r.

3. Considere a equacao

anxn + an−1x

n−1 + · · ·+ a1x+ a0 = 0

onde ai e inteiro, para 0 ≤ i ≤ n. Mostre que, se a equacao tem uma

solucao racional, digamos x =r

scom (r, s) = 1, entao s|an e r|a0. Em

particular, se an = 1 e x e rational entao x e um inteiro.

4. Mostre que, se p e primo e p|an, entao pn|an.

5. Quantos zeros ha no fim de 100!?

6. * Mostre que so a primeira soma parcial da serie harmonica e inteira.

7. Mostre que

a)3√3 e

5√5 sao irracionais.

b) n√n e irracional, para qualquer n ≥ 2.

8. Mostre que√2 +

√3 e irracional.

9. Mostre que log2 3 e irracional.

10. Mostre que ha infinitos primos da forma 4n+ 3.

11. Mostre que ha infinitos primos da forma 6n+ 5.

12. * Se a e b sao inteiros, entao a progressao aritmetica a, a+ b, a+2b, . . .contem um numero tao grande quanto se queira de compostos consec-utivos.

13. Factorize em primos cada um dos seguintes inteiros:

106 − 1, 108 − 1, 215 − 1, 224 − 1, 236 − 1.

26

2.5 Equacoes Diofantinas Lineares

O algoritmo de Euclides permite-nos encontrar uma solucao da equacao

ax+ by = (a, b).

Nesta seccao vamos mostrar como resolver completamente uma equacao aduas incognitas, ax+ by = c e como generalizar para n incognitas.

Teorema 2.20. Sejam a e b inteiros nao nulos e d = (a, b). Se d - c entaoa equacao

ax+ by = c (2.3)

nao tem solucoes integrais. Se d|c, a equacao tem uma infinidade de solucoesinteiras. Se x = x0, y = y0 e uma solucao de (2.3), entao todas as solucoesde (2.3) sao dadas por x = x0 + t b

d

y = y0 − tad

onde t e um inteiro.

Demonstracao: Como d|a e d|b, temos d|(ax + by) para quaisquer in-teiros x e y. Portanto, se c = ax + by, entao d|c. Donde, se d - c, (2.3) naotem solucoes inteiras. Agora, se d|c, existe um inteiro e tal que c = de. Peloteorema 2.9, existem inteiros u e v, tais que

au+ bv = d.

Multiplicando por e, obtemos a(ue) + b(ve) = de = c. Portanto, a equacao(2.3) tem pelo menos uma solucao. Seja (x0, y0) uma solucao de (2.3) e t uminteiro qualquer. Entao

a

(x0 + t

b

d

)+ b(y0 − t

a

d

)= ax0 + by0 = c.

O que prova que a equacao (2.3) tem uma infinidade de solucoes.Falta-nos ainda provar que qualquer solucao de ax + by = c e da forma

descrita no teorema. Suponhamos que (x1, y1) e outra solucao. Entao

a(x1 − x0) + b(y1 − y0) = c− c = 0.

27

Dondea

d(x1 − x0) = − b

d(y1 − y0), (2.4)

o que implica queb

d| ad(x1 − x0).

Como

(a

d,b

d

)= 1, temos

b

d| (x1 − x0) (ver teoremas 2.11 e 2.14). Portanto,

existe um inteiro t, tal que

x1 = x0 + tb

d.

Substituindo em (2.4), obtemos

a

d

(tb

d

)= − b

d(y1 − y0),

dondey1 = y0 − t

a

d.

Portanto, qualquer solucao de (2.3) e forma descrita acima. 2

Exemplo. Como exemplo, vamos resolver a equacao 12x+25y = 331. Peloalgoritmo de Euclides ou por tentativa, obtemos 12 × (−2) + 25 × 1 = 1.Multiplicando por 331, obtemos 12 × (−662) + 25 × 331 = 331. Portanto,(−662, 331) e uma solucao da equacao. A solucao geral e dada por

x = −662 + 25t, y = 331− 12t, para t inteiro.

Suponhamos que desejavamos encontrar as solucoes nao negativas. Entaox ≥ 0 e y ≥ 0, i. e. 25t ≥ 662 e 12t ≤ 331. Donde, t ∈ [26.48, 27.58(3)].Como t e inteiro, t = 27. Assim, obtemos uma unica solucao nao negativa:x = 13 e y = 7.

Este metodo permite-nos resolver problemas como o seguinte:

Na vespera de fim de ano, o Hermenegildo foi comprar Cham-pagne e vinho tinto e gastou 331 euros. Sabendo que cada garrafade Champagne custou 25 euros e cada garrafa de vinho custou 12euros, quantas garrafas comprou o Hermenegildo?

28

Exercıcios

1. Para cada uma das seguintes equacoes, encontre todas as solucoes eminteiros ou prove que nao ha nenhuma

a) 3x+ 2y = 1;

b) 3x− 2y = 1;

c) 17x+ 14y = 4;

d) 33x− 12y = 9;

e) 91x+ 221y = 15;

f) 401x+ 503y = 20.

2. Para cada uma das seguintes equacoes, encontre todas as solucoes eminteiros positivos ou prove que nao ha nenhuma

a) 23x− 7y = 1;

b) 9x+ 11y = 79;

c) 39x+ 47y = 4151.

3. Mostre que (a, b, c) = ((a, b), c).

4. Mostre que se ha solucoes inteiras da equacao ax+ by + cz = e, entao(a, b, c) | e. Suponha que (a, b, c) | e e mostre que ha inteiros w e z taisque

(a, b)w + cz = e.

Finalmente, mostre que ha inteiros x e y tais que

ax+ by = (a, b)w.

Esta tecnica pode ser generalizada para resolver uma equacao com nincognitas.

5. Encontre todas as solucoes em inteiros da equacao

323x+ 391y + 437z = 10473.

6. Resolva as equacoes diofantinas

a) 2x+ 3y + 5z = 7;

29

b) 1521x+ 1955y + 455z = 221.

7. Determine duas fraccoes cujos denominadores sejam 12 e 16 e cuja somaseja 10

48.

8. Numa papelaria vendem-se dois tipos de canetas por 55 e 35 centimosrespectivamente. Ao fim de um dia a importancia total recebida pelavenda dessas canetas foi 32 euros e 85 centimos. Qual e o menor numeropossıvel de canetas vendidas? E qual o maior?

2.6 Factorizacao de Fermat

Suponhamos que n e o produto de dois primos p e q proximos um do outro.Entao n e a diferenca de dois quadrados, um dos quais e pequeno. Neste caso,ha um processo eficiente de factorizar n chamado factorizacao de Fermat.

Teorema 2.21. Seja n um inteiro positivo ımpar. Ha uma correspondenciabijectiva entre factorizacoes de n da forma n = ab, com a ≥ b > 0, erepresentacoes de n na forma t2 − s2, onde t e s sao inteiros nao negativos.A correspondencia e dada pelas equacoes

t =a+ b

2, s =

a− b

2a = t+ s b = t− s

Demonstracao: Se n = ab entao

n =

(a+ b

2

)2

−(a− b

2

2)2

donde n pode ser escrito como a diferenca de dois quadrados. Se n = t2 − s2

entao n = (t− s)(t+ s). Obtemos assim a correspondencia bijectiva. 2

Se n = ab e a e b estao proximos um do outro, entao s e pequeno e t eligeiramente maior que

√n. Neste caso, podemos factorizar n, experimen-

tando valores para t, comecando por [√n] + 1, ate que se encontre um para

o qual t2 − n e um quadrado perfeito.

30

Exemplo. Seja n = 200819. Comecamos com [√n] + 1 = 449. Agora,

4492− 200819 = 782 que nao e um quadrado perfeito. Em seguida, tentamost = 450. Temos 4502 − 200819 = 1681 = 412, donde

n = (450 + 41)(450− 41) = 491 · 409.

Note que se a e b nao estiverem proximos, este metodo ainda serve parafactorizar n, mas so apos termos usado imensos valores para t, o que o podetornar tao moroso. Ha uma generalizacao do metodo de Fermat que funcionamelhor nesta situacao. Comecamos por escolher um multiplicador k pequenoe tomamos

t = [√kn] + 1, t = [

√kn] + 2, . . .

ate que obtenhamos um t para o qual t2 − kn = s2 e um quadrado perfeito.Entao d = (t+ s, n) e um factor nao trivial de n.

Exemplo. Seja n = 141467. Se usarmos a factorizacao de Fermat directa-mente, precisamos de experimentar 38 t’s ate encontrar um factor de n. Masse tomarmos k = 3 e comecarmos com t = [

√3n] + 1 = 652, rapidamente

vemos que 6552 − 3n = 682. Como (655 + 68, n) = 241, concluımos quen = 241 · 587. Portanto, com k = 3 so precisamos de experimentar 4 t’s.

Mas como sabemos que devıamos usar k = 3 no exemplo anterior? Umamaneira de resolver este problema e utilizando o metodo de Lehman (que euma generalizacao do metodo de Fermat).

Exercıcios

1. Factorize os inteiros 11413, 8051, 11021, 3200399, 10897 e 24681023.

2. Metodo de Euler: Seja n ımpar. Sejam a, c > 0 ımpares e b, d > 0pares tais que n = a2 + b2 = c2 + d2.

a) Seja u = (a − c, b − d). Mostre que u e par e que se r = a−cu

es = d−b

u, entao (r, s) = 1, r(a+ c) = s(d+ b) e s | (a+ c);

b) Seja v tal que sv = a+ c. Mostre que rv = d+ b, v = (a+ c, d+ b)e v e par;

c) Mostre que n =(

u2+v2

4

)(r2 + s2).

31

d) Sabendo que 221 = 102+112 = 52+142, 2501 = 502+12 = 492+102 e1000009 = 10002+32 = 9722+2352, factorize 221, 2501 e 1000009.

3. Mostre qualquer inteiro da forma 24n+2+1 pode ser factorizado usandoa identidade 4x4 + 1 = (2x2 + 2x+ 1)(2x2 − 2x+ 1). Factorize 218 + 1e encontre factores nao triviais de 242 + 1.

32

Capıtulo 3

Congruencias

3.1 Introducao

Embora muitos resultados ja fossem conhecidos, a teoria sistematica dascongruencias foi desenvolvida por Gauss. Neste capıtulo, iremos estudardiversos teoremas famosos, nomeadamente os de Fermat, Euler, Wilson eGauss, assim como a funcao de Euler e o sımbolo de Legendre.

Definicao. Sejam a e b inteiros e n um inteiro positivo. Se n | (a − b),dizemos que a e congruente com b e escrevemos

a ≡ b mod n

Pela definicao de divisibilidade, se a ≡ b mod n entao existe um inteirok tal que a = b+ kn. Por exemplo

37 ≡ 25 mod 12

−9 ≡ 31 mod 10

7216 ≡ 34216 mod 1000

Na vida diaria usamos congruencias em imensas situacoes: Os relogiosde ponteiros medem as horas mod 12; os dias da semana medem os diasmod 7; o odometro mede a kilometragem mod 106.

Teorema 3.1. Seja n um inteiro positivo. A relacao congruente mod n euma relacao de equivalencia.

33

Demonstracao: Exercıcio 2

Teorema 3.2. Se a ≡ b mod n e c ≡ d mod n entao

(a) a+ c ≡ b+ d mod n;

(b) a− c ≡ b− d mod n;

(c) ac ≡ bd mod n.

Demonstracao: Exercıcio 2

Teorema 3.3. Se (a, n) = 1 e ab ≡ ac mod n, entao b ≡ c mod n. Emgeral, se (a, n) = d e ab ≡ ac mod n entao

b ≡ c modn

d.

Demonstracao: Suponhamos que (a, n) = d e ab ≡ ac mod n. Entaoexiste um inteiro k tal que ab = ac+ kn. Sejam

a1 =a

d, n1 =

n

d.

Claramente, a1 e n1 sao inteiros e (a1, n1) = 1. Dividindo ambos os membrosde ab = ac + kn por d, obtem-se a1(b − c) = kn1. Donde, a1 | kn1. Como(a1, n1) = 1, temos a1 | k. Portanto, k = a1k1, para algum inteiro k1. Assim,b− c = k1n1, ou seja n1 | (b− c). Portanto, b ≡ c mod n

d. 2

Definicao. Um conjunto de inteiros a1, a2, . . . , an diz-se um sistema completode resıduos mod n, se qualquer inteiro e congruente, mod n com um e umso aj.

Seja n um inteiro positivo. Vamos provar que os inteiros 0, 1, 2, . . . , n− 1formam um sistema completo resıduos. Se a e um inteiro, pelo algoritmo deEuclides, existem inteiros q e r, tais que 0 ≤ r < n e a = qn + r. Portanto,

34

a ≡ r mod n. Mais, o resto r e unico, porque se a ≡ r1 mod n e a ≡ r2mod n com 0 ≤ r1 ≤ r2 < n, entao r1 ≡ r2 mod n, donde n | (r2 − r1). Mas0 ≤ r2 − r1 ≤ n− 1 < n. Logo r1 = r2.

Portanto, 0, 1, 2, . . . , n− 1 formam um sistema completo resıduos.

Como qualquer inteiro e congruente mod n com algum dos numeros0, 1, 2, . . . , n− 1, entao para calcular ab mod n ou a+ b mod n e suficientesaber as tabelas de multiplicacao e adicao de 0, 1, 2, . . . , n − 1. Por exem-plo, como os numeros 0, 1, 2, 3, 4 formam um sistema completo de resıduos e02, 12, 22, 32 e 42 sao todos congruentes mod 5 com 0, 1 ou 4, entao nenhumquadrado perfeito dividido por 5 da resto 2 ou 3. Mais, se tomarmos osquadrados dos numeros anteriores, verificamos que

14, 24, 34, 44 ≡ 1 mod 5.

Podemos entao dizer que para qualquer inteiro n, temos 5 | n ou 5 | (n4− 1).O proximo teorema tem imensas aplicacoes:

Teorema 3.4. Seja f(x) um polinomio com coeficientes inteiros. Se a ≡ bmod n, entao

f(a) ≡ f(b) mod n.

Demonstracao: Seja

f(x) = akxk + ak−1x

k−1 + · · ·+ a1x+ a0,

onde ai sao inteiros para 0 ≤ i ≤ k. Entao, pelo teorema 3.2

akak + ak−1a

k−1 + · · ·+ a1a+ a0 ≡ akbk + ak−1b

k−1 + · · ·+ a1b+ a0 mod n.

Portanto, f(a) ≡ f(b) mod n. 2

Como primeira aplicacao do teorema anterior vamos mostrar que nao hapolinomios (nao constantes) que deem sempre primos.

Corolario 3.5. Para qualquer polinomio de grau maior ou igual a 1 existeum inteiro a tal que |f(a)| e um numero composto.

35

Demonstracao: Seja

f(x) = akxk + ak−1x

k−1 + · · ·+ a1x+ a0,

onde ai sao inteiros para 0 ≤ i ≤ k. Sabemos que se ak > 0, entao

limx→∞

f(x) = ∞

e se ak < 0 entaolimx→∞

f(x) = −∞.

Como, por definicao, os primos sao todos positivos, consideremos ak > 0.Assim,

limx→∞

f(x) = ∞,

o que implica que podemos tomar b suficientemente grande tal que f(b) > 1.Seja n = f(b) e j um inteiro suficientemente grande tal que f(b + jn) > n.Note-se que b+ jn ≡ b mod n, donde

f(b+ jn) ≡ f(b) = n ≡ 0 mod n,

i. e. n | f(b + jn). Como 1 < n < f(b + jn), temos que f(b + jn) e umnumero composto. Para terminar a demonstracao basta tomar a = b+ jn.

Se ak < 0, uma demonstracao semelhante, prova que existe um inteiro atal que f(a) = −c para algum composto c. 2

Exercıcios

1. Prove que qualquer conjunto de n inteiros consecutivos forma um sis-tema completo resıduos.

2. Determine os menores resıduos positivos de 232, 247 e 2200 mod 47.

3. Mostre que se n e ımpar entao 8 | n2 − 1.

4. Mostre que n3 ≡ n mod 3.

5. Sera que a ≡ b mod n implica ca ≡ cb mod n? Justifique indicandouma demonstracao ou um contra-exemplo.

36

6. Mostre que se n e ımpar entao 1 + 2 + · · · + (n − 1) ≡ 0 mod n.Determine o que acontece se n for par.

7. Mostre que se n e ımpar ou divisıvel por 4, entao 13+23+· · ·+(n−1)3 ≡0 mod n. Este resultado e verdadeiro se n for par mas nao divisıvelpor 4?

8. Para que inteiros n temos 12 + 22 + · · ·+ (n− 1)2 ≡ 0 mod n?

9. Mostre que qualquer numero da forma

4 · 14k + 1

com k ≥ 1, e composto. Sugestao: Use congruencias mod 3 para kımpar e congruencias mod 5 para k par.

10. Mostre que se n2 + 2 for primo, entao 3 | n.

11. No calendario Gregoriano (calendario actual) cada ano divisıvel por 4anos e um ano bisexto, excepto para os anos centenarios que so saobissextos se forem divisıveis por 400. Por exemplo, 1800, 1900 e 2100nao sao bissextos mas 2000 e. O dia 1 de Janeiro de 1900 calhou auma segunda-feira. Mostre que, embora qualquer semana comece a umdomingo, nenhum seculo comeca a um domingo.

12. Mostre que qualquer pessoa nascida entre 1901 e 2071 celebra o seuaniversario de 28 anos no dia de semana igual ao dia de semana em quenasceu.

13. Mostre que 43 | (n2 + n+ 41) para uma infinidade de inteiros n.

14. Sabendo que a10 ≡ 10 mod 26, encontre (a, 26).

15. Em 1825, Gauss fez a seguinte construcao para escrever um primocongruente com 1 mod 4 como a soma de dois quadrados perfeitos:Seja p = 4k + 1 um primo. Primeiro determina-se x tal que

x ≡ (2k)!

2(k!)2mod p, com |x| < p

2

depois determina-se y tal que

y ≡ x(2k)! mod p, com |y| < p

2.

37

Gauss mostrou que x2+y2 = p. Verifique este resultado de Gauss, parap = 5, p = 13 e p = 17.

16. Ha razoes para acreditar (embora nunca tenha sido provado) que hainfinitos primos que podem ser escritos como soma dos quadrados de 3diferentes primos (o exemplo mais pequeno e 83 = 32+52+72. Suponhaque

p = p21 + p22 + p23

onde p, p1, p2 e p3 sao primos. Use congruencias mod 3 para mostrarque um dos primos p1, p2 ou p3 e igual a 3.

17. Suponha que m ≥ 0. Mostre que 17 | (3 · 52m+1 + 23m+1). Sugestao:Use congruencias mod 17.

18. Suponha que m ≥ 0. Mostre que 49 | (5 · 34m+2 + 53 · 25m).

19. Mostre que se k for ımpar, entao 241 | (112k + 192k).

20. Suponha que p e primo.

a) Mostre que p e o maximo divisor comum entre o coeficientes bino-

miais

(p

i

), onde 1 ≤ i ≤ p− 1;

b) Seja p um primo. Mostre que

(a+ b)p ≡ ap + bp mod p

c) Mostre que para quaisquer inteiros a e b, (ap − bp, p) = 1 ou p2 |(ap − bp).

3.2 Testes de Divisibilidade

O teorema anterior permite-nos obter diversos testes de divisibilidade, osquais iremos descrever nesta seccao.

Teorema 3.6. Qualquer inteiro positivo e congruente com a soma dos seusalgarismos mod 9 e mod 3.

38

Demonstracao: Seja n > 0 um inteiro cuja representacao decimal edada por

n = ak10k + ak−110

k−1 + · · ·+ 10a1 + a0,

onde 0 ≤ aj ≤ 9, para qualquer 0 ≤ j ≤ k. Os inteiros aj sao, portanto, osalgarismos de n. Seja

f(x) = akxk + ak−1x

k−1 + · · ·+ a1x+ a0.

Como 10 ≡ 1 mod 9, temos f(10) ≡ f(1) mod 9. Portanto,

n ≡ ak + ak−1 + · · ·+ a1 + a0 mod 9.

Como 3 | 9,n ≡ ak + ak−1 + · · ·+ a1 + a0 mod 3.

2

Este resultado e a base teorica da prova dos nove, ensinada na escolaprimaria alguns anos atras. Esta prova serve para ”verificar”se um produtoesta certo ou nao. Suponhamos que queremos calcular 1472, e que o resultadonos da 21509. Como

147 ≡ 1 + 4 + 7 ≡ 12 ≡ 1 + 2 ≡ 3 mod 9

temos 1472 ≡ 32 ≡ 0 mod 9, mas

21509 ≡ 2 + 1 + 5 + 9 ≡ 8 mod 9,

portanto, o resultado esta errado. Note que 21510 ≡ 0 mod 9, mas 1472 =21510, porque o ultimo algarismo de 1472 e um 9. A prova dos nove sodescobre 8 em cada 9 erros, i. e. so resulta 88.8% das vezes. Nos exercıcios,sera descrita outra ”prova”que resulta mais de 90% das vezes.

Teorema 3.7. Seja n > 0 um inteiro cuja representacao decimal e dada por

n = ak10k + ak−110

k−1 + · · ·+ 10a1 + a0,

onde 0 ≤ aj ≤ 9, para qualquer 0 ≤ j ≤ k. Seja r ≤ k um inteiro positivo.Entao

n ≡ (ar−1ar−2 · · · a1a0)10 mod 2r e n ≡ (ar−1ar−2 · · · a1a0)10 mod 5r

39

Demonstracao: Como 10 ≡ 0 mod 2 e 10 ≡ 0 mod 5 entao 10r ≡0 mod 2r e 10r ≡ 0 mod 5r, para qualquer inteiro positivo r. Portanto,obtemos o resultado pretendido. 2

Exemplo. Seja n = 67537048. Entao 2 | n porque 2 | 8, 4 | n porque 4 | 48,8 | n porque 8 | 48, mas 16 - n porque 16 - 7048.

Exemplo. Seja n = 85645625. Entao 5 | n porque 5 | 5, 25 | n porque25 | 25, 125 | n porque 125 | 625, 625 | n porque 625 | 5625, mas 3125 - nporque 3125 - 45625.

Teorema 3.8. Seja n > 0 um inteiro cuja representacao decimal e dada por

n = ak10k + ak−110

k−1 + · · ·+ 10a1 + a0,

onde 0 ≤ aj ≤ 9, para qualquer 0 ≤ j ≤ k. Entao

n ≡k∑

j=0

(−1)jaj mod 11

Demonstracao: Exercıcio. 2

Exercıcios

1. Divisibilidade por 7 Seja n = a2102 + 10a1 + a0. Mostre que n ≡

2a2 + 3a1 + a0 mod 7.

2. Divisibilidade por 1001 E um facto que

4 176 204 105 ≡ 105− 204 + 176− 4 ≡ 73 mod 1001.

Prove o resultado que estas congruencias sugerem.

3. Suponha que o metodo descrito no exercıcio anterior reduz o numeron ao numero m que tem no maximo tres algarismos. Mostre que

40

a) 7 | n se e so se 7 | m;

b) 13 | n se e so se 13 | m.

4. Encontre todos os inteiros positivos menores que 1000 que dao resto 1quando sao divididos por 2, 3, 5 e 7.

5. A seguinte multiplicacao estava correcta, mas quando o resultado es-tava a ser impresso um mosquito impediu que um dos algarismos fossecorrectamente impresso, obtendo-se

172195 · 572167 = 985242x6565.

Determine o algarismo perdido, x, sem refazer a multiplicacao.

3.3 Congruencias Lineares

Uma equacao da forma

a1x1 + a2x2 + · · ·+ akxk ≡ b mod n (3.1)

com incognitas x1, . . . , xk e uma congruencia linear com k variaveis. Umasolucao desta congruencia linear e um k-uplo de inteiros que satisfaz a con-gruencia linear. A definicao de congruencia mostra que a equacao (3.1) eequivalente a equacao diofantina

a1x1 + a2x2 + · · ·+ akxk + nxk+1 = b (3.2)

com k + 1 incognitas. Ja vimos no capıtulo anterior que a equacao (3.2) ounao tem solucoes ou tem uma infinidade de solucoes. O mesmo e verdadepara a equacao (3.1). No entanto, encontrar todas as solucoes de (3.1), sig-nifica encontrar todas as solucoes diferentes mod n. Ou seja, duas solucoesdiferentes de (3.1) serao a mesma mod n se os diferentes valores de xj foremcongruentes mod n, para qualquer j. Por exemplo, a solucao (1, 2, 3) dacongruencia

x+ y + z ≡ −1 mod 7

e a mesma mod 7 que a solucao (8,−5, 17), mas e diferente mod 7 dasolucao (1, 3, 2). Em particular, se so existir uma solucao mod n de (3.1),dizemos que a solucao e unica mod n.

41

Teorema 3.9. A congruencia

ax ≡ b mod n (3.3)

tem solucoes se e so se d | b, onde d = (a, n). Se d | b entao a solucao e unica

modn

d. Se (a, n) = 1 entao (3.3) tem uma solucao que e unica mod n.

Demonstracao: Se x0 e uma solucao da equacao (3.3) entao existe uminteiro y0 tal que

ax0 = b+ ny0,

donde a equacaoax− ny = b (3.4)

tem solucao. Reciprocamente, se (x0, y0) e uma solucao de (3.4) entao

ax0 ≡ ax0 − ny0 ≡ b mod n

e, portanto, (3.3) tem solucao. Acabamos de provar que (3.3) tem solucoesse e so se (3.4) tem solucoes e a partir de uma solucao de (3.4) obtemosuma solucao de (3.3). Pelo teorema 2.20, (3.4) tem solucoes se e so se d | b.Portanto, (3.3) tem solucoes se e so se d | b.

Suponhamos agora que (3.4) tem solucoes e seja (x0, y0) uma solucao.Pelo teorema 2.20 qualquer solucao de (3.4) e da forma

x = x0 + tn

d, y = y0 − t

a

d,

onde t e um inteiro. Portanto, qualquer solucao de (3.3) e da forma

x = x0 + tn

d

Comox0 + t

n

d≡ x0 mod

n

d,

entao todas as solucoes de (3.3) sao congruentes com x0 modn

d, e portanto,

a solucao de (3.3) e unica modn

d.

A ultima parte do teorema resulta imediatamente das duas primeiraspartes. 2

42

Seguidamente vamos ver algumas aplicacoes deste teorema. A equacao

14x ≡ 13 mod 21

nao tem solucoes, porque (14, 21) = 7 e 7 - 13. Consideremos a equacao

9x ≡ 15 mod 21

Aqui temos (9, 21) = 3 e 3 | 15. Portanto, a equacao tem uma unica solucaomod 7. Primeiro dividimos tudo por 3. Pelo teorema 3.3, ficamos com

3x ≡ 5 mod 7

Como 5 ≡ 12 mod 7, vemos que a solucao da equacao e x = 4 e como(3, 7) = 1, esta solucao e unica mod 7. Mas a equacao original era mod 21,portanto tem interesse determinar todas as solucoes mod 21. Como

4 ≡ 11 ≡ 18 mod 7,

as solucoes mod 21 sao 4, 11 e 18.Em geral, a congruencia

x ≡ a mod n

tem m solucoes mod mn, dadas por

x ≡ a, a+ n, a+ 2n, . . . , a+ (m− 1)n mod mn.

3.4 Sistemas de Congruencias

Em seguida estudamos sistemas de congruencias com uma incognita. Supon-hamos que queremos resolver{

x ≡ 2 mod 4x ≡ 1 mod 6

Se x ≡ 2 mod 4 entao x ≡ 2 mod 2. Analogamente, x ≡ 1 mod 6 implicax ≡ 1 mod 2. Mas 2 ≡ 1 mod 2. Portanto, o sistema nao tem solucoes.

Consideremos, agora, o sistema{x ≡ 2 mod 4x ≡ 3 mod 5

43

Facilmente se ve que x = −2 e uma solucao. Vamos determinar todas assolucoes. A primeira equacao e satisfeita se e so se x = 2 + 4t, onde t e uminteiro. Substituindo na segunda equacao, obtemos

2 + 4t ≡ 3 mod 5

donde −t ≡ 1 mod 5 ou seja t ≡ 4 mod 5. Portanto, t = 4 + 5k, paraalgum inteiro k. Substituindo no valor de x, obtemos

x = 4(4 + 5k) + 2 = 20k + 18.

Claramente, para cada inteiro k, 20k + 18 e solucao do sistema. O proximoteorema generaliza o processo anterior.

Teorema 3.10. Se (m,n) = 1, entao o sistema{x ≡ a mod mx ≡ b mod n

Tem uma e uma so solucao mod mn.

Demonstracao: Um inteiro x satisfaz a primeira equacao se e so seexiste um inteiro t tal que

x = a+mt (3.5)

Agora, a+mt satisfaz a segunda equacao se e so se

mt ≡ b− a mod n. (3.6)

Como (m,n) = 1, esta ultima equacao tem uma unica solucao, digamos c, i.e.

t ≡ c mod n.

Portanto, t satisfaz (3.6) se e so se existe um inteiro k tal que t = c + nk.Substituindo em (3.5), verificamos que x e solucao do sistema se e so se

x = a+m(c+ nk)

= (a+mc) +mnk

Logo, a+mc e solucao do sistema e e unica mod mn. 2

Este resultado e um caso especial de um resultado mais geral, que ja eraconhecido dos chineses ha mais de 2000 anos.

44

Teorema 3.11 (Teorema chines do resto). Sejam m1, . . . ,mk inteiros posi-tivos que sao primos entre si dois a dois. Entao o sistema

x ≡ a1 mod m1

x ≡ a2 mod m2...x ≡ ak mod mk

tem uma unica solucao mod (m1m2 · · ·mk).

Demonstracao: Iremos usar o teorema 3.10 (k−1) vezes. Pelo teorema3.10 as duas primeiras equacoes tem uma unica solucao mod (m1m2). Sejab2 esta solucao, i. e.

x ≡ b2 mod m1m2 (3.7)

A terceira equacao ex ≡ a3 mod m3. (3.8)

Como, por hipotese (m1,m3) = (m2,m3) = 1, entao temos (m1m2,m3) = 1(porque?). Para resolver o sistema formado pelas equacoes (3.7) e (3.8),podemos mais uma vez utilizar o teorema 3.10. Portanto, ha uma unicasolucao de (3.7) e (3.8) mod ((m1m2)m3), i. e., ha uma unica solucaodas tres primeiras equacoes mod (m1m2m3). Continuando desta maneira,depois de (k − 1) aplicacoes do teorema 3.10, obtemos uma unica solucaomod (m1m2 · · ·mk) do sistema{

x ≡ bk−1 mod (m1m2 · · ·mk−1)x ≡ ak mod mk

Esta solucao, digamos x ≡ bk mod (m1m2 · · ·mk), e tambem a unica solucaodo sistema inicial mod (m1m2 · · ·mk). 2

O proximo teorema permitir-nos-a encontrar uma solucao do sistemax ≡ a1 mod m1

x ≡ a2 mod m2...x ≡ ak mod mk

sem ter que utilizar diversas vezes o teorema 3.10. Primeiro, precisamos dedefinir inverso de um elemento mod n.

45

Definicao. Sejam a e n inteiros tais que (a, n) = 1. Ao unico inteiro, que esolucao da equacao

ax ≡ 1 mod n

chamamos inverso de a mod n e denota-mo-lo por a−1 mod n. Este inteiroexiste e e unico, pelo teorema 3.9

Teorema 3.12. Sejam m1, . . . ,mk inteiros positivos que sao primos entre

si dois a dois. Sejam M = m1m2 · · ·mk, Mi =M

mi

e yi o inverso de Mi

mod mi, para qualquer 1 ≤ i ≤ k. Entao

N = a1M1y1 + a2M2y2 + · · · akMkyk

e a unica solucao mod M do sistemax ≡ a1 mod m1

x ≡ a2 mod m2...x ≡ ak mod mk

Demonstracao: Pelo teorema do resto chines, sabemos que ha umasolucao unica mod M do sistema anterior. Portanto, basta-nos provar queN e essa solucao. Seja 1 ≤ i ≤ k. Como (Mi,mi) = 1, entao, pelo teorema3.9, existe yi tal que Miyi ≡ 1 mod mi. Mais, Mi ≡ 0 mod mj, paraqualquer j = i. Entao

N ≡ a1M1y1 + a2M2y2 + · · · akMkyk mod mi

≡ aiMiyi mod mi

≡ aiMi(Mi)−1 mod mi

≡ ai mod mi

Portanto, N e solucao da equacao x ≡ ai mod mi, para qualquer 1 ≤ i ≤ k.Donde, N e a unica solucao do sistema mod M . 2

Exemplo. A primeira mencao conhecida do teorema chines do resto e oseguinte problema extraıdo do livro Sun Tzu Suan Ching (O Manual Matema-tico do Mestre Sun), escrito por Sun Zi, por volta do terceiro seculo a.C.

46

Temos um certo numero de coisas, mas nao sabemos exactamentequantas sao. Se formarmos grupos de tres, sobram duas. Seformarmos grupos de cinco, sobram tres. Se formarmos gruposde sete, sobram duas. Quantas coisas temos?

Resolver este problema equivale a resolver o sistemax ≡ 2 mod 3x ≡ 3 mod 5x ≡ 2 mod 7

Primeiro iremos usar o processo descrito no teorema do resto chines. Daprimeira equacao obtemos x = 2 + 3t, para algum inteiro t. Substituindo nasegunda equacao, obtemos 2 + 3t ≡ 3 mod 5, donde 3t ≡ 1 mod 5, i. e.t ≡ 2 mod 5. Portanto, t = 2 + 5k, para algum inteiro k, e

x = 2 + 3(2 + 5k) = 8 + 15k.

Substituindo este valor na terceira equacao, obtemos

8 + 15k ≡ 2 mod 7.

Como 8 ≡ 15 ≡ 1 mod 7, resulta que k ≡ 1 mod 7. Assim, k = 1 + 7s,para algum inteiro s. Portanto

x = 8 + 15(1 + 7s) = 23 + 105s.

Provamos que qualquer solucao do sistema e da forma 23 + 105s, para sinteiro, e a unica solucao mod (3 · 5 · 7) e 23.

Agora usamos o metodo descrito no teorema anterior. Aqui M = 105,M1 = 35, M2 = 21 e M3 = 15. O inverso de 35 mod 3 e y1 = −1, o inversode 21 mod 5 e y2 = 1 e o inverso de 15 mod 7 e y3 = 1. Portanto,

N = 2 · 35 · (−1) + 3 · 21 · 1 + 2 · 15 · 1 = 23

Exercıcios

1. Mostre que qualquer inteiro satisfaz pelo menos uma das seguintes con-gruencias:

x ≡ 0 mod 2, x ≡ 0 mod 3, x ≡ 1 mod 4,

x ≡ 1 mod 6, x ≡ 11 mod 12

47

2. Resolva as congruencias

a) 5x ≡ 1 mod 7;

b) 14x ≡ 5 mod 45;

c) 14x ≡ 35 mod 87;

d) 6x ≡ 10 mod 14;

e) 9x ≡ 21 mod 12.

3. Determine os inversos de todos os inteiros invertıveis mod 18.

4. Determine os inversos de 1908, 1974, 1998 e 2004 mod 2005.

5. Resolva os sistemas de congruencias

a)

{x ≡ 2 mod 3x ≡ 3 mod 4

b)

x ≡ 7 mod 9x ≡ 13 mod 23x ≡ 1 mod 2

c)

{2x ≡ 3 mod 54x ≡ 3 mod 7

d)

{6x ≡ 8 mod 1015x ≡ 30 mod 55

6. Encontre todos os inteiros positivos menores que 1000 que dao resto 1quando sao divididos por 2, 3, 5 e 7.

7. Um Coronel, apos ter sido destacado para comandar um regimento doexercito, quis saber por quantos efectivos esse regimento era formado;com esse objectivo mandou-os dispor sucessivamente em colunas de

37 pessoas, tendo ficado a ultima coluna com 10 pessoas;

32 pessoas, tendo ficado a ultima coluna com 14 pessoas;

27 pessoas, tendo ficado a ultima coluna com 5 pessoas.

Sabendo que um regimento tem menos de 10000 efectivos, determinequantos indivıduos constituem esse regimento.

8. Um casal resolveu ir fazer uma viagem a volta do mundo. Sabendo quepartiram no dia 1 de Marco de um ano bissexto, num domingo, quechegaram no dia 6 de Marco, segunda-feira e que demoraram menos de4 anos, determine quantos dias demorou a viagem usando o teoremachines do resto.

48

3.5 Metodo ro de Pollard

Nesta seccao, vamos analisar outro metodo de factorizacao introduzido porJ. Pollard. Sejam l um inteiro e f uma funcao aleatoria de S = {0, 1, . . . , l}para S. Seja x0 um elemento aleatorio e considere-se a sequencia

x0, x1 = f(x0), x2 = f(x1), . . . .

Como S e finito, a sequencia ira tornar-se ciclica ao fim de um certo numerode termos. Se fizermos um diagrama que mostre este comportamento, eleassemelhar-se-a a ρ, daı a origem do nome do metodo.

Seja n um inteiro composto. O primeiro passo do metodo ro, consiste emescolher uma funcao f de Z/nZ para Z/nZ que seja facil determinar f(x).Costuma-se usar polinomios com coeficientes inteiros, e. g. f(x) = x2 + 1.Em seguida, toma-se um inteiro positivo x0, e. g. x0 = 1 ou x0 = 2.Calculam-se as sucessivas iteracoes xk = f(xk−1) mod n. Depois fazem-se comparacoes entre diferentes xi’s, esperando encontrar dois que sejamdiferentes mod n mas que sejam iguais mod l para algum divisor proprio lde n. Quando encontrarmos xj e xk nestas condicoes (i. e. xj ≡ xk mod l),temos que (xj − xk, n) e um divisor proprio de n. Assim como esta, estemetodo ira tornar-se moroso, pois ao fim de k iteracoes temos de compararaproximadamente k2 pares de valores. Note que se xj ≡ xk mod l e sendom ≥ 0, temos

xj+m ≡ xk+m mod l

Portanto, em vez de efectuar todas as comparacoes possıveis podemos apenasfazer uma comparacao em cada iteracao. Por exemplo, podemos calcularsomente

(x2i − xi, n)

em cada iteracao i. Podemos tambem calcular, na iteracao k com 2r ≤ k <2r+1, o maximo divisor comum

(xk − xj, n)

onde j = 2r − 1.

Exemplo. Vamos factorizar 4087 usando f(x) = x2 + 1 e x0 = 3. Obtemos

49

sucessivamente

x1 = 10, x2 = 101 (101− 10, 4087) = 1

x2 = 101, x4 = 1263 (1263− 101, 4087) = 1

x3 = 2028, x6 = 889 (2028− 89, 4087) = 67

Portanto, 67 | 4087. Dividindo, obtem-se 4087 = 67 · 61.

Exemplo. Sejam n = 845651, f(x) = x2 + x + 1 e x0 = 2. Verifica-se que(x10 − x7, n) = 571. Portanto, n = 571 · 1481.

Exercıcios

1. Utilize o metodo ro de Pollard para factorizar cada um dos inteiros133, 1189, 1927, 8131, 36287 e 48227.

2. Utilize o metodo ro de Pollard com as funcoes e x0 indicados, parafactorizar os inteiros n indicados. Em cada caso compare xk com xj

onde 2r ≤ k < 2r+1 e j = 2r − 1.

a) x2 − 1, x0 = 5, n = 7031;

b) x2 + 1, x0 = 1, n = 8051;

c) x3 + x+ 1, x0 = 1, n = 2701;

3.6 Armazenamento de ficheiros

Uma reparticao de financas pretende armazenar num computador um ficheiropara cada uma das pessoas registadas naquele domicılio fiscal. A identificacao(chave) utilizada para cada ficheiro e o numero de contribuinte. Como onumero de contribuinte tem 9 algarismos, seria impracticavel reservar lo-calizacoes de memoria para cada um dos possıveis numeros de contribuinte.Nesta seccao, iremos descrever um metodo sistematico de armazenar ficheirosusando um razoavel numero de localizacoes. Varios metodos para resolvereste problema foram desenvolvidos utilizando Funcoes de mistura. Umafuncao de mistura atribui a chave de cada ficheiro uma localizacao particu-lar. Ha varios tipos de funcoes de mistura, mas as mais utilizadas envolvemaritmetica modular, que iremos passar a descrever.

50

Definicao. Seja k a chave do ficheiro a ser armazenado e seja m um inteiropositivo. Definimos funcao de mistura h por

h(k) ≡ k mod m,

onde 0 ≤ h(k) < m.

De forma a que as chaves sejam distribuıdas de uma forma razoavel,entre as possıveis m localizacoes, devemos ter cuidado na escolha do inteirom. Por exemplo deve-se escolher m de modo a evitar na medida do possıvel,que duas diferentes chaves k1 e k2 sejam enviadas para a mesma localizacao.Por exemplo, se m = 111, como m | 103 − 1, os numeros de contribuinte273321412 e 273425308 sao enviados para o mesmo sıtio:

h(273321412) ≡ 412 + 321 + 273 ≡ 7 mod 111

eh(273425308) ≡ 308 + 425 + 273 ≡ 7 mod 111.

Para evitar estas dificuldades, m deve ser um numero primo proximo donumero de localizacoes disponıveis para o armazenamento dos ficheiros. Porexemplo, se tivermos 5000 localizacoes disponıveis e pretendermos armazenar2000 chaves, pode-se utilizar m = 4969.

Mesmo sendo m um primo podemos ainda assim obter colisoes, i. e.duas chaves diferentes serem enviadas para o mesmo sıtio. Um processo paraultrapassar as colisoes que tambem evita que os ficheiros fiquem demasiadoproximos e utilizar dupla mistura: Tal como antes, escolhemos a funcao demistura

h(k) ≡ k mod m,

onde 0 ≤ h(k) < m, m primo. Seja g a segunda funcao de mistura, definidapor

g(k) ≡ k + 1 mod m− 2,

onde 0 < g(k) ≤ m − 2. Como m e primo, (g(k),m) = 1. Seguidamenteconsideramos a sequencia

hj(k) ≡ h(k) + jg(k) mod m,

com 0 ≤ hj(k) < m. O facto de (g(k),m) = 1 garante-nos que todas aspossıveis localizacoes serao alcancadas quando j toma os valores 0, 1, . . . , n−1. Idealmente, m− 2 tambem deve ser primo.

51

Exemplo. Consideremos m = 4969 e assim m−2 = 4967. A seguinte tabelaindica-nos as localizacoes de varias chaves usando dupla mistura

Numero de Contribuinte h0(k) h1(k) h2(k)

344 401 659 269325 510 778 1526212 228 844 2854329 938 157 1526 1741147 900 151 3960372 500 191 4075134 367 980 2376546 332 190 578509 496 993 578 2580132 489 973 1526 1742 1958

Exercıcios

1. Utilizando os dados do exemplo, determine as localizacoes das pes-soas com os numeros contribuinte 137612044, 505576452, 157170996 e131220418.

2. Um parque de estacionamento tem 101 lugares. Uma pessoa tem depagar semestralmente o parque comprando no inıcio do semestre umpasse. Sao vendidos 500 passes, mas a cada momento so sao esperadosde 50 a 75 automoveis. Elabore uma funcao de mistura e uma polıticapara resolucao de colisoes de modo a atrıbuir um lugar a cada utilizadorbaseado nos 4 algarismos da matrıcula.

3.7 Deteccao de erros

As congruencias tambem sao usadas para identificar erros de introducao dedados.

Exemplo. Os bilhetes de identidade tem um algarismo que detecta se ha umerro no numero de BI. Se um BI tem o numero a8a7 · · · a2a1, o algarismo de

52

verificacao a0 e dado pela congruencia

8∑i=0

(i+ 1)ai ≡ 0 mod 11.

Infelizmente, nos nossos Bilhetes de identidade, esta congruencia pode falhardevido a um erro matematico patetico na idealizacao deste sistema de veri-ficacao de erros. Este erro ocorre quando a solucao da congruencia e a0 = 10,porque, neste caso, foi introduzido um 0 como algarismo de verificacao. Arazao deste erro pode ter a ver com o facto de so termos 10 algarismos e ne-cessitarmos de representar a0 = 10 com um so algarismo. Se fosse utilizadode X ou A para representar este algarismo, poderia criar confusao entre aspessoas.

Exemplo. Em varios paıses europeus os numeros de passaporte tem umalgarismo de verificacao, a0. Se o numero e a9a8 . . . a2a1a0, que e obtido pelacongruencia

a0 ≡ 7a1 + 3a2 + a3 + 7a4 + 3a5 + a6 + 7a7 + 3a8 + a9 mod 10.

Nos passaportes existem tambem algarismos de verificacao para a data denascimento e data de validade.

Exemplo. O ISBN (International Standard Book Number) e um numero queconsiste de 10 algarismos, e escreve-se da forma a9 − a8a7a6 − a5a4a3a2a1 −a0. O primeiro algarismo identifica a lıngua, os tres algarismos seguintesidentificam a editora, os cinco algarismos seguintes e o numero atribuıdopela editora a um livro particular, e o ultimo algarismo a0 e um algarismode verificacao. Este algarismo e calculado utilizando a congruencia

a0 ≡9∑

i=1

(10− i)ai mod 11.

Se a congruencia da 10 entao escreve-se a0 = X.Este sistema de deteccao de erros, permite detectar se ha um erro num

unico algarismo ou se houve troca de dois algarismos. Seja a9a8 · · · a1a0 umISBN valido e que este numero foi introduzido como b9b8 . . . b1b0. Sabemosque

9∑i=0

(10− i)ai ≡ 0 mod 11.

53

Se ha um erro num unico algarismo, temos, para algum j, ai = bi para i = je aj = bj + c para algum −10 ≤ c ≤ 10, com c = 0. Entao

9∑i=0

(10− i)bi =9∑

i=0

(10− i)ai + jc ≡ jc ≡ 0 mod 11,

porque 11 = ja.

Exercıcios

1. Mostre que o sistema de deteccao de erros do ISBN detecta troca dedois algarismos.

2. Mostre que o sistema de deteccao de erros dos passaportes detecta atroca dos algarismos ai e aj se e so se |ai − aj| = 5.

3. Verifique se o seu numero de BI verifica o sistema de deteccao men-cionado.

4. Determine se os seguintes numeros de ISBN sao validos:

0− 394− 38049− 5, 1− 09− 231221− 3, 0− 404− 50874−X.

5. O governo da Noruega atribui um numero de registo a cada cidadaonoruegues com 11 algarismos, utilizando um processo criado pelo mate-matico noruegues E. Selmer (da area de Teoria dos Numeros). Osprimeiros seis algarismos x1, . . . x6 representam a data de nascimento,os tres algarismos seguintes x7, x8 e x9 identificam cada pessoa nascidanaquele dia, os algarismos x10 e x11 sao algarismos de verificacao, de-terminados pelas congruencias

x10 ≡ 8x1 + 4x2 + 5x3 + 10x4 + 3x5 + 2x6 + 7x7 + 6x8 + 9x9 mod 11

e

x11 ≡ 6x1+7x2+8x3+9x4+4x5+5x6+6x7+7x8+8x9+9x10 mod 11

a) Determine os algarismos de verificacao que completam o numero110491238;

b) Mostre que este processo detecta todos os erros num unico algar-ismo.

54

Capıtulo 4

Funcao de Euler

4.1 Sistema Reduzido de Resıduos

Na ultima seccao vimos que a equacao ax ≡ 1 mod n e soluvel se e so se(a, n) = 1. Os numeros que sao primos com n teem outras propriedadesinteressantes. Nesta seccao iremos estudar estes numeros.

Definicao. Seja S um sistema completo de resıduos mod n. Ao conjuntoT formado pelos membros de S que sao primos com n chamamos sistemareduzido de resıduos mod n.

Em seguida iremos definir a funcao de Euler, que conta o numero deelementos de um sistema reduzido de resıduos mod n.

Definicao. Seja n ≥ 1. O numero de inteiros positivos menores ou iguais an que sao primos com n e denotado por ϕ(n). Esta funcao de n e chamadafuncao ϕ de Euler

Se a ≡ b mod n e a e primo com n entao tambem b e primo com n.Se p e primo entao qualquer inteiro positivo menor que p e primo com p,

portanto, ϕ(p) = p− 1.

Teorema 4.1. Suponhamos que (a, n) = 1. Se a1, a2, . . . , an forma um sis-tema completo de resıduos entao aa1, aa2, . . . , aan tambem forma um sis-tema completo de resıduos. Se a1, a2, . . . , aϕ(n) forma um sistema reduzidode resıduos entao aa1, aa2, . . . , aaϕ(n) tambem forma um sistema reduzido deresıduos.

55

Demonstracao: Vamos comecar por provar a primeira parte. Como(a, n) = 1, entao aai ≡ aaj mod n implica ai ≡ aj mod n, mas por definicaode sistema completo de resıduos, isto nao pode acontecer. Assim, aai ≡ aajmod n para i = j. O facto de a ser primo com n tambem implica que existec tal que

ac ≡ 1 mod n.

Seja d um inteiro. Entao cd ≡ ai mod n, para algum 1 ≤ i ≤ n. Donde,

d ≡ acd ≡ aai mod n.

Portanto, aa1, aa2, . . . , aan tambem forma um sistema completo de resıduos.tambem forma um sistema reduzido de resıduos.

Agora, se (a, n) = 1 e (ai, n) = 1 entao (aai, n) = 1. Portanto, os inteirosaa1, aa2, . . . , aaϕ(n) tambem formam um sistema reduzido de resıduos. 2

4.2 Pequeno teorema de Fermat e Teorema

de Euler

O ultimo resultado tem as seguintes consequencias

Teorema 4.2 (Teorema de Euler). Se (a, n) = 1 entao

aϕ(n) ≡ 1 mod n

Demonstracao: Seja a1, a2, . . . , aϕ(n) um sistema reduzido de resıduos.Pelo teorema anterior, aa1, aa2, . . . , aaϕ(n) tambem forma um sistema re-duzido de resıduos. Mais, para cada 1 ≤ i ≤ ϕ(n), aai ≡ aj mod n, paraalgum 1 ≤ j ≤ n. Portanto,

aa1aa2 · · · aaϕ(n) ≡ a1a2 · · · aϕ(n) mod n

Como (a1a2 · · · aϕ(n), n) = 1 entao, pelo teorema 3.3

aϕ(n) ≡ 1 mod n

2

56

Teorema 4.3 (Pequeno Teorema de Fermat). Se p e primo entao

ap ≡ a mod p

para qualquer inteiro a.

Demonstracao: Se p | a entao ap ≡ 0 mod p e a ≡ 0 mod p. Logo,ap ≡ a mod p. Se p - a entao (a, p) = 1, e, pelo teorema de Euler, aϕ(p) ≡ 1mod p. Mas ϕ(p) = p− 1. Portanto, ap ≡ a mod p. 2

Historicamente, o teorema de Fermat foi enunciado em 1640 e foi genera-lizado por Euler em 1760. Para aplicar o teorema de Euler e necessario sabercalcular ϕ(n). Se n e pequeno e relativamente facil encontrar todos os inteirosmenores ou iguais a n que sao primos com n. Mas e se desejamos calcularalgo como ϕ(1776)? De seguida iremos aprender uma formula para ϕ(n) quedepende da factorizacao em primos de n. Antes precisamos de definir funcaomultiplicativa.

Definicao. Se a funcao f(n) esta definida para todos os inteiros positivos,entao dizemos que f(n) e multiplicativa se para qualquer par de inteirospositivos m e n, tais que (m,n) = 1, se tem

f(mn) = f(m)f(n)

Teorema 4.4. A funcao ϕ(n) e multiplicativa.

Demonstracao: Sejam m e n inteiros positivos tais que (m,n) = 1.Vamos meter os primeirosmn inteiros numa tabela comm colunas e n linhas.

1 2 . . . mm+1 m+2 . . . m+m2m+1 2m+2 . . . 2m+m

......

......

(n-1)m+1 (n-1)m+2 . . . (n-1)m+m

Os numeros na coluna j sao m · 0 + j, m · 1 + j, m · 2 + j, . . . ,m(n− 1) + j.Pelo teorema 2.11, (ma + j,m) = (j,m), para qualquer inteiro a. Portanto,ou qualquer elemento da coluna j e primo com m ou nenhum elemento dacoluna j e primo com m. Assim, ha exactamente ϕ(m) colunas contendo

57

inteiros primos com m e qualquer elemento destas ϕ(m) colunas e primo comm.

Como (m,n) = 1, os n elementos de cada coluna j formam um sis-tema completo de resıduos mod n. Portanto, por definicao, cada colunaj contem exactamente ϕ(n) elementos primos com n. Donde, em cada umadas ϕ(m) colunas que teem os elementos que sao primos com m, ha exacta-mente ϕ(n) elementos primos com n. Mais, estes sao os unicos elementos quesao ao mesmo tempo primos com m e primos com n. Isto e, ha exactamenteϕ(m)ϕ(n), elementos na tabela que sao primos com m e, ao mesmo tempo,primos com n.

Mas um inteiro e primo com mn se e so se for primo simultaneamentecom m e com n. Portanto,

ϕ(mn) = ϕ(m)ϕ(n)

e a funcao de Euler e multiplicativa. 2

Teorema 4.5. Suponhamos que a factorizacao de n em primos e a seguinte

n = pa11 pa22 · · · pakkEntao

ϕ(n) = n(1− 1

p1)(1− 1

p2) · · · (1− 1

pk)

Demonstracao: Vamos comecar por calcular ϕ(pa), para p primo e a ≥1. Um inteiro e primo com pa excepto se for divisıvel por p. Os numeros de1 a pa que sao divisıveis por p, sao 1 · p, 2 · p, . . . , pa−1p. Portanto,

ϕ(pa) = pa − pa−1 = pa(1− 1

p).

Mas como a funcao ϕ(n) e multiplicativa, temos

ϕ(n) = ϕ(pa11 )ϕ(pa22 ) · · ·ϕ(pakk )

= pa11 (1− 1

p1)pa22 (1− 1

p2) · · · pakk (1− 1

pk)

= pa11 pa22 · · · pakk (1− 1

p1)(1− 1

p2) · · · (1− 1

pk)

= n(1− 1

p1)(1− 1

p2) · · · (1− 1

pk)

58

2

Exemplo. Para exemplificar vamos calcular ϕ(1776). Primeiro tirando osfactores 2 e 3, verifica-se que

1776 = 24 · 3 · 37

Portanto,

ϕ(1776) = 1776(1− 1

2)(1− 1

3)(1− 1

37)

= 24 · 3 · 37 · 12

2

3

36

37= 24 · 36= 576

Teorema 4.6. Seja n um inteiro positivo. Entao

n =∑d|n

ϕ(d)

Demonstracao: Seja f a funcao aritmetica definida por

f(n) =∑d|n

ϕ(d).

Claramente, f(1) = 1. Como ϕ(n) e multiplicativa, entao, por um exercıcio,tambem f e multiplicativa. Se n = pa para a ≥ 1 e p e primo, entao

f(pa) =∑d|pa

ϕ(d)

=a∑

j=0

ϕ(pj)

= 1 +a∑

j=1

(pj − pj−1)

= pa

59

Se n = pa11 pa22 · · · pakk entao

f(n) = f(pa11 pa22 · · · pakk )

= f(pa11 )f(pa22 ) · · · f(pakk )

= pa11 pa22 · · · pakk= n

Portanto,

n =∑d|n

ϕ(d)

2

4.3 pseudoprimos

Um caso especial do teorema de Fermat e que se p e primo entao 2p ≡ 2mod p. Os chineses da antiguidade sabiam este resultado e tambem acredi-tavam que o recıproco e verdadeiro. No entanto,

341 | (2341 − 2)

e 341 = 11 · 31. Note-se que 2341 tem mais que 100 algarismos, portantoseria difıcil de verificar pelos chineses. A teoria das congruencias permite-nos verificar este resultado sem ter de efectuar demasiados calculos: Como11 e primo, 210 ≡ 1 mod 11 (esta pode ser verificada directamente). Assim,

2341 = 2(210)34 ≡ 2 · 134 ≡ 2 mod 11

Portanto,11 | (2341 − 2).

Por outro lado, 25 = 32 ≡ 1 mod 31. Donde,

2341 = 2(25)68 ≡ 2 mod 31

Portanto,31 | (2341 − 2)

60

Mas (11, 31) = 1, o que implica que 341 | (2341 − 2). Portanto, os chinesesestavam errados. Em honra deste erro, se um inteiro composto n verificar n |(2n−2), chamamo-lo pseudoprimo. Mais geralmente, chamamos pseudoprimopara a base a a um composto n tal que (a, n) = 1 e n | (an−a). Um composton que e pseudoprimo para qualquer base a, tal que (a, n) = 1 chama-senumero de Carmichael. 561, 1105 e 6601 sao numeros de Carmichael. Vamosprovar que 561 e um numero de Carmichael:

Sabemos que 561 = 3 · 11 · 17. Seja a tal que (a, 561) = 1. Entao(a, 3) = (a, 11) = (a, 17) = 1. Usando o teorema de Euler, obtemos

a560 ≡ (a2)280 ≡ 1 mod 3

a560 ≡ (a10)56 ≡ 1 mod 11

a560 ≡ (a16)35 ≡ 1 mod 17

Portanto, 3 | (a560 − 1), 11 | (a560 − 1) e 17 | (a560 − 1), o que implica que561 | (a560 − 1), para qualquer a tal que (a, 561) = 1. Temos claramente561 | (a561 − a), para qualquer a.

Exercıcios

1. Encontre ϕ(n) para n = 20, 60, 63, 341, 561.

2. Mostre que se n e ımpar entao ϕ(2n) = ϕ(n).

3. Mostre que se n e par entao ϕ(2n) = 2ϕ(n).

4. Mostre que se n > 2 entao ϕ(n) e par.

5. Seja x o menor inteiro positivo tal que 2x ≡ 1 mod 63. Encontre x everifique que x | ϕ(63).

6. Determine n tal que

a) ϕ(n) =1

2n;

b) ϕ(n) =2

7n;

c) ϕ(n) = 16;

d) ϕ(n) =4

15n.

61

7. Encontre os ultimos tres algarismos de 79999.

8. Determine o resto da divisao de 10001000 por 37.

9. Mostre que 589 e composto usando o teorema de Fermat.

10. Sejam p e q primos distintos. Mostre que pq−1 + qp−1 ≡ 1 mod pq.

11. Seja Fn o n-esimo numero de Fermat, i. e.

Fn = 22n

+ 1.

Eleve a congruencia22

n ≡ −1 mod Fn

ao expoente 22n−n e use o seu resultado para mostrar que qualquer

numero de Fermat e primo ou e pseudoprimo para a base 2.

O astronomo polaco Banachiewicz conjecturou que Fermat sabia estefacto e que esta e uma das razoes pelas quais Fermat conjecturou quequalquer Fn e primo (recorde que no tempo de Fermat a conjectura doschineses de que nao ha pseudoprimos para a base 2 ainda era aceite).Portanto, quando Euler mostrou em 1732 que F5 nao e primo, ele real-mente encontrou o primeiro pseudoprimo, 87 anos antes do primeiropseudoprimo ter sido anunciado.

12. Mostre que 645 e pseudoprimo para a base 2.

13. Mostre que 91 e pseudoprimo para a base 3.

14. Mostre que 45 e pseudoprimo para as bases 17 e 19.

15. * Seja n = a2p−1a2−1

, com a > 1 inteiro e p um primo ımpar que nao dividea(a2−1). Mostre que n e um pseudoprimo para a base a. Conclua queha infinitos pseudoprimos para a base a. Sugestao: Mostre primeiroque 2p | (n− 1).

16. Mostre que o numero do taxi, 1729, e pseudoprimo para as bases 2, 3e 5.

17. Prove que os inteiros 1105, 6601, 2821, 10585, 29341 e 172081 sao todosnumeros de Carmichael.

18. Suponha n e produto de primos distintos. Prove que se p−1 divide n−1,para cada primo p que divide n entao n e um numero de Carmichael.

62

4.4 Sistema criptografico RSA

Criptografia e a arte e ciencia de enviar mensagens secretas. O emissor usauma chave para codificar a mensagem, esta e enviada ate ao receptor queusa outra chave para a descodificar. Escrevendo letras e sinais de pontuacaocomo numeros, podemos assumir que a mensagem a enviar e um inteiro P quee codificado num outro inteiro C. O problema consiste em inventar chavesque tornem impossıvel ou computacionalmente irrealizavel que o inimigo (ouqualquer pessoa que nao queiramos que leia a mensagem) decifre a mensageminterceptada. Muitas vezes a criptografia usa chaves secretas que so saoconhecidas pelo emissor e pelo receptor. Se o inimigo descobre a chave decodificacao e intercepta a mensagem codificada, ele pode conseguir descobrira chave de descodificacao e recuperar a mensagem original. Este foi o metodoque os matematicos ingleses usaram para descodificar o Enigma, usado pelosalemaes para comunicar entre si e, em particular, com os submarinos, nasegunda guerra mundial.

Ha uma ideia que e mais sofisticada, em criptografia e que produz codigossecretos mesmo quando a chave para codificar e conhecida. De facto, a chavede codificacao pode ser tornada publica, de modo a que qualquer pessoa podecodificar e enviar mensagens, mas a chave de descodificacao, nao pode sercomputada a partir do conhecimento da chave de codificacao. Este processoe chamado criptosistema de chave publica. Nesta seccao iremos descrever umexemplo, conhecido por RSA cryptosystem.

Sejam p = q dois primos muito grandes e seja m = pq. Ja vimos queϕ(m) = (p−1)(q−1). Seja e um inteiro que e primo com ϕ(m). Os numerosm e e sao publicados, daı o nome de criptosistema de chave publica. Amensagem a codificar deve ser um numero P ≤ m tal que P,m) = 1. Sem for enorme, quase todos os numeros sao primos com m, portanto pode-se assumir que (P,m) = 1. A mensagem codificada sera o unico inteiro0 < C < m tal que

C ≡ P e mod m.

e importante notar que p, q e ϕ(m) sao mantidos secretos. Como sabemosϕ(n), podemos usar o algoritmo de Euclides para encontrar um numero d talque

ed ≡ 1 mod ϕ(m),

i. e. ed = 1+ϕ(m)k, para algum inteiro k. Para decifrar a mensagem, basta

63

calcular o menor resıduo nao negativo de

Cd mod m.

Como (P,m) = 1, o teorema de Euler diz-nos que

Cd ≡ P ed ≡ P 1+ϕ(m)k ≡ P mod m

Portanto, para alguem decifrar a mensagem, ele tem que conhecer d e m.Nao basta saber e e m. Para calcular d ele tem de saber ϕ(m), o que requerum conhecimento dos primos p e q. Ou seja, tem de saber factorizar m. Se osprimos p e q forem suficientemente grandes (por exemplo, milhares de algaris-mos, cada um), entao, com os mais potentes computadores e o conhecimentomatematico actual, e impossıvel descobrir os factores de m num perıodo detempo menor que um milhao de anos. Nos sabemos p e q e podemos calcularϕ(m), mas um oponente que queira descodificar a mensagem, falhara, poisnao sabe os primos nem uma maneira rapida de factorizar m.

Exercıcios

1. Seja T = {♢, A,B,C, . . . ,W,X, Y, Z}, onde o sımbolo ♢ representa oespaco em branco, e seja σ a correspondencia que a cada letra faz cor-responder o seu numero de ordem alfabetica habitual, com dois dıgitos:

· ♢ A B C D E F G Hσ(·) 00 01 02 03 04 05 06 07 08· I J K L M N O P Q

σ(·) 09 10 11 12 13 14 15 16 17· R S T U V W X Y Z

σ(·) 18 19 20 21 22 23 24 25 26

Consideremos o conjunto T 2 = {xy : x, y ∈ T}, a correspondencia

τ : T 2 → {0, 1, . . . ,m−1} definida por τ(xy) = 100x+y mod 1333

(ab representa a concatenacao de a com b), o modulom = 1333 = 31·43e o expoente codificador e = 13.

a) Mostre que τ e injectiva. Sera sobrejectiva?

64

b) Codifique e descodifique as palavras SIM e EULER;

c) Descodifique 084404430682 e 084405821121.

2. Seja m um inteiro que e o produto de dois numeros primos p e q.Encontre uma formula para determinar p e q, sabendo m e ϕ(m).

3. Suponha que m = 39247771 e o produto de dois primos distintos p e q.Determine p e q sabendo que ϕ(m) = 39233944.

65

Capıtulo 5

Congruencias polinomiais

5.1 Resıduos quadraticos

Sejam p primo ımpar e a um inteiro, tais que p - a. Seja 1 ≤ x ≤ p−1 entao,pelo teorema 4.1, so um dos inteiros x, 2x, . . . , (p− 1)x e congruente com amod p. Ha, portanto, um unico x′ tal que

xx′ ≡ a mod p

com 1 ≤ x′ ≤ p − 1. Dizemos que x′ esta associado a x. Ha duas possibili-dades, ou existe pelo menos um 1 ≤ x ≤ p−1, que esta associado a si mesmoou nao existe tal inteiro. Vamos analisar cada caso.

1. Suponhamos que ha um inteiro x1 que esta associado a si mesmo. Entaoa congruencia

x2 ≡ a mod p (5.1)

tem a solucao x = x1. Neste caso, dizemos que a e um resıduoquadratico de p. Claramente, p− x1 e outra solucao de (5.1). Mais, sex2 e outra solucao de (5.1), entao

x21 − x2

2 ≡ 0 mod p

donde,(x1 − x2)(x1 + x2) ≡ 0 mod p.

Logo, x1 ≡ x2 mod p ou x1 ≡ −x2 ≡ p − x2 mod p. Portanto, aequacao (5.1) so tem duas solucoes, que sao x1 e p − x1. Podemos

66

entao agrupar os inteiros

1, 2, . . . , p− 1

emp− 3

2pares de inteiros associados e diferentes, sobrando x1 e p−x1

que estao associados a si proprios. Temos

x1(p− x1) ≡ −x21 ≡ −a mod p

e, para cada par de associados x e x′,

xx′ ≡ a mod p.

Entao

(p− 1)! =

p−1∏i=1

i ≡ −a · ap−32 ≡ −a

p−12 mod p.

2. Se nao ha qualquer inteiro que esteja associado a si proprio, dizemosque a e um nao resıduo quadratico de p. Neste caso, a equacao (5.1)nao tem solucoes e os inteiros

1, 2, . . . , p− 1

podem ser agrupados emp− 1

2pares de inteiros associados diferentes.

Portanto,

(p− 1)! =

p−1∏i=1

i ≡ ap−12 mod p.

Seja p um primo ımpar e a um qualquer inteiro nao divisıvel por p. Definimos

o sımbolo de Legendre

(a

p

), da seguinte maneira

(a

p

)=

{1 se a e um resıduo quadratico de p−1 se a e um nao resıduo quadratico de p

Claramente,

(a

p

)=

(b

p

)se a ≡ b mod p. Acabamos de provar o seguinte

teorema:

67

Teorema 5.1. Se p e um primo ımpar e a nao e multiplo de p, entao

(p− 1)! ≡ −(a

p

)a

p−12 mod p.

Os dois casos mais simples deste teorema sao a = 1 e a = −1. Como aequacao x2 ≡ 1 mod p tem as solucoes 1 e −1, entao(

1

p

)= 1

para qualquer primo ımpar. O proximo teorema e baseado neste exemplo

Teorema 5.2 (Wilson). Seja p primo, entao

(p− 1)! ≡ −1 mod p

Demonstracao: Se p e ımpar entao(1

p

)= 1

Logo, considerando a = 1 no teorema anterior, obtemos o resultado enunci-ado. Se p = 2, entao (p− 1)! = 1, donde (p− 1)! ≡ −1 mod 2. 2

Juntando os dois resultados anteriores, obtemos um processo para calcularo sımbolo de Legendre:

Teorema 5.3. Sejam p um primo ımpar e a um inteiro tais que p - a. Entao(a

p

)= a

p−12 mod p.

Ao contrario do teorema de Fermat, o recıproco do teorema de Wilsontambem e valido, obtendo-se um teste de primalidade.

Teorema 5.4. Seja m > 1. Entao m e primo se e so se

(m− 1)! ≡ −1 mod m

68

Demonstracao: Atendendo ao resultado anterior, basta-nos considerarm > 1 composto. Entao existe um inteiro 1 < d < m tal que d | m. Masentao d | (m− 1)!. Logo, d - ((m− 1)! + 1). Donde, m - ((m− 1)! + 1). 2

Infelizmente, este teorema parece ser inutil para verificar na pratica seum numero e primo ou nao.

Em seguida consideramos o caso a = −1.

Teorema 5.5. O inteiro −1 e um resıduo quadratico para os primos daforma 4k + 1 e um nao resıduo quadratico para os primos da forma 4k + 3,i. e. (

−1

p

)= (−1)

p−12 .

Demonstracao: Resulta imediatamente do teorema 5.3. 2

Em seguida, vamos introduzir outra caracterizacao do sımbolo de Legen-dre, obtida por Gauss.

Seja p um primo ımpar e consideremos o conjunto dos resıduos mınimos:

S = {−p− 1

2,−p− 3

2, . . . ,−2,−1, 1, 2, . . . ,

p− 1

2}.

Seja (a, p) = 1 e seja µ o numero de resıduos mınimos negativos dos inteirosa, 2a, 3a, . . . ap−1

2. Por exemplo, seja p = 7 e a = 4. Entao

1 ∗ 4 ≡ −3 mod 7

2 ∗ 4 ≡ 1 mod 7

3 ∗ 4 ≡ −2 mod 7

Portanto, neste caso, µ = 2. Os valores de µ irao permitir-nos obter uma

caracterizacao simples de(

ap

).

Lema 5.6 (Lema de Gauss).(

ap

)= (−1)µ.

Demonstracao: Seja ±ml o resıduo mınimo de la, onde ml e positivo.Claramente, µ e o numero de ocorrencias do sinal negativo, quando l toma

69

valores entre 1 e (p − 1)/2. Note que, se 1 ≤ l < k ≤ (p − 1)/2, entaoml = mk. Suponhamos que ml = mk. Entao

la ≡ ±ka mod p.

Como p - a, temos l ≡ ±k mod p. Mas esta congruencia e impossıvel,porque l = k e

|l ± k| ≤ l + k ≤ p− 1.

Portanto, os conjuntos {1, 2, . . . , (p − 1)/2} e {m1,m2, . . . ,m(p−1)/2} coinci-dem. Multiplicando as congruencias

1a ≡ ±m1 mod p

2a ≡ ±m2 mod p

...

p− 1

2a ≡ ±m p−1

2mod p

obtemos (p− 1

2

)!a

p−12 ≡ (−1)µ

(p− 1

2

)! mod p.

Portanto,

ap−12 ≡ (−1)µ mod p.

Pelo teorema 5.3, obtemos o resultado pretendido. 2

Este resultado, permite-nos, por exemplo, saber para que primos, 2 e umresıduo quadratico.

Teorema 5.7. O inteiro 2 e um resıduo quadratico para os primos da forma8k+1 e 8k− 1 e um nao resıduo quadratico para os primos da forma 8k+3e 8k + 5, i. e. (

2

p

)= (−1)

p2−18 .

Demonstracao: Seja p um primo ımpar. Note que µ e igual ao numerode elementos do conjunto T = {2, 4, 6, 8, . . . , p− 1} que sao maiores que p−1

2.

70

Se p = 8k + 1 entao (p − 1)/2 = 4k e ha 2k elementos de T menores ouiguais a (p− 1)/2 e 2k elementos maiores que (p− 1)/2. Portanto, µ e par e2 e um resıduo quadratico de p.

Se p = 8k−1 entao (p−1)/2 = 4k−1 e ha 2k−1 elementos de T menoresou iguais a (p − 1)/2 e 2k elementos maiores que (p − 1)/2. Portanto, µ epar e 2 e um resıduo quadratico de p.

Se p = 8k + 3 entao (p− 1)/2 = 4k + 1 e ha 2k elementos de T menoresou iguais a (p− 1)/2 e 2k + 1 elementos maiores que (p− 1)/2. Portanto, µe ımpar e 2 e um nao resıduo quadratico de p.

Se p = 8k+5 entao (p−1)/2 = 4k+2 e ha 2k+1 elementos de T menoresou iguais a (p− 1)/2 e 2k + 1 elementos maiores que (p− 1)/2. Portanto, µe ımpar e 2 e um nao resıduo quadratico de p. 2

Os numeros 12, 22, 32, . . .

(p− 1

2

)2

, sao todos incongruentes mod p, pois

ser2 ≡ s2 mod p

entao r ≡ s mod p ou r ≡ −s mod p, e a segunda alternativa e impossıvel.Mais,

r2 ≡ (p− r)2 mod p,

portanto, se p for ımpar, hap− 1

2resıduos quadraticos e

p− 1

2nao resıduos

quadraticos de p.

Teorema 5.8. Seja p um primo ımpar. O produto de dois resıduos quadra-ticos de p ou de dois nao resıduos quadraticos de p e um resıduo quadraticode p, enquanto que o produto de um resıduo quadratico com um nao resıduoquadratico e um na resıduo quadratico. Isto e,(

a

p

)(b

p

)=

(ab

p

)

71

Demonstracao: Pelo teorema 5.3,(a

p

)(b

p

)≡ a

p−12 b

p−12 mod p

= (ab)p−12 mod p

=

(ab

p

)mod p

Donde, (a

p

)(b

p

)=

(ab

p

)2

Sejam p e q dois primos ımpares distintos. Se q e um resıduo quadraticode p, entao a congruencia

x2 ≡ q mod p

e soluvel. Analogamente, se p e um resıduo quadratico de q, entao a con-gruencia

x2 ≡ p mod q

tambem e soluvel. Nao parece haver qualquer conexao obvia entre estasduas congruencias. Uma das grandes descobertas da matematica efectuadasno seculo XVIII e que, de facto, ha uma relacao poderosa e subtil entre ascongruencias mencionadas, que depende apenas de p mod 4 e de q mod 4.Esta e a celebrada lei da reciprocidade quadratica de Gauss. Iremos enun-ciar este resultado e ver alguns exemplos, no entanto, nao provaremos esteresultado, pois seria demasiado pesada para esta introducao a Teoria dosNumeros.

Teorema 5.9. Sejam p e q primos ımpares distintos. Se p ≡ 1 mod 4 ouq ≡ 1 mod 4 entao p e um resıduo quadratico mod q se e so se q e umresıduo quadratico mod p. Se p ≡ q ≡ 3 mod 4, entao p e um resıduoquadratico mod q se e so se q e um nao resıduo quadratico mod p. Isto e(

p

q

)(q

p

)= (−1)

p−12

q−12

72

Exemplo. A lei da reciprocidade quadratica da-nos um metodo efectivo paracalcular o valor do sımbolo de Legendre. Por exemplo, como

7 ≡ 59 ≡ 3 mod 4,

e 59 ≡ 3 mod 7 temos (7

59

)= −

(59

7

)= −

(3

7

)=

(7

3

)=

(1

3

)= 1

Portanto, 7 e um resıduo quadratico de 59.

Exemplo. Como 51 = 3 · 17 e 97 ≡ 17 ≡ 1 mod 4, temos(51

97

)=

(3

97

)(17

97

)=

(97

3

)(97

17

)=

(1

3

)(12

17

)=

(2

17

)2(3

17

)=

(17

3

)=

(−1

3

)= (−1)

3−12

= −1

73

Exemplo. A lei da reciprocidade quadratica tambem nos permite determinartodos os primos p para os quais um dado inteiro a e um resıduo quadratico.Por exemplo, se a = 5, entao(

5

p

)=(p5

)=

{1 se p ≡ 1, 4 mod 5−1 se p ≡ 2, 3 mod 5

Exercıcios

1. Encontre todos os resıduos quadraticos mod 29.

2. Encontre todas as solucoes das congruencias x2 ≡ 2 mod 47 e x2 ≡ 2mod 53.

3. Verifique se as seguintes congruencias tem ou nao solucao e, nos casosafirmativos, resolva-as

a) x2 ≡ −1 mod 17;

b) x2 ≡ −1 mod 43;

c) x2 ≡ −1 mod 61;

d) x2 ≡ −1 mod 101;

e) x2 ≡ −1 mod 103.

4. Seja p um primo ımpar. Mostre que 2(p− 3)! ≡ −1 mod p.

5. Suponha que p e um primo ımpar. Mostre que

a)

p−12∏

i=1

(2i)2 ≡ (−1)p+12 mod p;

b)

p−12∏

i=1

(2i− 1)2 ≡ (−1)p+12 mod p;

6. Seja p um primo e suponha que existe r < p tal que (−1)rr! ≡ −1mod p. Mostre que (p − r + 1)! ≡ −1 mod p. Em particular, mostreque 61! ≡ 63! ≡ −1 mod 71.

7. Sejam p primo e 1 < k < p. Mostre que (p − k)!(k − 1)! ≡ (−1)k

mod p.

74

8. * Para que inteiros n, e n4 + 4n primo?

9. * Seja p um primo ımpar. Mostre que (p− 1)!pn−1 ≡ −1 mod pn.

10. Determine o resto da divisao do inteiro 3 · 6 · 9 · · · 306 por 103.

11. Calcule

(3

11

)e

(7

11

).

12. Calcule

(11

43

)e encontre um inteiro x tal que x2 ≡ 11 mod 43.

13. Calcule

(19

101

)e encontre um inteiro x tal que x2 ≡ 19 mod 101.

14. Encontre todos os primos ımpares para os quais 3 e um resıduo quadra-tico.

15. Encontre todos os primos ımpares para os quais −3 e um resıduoquadratico.

16. Calcule os sımbolos de Legendre(5

127

) (11

127

) (17

19

) (41

61

) (11

71

) (13

83

) (17

97

)17. Determine, caso existam, todas solucoes das congruencias quadraticas

seguintes

a) 5x2 + 4x+ 7 ≡ 0 mod 19;

b) 7x2 + x+ 11 ≡ 0 mod 17;

c) 2x2 + 7x− 13 ≡ 0 mod 61.

18. Procure as solucoes da congruencia quadratica x2 ≡ 7 mod 513.

19. Verifique se 43 e um resıduo quadratico mod 923.

20. Mostre que se p e um primo ımpar e p = 2k + 1, entao

(p− 1)! ≡ (−1)k[(

p− 1

2

)!

]2mod p.

75

21. Use o problema anterior para mostrar que se p e primo e p ≡ 1 mod 4

entao

(p− 1

2

)! e uma solucao da congruencia x2 + 1 ≡ 0 mod p.

5.2 Congruencias Polinomiais gerais

Se

f(x) =n∑

i=0

aixi e g(x)

n∑j=0

bjxj

sao dois polinomios com coeficientes inteiros e ai ≡ bi mod m, para qual-quer 0 ≤ i ≤ n, entao dizemos que f(x) e g(x) sao congruentes mod m eescrevemos

f(x) ≡ g(x) mod m.

Claramente, f(x) ≡ g(x) mod m implica f(x)h(x) ≡ g(x)h(x) mod m paraqualquer polinomio h(x) com coeficientes inteiros.

No que se segue usaremos o sımbolo ≡ em dois sentidos diferentes. Nosentido usado nas seccoes anteriores, onde ≡ expressa uma relacao entrenumeros inteiros, e no sentido acabado de definir no paragrafo anterior, onde≡ expressa uma relacao entre polinomios. Quando dissermos que f(x) ≡ g(x)ou f(x) ≡ 0, e nao ha qualquer referencia ao valor numerico de x, estaremosa usar o segundo sentido, mas quando falarmos em raızes da congruenciaf(x) ≡ 0 ou discutirmos a solucao de uma congruencia, estaremos a usar oprimeiro sentido.

Teorema 5.10. Se p e primo e

f(x)g(x) ≡ 0 mod p

entao ou f(x) ≡ 0 mod p ou g(x) ≡ 0 mod p. Mais, se a ≥ 1 e um inteiro,

f(x)g(x) ≡ 0 mod pa

e f(x) ≡ 0 mod p entao

g(x) ≡ 0 mod pa.

Demonstracao: Seja f1(x) o polinomio que se obtem de f(x) quandose elimina todos os termos de f(x) que teem coeficientes divisıveis por p e

76

defina-se g1(x) a partir de g(x) de maneira semelhante. Se f(x) ≡ 0 mod pe g(x) ≡ 0 mod p, entao os coeficientes de maior grau de f1(x) e em g1(x),nao sao divisıveis por p, e, portanto, o coeficiente de maior grau de f1(x)g1(x)nao e divisıvel por p. Portanto,

f(x)g(x) ≡ f1(x)g1(x) ≡ 0 mod p.

Para provar a segunda parte do teorema, basta considerar polinomios f1(x)e g1(x) que sao obtidos a partir de f(x) e g(x), eliminando os termos cujoscoeficientes sao multiplos de p ou de pa, respectivamente. 2

A condicao de que o modulo e primo e essencial: Por exemplo,

x2 ≡ x2 − 4 ≡ (x− 2)(x+ 2) mod 4

e 4 e uma solucao de x2 ≡ 0 mod 4, mas nao e solucao de qualquer uma dasequacoes x− 2 ≡ 0 mod 4 ou x+ 2 ≡ 0 mod 4.

Se f(x) ≡ g(x) mod m entao, claramente, f(a) ≡ g(a) mod m, paraqualquer inteiros a e m > 1. No entanto, a recıproca nao e necessariamenteverdadeira: pelo teorema de Fermat, se p e primo temos

ap ≡ a mod p

para qualquer inteiro a, mas xp ≡ x mod p.

Teorema 5.11. Se f(x) e um polinomio com coeficientes inteiros e f(a) ≡ 0mod m, entao existe um polinomio g(x) com coeficientes inteiros tal que

f(x) ≡ (x− a)g(x) mod m

Demonstracao: Usando o algoritmo da divisao, podemos escrever

f(x) = (x− a)g(x) + b

para algum polinomio g(x) e algum inteiro b. Temos entao que f(a) =(a− a)g(a) + b = b. Donde,

b = f(a) ≡ 0 mod m.

Portanto,f(x) ≡ f(x)− b ≡ (x− a)g(x) mod m

77

2

Por exemplo, seja f(x) = x2 + x + 1. Claramente, f(1) ≡ 0 mod 3.Dividindo f(x) por x− 1, obtemos

x2 + x+ 1 = (x− 1)(x+ 2) + 3.

Portanto,

x2 + x+ 1 ≡ (x− 1)(x+ 2) ≡ (x− 1)2 mod 3.

Mais geralmente,

Teorema 5.12. Seja p um primo. Se f(x) e um polinomio com coeficientesinteiros e se a1, a2, . . . , ak sao inteiros incongruentes dois a dois mod p, quesao solucoes da congruencia f(x) ≡ 0 mod p, entao existe um polinomiog(x) com coeficientes inteiros tal que

f(x) ≡ (x− a1)(x− a2) · · · (x− ak)g(x) mod p

Demonstracao: Pelo teorema anterior ha um polinomio g1(x), com co-eficientes inteiros, tal que

f(x) ≡ (x− a1)g1(x) mod p

Com o objectivo de provar este teorema usando a inducao, seja j ≥ 1 esuponhamos que ha um polinomio gj(x), com coeficientes inteiros, tal que

f(x) ≡ (x− a1)(x− a2) · · · (x− aj)gj(x) mod p

Entao

0 ≡ f(aj+1) ≡ (aj+1 − a1)(aj+1 − a2) · · · (aj+1 − aj)gj(aj+1) mod p.

Por hipotese nenhum dos numeros aj+1 − a1, aj+1 − a2, . . . , aj+1 − aj e con-gruente com 0 mod p, logo gj(aj+1 ≡ 0 mod p. Portanto, pelo teoremaanterior, existe um polinomio gj+1(x), com coeficientes inteiros, tal que

gj(x) ≡ (x− aj+1)gj+1(x) mod p.

78

Donde,

f(x) ≡ (x− a1)(x− a2) · · · (x− aj)(x− aj+1)gj+1(x) mod p,

e o resultado e tambem valido para j + 1. Portanto, por inducao, o teoremae valido para qualquer k. 2

Definicao. Seja f(x) = akxk + ak−1x

k−1 + · · ·+ a1x+ a0 um polinomio comcoeficientes inteiros. Definimos grau mod m de f(x) como sendo o maiorinteiro d tal que

ad ≡ 0 mod m

Se para qualquer d ≥ 0, ad ≡ 0 mod m entao o grau de f(x) mod m eindefinido.

Teorema 5.13 (Lagrange). Seja p um primo e f(x) um polinomio comcoeficientes inteiros. Suponhamos que o grau de f(x) mod p esta definido ee igual a n. Entao a equacao

f(x) ≡ 0 mod p

tem no maximo n solucoes mod p.

Demonstracao: Vamos provar este resultado por inducao. Seja n o graude f(x) mod p. Se n = 0 entao f(x) ≡ a0 mod p e (a0, p) = 1. Donde, aequacao a0 ≡ 0 mod p nao tem solucoes. Se n = 1 entao, pelo teorema 3.9 aequacao a1x ≡ −a0 mod p tem exactamente uma solucao (pois (a1, p) = 1).Suponhamos que o teorema e verdadeiro para polinomios com graus mod pinferiores a n e seja f(x) um polinomio de grau n mod p. Se a congruenciaf(x) ≡ 0 mod p nao tiver solucoes entao o resultado e verdadeiro para f(x).Se a e um inteiro tal que f(a) ≡ 0 mod p, entao, pelo teorema 5.11, existeum polinomio g(x) de coeficientes inteiros tal que

f(x) ≡ (x− a)g(x) mod p.

Claramente, o grau de g(x) mod p e no maximo n− 1. Entao, por hipotesede inducao, a congruencia

g(x) ≡ 0 mod p

79

tem no maximo n − 1 solucoes. Mas, pelo teorema 5.10, qualquer raız def(x) (i. e. solucao da equacao f(x) ≡ 0 mod p) e tambem raız de g(x) ouentao e a. Logo,

f(x) ≡ 0 mod p

tem no maximo n solucoes. Donde o resultado e valido para polinomios comgrau n mod p. Por inducao, o teorema e valido para qualquer inteiro n ≥ 0.

2

A congruencia, x2 − 1 ≡ 0 mod 8, tem 4 solucoes x = 1, 3, 5, 7, o quemostra que a restricao a modulos primos nao pode ser eliminada.

Corolario 5.14. Seja p um primo e f(x) um polinomio de coeficientes in-teiros, com grau mod p definido e igual a n. Suponhamos que b e o coefi-ciente de xn em f(x) e que os n inteiros a1, a2, . . . , an sao solucoes distintasmod p da equacao

f(x) ≡ 0 mod p.

Entaof(x) ≡ b(x− a1)(x− a2) · · · (x− an) mod p.

Exemplo. Seja p um primo e f(x) = xp−1 − 1. Pelo teorema de Euler (oupelo teorema de Fermat), a congruencia

xp−1 ≡ 1 mod p

tem p− 1 solucoes distintas mod p, que sao 1, 2, . . . , p− 1. Donde

xp−1 − 1 ≡ (x− 1)(x− 2) · · · (x− (p− 1) mod p

Tomando x = 0, obtemos

−1 ≡ (p− 1)! mod p.

O que mais uma vez prova o teorema de Wilson.

Estamos em condicoes de estudar a congruencia geral f(x) ≡ 0 mod m,onde m > 1 e um inteiro e f(x) e um polinomio com coeficientes inteiros.

80

Teorema 5.15. Seja f(x) um polinomio com coeficientes inteiros e m =m1m2 · · ·mk, onde os inteiros m1,m2, . . . ,mk sao primos entre si dois a dois.O numero de raızes de

f(x) ≡ 0 mod m (5.2)

e igual ao produto dos numeros de raızes das congruencias

f(x) ≡ 0 mod mi, 1 ≤ i ≤ k (5.3)

Demonstracao: Seja a uma solucao de 5.2. Entao m | f(a). Seja1 ≤ i ≤ k. Como mi | m, temos

f(a) ≡ 0 mod mi.

Portanto, uma solucao de 5.2 e tambem solucao de 5.3 para qualquer 1 ≤i ≤ k. Reciprocamente, seja ci uma solucao da equacao 5.3, para qualquer1 ≤ i ≤ k. Entao o sistema

x ≡ c1 mod m1

x ≡ c2 mod m2...x ≡ ck mod mk

tem uma unica solucao, digamos a mod (m1m2 · · ·mk) (pelo teorema chinesdo resto). Como a ≡ ci mod mi, entao f(a) ≡ f(ci) ≡ 0 mod mi. Logo,f(a) ≡ 0 mod m. Portanto, qualquer k-uplo de solucoes das equacoes 5.3,da origem a uma solucao de 5.2 e vice-versa. Em particular, o numero deraızes de

f(x) ≡ 0 mod m

e igual ao produto dos numeros de raızes das congruencias

f(x) ≡ 0 mod mi, 1 ≤ i ≤ k

2

Portanto, basta-nos saber resolver congruencias com modulos que saopotencias de primos. Primeiro, provamos um resultado tecnico:

81

Lema 5.16. Sejam f(x) um polinomio com coeficientes inteiros de grau n,a um inteiro e 0 ≤ k ≤ n. Entao

f (k)(a)

k!

e um inteiro.

Demonstracao: Suponhamos que

f(x) = anxn + an−1x

n−1 + · · ·+ a1x+ a0.

Entao

f (k)(a) =n−k∑j=0

(n− j)!

(n− j − k)!an−ja

n−j−k.

Como

(n− j

k

)e inteiro para qualquer n ≥ 0 e 0 ≤ j ≤ n − k, entao

k! | (n− j)!

(n− j − k)!. Portanto,

f (k)(a)

k!

e um inteiro. 2

Teorema 5.17. Seja p um primo a > 1 e f(x) um polinomio com coeficientesinteiros. Seja ξ uma solucao de

f(x) ≡ 0 mod pa−1. (5.4)

O numero de solucoes de

f(x) ≡ 0 mod pa (5.5)

correspondentes a ξ e

(a) zero, se f ′(ξ) ≡ 0 mod p e se ξ nao for solucao de (5.5);

(b) um, se f ′(ξ) ≡ 0 mod p;

82

(c) p, se f ′(ξ) ≡ 0 mod p e se ξ for uma solucao de (5.5).

Demonstracao: Seja x0 uma solucao de 5.5 tal que 0 ≤ x0 < pa. Comopa−1 | pa, temos que

f(x0) ≡ 0 mod pa−1.

Logo existe 0 ≤ ξ < pa−1 tal que x0 ≡ ξ mod pa−1 e f(ξ) ≡ 0 mod pa−1 (i.e. ξ e solucao da congruencia (5.4)). Portanto,

x0 = ξ + spa−1 para algum inteiro 0 ≤ s < p

Reciprocamente, consideremos ξ uma raiz de (5.4) tal que 0 ≤ ξ < pa−1. Sejan o grau de f(x). Agora, pela formula de Taylor,

f(ξ + spa−1) = f(ξ) + spa−1f ′(ξ) +1

2s2p2a−2f ′′(ξ) +

1

3!s3p3a−3f ′′′(ξ) + · · ·

+1

n!snpna−nf (n)(ξ)

≡ f(ξ) + spa−1f ′(ξ) mod pa,

pois ja− j ≥ a, para 2 ≤ j ≤ n e os coeficientes

f (k)(ξ)

k!

sao inteiros. Agora, vamos distinguir dois casos:

1. Suponhamos que f ′(ξ) ≡ 0 mod p. Entao ξ+spa−1 e uma raiz de (5.5)se e so se

f(ξ) + spa−1f ′(ξ) ≡ 0 mod pa. (5.6)

Como pa−1 | f(ξ), podemos usar o teorema 3.3 e obter

sf ′(ξ) ≡ −f(ξ)

pa−1mod p.

Mas, por hipotese, f ′(ξ) ≡ 0 mod p, logo existe um unico s mod psatisfazendo a equacao anterior. Portanto, o numero de raızes de (5.5)e igual ao numero de raızes de (5.4).

2. Suponhamos, agora, que f ′(ξ) ≡ 0 mod p. Entao

f(ξ + spa−1) ≡ f(ξ) mod pa.

Se f(ξ) ≡ 0 mod pa, entao (5.5) e insoluvel. Se f(ξ) ≡ 0 mod pa

entao ξ + spa−1 e solucao de (5.5), para qualquer 0 ≤ s < p, havendo,portanto, p solucoes de (5.5) correspondentes a cada solucao de (5.4).

83

2

Exemplo. Seja f(x) = xp−1 − 1. A congruencia

f(x) ≡ 0 mod p

tem p− 1 solucoes 1, 2, . . . , p− 1. Se ξ e alguma destas raızes entao

f ′(ξ) = (p− 1)ξp−2 ≡ 0 mod p.

Portanto, a congruencia

f(x) ≡ 0 mod p2

tambem tem p − 1 solucoes. Repetindo este argumento, ve-se que a con-gruencia

f(x) ≡ 0 mod pa

tem p− 1 solucoes, para qualquer a ≥ 1.

Exemplo. Em seguida consideramos a congruencia

f(x) = xp(p−1)

2 − 1 ≡ 0 mod p2, (5.7)

onde p e um primo ımpar. Aqui,

f ′(ξ) =p(p− 1)

p(p−1)2

−1 ≡ 0 mod p

para qualquer ξ. Portanto, ha p raızes de (5.7) correspondendo a cada raızde f(x) ≡ 0 mod p. Mas, pelo teorema 5.3,

xp−12 ≡ ±1 mod p

dependendo apenas de x ser um resıduo quadratico ou um nao resıduo quadra-tico de p. Portanto,

xp(p−1)

2 ≡ 1 mod p

se x for um resıduo quadratico de p e

xp(p−1)

2 ≡ −1 mod p

84

se x for um nao resıduo quadratico de p. Assim, hap− 1

2raızes de

f(x) ≡ 0 mod p

ep(p− 1)

2raızes de

f(x) ≡ 0 mod p2.

Exemplo. Consideremos, agora, a congruencia

f(x) = x2 − c ≡ 0 mod pa (5.8)

onde p - c e a ≥ 1. Se p e ımpar, temos

f ′(ξ) = 2ξ ≡ 0 mod p

para qualquer ξ que nao seja divisıvel por p. Portanto, o numero de raızes de(5.8) e igual ao numero de raızes da congruencia analoga para os modulos

pa−1, pa−2, . . . , p2, p.

Ou seja, ha duas ou nenhuma raiz, dependendo apenas de c ser ou nao umresıduo quadratico de p.

Exercıcios

1. Resolva as congruencias

a) x2 + 1 ≡ 0 mod 4;

b) x3 + 2x+ 1 ≡ 0 mod 7;

c) x5 + x4 + x3 + x2 + x ≡ −1 mod 5.

2. Resolva a congruencia x3 + 2x2 + 5x+ 6 ≡ 0 mod 11.

3. Reduza, mod 11, os polinomios f(x) seguintes, sabendo que, em cadacaso, f(a) ≡ 0 mod 11.

a) f(x) = x2 + 10x+ 3, a = 6;

b) f(x) = x3 − x2 + x+ 10, a = 1;

c) f(x) = x3 − 6x2 − 2x+ 20, a = −3.

85

4. Factorize mod 13 o polinomio f(x) = x4 − 6x3 − 3x2 − 7x + 2, compelo menos dois factores de primeiro grau.

5. Mostre que o polinomio f(x) = x3+3x2+2x+2 nao pode ser factorizadomod 5.

6. Resolva a congruencia xpa ≡ b mod p sabendo que p e primo e a ≥ 1.

7. Resolva as congruencias seguintes

a) x2 + x+ 1 ≡ 0 mod 8;

b) x3 + x2 + 1 ≡ 0 mod 24;

c) x4 + x2 + 1 ≡ 0 mod 250.

8. Resolva a congruencia x50 + x12 ≡ 2 mod 75.

9. Mostre que 5n3 + 7n5 ≡ 0 mod 12, para qualquer inteiro n.

10. Resolva a congruencia 4x4 + 9x3 − 5x2 − 21x+ 61 ≡ 0 mod 1125.

5.3 Atirar moedas ao ar electronicamente

Suponha que Alice e Bruno estao a comunicar electronicamente e desejamutilizar uma maneira honesta equivalente a atirar uma moeda ao ar, paratomar uma certa decisao (ou ver quem ganha). Um processo para resolvereste problema foi inventado por M. Blum.

Tal como no RSA, precisamos de dois primos grandes p e q, so que nestesistema temos a condicao adicional p, q ≡ 3 mod 4. O seguinte resultadodiz-nos como determinar raızes quadradas mod p para p ≡ 3 mod 4.

Teorema 5.18. Seja p um numero primo tal que p ≡ 3 mod 4. Seja a uminteiro que e um quadrado mod p (i. e., existe b tal que a ≡ b2 mod p).

Entao ap+14 e a raiz quadrada de a mod p.

Demonstracao: Se a ≡ 0 mod p entao, claramente, ap+14 e a raız

quadrada de a mod p. Suponhamos que a ≡ 0 mod p, entao b ≡ 0 mod p.Como p ≡ 3 mod 4, temos que p+1

4e um inteiro. Basta-nos provar que o

quadrado de ap+14 e congruente com a mod p. Temos

(ap+14 )2 ≡ bp+1 ≡ b2 ≡ a mod p,

86

onde usamos (b, p) = 1. 2

Para dar inıcio ao processo, Alice escolhe dois primos p e q distintostais que p, q ≡ 3 mod 4 e envia a Bruno o inteiro n = pq. Bruno escolhealeatoriamente um inteiro x < n e envia a Alice o valor a ≡ x2 mod n, com0 < a < n.

Alice determina

mp ≡ ap+14 mod p e mq ≡ a

q+14 mod q.

Assim ±mp sao as duas raızes quadradas de a mod p e ±mq sao as duasraızes quadradas de a mod q. Usando o teorema chines do resto, obtem-sequatro inteiros x1, x2, x3 = n− x1 e x4 = n− x2 cujo quadrado e congruentecom a mod p. Um deles, digamos x1, e o x escolhido aleatoriamente porBruno. Alice escolhe aleatoriamente um destes inteiros e envia-o a Bruno.Note que

x1 + x1 ≡ 2mp ≡ 0 mod p x1 + x2 ≡ 2mq ≡ 0 mod q,

x1 + x2 ≡ 2mp ≡ 0 mod p x1 + x2 ≡ 0 mod q,

x1 + x3 ≡ 0 mod p x1 + x3 ≡ 2mq ≡ 0 mod q,

x1 + x4 ≡ 0 mod p x1 + x4 ≡ 0 mod q.

Assim,

(x1 + x1, n) = 1

(x1 + x2, n) = q

(x1 + x3, n) = p

(x1 + x4, n) = n.

Se Alice enviar x2 ou x3, Bruno consegue factorizar n, mas se Alice enviarx1 ou x4, Bruno nao consegue determinar os factores de n em tempo razoavel.Desta maneira, Bruno ganha se conseguir factorizar n, com 50% de hipoteses.Note que Alice nao tem maneira de saber qual das raızes quadradas foi orig-inalmente escolhida por Bruno.

87

Exemplo. Alice usa os numeros primos p = 11 e q = 23. Entao n = 253.Bruno escolhe x = 158 e calcula

a ≡ x2 mod n.

Verifica-se que c = 170. Alice calcula

mp ≡ ap+14 mod p e mq ≡ a

q+14 mod q,

obtendo mp = 4 e mq = 3. Usando o teorema chines do resto, Alice obtemquatro raızes quadradas de a mod n, que sao 26, 95, 158, 227. Se Alice enviar26 ou 227, Bruno ganha.

5.4 Prova de conhecimento nulo

Suponha que pretende convencer uma outra pessoa que tem certa informacaosecreta, sem revelar essa informacao. Por exemplo, suponha que Alice con-seguiu factorizar um numero n = pq com 200 algarismos, com p, q ≡ 3mod 4, e deseja convencer Bruno que obteve esse resultado, sem lhe revelarquais sao os factores. O seguinte procedimento alcanca este objectivo:

1. Bruno, que conhece n mas nao conhece os primos p e q, comeca porescolher um inteiro x aleatoriamente e determina y ≡ x4 mod n e enviay a Alice.

2. Alice calcula as quatro raızes quadradas de y mod n e determina quale um resıduo quadratico simultaneamente mod p e mod q (so umadas raızes verifica esta condicao) e envia essa raiz, digamos x1, a Bruno.

3. Bruno fica convencido de que Alice sabe a factorizacao de n, verificandoque x2 ≡ x1 mod n.

Exemplo. Alice descobriu que n = 24617 = 103 × 239 e quer convencerBruno de que conseguiu factorizar 24617. Bruno selecciona x = 9134, porexemplo, e determina 91344 ≡ 20682mod24617 e envia 20682 a Alice. Uti-lizando o metodo do teorema 5.18, Alice obtem

x2 ≡ ±20682103+1

4 ≡ ±59 mod 103,

x2 ≡ ±20682239+1

4 ≡ ±75 mod 103.

88

Utilizando o teorema chines do resto, Alice descobre as quatro solucoesdos quatro sistemas, obtendo os valores 2943, 11786, 12831 e 21674. Como soum destes valores, 2943, e um resıduo quadratico para ambos os primos p eq, Alice envia 2943 a Bruno. Bruno calcula 91342 mod 24617 e verifica queda 2943. Portanto fica convencido que Alice sabe a factorizacao de n.

5.5 Raızes Primitivas

O teorema de Euler diz-nos que se (a, n) = 1 entao

aϕ(n) ≡ 1 mod n.

Nesta seccao estudamos o problema de encontrar a menor potencia positiva,r,tal que ar ≡ 1 mod n, e o problema de encontrar os valores de a para osquais a menor potencia e ϕ(n).

Definicao. Suponhamos que (a, n) = 1. Definimos a ordem de a mod ncomo sendo o menor inteiro positivo, digamos b, para o qual

ab ≡ 1 mod n

e denota-mo-lo por ordn(a).

Por exemplo, ord13(5) = 4, pois

51 ≡ 5 mod 13

52 ≡ −1 mod 13

53 ≡ −5 mod 13

54 ≡ 1 mod 13

Pelo teorema de Euler, ordn(a) existe, sempre que (a, n) = 1, e

ordn(a) ≤ ϕ(n).

No entanto, se (a, n) > 1, a equacao ax ≡ 1 mod n nao tem solucoes, logoordn(a) nao pode ser definido para inteiros a tal que (a, n) > 1.

Definicao. Se (a, n) = 1 e ordn(a) = ϕ(n) dizemos que a e uma raiz primitivade n.

89

Por exemplo, 3 e uma raiz primitiva de 10. Como n2 ≡ 1 mod 8para qualquer n ımpar e ϕ(8) = 4, 8 nao tem raızes primitivas. Iremos,brevemente, mostrar que ha raızes primitivas de p se p for primo. Entre-tanto, provaremos um resultado que ajudara a limitar os valores possıveis deordn(a).

Teorema 5.19. Se b, c > 0, d = (b, c) e

ab ≡ ac ≡ 1 mod n

entaoad ≡ 1 mod n

Demonstracao: Pelo teorema 2.20, ha inteiros r e s tais que

d = br − cs.

Mais, para qualquer inteiro t,

d = b(r + ct)− c(s+ bt).

Portanto, se tomarmos t suficientemente grande, ambos os inteiros r + ct es+ bt serao positivos. Podemos, assim, assumir que r, s > 0. Mas entao

ad ≡ 1sad ≡ (ac)sad ≡ acs+d ≡ abr ≡ (ab)r ≡ 1r ≡ 1 mod n.

2

Uma aplicacao deste resultado permite-nos provar o seguinte teorema:

Teorema 5.20. Se (a, n) = 1 e se ab ≡ 1 mod n, para algum b > 0 entaoordn(a) | b. Em particular,

ordn(a) | ϕ(n).

Reciprocamente, se ordn(a) | b entao ab ≡ 1 mod n.

Demonstracao: Seja b > 0 tal que ab ≡ 1 mod n e d = (ordn(a), b).Entao d ≤ ordn(a). Mais, pelo resultado anterior, ad ≡ 1 mod n, dondeordn(a) ≤ d (por definicao de ordn(a)). Logo

ordn(a) = d.

90

Portanto, ordn(a) | b.Reciprocamente, se ordn(a) | b, entao b = k ordn(a), para algum inteiro

k. Portanto,

ab ≡(aordn(a)

)k≡ 1 mod n

2

Assim, para encontrar ordn(a) basta considerar os divisores de ϕ(n) efazer os calculos necessarios.

A partir deste momento, iremos somente considerar modulos primos.

Teorema 5.21. Se p e primo e d | (p− 1) entao a congruencia

xd ≡ 1 mod p

tem exactamente d solucoes distintas mod p.

Demonstracao: Pelo teorema de Fermat, a congruencia

xp−1 ≡ 1 mod p

tem exactamente p − 1 solucoes distintas mod p. Como d | (p − 1) seja ktal que p− 1 = kd. Entao

xp−1 − 1 = xkd − 1

= (xd − 1)(xd(k−1) + xd(k−2) + · · ·+ xd + 1

)Portanto, temos p− 1 solucoes distintas da congruencia

(xd − 1)(xd(k−1) + xd(k−2) + · · ·+ xd + 1

)≡ 0 mod p.

Como p e primo, qualquer solucao da congruencia anterior e solucao de pelomenos uma das duas congruencias

xd − 1 ≡ 0 mod p (5.9)

exd(k−1) + xd(k−2) + · · ·+ xd + 1 ≡ 0 mod p. (5.10)

91

Mas, pelo teorema 5.13, a congruencia (5.10) tem no maximo d(k−1) solucoesdistintas mod p. Como ha p− 1 numeros distintos mod p que satisfazempelo menos uma das congruencias (5.9) ou (5.10) e no maximo d(k − 1)satisfazendo (5.10), temos que ter pelo menos

p− 1− d(k − 1) = d

solucoes distintas de (5.9). Pelo teorema 5.13, a congruencia (5.9) tem nomaximo d solucoes. Portanto,

xd ≡ 1 mod p

tem exactamente d solucoes. 2

Teorema 5.22. Seja p um primo e d | (p − 1). Entao ha exactamenteϕ(d) inteiros distintos mod p cuja ordem mod p e d. Em particular, haexactamente ϕ(p− 1) raızes primitivas de p.

Demonstracao: Seja p um primo e seja d | (p − 1). Vamos provarpor inducao que ha exactamente ϕ(d) elementos cuja ordem mod p e d.Claramente, 1 e o unico elemento cuja ordem e 1. Seja n > 1 tal que n | (p−1)e suponhamos que para qualquer d < n tal que d | (p − 1), ha exactamenteϕ(d) elementos cuja ordem mod p e d. Consideremos a congruencia

xn ≡ 1 mod p.

Pelo teorema 5.21, esta congruencia tem exactamente n solucoes. Se d | ne ordp(a) = d entao a e solucao da congruencia. Mas, por inducao, haexactamente ϕ(d) elementos com ordem d, para d < n. Como

n =∑d|n

ϕ(d)

temos exactamente ϕ(n) elementos cuja ordem mod p e n. Portanto, oteorema e valido para qualquer n | (p− 1). 2

92

Exercıcios

1. Encontre uma raız primitiva de cada um dos inteiros 10, 18, 23, 41 e 49.

2. Determine ord101(3).

3. Prove que 2 e uma raız primitiva de 53.

4. Mostre que se g e uma raız primitiva de n, entao g, g2, . . . , gϕ(n), formamum sistema reduzido de resıduos.

5. Mostre que se n tem raızes primitivas, entao tem exactamente ϕ(ϕ(n))raızes primitivas.

6. Prove que 2 e uma raız primitiva de 101.

7. Determine k tal que 2k ≡ 27 mod 101

93

Capıtulo 6

Funcoes Aritmeticas

Uma funcao aritmetica e uma funcao complexa cujo domınio consiste dosinteiros positivos. Por exemplo a funcao de Euler, ϕ, introduzida no capıtuloanterior e uma funcao aritmetica. Neste capıtulo iremos estudar algumasfuncoes aritmeticas que sao fundamentais no estudo da teoria dos numeros.Em particular, estudaremos a funcao de Mobius, µ, a funcao divisores de n,d(n) e a funcao soma dos divisores de n, σ(n).

6.1 A funcao de Mobius, µ(n)

Nesta seccao vamos definir e estudar algumas das propriedades da funcao deMobius, µ(n). Comecamos por definir numero livre de quadrados.

Definicao. Seja n um inteiro. Dizemos que n e livre de quadrados se n naoe divisıvel pelo quadrado de qualquer inteiro maior que 1.

Definicao. A funcao de Mobius, µ e definida da seguinte maneira

µ(n) =

1 se n = 1(−1)k se n e o produto de k primos distintos0 se n for divisıvel pelo quadrado de um primo

Portanto, µ(n) = 0 se e so se n e livre de quadrados. Por exemplo,

µ(2) = −1 µ(4) = 0

µ(6) = 1 µ(12) = 0

µ(14) = 1 µ(15) = 1

µ(27) = 0 µ(30) = −1

94

Teorema 6.1. A funcao de Mobius e multiplicativa e∑d|n

µ(d) =

{1 se n = 10 se n > 1

Demonstracao: Sejam m e n dois inteiros primos entre si. Se m = 1 oun = 1 o resultado e claramente verdadeiro. Suponhamos entao que m > 1 en > 1. Se algum destes inteiros nao e livre de quadrados entao mn tambemnao e livre de quadrados e µ(mn) = µ(m)µ(n). Portanto, podemos suporque

m = p1p2 · · · pk, n = q1q2 · · · qronde os pi’s sao primos distintos, assim como os qj’s. Como m e n sao primosentre si, temos

pi = qj, para 1 ≤ i ≤ k e 1 ≤ j ≤ r.

Logo, mn tambem e livre de quadrados e

µ(mn) = (−1)k+r = (−1)k(−1)r = µ(m)µ(n).

Portanto, µ(n) e multiplicativa.Agora, se n = 1, entao ∑

d|n

µ(d) = µ(1) = 1.

Seja n > 1. Entao podemos escrever n como produto de potencias de primos,i. e.

n = pa11 pa22 · · · pakk .

Donde∑d|n

µ(d) = µ(1) +k∑

i=1

µ(pi) +k∑

i,j=1

i =j

µ(pipj) + · · ·+ µ(p1p2 · · · pk)

=k∑

i=0

(k

i

)(−1)i

= (1− 1)k

= 0

95

2

Teorema 6.2. Seja f(n) uma funcao aritmetica multiplicativa e

g(n) =∑d|n

f(d).

Entao g(n) e multiplicativa.

Demonstracao: Sejam m e n inteiros primos entre si. Entao

g(mn) =∑d|mn

f(d).

Mas, se (m,n) = 1 entao d | mn se e so se existem inteiros a e b tais que(a, b) = 1, a | m, b | n e d = ab (exercıcio para o leitor). Logo,

g(mn) =∑

a|m,b|n(a,b)=1

f(ab)

=∑

a|m,b|n(a,b)=1

f(a)f(b)

=∑a|m

f(a)∑b|n

f(b)

= g(m)g(n).

Portanto, g(n) e multiplicativa. 2

Teorema 6.3 (Formula de Inversao de Mobius). Se

f(n) =∑d|n

g(d).

entaog(n) =

∑d|n

f(d)µ(nd

)=∑d|n

f(nd

)µ(d)

96

Demonstracao: Seja h(n) uma funcao aritmetica. Claramente,∑d|n

h(d) =∑d|n

h(nd

),

portanto, a segunda igualdade esta demonstrada.Agora, ∑

d|n

f(nd

)µ(d) =

∑d|n

µ(d)∑d|n

d

g(c)

=∑c|n

g(c)∑d|n

c

µ(d)

= g(n)

Pois ∑d|n

c

µ(d) =

{1 se c = n0 se c = n

2

A formula de inversao de Mobius tem imensas aplicacoes, em particularpermite-nos obter uma nova formula para a funcao de Euler.

Teorema 6.4. Seja n um inteiro positivo. Entao

ϕ(n) = n∑d|n

µ(d)

d.

Demonstracao: Seja

f(n) =∑d|n

ϕ(d).

Pela formula de inversao de Mobius,

ϕ(n) =∑d|n

µ(d)f(nd

)=∑d|n

µ(d)n

d

= n∑d|n

µ(d)

d.

97

2

Exercıcios

1. Seja

f(n) =∑k|n

d(k)µ(nk

)a) Determine f(60);

b) Determine f(n) usando a formula de inversao de Mobius.

2. Seja

g(n) =∑d|n

σ(k)µ(nd

)a) Determine g(60);

b) Determine g(n) usando a formula de inversao de Mobius.

3. Mostre que ∑d|n

µ(d)

d=∏p|n

(1− 1

p

)

4. Considere a funcao de von Mangoldt, Λ(n), definida por

Λ(n) =

{log p se n = pk e uma potencia de um primo0 caso contrario

Mostre que

log n =∑d|n

Λ(d) e Λ(n) = −∑d|n

µ(d) log d

98

6.2 As funcoes d(n) e σ(n)

Nesta seccao vamos definir e estudar algumas das propriedades das funcoesaritmeticas d(n) e σ(n), que nos indicam o numero de divisores e a soma dosdivisores de n, respectivamente.

Definicao. A funcao divisores de n, d(n) e definida por

d(n) =∑d|n

1

Definicao. A funcao soma dos divisores de n, σ(n) e definida por

σ(n) =∑d|n

d

Teorema 6.5. As funcoes d(n) e σ(n) sao multiplicativas.

Demonstracao: Seja 1 a funcao aritmetica definida por 1(n) = 1 paraqualquer inteiro positivo n. Claramente, 1 e multiplicativa. Como

d(n) =∑d|n

1(d)

tambem d(n) e multiplicativa.Seja I a funcao aritmetica definida por I(n) = n para qualquer inteiro

positivo n. Claramente, I e multiplicativa. Como

σ(n) =∑d|n

I(d)

tambem σ(n) e multiplicativa. 2

O facto das funcoes d(n) e σ(n) serem multiplicativas, permite-nos obterformulas para as descrever que apenas dependem da decomposicao de n emprimos.

Teorema 6.6. Seja n > 1 um inteiro. Se n = pa11 pa22 · · · pakk entao

d(n) =k∏

i=1

(ai + 1)

99

e

σ(n) =k∏

i=1

(pai+1i − 1

pi − 1

)Demonstracao: Se n = pa para a ≥ 1 entao os divisores positivos de n

sao 1, p, . . . , pa. Portanto, d(n) = (a+ 1) e

σ(n) =a∑

j=0

pj =pa+1 − 1

p− 1.

Como d(n) e σ(n) sao multiplicativas, se n = pa11 pa22 · · · pakk entao

d(n) = d(pa11 )d(pa22 ) · · · d(pakk ) =k∏

i=1

(ai + 1)

e

σ(n) = σ(pa11 )σ(pa22 ) · · ·σ(pakk ) =k∏

i=1

(pai+1i − 1

pi − 1

)2

Exercıcios

1. Mostre que d(n) e ımpar se e so se n e um quadrado perfeito.

2. Mostre que para cada inteiro m > 1 existe um numero infinito deinteiros n tais que d(n) = m.

3. Mostre que ∏d|n

d = nd(n)2 .

4. Mostre que d(n) ≤ 2√n.

5. Mostre que, para qualquer n > 0, o conjunto {m : ϕ(m) = n} e finito.

100

6. Mostre queσ(n)

n<∏p|n

(1 +

2

p

)

7. Mostre que σ(n) < n(1 + log n) para n > 1. Sugestao: Prove que

σ(n)

n=∑d|n

1

d

6.3 Numeros perfeitos

Um numero perfeito e um inteiro positivo n tal que σ(n) = 2n. Nao sesabe quando e que os numeros perfeitos comecaram a ser estudados, masprovavelmente, os proprios egipcios ja os conheciam, atendendo ao metodoque utilizavam para fazer calculos. Pitagoras e os seus seguidores estudaramos numeros perfeitos, mais pelas suas propriedades mısticas do que pela suaimportancia para a teoria dos numeros. Os primeiros numeros perfeitos sao6, 28, 496 3 8128. O primeiro resultado matematico de que ha registo so-bre os numeros perfeitos, aparece nos Elementos de Euclides, cerca de 300anos antes de Cristo. Iremos iniciar esta seccao com a descricao deste beloresultado de Euclides.

Teorema 6.7. Se 2n+1 − 1 e primo entao 2n (2n+1 − 1) e perfeito.

Demonstracao: Como 2n+1 − 1 e primo e 2n < 2n+1 − 1, temos

(2n, 2n+1 − 1) = 1.

Atendendo a que σ e multiplicativa, obtemos

σ(2n(2n+1 − 1

))= σ(2n)σ

(2n+1 − 1

).

Pelo teorema 6.6, σ(2n) = 2n+1 − 1 e σ (2n+1 − 1) = 2n+1. Portanto,

σ(2n(2n+1 − 1

))= 2

(2n(2n+1 − 1

))e 2n (2n+1 − 1) e um numero perfeito. 2

101

Portanto, a cada primo de Mersenne corresponde um numero perfeito.Como ate agora foram descobertos 44 primos de Mersenne, temos tambem44 numeros perfeitos conhecidos. 2000 anos apos o primeiro resultado sobrenumeros perfeitos e durante os quais foram encontrados mais 3 numeros per-feitos, Euler mostrou que qualquer perfeito par tem de ser da forma descritapor Euclides:

Teorema 6.8. Qualquer numero perfeito par e da forma 2n (2n+1 − 1), onde2n+1 − 1 e primo.

Demonstracao: Seja n um numero perfeito par. Entao n = 2kb ondek ≥ 1 e b e ımpar. Como σ e multiplicativa,

σ(n) = σ(2kb) = σ(2k)σ(b) = (2k+1 − 1)σ(b).

Por outro lado, σ(n) = 2k+1b, pois n e perfeito. Donde

2k+1 − 1 | 2k+1b

mas (2k+1, 2k+1 − 1) = 1, entao 2k+1 − 1 | b (teorema 2.14). Analogamente,2k+1 | σ(b). Portanto, existe um inteiro c tal que

b = (2k+1 − 1)c e σ(b) = 2k+1c.

Se c > 1 entao b tem pelo menos tres divisores, b, c e 1, donde

σ(b) ≥ b+ c+ 1 = 2k+1c+ 1 > 2k+1c = σ(b),

contradicao. Portanto, c = 1, n = 2k(2k+1 − 1) e σ(2k+1 − 1) = 2k+1. Donde2k+1 − 1 e primo. 2

Assim basta-nos descobrir primos de Mersenne, para obtermos numerosperfeitos pares. O proximo resultado diz-nos de que forma sao os divisoresdos numeros de Mersenne.

Teorema 6.9. Seja p um primo ımpar, entao qualquer divisor de Mp = 2p−1e da forma 2kp+ 1, onde k e um inteiro positivo.

Exemplo. Seja p = 13. Para decidir se 213 − 1 = 8191 e primo so neces-sitamos de experimentar primos ate

√8191 = 90.504 . . . da forma 26k + 1.

Os unicos primos que verificam estas condicoes sao 53 e 79 e nenhum delesdivide 8191. Portanto, M13 e primo.

102

Exemplo. Para decidir se 223 − 1 = 8388607 e primo so necessitamos deexperimentar primos ate

√8388607 = 2896.309 . . . da forma 46k + 1. O

primeiro primo desta forma e 47 e 47 | 8388607. Portanto, M23 e composto.

Ate agora ainda nao foram encontrados quaisquer perfeitos ımpares epensa-se que nao existam.

Exercıcios

1. Mostre que 28 e o unico numero perfeito par da forma

a) an + 1, com n ≥ 2;

b) an + bn com n ≥ 2 e (a, b) = 1.

2. Mostre que se n e um perfeito ımpar entao n nao e primo nem produtode dois primos.

3. Mostre que se n e um perfeito ımpar entao n = pek2, onde p e primo,p - k e

p ≡ e ≡ 1 mod 4.

4. Mostre que se n e um perfeito ımpar entao 105 - n.

5. ** Mostre que se n e um perfeito ımpar entao tem pelo menos quatrodivisores primos.

6. Um par de inteiros (m,n) diz-se amigavel se cada coordenada e somados divisores proprios da outra coordenada.

a) Mostre que o par (m,n) e amigavel se e so se σ(m) = σ(n) = m+n;

b) Verifique que os pares (220, 284), (5020, 5564) e (17296, 18416) saoamigaveis.

7. Seja n > 1. Se a = 3× 2n − 1, b = 3× 2n−1 − 1 e c = 9× 22n−1 − 1 saoprimos, entao o par (2nab, 2nc) e amigavel.

103

Capıtulo 7

Equacoes Diofantinas

7.1 Introducao

O grego Diofanto foi o primeiro a considerar uma serie de problemas quetinham como ponto comum o facto de haver mais incognitas que equacoes.Actualmente, quando falamos de resolver uma equacao diofantina, desejamosencontrar todas as solucoes inteiras, no entanto, Diofanto ficava satisfeito porencontrar so uma solucao e permitia que essa solucao fosse racional. Mesmoassim, devido ao seu trabalho nesta area, Diofanto merece que se nomeie esteassunto em sua honra.

Durante os cerca de 15 seculos que mediaram entre Diofanto e Fermat,nao foram feitos grandes avanos nesta area da teoria dos numeros. ComFermat comeca a moderna teoria de analise diofantina (assim como muita damoderna teoria dos numeros).

Como ja mencionamos, o ultimo teorema de Fermat que afirma que aequacao

xn + yn = zn

nao tem solucoes inteiras positivas. Se n = ab e a equacao

xa + ya = za

nao tiver solucoes, entao tambem a equacao

xn + yn = zn

nao tem solucoes. Portanto, para provar este teorema de Fermat, basta-nosverificar que ele e valido para n = 4 e para n = p, onde p e um primo ımpar.

104

Fermat deixou-nos uma demonstracao de que o teorema e valido para n = 4.Um seculo depois, Euler provou o teorema para n = 3. Depois de ter sidoprovado para um grande numero de outros valores primos de n, o teoremafoi finalmente provado por Andrew Wiles.

Um problema semelhante foi considerado por Euler. Tendo por base oque era conhecido na altura, Euler conjecturou, em 1778, que para n ≥ 3nenhuma n-esima potencia perfeita podia ser escrita como soma de menosque n n-esimas potencias de inteiros positivos, i. e. a equacao

xn1 + xn

2 + · · ·+ xnk = yn

nao tem solucoes em inteiros positivos, se k < n. O ultimo teorema deFermat, seria uma corolario desta conjectura, se ela fosse verdadeira. In-felizmente, L. J. Lander e T. R. Parkin decobriram em 1966, usando umcomputador, o seguinte contra-exemplo:

275 + 845 + 1105 + 1335 = 1445.

Como Fermat iniciou o moderno estudo das equacoes diofantinas, nao e desurpreender que alguns dos seus contemporaneos nao se aperceberam do queestava envolvido quando se pretende resolver estas equacoes. O matematicoJohn Wallis (1616-1703) e disso um exemplo. Quando Fermat desafiou Wallisa resolver a equacao de Pell

x2 − 4y2 = 1,

Wallis respondeu com a solucao trivial (1, 0). Em resposta ao desafio deFermat para resolver a equacao

x3 + y3 = z3 + w3

Frenicle (1605-1675) indicou as solucoes

93 + 103 = 13 + 123, 93 + 153 = 23 + 63.

Em seguida, Wallis indicou duas solucoes, que sao obtidas a partir das ante-riores pela multiplicacao de um rational

273 + 303 = 33 + 363,

(41

2

)3

+

(71

2

)3

= 13 + 83.

105

Frenicle notou que Wallis so tinha feito alteracoes triviais a solucoes conheci-das, no entanto, Frenicle tambem nao tinha respondido de forma adequadaao desafio de Fermat. O que Fermat realmente desejava era a solucao geralda sua equacao e nao contas isoladas.

Noutra ocasicao, Fermat anunciou que a equacao x2 + 2 = y3 so tinhaa solucao (5, 3) em inteiros positivos e que a equacao x2 + 4 = y3 so tem asolucao (11, 5) em inteiros positivos. Wallis respondeu que teoremas nega-tivos como aqueles nao tinham qualquer interesse e que qualquer um podiafacilmente apresentar outros resultados semelhantes. Para exemplificar, Wal-lis indicou quatro equacoes, sendo uma delas x4 +9 = y2. A grande diferenaentre as equacoes indicadas por Fermat e as indicadas por Wallis, e que asde Wallis resolvem-se facilmente. Por exemplo, a equacao de Wallis, podeser escrita da forma

y2 − x4 = 9 ou seja (y − x2)(y + x2) = 9

Uma simples analise de todos os casos mostra que a unica solucao em inteirospositivos e (5, 2). Seria interessante saber que metodos Fermat usou paraprovar as suas afirmacoes sobre as equacoes acima indicadas. Actualmente,estas equacoes podem ser resolvidas usando ideias que so foram desenvolvidasdois seculos depois.

Neste capıtulo iremos apresentar tres dos metodos elementares desenvolvi-dos para resolver equacoes diofantinas. Note-se que quando dizemos resolveruma equacao diofantina queremos encontrar todas as solucoes em inteiros.

7.2 Congruencias

Em diversas ocasioes , o uso das congruencias permite-nos mostrar que certasequacoes diofantinas nao teem solucao. Nesta seccao, iremos estudar algunsexemplos onde o uso de congruencias nos ajuda a obter todas as solucoes decertas equacoes diofantinas.

Comecamos com um teorema sobre a soma de quadrados.

Teorema 7.1. Se p e um primo, tal que p ≡ 3 mod 4, e a e b sao inteirostais que

a2 + b2 ≡ 0 mod p

entaoa ≡ b ≡ 0 mod 4.

106

Demonstracao: Primeiro mostramos que b ≡ 0 mod p. Suponhamosque b ≡ 0 mod p. Entao (b, p) = 1. Logo, existe um inteiro c tal que bc ≡ 1mod p. Donde,

(ac)2 ≡ a2c2 ≡ −b2c2 ≡ −(bc)2 ≡ −1 mod p.

Mas isto e impossıvel, pelo teorema 5.5. Portanto, b ≡ 0 mod p e

a2 ≡ −b2 ≡ 0 mod p.

2

Teorema 7.2. Seja f(x1, x2, . . . , xk) = 0 uma equacao diofantina. Se acongruencia

f(x1, x2, . . . , xk) ≡ 0 mod n

nao tem solucoes, para algum inteiro n, entao a equacao diofantina tambemnao tem solucoes.

Demonstracao: Suponhamos que a equacao diofantina e soluvel. Seja(a1, a2, . . . , ak) uma solucao. Entao f(a1, a2, . . . , ak) = 0. Portanto, paraqualquer inteiro n,

f(a1, a2, . . . , ak) ≡ 0 mod n,

ou seja, (a1, a2, . . . , ak) e uma solucao da congruencia f(x1, x2, . . . , xk) ≡ 0mod n. 2

Exemplo. Se 4 | d ou d e divisıvel por um primo p ≡ 3 mod 4 a equacaode Pell, x2 − dy2 = −1, nao tem solucoes em inteiros. Basta considerarcongruencias mod p.

Exemplo. Se (a

p

)= −1

entao a equacao diofantina x2 − pyk = a nao tem solucoes, para qualquerk ≥ 1.

107

Muitas equacoes diofantinas podem ser resolvidas usando o teorema 2.18.Iremos ilustrar esta aplicacao do teorema 2.18, resolvendo o problema dosternos pitagoricos, i. e. ternos de inteiros (a, b, c) tais que a2 + b2 = c2. Apartir de um terno pitagorico, e. g. (3, 4, 5) podemos sempre criar muitosoutros que se obtem a partir do primeiro por multiplicacao de uma con-stante, e. g. (6, 8, 10), (9, 12, 15), etc (ou seja, os triangulos correspondentessao semelhantes). Note-se tambem que se (a, b, c) e um terno pitagorico,(b, a, c) tambem o e. Portanto, iremos apenas determinar ternos pitagoricosprimitivos, i. e. ternos (a, b, c), tais que (a, b, c) = 1, com a, b, c > 0, a ımpare b par (em baixo, iremos provar que se (a, b, c) = 1 entao um dos inteiros ae b e ımpar e o outro e par).

Teorema 7.3. A equacaox2 + y2 = z2

tem infinitas solucoes, com (x, y, z) = 1, y par e x, y, z > 0. Estas solucoessao da forma

x = u2 − v2, y = 2uv, z = u2 + v2

para quaisquer inteiros u > v > 0, tais que (u, v) = 1 e u + v ≡ 1 mod 2(i.e um deles e par e o outro e ımpar).

Demonstracao: Primeiro iremos mostrar que se (x, y, z) = 1 entao umdos inteiros x ou y e par e o outro e ımpar. Se ambos forem pares, entao2 | (x2 + y2), i. e. 2 | z, donde (x, y, z) ≥ 2. Contradicao. Se ambos foremımpares, entao

z2 = x2 + y2 ≡ 1 + 1 ≡ 2 mod 4

que tambem e impossıvel. Portanto, um dos inteiros x e y e par e o outroe ımpar. Vamos assumir que x e ımpar e que y e par. Entao z2 ≡ 1 + 0mod 4, logo z e ımpar. Donde z + x e z − x sao ambos pares. Note-se que

(z + x)(z − x) = y2,

como ambos os membros sao multiplos de 4, podemos escrever(z + x

2

)(z − x

2

)=(yx

)2.

onde

(z + x

2

),

(z − x

2

)e(yx

)sao todos inteiros. Com o objectivo de usar

o teorema 2.18, iremos agora mostrar que(z + x

2,z − x

2

)= 1.

108

Se existir um primo p tal que p | x e p | z, entao p | (z2 − x2), logo p | y e(x, y, z) ≥ p, uma contradicao. Portanto, (x, z) = 1. Seja

d =

(z + x

2,z − x

2

).

Entao

d |(z + x

2+

z − x

2

)= z

e

d |(z + x

2− z − x

2

)= x.

Portanto, d = 1. Como x2 < x2 + y2 = z2, temos x < z, donde

z + x

2,z − x

2> 0.

Assim, pelo teorema 2.18, existem inteiros positivos u e v, tais que

z + x

2= u2 z − x

2= v2.

Portanto,

x =z + x

2− z − x

2= u2 − v2

z =z + x

2+

z − x

2= u2 + v2

e

y = 2

(z + x

2

) 12(z − x

2

) 12

= 2uv.

Como x > 0, temos u > v. Se d | u e d | v, entao d2 | x, d2 | y e d2 | z. Logo(u, v) = 1. Se u e v forem ambos pares ou ambos ımpares, entao x seria par.Logo um deles e par e o outro e ımpar.

Falta ainda mostrar que, para quaisquer inteiros positivos u, v tais que(u, v) = 1, u > v e u + v ≡ 1 mod 2, os numeros x = u2 − v2, y = 2uv ez = u2 + v2, formam um terno pitagorico primitivo. Claramente, x, y, z > 0,y e par e x e ımpar. Mais,

x2 + y2 = (u2 − v2)2 + (2uv)2 = (u2 + v2)2.

109

Falta apenas mostrar que (u2 − v2, 2uv, u2 + v2) = 1. Suponhamos que

(u2 − v2, 2uv, u2 + v2) = d > 1,

e seja p um primo tal que p | d. Entao

p | (u2 + v2 + 2uv) i. e. p | (u+ v)2

ep | (u2 + v2 − 2uv) i. e. p | (u− v)2.

Portanto, p | (u+ v) e p | (u− v). Donde p | 2u e p | 2v. Logo

p | (2u, 2v) = 2(u, v) = 2,

i. e. p = 2. Mas u2 − v2 e ımpar, donde obtemos uma contradicao. Logod = 1 e (x, y, z) = 1 2

7.3 Metodo descendente de Fermat

Um outro processo que e usualmente usado para resolver equacoes diofantinase o metodo descendente de Fermat e que foi originalmente empregado porFermat para mostrar que a equacao

x4 + y4 = z4

nao e soluvel em inteiros positivos. A ideia e supor que a equacao tem umasolucao e a partir dessa obter uma outra que e ”menor”e assim sucessiva-mente. Este processo da origem a uma sequencia infinita de solucoes o queleva a uma contradicao. Nesta seccao iremos ilustrar este metodo, provandoque a equacao

x4 + y4 = z2

nao tem solucoes nao triviais. Como consequencia resulta que a equacaox4 + y4 = z4 tambem nao tem solucoes nao triviais.

Teorema 7.4. A equacaox4 + y4 = z2 (7.1)

nao tem solucoes em inteiros, tais que xyz = 0.

110

Demonstracao: Se (a, b, c) e uma solucao de equacao diofantina (7.1),entao tambem (|a|, |b|, |c|) e uma solucao. Portanto, basta mostrar que (7.1)nao tem solucoes em inteiros positivos. Suponhamos que a, b, c > 0 e que(a, b, c) e uma solucao de equacao (7.1). Seja d = (a, b). Entao a = da1 eb = db1, para alguns inteiros a1 e b1. Donde,

d4(a41 + b41) = c2

ou seja,( c

d2

)2e um inteiro. Como

( c

d2

)e um racional, pelo teorema 2.19,

temos que( c

d2

)e um inteiro. Seja

c1 =( c

d2

).

Entaoa41 + b41 = c21

e (a1, b1) = 1. Portanto, se (7.1) tiver alguma solucao em inteiros positivos,tem de certeza uma solucao (a, b, c), tal que (a, b) = 1. Suponhamos quea1, b1, c1 > 0, (a1, b1) = 1 e que (a1, b1, c1) e uma solucao de equacao (7.1).Vamos agora mostrar que existe outra solucao (a2, b2, c2), em inteiros posi-tivos tais que (a2, b2) = 1 e c2 < c1. Esta e a chave do metodo descendente.Note-se que

(a21)2 + (b21)

2 = c21

e se um primo p verifica p | a21 e p | b21 entao p | (a1, b1), contradicao.Logo (a1, b1) = 1, donde um dos triplos (a21, b

21, c1) ou (b21, a

21, c1) e um terno

pitagorico primitivo (dependendo apenas da primeira coordenada ser ımparou nao). Sem perda de generalidade, suponhamos que a1 e ımpar, ou seja,(a21, b

21, c1) e um terno pitagorico primitivo. Pelo teorema 7.3, existem inteiros

positivos u e v tais que

a21 = u2 − v2, b21 = 2uv, c21 = u2 + v2,

onde (u, v) = 1 e u+ v ≡ 1 mod 2. Mas,

a21 + v2 = u2

e como (u, v) = 1, temos (a1, v, u) = 1. Donde, (a1, v) = 1 e (a1, v, u) tambeme um terno pitagorico primitivo. Como a1 e ımpar, v e par e, portanto, u eımpar. Mais uma vez, existem inteiros positivos m e n tais que

u = m2 + n2, v = 2mn, (m,n) = 1. (7.2)

111

Seja d = (u, 2v). Como u e ımpar, d e ımpar, entao d | v, donde resulta qued = 1, pois (u, v) = 1. Portanto, (u, 2v) = 1. Mas

u(2v) = b21

logo, pelo teorema 2.18, existem inteiros positivos c2 e r tais que u = c22 e2v = r2. Assim, r tem de ser par, e existe um inteiro positivo s tal que r = 2se v = 2s2. Entao,

mn =v

2= s2.

Mais uma vez, pelo teorema 2.18, existem inteiros positivos a2 e b2 tais quem = a22 e n = b22 (pois (m,n) = 1). O facto de m e n serem primos entresi tambem implica que (a2, b2) = 1. Substituindo m,n e u por a22, b

22 e c22,

respectivamente, na equacao (7.2), obtemos

a42 + b42 = c22.

Portanto, (a2, b2, c2) e outra solucao em inteiros positivos de (7.1), com(a2, b2) = 1. Finalmente, temos

0 < c2 ≤ c42 = u2 < u2 + v2 = c1.

Acabamos de mostrar que se (a1, b1, c1) e uma solucao em inteiros positivosde (7.1), com (a1, b1) = 1, entao existe uma outra solucao em inteiros pos-itivos (a2, b2, c2), com (a2, c2) = 1 e 0 < c2 < c1. Repetindo este processo,sucessivamente encontraremos uma sequencia infinita de solucoes em inteirospositivos (ai, bi, ci), com (ai, bi) = 1 e c1 > c2 > c3 > . . . . Obviamente,isto e impossıvel, pois ha somente c1 − 1 inteiros entre c1 e 0. Portanto,termos assumido que a equacao (7.1) tinha solucoes nao triviais levou a umacontradicao. Logo a equacao

x4 + y4 = z2

nao tem solucoes em inteiros, tais que xyz = 0. 2

Resulta deste teorema que a equacao x4 + y4 = z4, tambem nao temsolucoes nao triviais.

O metodo descendente da-nos uma sequencia de solucoes ”decrescentes”,em seguida vamos estudar uma famılia de equacoes diofantinas para as quaise possıvel encontrar uma sequencia de solucoes ”ascendentes”obtendo, nestecaso, um numero infinito de solucoes.

112

Teorema 7.5. Suponhamos que d e um inteiro positivo. Se a equacao dePell

x2 − dy2 = 1, x, y > 0 (7.3)

tiver uma solucao entao tem uma infinidade de solucoes. Se a equacao dePell

x2 − dy2 = −1, x, y > 0 (7.4)

tiver uma solucao entao ambas as equacoes (7.3) e (7.4), tem uma infinidadede solucoes.

Demonstracao: Suponhamos que existem inteiros positivos a e b taisque

a2 − db2 = c

onde c ∈ {−1, 1}. Vamos mostrar por inducao que a equacao

x2 − dy2 = cn

e soluvel para qualquer n ≥ 1. Se n = 1 sabemos que (x1, y1) = (a, b) esolucao da equacao. Suponhamos, agora, que existem inteiros positivos xn eyn tais que (xn, yn) e solucao da equacao x2 − dy2 = cn. Sejam

xn+1 = axn + bdyn, yn+1 = ayn + bxn

Note-se que xn+1 > xn+d ·0 ·yn = xn e yn+1 > yn+0xn = yn. Em particular,tambem xn+1 e yn+1 sao inteiros positivos. Mais,

x2n+1 − dy2n+1 = (a2 + 2abdxnyn + b2d2y2n)− d(a2y2n + 2abxnyn + b2x2

n)

= a2x2n − b2dx2

n + b2d2y2n − a2dy2n= (a2 − db2)(x2

n − dy2n)

= ccn

= cn+1

Portanto, mostramos por inducao, que se x2−dy2 = c e soluvel entao tambemx2− dy2 = cn e soluvel e as sequencias xn e yn sao crescentes, havendo assimuma infinidade de pares (xn, yn).

Se c = 1, acabamos de mostrar que se (7.3) tem uma solucao entao (7.3)tem uma infinidade de solucoes em inteiros positivos. Se c = −1, mostramosque se (7.4) tem uma solucao entao ambas as equacoes (7.3) e (7.4) tem umainfinidade de solucoes. 2

113

7.4 Soma de dois quadrados

Nesta seccao vamos determinar que inteiros sao somas de dois quadrados.

Definicao. Dizemos que n = a2 + b2 e uma representacao primitiva de n se(a, b) = 1.

Teorema 7.6. Se p ≡ 3 mod 4 e p | n, entao n nao tem representacoesprimitivas.

Demonstracao: Suponhamos que n tem uma representacao primitivan = a2 + b2. Como (a, b) = 1, temos p - a e p - b. Pelo teorema 3.9, acongruencia ax ≡ b mod p e soluvel. Seja c uma solucao. Entao

a2(1 + c2) ≡ a2 + b2 ≡ 0 mod p.

Donde, p | (1 + c2), i. e. c2 ≡ −1 mod p, o que contradiz o teorema 5.5. 2

Mais geralmente:

Teorema 7.7. Se p ≡ 3 mod 4, pc | n, pc+1 - n e c e ımpar, entao n nao erepresentavel como soma de dois quadrados.

Demonstracao: Suponhamos que n = a2 + b2 e seja d = (a, b). Seja pγ

a maior potencia de p que divide d. Entao existem inteiros a1, a2 e n1 taisque

a = da1, b = db1, (a1, b1) = 1

en = d2(a21 + b21) = d2n1.

A maior potencia de p que divide n1 e c− 2γ, que e positiva, pois c e ımpar.Portanto,

n1 = a21 + b21, (a1, b1) = 1, p | n1,

o que contradiz o teorema anterior. Portanto, n nao e representavel comosoma de quadrados. 2

114

Teorema 7.8 (da Aproximacao de Dirichlet). Para qualquer numero real θe qualquer inteiro positivo n, existem inteiros a e b, com 1 ≤ a ≤ n tais que

|aθ − b| ≤ 1

n+ 1.

Demonstracao: No que se segue iremos representar a parte fraccionariade um numero real x por {x}.

Suponhamos que n = 1. Se {θ} ≤ 12, basta tomar a = 1 e b = [θ], se

{θ} > 12, basta tomar a = 1 e b = [θ] + 1. Suponhamos agora que n > 1 e

consideremos os n+ 2 numeros reais, 0, 1 e

ra = {aθ} = aθ − [aθ],

onde 1 ≤ a ≤ n. Note que se ri ≥ rj e i > j entao ri − rj = ri−j. Analoga-mente, se ri ≥ rj e j > i entao 1− (ri − rj) = rj−i. Consideremos tambem aseguinte particao do intervalo [0, 1],

Ij = [j

n+ 1,j + 1

n+ 1), com 0 ≤ j ≤ n.

Como temos n + 2 numeros reais em [0, 1] e a particao de [0, 1] tem n + 1subintervalos, entao um desses intervalos, digamos Ij, tem pelo menos doisdos numeros reais considerados. Se j = 0 entao existe um inteiro 1 ≤ a ≤ ntal que

ra ≤1

n+ 1, i.e. aθ − [aθ]

1

n+ 1.

Se j = n entao existe um inteiro 1 ≤ a ≤ n tal que

1− ra ≤1

n+ 1, i.e. |aθ − [aθ]− 1| 1

n+ 1.

Se 0 < j < n entao existem dois inteiros 1 ≤ i, j ≤ n tais que

ri − rj ≤1

n+ 1.

Se i > j temos ri − rj = ri−j e

(i− j)θ − [(i− j)θ] ≤ 1

n+ 1.

115

Se j > i temos 1− (ri − rj) = rj−i e

|(j − i)θ − [(j − i)θ]− 1| ≤ 1

n+ 1.

2

Teorema 7.9. Um inteiro positivo n e representavel como soma de doisquadrados se n = n1s

2 onde n1 nao e divisıvel por primos da forma 4m+ 3.

Demonstracao: Note-se que s2 = s2 + 02, portanto qualquer quadradoperfeito pode ser escrito como soma de dois quadrados.

Suponhamos que m e n sao representaveis como soma de dois quadrados,i. e. existem inteiros a, b, c e d tais que m = a2 + b2 e n = c2 + d2. Entao,

(a2 + b2)(c2 + d2) = (ac+ bd)2 + (ad− bc)2

(repare na semelhanca com a multiplicacao de numeros complexos). Logo,o produto de dois numeros representaveis como soma de dois quadrados, etambem representavel como soma de dois quadrados. Mais 2 = 12 + 12.Portanto, basta-nos provar que qualquer primo p, tal que p ≡ 1 mod 4,pode ser escrito como soma de dois quadrados. Ja vimos que, para primoscongruentes com 1 mod 4, −1 e um resıduo quadratico de p. Seja p umdestes primos e l uma solucao de x2 ≡ −1 mod p. Tomando n = [

√p] no

teorema anterior, vemos que existem inteiros a e b tais que 0 < a <√p e∣∣∣∣− l

p− b

a

∣∣∣∣ < 1

a√p.

Seja c = la + pb, entao |c| < √p e 0 < a2 + c2 < 2p. Mas c ≡ la mod p,

dondea2 + c2 ≡ a2 + l2a2 ≡ a2(1 + l2) ≡ 0 mod p.

Portanto, a2 + c2 = p 2

116

Exercıcios

1. Encontre todas as solucoes em inteiros positivos de x2 + 12 = y4.

2. Encontre todas as solucoes em inteiros positivos de x3 + y3 = 20.

3. Encontre todas as solucoes em inteiros positivos de x3 − y3 = 19.

4. Encontre todas as solucoes de x2 − dy2 = 1, quando d e um quadradoperfeito.

5. Seja n um inteiro. Resolva a equacao x2 − y2 = n.

6. Descubra todos os inteiros positivos que nao sao soma de, no maximo,tres quadrados perfeitos.

7. Determine 10 ternos pitagoricos primitivos.

8. Mostre que para cada inteiro n ≥ 3 existe um terno pitagorico em queuma das coordenadas e n.

9. Determine todos os angulos θ tais que sin θ e cos θ sao numeros racionais.

10. Mostre que a equacao diofantina x2 + y4 = z2 tem uma infinidade desolucoes tais que (x, y) = 1.

11. Suponha que (x0, y0) e uma solucao em inteiros positivos de

x2 − 3y2 = 6.

Mostre que x1 = 2x0+3y0, y1 = x0+2y0 tambem e solucao da equacaoe que x1 > x0, y1 > y0. Encontre uma solucao da equacao experimen-talmente e mostre que x2 − 3y2 = 6 tem uma infinidade de solucoes.Encontre quatro solucoes.

12. Seja n um inteiro nao nulo e suponha que (x0, y0) e uma solucao eminteiros nao negativos de

x2 − 3y2 = n.

Mostre que x1 = 2x0+3y0, y1 = x0+2y0 tambem e solucao da equacao.Conclua que a equacao x2 − 3y2 = n ou nao tem solucoes inteiras outem uma infinidade de solucoes em inteiros.

117

13. Seja n um inteiro nao nulo e d um inteiro positivo que nao e quadradoperfeito. Suponha que (x0, y0) e uma solucao em inteiros nao negativosde

x2 − dy2 = n.

Sejam x1 = ax0 + bdy0, y1 = bx0 + ay0, onde (a, b) e uma solucao eminteiros positivos da equacao de Pell x2 − dy2 = 1. Mostre que (x1, y1)tambem e solucao da equacao x2 − dy2 = n. Conclua que a equacaox2 − dy2 = n ou nao tem solucoes inteiras ou tem uma infinidade desolucoes em inteiros.

14. Mostre que x = y = z = 0 e a unica solucao de

3x5 + 5y5 = z5

15. Resolva a equacao diofantina (x2 + y2 − 2)4 + 16 = z2.

16. Suponha que (a, b) = 1. Mostre que se a nao e soma de dois quadradosperfeitos entao ab nao e soma de dois quadrados perfeitos.

17. Mostre que a equacao 5x2 + 14xy + 10y2 = n e soluvel em inteiros se eso se n e soma de dois quadrados perfeitos.

18. Mostre que a equacao

(x2 + 1)4 + (y2 + 2)4 = (z + 4)2

nao tem solucoes inteiras.

19. Resolva as equacoes diofantinas seguintes

a) x2 + y2 = 51;

b) x2 + y2 + z2 = 18;

c) x2 + 2xy + 2y2 = 17;

d) 4x2 + 12xy + 10y2 = 26.

20. Escreva 2005, 1985, 1989 e 1972 como soma de dois quadrados.

21. Use o metodo descrito na teorica para escrever os seguintes numerosprimos como soma de dois quadrados.

118

a) 1997, sabendo que 998! ≡ 412 mod 1997;

b) 1993, sabendo que 996! ≡ 1159 mod 1993;

c) 1973, sabendo que 986! ≡ 259 mod 1973.

119

Capıtulo 8

Fraccoes Continuadas

8.1 Introducao

O objectivo deste capıtulo e encontrar ”boas”aproximacoes racionais de umdado numero real. Todos sabemos representar numeros reais usando a ex-pansao decimal. Por exemplo, o numero π e representado pela sequencia deinteiros (3, 1, 4, 1, 5, 9, 2, . . . ). Esta representacao tem alguns problemas, umdeles e a sua dependencia no numero 10, que apenas depende de uma aci-dente biologico, e nao de uma propriedade matematica. Um outro problema,e que alguns numeros simples (como 1/3) tem uma representacao infinita.

As fraccoes continuadas (ou fraccoes contınuas) vao permitir-nos repre-sentar numeros reais sem qualquer dos problemas acima descritos. Por ex-emplo, vejamos como representamos o numero 415

93, que e aproximadamente

4.4624, usando fraccoes continuadas. Este numero e aproximadamente 4,mais exactamente, e cerca de 4 + 1

2. Mas o 2 no denominador, nao esta

correcto, seria mais algo como 2 + 16. Portanto,

415

93≈ 4 +

1

2 + 16

.

Mas, o 6 no denominador nao esta totalmente correcto, seria mais correctoescrever 6 + 1

7. Portanto,

415

93= 4 +

1

2 + 16+ 1

7

e esta representacao e exacta! Se eliminar-mos as partes obvias da expressao

120

anterior, obtemos a notacao abreviada

415

93= [4; 2, 6, 7].

A representacao de um numero real em fraccoes continuadas tem asseguintes propriedades desejaveis:

• A representacao de um numero e finita se e so se o numero e racional.

• A representacao de um numero racional ”simples”e curta.

• A representacao de um numero irracional e unica.

• A representacao de um numero racional e quase unica: Ha exactamenteduas representacoes para cada numero racional, cuja unica diferenca euma terminar em [...a, 1] e a outra em [..., a+ 1].

• Se truncarmos a representacao de um numero x, obtemos aproximacoesracionais que sao ”as melhores possıveis”(mais tarde, daremos umaexplicacao formal desta nocao).

Esta ultima propriedade e extremamente importante e nao e verificada pelarepresentacao decimal. Por exemplo, truncando a representacao decimal de1/7 = 0.142857 . . . , em varios lugares, da-nos os racionais 142/1000, 14/100ou 1/10, mas claramente a melhor aproximacao em racionais de 1/7 e 1/7.Truncando a representacao decimal de π da-nos 31415/10000 e 314/100. Arepresentacao em fraccoes continuadas de π, comeca com [3; 7, 15, 1, 292, . . . ].Truncando esta representacao, obtemos as excelentes aproximacoes 3, 22/7,333/106 e 355/113. Note-se que os denominadores de 314/100 e de 333/106sao muito proximos, no entanto, o erro da aproximacao 314/100 e dezanovevezes maior que o erro da aproximacao 333/106.

8.2 Fraccoes Continuadas finitas

Sejam a0, a1, . . . , aN numeros reais. Chamamos fraccao continuada finita(tambem conhecida por fraccao contınua finita), a expressao

[a0; a1, a2, . . . , aN ] = a0 +1

a1 +1

a2+1

... 1

aN−1+1

aN

.

121

Tambem se usa a notacao

[a0; a1, a2, . . . , aN ] = a0 +1

a1+

1

a2+· · · 1

aN.

Claramente, temos

[a0; a1, . . . , an−1, an] = [a0; a1, . . . , an−2, an−1 +1

an],

[a0; a1, . . . , an−2, an−1, an] = [a0; a1, . . . , an−2, an−1 +1

an],

[a0; a1, . . . , an] = a0 +1

[a1; a2, . . . , an]= [a0; [a1; a2, . . . , an]]

para 1 ≤ n ≤ N , ou mais geralmente

[a0; a1, . . . , an] = [a0; a1, . . . , am−1, [am; am+1, . . . , an]],

para 1 ≤ m < n ≤ N .

Definicao. Seja [a0; a1, . . . , aN ] uma fraccao continuada finita e n ≤ N . A[a0; a1, . . . , an], chamamos convergente de ordem n de [a0; a1, . . . , aN ].

O proximo resultado da-nos um algoritmo para determinar os conver-gentes de determinada fraccao continuada.

Teorema 8.1. Seja [a0; a1, . . . , aN ] uma fraccao continuada finita e defi-namos pn, qn recursivamente, por

p−1 = 1 p0 = a0 pn = anpn−1 + pn−2, 1 ≤ n ≤ N

q−1 = 0 q0 = 1 qn = anqn−1 + qn−2, 1 ≤ n ≤ N

Entao, para 0 ≤ n ≤ N ,

[a0; a1, . . . , an] =pnqn

.

Demonstracao: Se n = 0, obtemos

a0 =a01

=p0q0.

122

Se n = 1, obtemos

[a0; a1] = a0 +1

a1=

a0a1 + 1

a1=

p1q1.

Suponhamos agora que o resultado e verdadeiro para qualquer n ≤ m, ondem < N . Entao

[a0; a1 . . . am−1, am] =pmqm

=ampm−1 + pm−2

amqm−1 + qm−2

e pm−1, pm−2, qm−1 e qm−2 dependem so de a0, a1, . . . , am−1. Assim, temos

[a0; a1, . . . , am−1, am, am+1] = [a0; a1, . . . , am−1, am +1

am+1

]

=

(am + 1

am+1

)pm−1 + pm−2(

am + 1am+1

)qm−1 + qm−2

=am+1 (ampm−1 + pm−2) + pm−1

am+1 (amqm−1 + qm−2) + qm−1

=am+1pm + pm−1

am+1qm + qm−1

=pm+1

qm+1

Portanto, o resultado e verdadeiro para m + 1. Por inducao, obtemos oresultado para qualquer 0 ≤ n ≤ N . 2

Como corolario do resultado anterior, obtemos o seguinte teorema

Teorema 8.2. As funcoes pn e qn satisfazem as seguintes igualdades:

pnqn−1 − pn−1qn = (−1)n−1

pnqn−2 − qnpn−2 = (−1)nan

e, portanto,

pnqn

− pn−1

qn−1

=(−1)n−1

qn−1qn

pnqn

− pn−2

qn−2

=(−1)nanqn−2qn

123

Demonstracao: As duas ultimas igualdades resultam imediatamentedas duas primeiras. Vamos provar por inducao as duas primeiras igualdades.Para n = 0 temos

p0q−1 − q0p−1 = a00− 1 · 1 = (−1)−1.

Para n = 1 temos

p1q0 − q1p0 = (a1a0 + 1)1− a1a0 = (−1)0

p1q−1 − q1p−1 = (a1a0 + 1)0− a11 = (−1)1a1.

Suponhamos que o resultado e verdadeiro para n− 1. Entao,

pnqn−1 − pn−1qn = (anpn−1 + pn−2)qn−1 − pn−1(anqn−1 + qn−2)

= −(pn−1qn−2 − qn−1pn−2)

= −(−1)n−2

= (−1)n−1

e

pnqn−2 − pn−2qn = (anpn−1 + pn−2)qn−2 − pn−2(anqn−1 + qn−2)

= an(pn−1qn−2 − qn−1pn−2)

= an(−1)n−2

= (−1)nan

2

Teorema 8.3. Para qualquer k ≥ 1 temos

qkqk−1

= [ak; ak−1, . . . , a1]

Demonstracao: Se k = 1, temos q1 = a1 e q0 = 1, donde

q1q0

= [a1].

124

Suponhamos por inducao que

qkqk−1

= [ak; ak−1, . . . , a1].

Entao,

qk+1

qk=

ak+1qk + qk−1

qk

= ak+1 +1qk

qk−1

= [ak+1;qkqk−1

]

= [ak+1; ak, ak−1, . . . , a1]

Portanto, o resultado tambem e verdadeiro para k + 1. Logo e valido paraqualquer k ≥ 1. 2

8.3 Fraccoes continuadas simples

A partir de agora iremos assumir que os elementos ai sao inteiros positivos,para i ≥ 1 e que a0 e um inteiro, nao necessariamente positivo.

Teorema 8.4. Seja pnqn

o convergente de ordem n de uma fraccao continuada.

Entao (pn, qn) = 1.

Demonstracao: Seja d = (pn, qn). Entao d | (pnqn−1 − qnpn−1), donded | (−1)n−1, pelo teorema 8.2. Logo d = 1. 2

Teorema 8.5. (a) os convergentes de ordem par formam uma sequenciacrescente;

(b) os convergentes de ordem ımpar formam uma sequencia decrescente;

(c) qualquer convergente de ordem ımpar e maior que qualquer convergentede ordem par.

125

Demonstracao: Primeiro vamos provar por inducao que qn > 0 paraqualquer n ≥ 0. Temos q0 = 1 > 0, q1 = a0 > 0. Suponhamos que qk−1 > 0e qk > 0. Entao, qk+1 = ak+1qk + qk−1 > 0. Portanto, qn > 0 para qualquern ≥ 0.

Vamos agora provar os resultados enunciados. Seja n ≥ 1. Como an > 0e

pnqn

− pn−2

qn−2

=(−1)nanqn−2qn

obtemospnqn

>pn−2

qn−2

se n e par, epnqn

<pn−2

qn−2

se n e ımpar. Falta provar a terceira afirmacao. Suponhamos que n e ımpar,pelas alıneas anteriores, o convergente de ordem n e menor que todos osconvergentes impares de ordem inferior a n e o convergente de ordem n− 1e maior que todos os convergentes pares de ordem inferior a n− 1. Como,

pnqn

− pn−1

qn−1

=(−1)n−1

qn−1qn> 0

entao qualquer convergente ımpar e maior que qualquer convergente de ordempar. 2

Teorema 8.6. Qualquer numero racional pode ser representado por umafraccao continuada finita e simples. Reciprocamente, qualquer fraccao con-tinuada finita e simples representa um numero racional.

Demonstracao: Seja x = abum numero racional. Usando o algoritmo

de Euclides, obtemos sequencias de quocientes ck e restos dk, finitas, comk ≥ −2 tais que d−2 = a, d−1 = b,

dk = ck+2dk+1 + dk+2

e dn+1 = 0 para algum inteiro positivo n, onde

d−1 > d0 > d1 > · · · > dn−1 > dn > 0.

126

Portanto, para qualquer −2 ≤ k ≤ n− 2

dkdk+1

= ck+2 +1

dk+1

dk+2

edn−1

dn= cn+1.

Logo,x = [c0; c1, . . . , cn, cn+1].

A segunda parte do teorema e imediata. 2

Em seguida, mostramos que os quocientes dos convergentes crescem, pelomenos tao rapido, como uma progressao geometrica.

Teorema 8.7. Para qualquer k ≥ 2,

qk ≥ 2k−12

Demonstracao: Seja k ≥ 2. Entao

qk = akqk−1 + qk−2 ≥ qk−1 + qk−2 ≥ 2qk−2.

Donde,q2k ≥ 2kq0 = 2k, q2k+1 ≥ 2kq1 ≥ 2k.

Portanto,

qk ≥ 2k−12 .

2

O teorema anterior permite-nos provar que as fraccoes continuadas sim-ples sao sempre convergentes.

Teorema 8.8. Qualquer fraccao continuada simples e convergente.

127

Demonstracao: Uma fraccao continuada simples e finita e claramenteconvergente para um numero racional Seja [a0; a1, a2, . . . ] uma fraccao contin-uada simples e infinita. Sabemos da analise que qualquer sequencia monotonae limitada e convergente. Seja ξ1 o limite da sequencia dos convergentes deordem par e ξ2 o limite da sequencia dos convergentes de ordem ımpar. Paraqualquer n ≥ 1, temos

|ξ1 − ξ2| ≤∣∣∣∣pnqn − pn+1

qn+1

∣∣∣∣=

1

qnqn+1

≤ 1

2n−1→ 0.

Portanto, ξ1 = ξ2 e a fraccao continuada e convergente. 2

Portanto, uma fraccao continuada infinita e simples representa sempreum numero irracional. A recıproca tambem e valida.

Teorema 8.9. Qualquer numero irracional pode ser escrito de maneira unicacomo uma fraccao continuada infinita e simples.

Demonstracao: Para obtermos este resultado iremos usar o algoritmodas fraccoes continuadas:

Seja x um numero real e seja a0 = [x]. Entao,

x = a0 + ξ0, 0 ≤ ξ0 < 1.

Se ξ0 = 0 podemos escrever

1

ξ0= r1, [r1] = a1, r1 = a1 + ξ1, 0 ≤ ξ1 < 1.

Se Se ξ1 = 0 podemos escrever

1

ξ1= r2 = a2 + ξ2, com [r2] = a2, 0 ≤ ξ2 < 1

e assim sucessivamente. Como x e irracional este processo nao pode terminar.Portanto,

x = [a0; r1] = [a0; a1, r2] = [a0; a1, a2, r3] = · · · = [a0; a1, a2, . . . ].

128

2

Definicao. Seja [a0; a1, . . . ] uma fraccao continuada simples e seja n ≥ 0. A

rn = [an; an+1, . . . ]

chamamos resto de ordem n da fraccao continuada.

Claramente, rn ≥ an, para n ≥ 0Note que, se x = [a0; a1, . . . ] entao x = r0.

Teorema 8.10. Para qualquer k ≥ 1, temos

[a0; a1, . . . ] =pk−1rk + pk−2

qk−1rk + qk−2

Demonstracao: Se k = 1 obtemos

a0r1 + 1

r1= a0 +

1

r1= [a0; r1] = [a0; a1, . . . ].

Suponhamos que o resultado e valido para k, entao,

[a0; a1, . . . ] =pk−1rk + pk−2

qk−1rk + qk−2

=pk−1

(ak +

1rk+1

)+ pk−2

qk−1

(ak +

1rk+1

)+ qk−2

=(pk−1ak + pk−2)rk+1 + pk−1

(qk−1ak + qk−2)rk+1 + qk−1

=pkrk+1 + pk−1

qkrk+1 + qk−1

Portanto, o resultado tambem e valido para k + 1. Donde e valido paraqualquer k ≥ 1. 2

129

Teorema 8.11. Seja x = [a0; a1, a2, . . . ] uma fraccao continuada simples ek ≥ 1. Entao

|x− pkqk| ≤ 1

qkqk+1

Demonstracao: Pelo teorema anterior,

x− pkqk

=pkrk+1 + pk−1

qkrk+1 + qk−1

− pkqk

=pk−1qk − pkqk−1

qk(qkrk+1 + qk−1)

=(−1)n

qk(qkrk+1 + qk−1)

Como rk+1 ≥ ak+1 obtemos

|x− pkqk| ≤ 1

qk(qkak+1 + qk−1)=

1

qkqk+1

.

2

8.4 Fraccoes continuadas periodicas

Dizemos que uma fraccao continuada infinita e periodica se existirem inteirosL e k tais que

ai = ai+k

para qualquer i ≥ L. Ao conjunto dos quocientes parciais al, aL+1, . . . , aL+k−1

chamamos perıodo da fraccao continuada e a fraccao continuada pode serrepresentada por

[a0; a1, . . . , aL−1, aL, . . . , aL+k−1].

Neste curso iremos apenas estudar fraccoes continuadas periodicas simples.

Teorema 8.12. Qualquer fraccao continuada simples e periodica representaum inteiro algebrico de ordem 2.

130

Demonstracao: Seja [a0; a1, . . . , aL−1, aL, . . . , aL+k−1] uma fraccao con-tinuada simples e periodica. Entao, o resto de ordem L, rL, satisfaz

rL = [aL; aL+1, . . . , aL+k−1, aL, aL+1, . . . ]

= [aL; aL+1, . . . , aL+k−1, rL]

Pelo teorema 8.10,

rL =p′rL + p′′

q′rL + q′′, (8.1)

ondep′′

q′′e

p′

q′

sao os dois ultimos convergentes de [aL; aL+1, . . . , aL+k−1]. Da equacao (8.1)obtemos

q′r2L + (q′′ − p′)rL − p′′ = 0. (8.2)

Por outro lado, usando o teorema 8.10 mais uma vez, obtemos

x =pL−1rL + pL−2

qL−1rL + qL−2

donde

rL =pL−2 − qL−2x

qL−1x− pL−1

.

Substituindo rL em (8.2), obtemos uma equacao da forma

ax2 + bx+ c = 0

com coeficientes inteiros. Portanto, x e raiz de uma equacao de segundo graucom coeficientes inteiros, i. e. x e um inteiro algebrico de ordem 2. 2

A recıproca deste teorema tambem e valida, mas a sua demonstracao eum pouco mais difıcil e nao iremos descreve-la aqui.

Teorema 8.13. A fraccao continuada que representa um numero algebricode ordem 2 e periodica (e simples).

131

8.5 Equacoes de Pell

Nesta seccao d representa um inteiro positivo que nao e um quadrado perfeito.Portanto,

√d e irracional. A equacao de Pell

x2 − dy2 = 1 (8.3)

tem as solucoes triviais x = ±1, y = 0, enquanto que a equacao

x2 − dy2 = −1 (8.4)

nao tem solucoes obvias. Em alguns casos particulares, e facil encontrarsolucoes da equacao (8.3) (ou mesmo da equacao (8.4)) por tentativas, porexemplo, se d = 2 ou se d = 3 (neste caso a equacao (8.4) nao tem solucoes).Mas, noutros casos, por exemplo d = 67, e muito difıcil encontrar solucoes.No entanto, a equacao (8.3) tem sempre um numero infinito de solucoes e aequacao (8.4) por vezes nao tem solucoes e por vezes tem um numero infinitode solucoes. As primeiras solucoes destas equacoes podem ser enormes, porexemplo, se d = 67, a menor solucao de

x2 − 67y2 = 1

e x = 48842 e y = 5967. No entanto, se d = 66, temos uma solucao comy = 8 e se d = 68 temos uma solucao com y = 4. Nesta seccao, iremos verque as solucoes das equacoes (8.3) e (8.4) estao intimamente relacionadascom a fraccao continuada de

√d.

Iremos terminar este curso com uma aplicacao das fraccoes continuadasa resolucao de equacoes de Pell. Como as demonstracoes sao demasiadotecnicas, iremos apenas enunciar os resultados.

Teorema 8.14. Seja d um inteiro que nao e um quadrado perfeito. Entao√d = [a0; a1, a2, . . . , a2, a1, 2a0]

isto e, a fraccao continuada da raiz quadrada de d e periodica, o ultimoelemento do perıodo e o dobro da parte inteira de

√d e o resto do perıodo e

simetrico.

Teorema 8.15. A equacao

x2 − dy2 = 1

132

tem infinitas solucoes inteiras. Se o comprimento, k, do perıodo da fraccaocontinuada de

√d e ımpar entao a equacao

x2 − dy2 = −1

tem infinitas solucoes. Seja d um inteiro, k o comprimento do perıodo da

fraccao continuada de√d e

pnqn

o convergente de ordem n. Entao

(a) se k e ımpar, as solucoes da equacao x2 − dy2 = 1 sao os convergentes(p2jk−1, q2jk−1), para j ≥ 1, e as solucoes da equacao x2 − dy2 = −1sao os convergentes (p(2j−1)k−1, q(2j−1)k−1), para j ≥ 1.

(b) se k e par, as solucoes da equacao x2 − dy2 = 1 sao os convergentes(pjk−1, qjk−1), para j ≥ 1. Neste caso, a equacao x2 − dy2 = −1 naotem solucoes inteiras.

Exemplo. Seja d = 19. Verifica-se que a fraccao continuada de√19 e

[4; 2, 1, 3, 1, 2, 8]. Portanto, k = 6. Logo a equacao x2 − 19y2 = −1 nao temsolucoes inteiras (facto que ja sabiamos porque 19 ≡ 3 mod 4) e a primeirasolucao de x2 − 19y2 = 1 e (p5, q5) = (170, 39).

4 2 1 3 1 21 4 9 13 48 61 1700 1 2 3 11 14 39

Para d = 13, a fraccao continuada e [3; 1, 1, 1, 1, 6], donde k = 5. Nestecaso, a primeira solucao de x2 − 13y2 = −1 e (p4, q4) = (18, 5) e a primeirasolucao de x2 − 13y2 = 1 e (p9, q9) = (649, 180).

3 1 1 1 1 6 1 1 1 11 3 4 7 11 18 119 137 256 393 6490 1 1 2 3 5 33 38 71 109 180

Exercıcios

1. Determine a fraccao continuada de97

40. Indique todos os convergentes.

133

2. Converta em numero racional as fraccoes continuadas [2; 1, 4], [−3; 2, 12],[1; 2, 3, 1, 2] e [0; 1, 1, 1, 2].

3. Determine α a partir da sua fraccao continuada

a) α = [4; 1, 1, 1, 4];

b) α = [1; 2, 3, 1, 2];

c) α = [0; 1, 1, 2];

d) α = [1; 1, 1, 8, 1];

e) α = [0; 6, 1, 4].

4. Encontre a fraccao continuada de√7,

√11,

√13,

√29 e

√41.

5. Encontre a fraccao continuada dos seguintes numeros

a) α =1 +

√17

4;

b) α =9 +

√5

5;

c) α =47− 2

√5

6;

d) α =47− 2

√5

6;

e) α = 1− 2√3.

6. Seja n um inteiro positivo. Determine a fraccao continuada de√n2 + 1.

7. Seja n um inteiro positivo. Determine a fraccao continuada de√n2 + n.

8. Seja n um inteiro positivo. Mostre que

n+√n2 + 4

2= [n;n].

9. Determine duas solucoes positivas da equacao de x2 − dy2 = 1 paracada d = 5, 6, 11, 14, 23.

10. Caso exista, encontre a menor solucao de cada uma das equacoes x2 −dy2 = 1 e x2 − dy2 = −1, para d = 8, 12, 17, 41, 53.

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Bibliografia

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