Paulo vai morrer daqui a pouco

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Paulo olhou o relógio com preguiça: era quase meio-dia. Ouviu vozes na cozinha e sentiu o cheiro de um de seus pratos prediletos: feijão. Sem pressa, le- vantou-se da cama, na parte de baixo do beliche, abriu as janelas e saiu do quarto. As irmãs e o cunhado já estavam sentados à mesa do almoço. “Tem feijoada com bastante carne e lin- güiça”, disse a mãe, em pé, próxima ao fogão a lenha. Era assim que ele gostava e ela sabia. Apenas de short, sem camisa, com um corpo atlé- tico de 1 metro e 90 de altura, ele respondeu ao co- mentário da mãe balançando a cabeça. Esfregou as mãos, bem lentamente, nos próprios braços cruzados sobre o peito, em forma de “x”, como se estivesse com frio. Era uma espécie de cacoete. “Hoje, este teu sobrinho aqui faz três meses”, co- mentou a irmã, mexendo na barriga. Havia três meses, a irmã descobrira que estava grávida. E, num acaso infeliz, naquele mesmo dia, o pai de Paulo sofrera um derrame cerebral e se tornara inválido, vivendo, desde então, com graves seqüelas físicas e mentais. Com cara de sono, cabelos revirados, Paulo foi até a sala de televisão, onde estava sentado o pai. Disse bom- dia ao “velho”, mas não obteve resposta. Sentou no sofá e ouviu no telejornal uma notícia surpreendente: “O pri- meiro furacão do Atlântico Sul foi batizado por meteo- rologistas da Epagri e Climer de Catarina. Esse fenôme- no está sendo classificado pelos norte-americanos como classe 1, que pode variar entre 120 e 150 quilômetros por hora”. Era sábado, 27 de março. Treze horas depois, na madrugada de domingo, Paulo seria assassinado. Paulo Roberto Cristóvão tinha 19 anos. Nasceu em 30 de outubro de 1984, a 1h50, em Florianópolis, capital de Santa Catarina. Morou a vida inteira no continente, numa comunidade chamada Vila Aparecida, do “lado de lá” da ponte, como dizem os que moram na Ilha. Negro e pobre, viveu sempre do lado de lá: longe dos luxuosos prédios da Beira-Mar, longe dos tradicionais colégios ca- tólicos, longe dos planos de saúde particulares, longe das políticas públicas e das publicidades oficiais. Paulo era adotado. A mãe biológica, muito pobre, o deixou com uma amiga, para que o criasse. A amiga, De- nir da Silva Cristóvão, já tinha nove filhos. O mais novo deles também era adotado. Mas, mesmo morando numa favela, tendo o marido alcoolista, aceitou o desafio e fi- cou com o menino . “Onde comem nove bocas comem dez”, disse, ao pegá-lo na maternidade, ainda com pou- cas horas de vida. Denir, mãe adotiva de Paulo, é religiosa, disciplinada, carinhosa, e não aparenta, apesar do rosto marcado e do olhar triste, ter 66 anos. Começou a trabalhar como empregada doméstica na casa de um fazendeiro, no inte- rior do Estado. O trabalho: lavava os pratos, arrumava as camas, varria o chão. Em troca, recebia comida e um quarto para dormir. Ainda se lembra do banquinho de madeira que usava para alcançar a pia. “Eu era muito pe- quena, precisava desse banco, senão não conseguia lavar nada.” Tinha 7 anos de idade. Depois, já adulta, trabalhou durante décadas numa loja de móveis no centro da capital. Fazia de tudo: limpa- va banheiro, pagava contas, atendia os clientes. Hoje, re- cebe uma aposentadoria de 352 reais por mês. Todos os filhos de Denir estudaram e estão trabalhando. E todos moram fora de casa, com exceção de Paulo e Leandro, de 24 anos, que dividiam o beliche. Um dos filhos, Valdemir Cristóvão, de 38 anos, é formado em educação física e le- ciona numa instituição para crianças carentes. Este ano, completa sua segunda graduação, em pedagogia. Não fosse por Denir, a reforma do barraco, feita há seis anos, não teria acontecido. Com a ajuda de todos os filhos e do marido, o antigo barraco de madeira é hoje uma ampla e confortável casa de alvenaria. Fica no alto do morro, onde se chega passando por um beco de ci- mento, de menos de 1 metro e meio de largura. A MÚSICA Naquele sábado, Paulo comeu a feijoada ao lado do pai, em frente à televisão. Tomou Coca-Cola com gelo e, de- pois das notícias sobre o furacão, assistiu ao início de um programa esportivo. Quase não conversou com os irmãos. Embora caseiro e carinhoso, era uma pessoa reservada. “Adorava o silêncio”, relembra a mãe. E adorava a música. Vocalista de um grupo de rap, deixou algumas com- posições. Um trecho, da última letra que escreveu, dizia assim: “(...) As pessoas só pensam em vencer/ não que- rem saber/ quem vai viver quem vai morrer/se vai pro céu ou pro inferno/ de bermuda ou de terno/ tiro 12 do cego que derrubou o marreco/ no dia e na noite eu espe- ro/ o momento certo/ porque eu tenho afeto carinho/ está rindo porque não é contigo (...)”. Duas horas depois de acordar, saiu de casa com o ca- derno nas mãos. Era onde anotava as letras que compu- nha. Vestia uma bermuda branca com riscos azuis e uma camiseta azul-clara. Foi até a casa do Alexsandro, o San- dro, amigo de infância e parceiro nas composições. Ti- nham em comum o mesmo sonho: viver da música. Sandro mora numa viela ao lado, próxima da casa dos Cristóvão. Como sempre, Paulo encontrou o portão de madeira aberto. E, com a intimidade de quem conhece a família desde pequeno, foi entrando casa adentro. O ami- go o recebeu com um caloroso abraço. Já fazia duas se- manas que não se viam. Sandro, que também tem 19 anos, trabalha o dia inteiro numa empresa de serigrafia e estuda à noite. – Cara, quanto tempo. – Depois de cinqüenta anos – brincou Paulo, enquan- to se abraçavam Na casa estavam as quatro irmãs de Sandro e um ou- tro amigo. A mais velha das irmãs limpava a sala, para desgosto do resto da turma que assistia a clipes de rap na televisão, entre as cadeiras colocadas de pernas pro ar. Em seguida, Paulo e Sandro foram até o minúsculo quintal, tentar pôr ordem na bagunça. – Como estão as coisas na serigrafia? – perguntou Pau- lo, encostado na porta da cozinha, que dá para o quintal. – O serviço tá legal, o foda é o estudo. – Por quê? – Tá difícil conciliar, por isso não tenho ido ao colégio. – Hum... – Tô pensando em desistir. – Não faz isso – disse Paulo –, se com o estudo já é di- fícil, sem ele a gente fica sem saída. “Era dia, era claro, quase meio, era um canto calado sem ponteio, violência, viola, violeiro, era a morte em redor, mundo inteiro” Edu Lobo e Capinam Paulo Fernando Evangelista vai morrer daqui a pouco

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Fernando Evangelista • Revista Caros Amigos • Florianópolis, Brasil • Reportagem investigativa sobre o ultimo dia de vida de um garoto, morador da periferia de Florianópolis

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Paulo olhou o relógio com preguiça: era quasemeio-dia. Ouviu vozes na cozinha e sentiu o cheiro deum de seus pratos prediletos: feijão. Sem pressa, le-vantou-se da cama, na parte de baixo do beliche,abriu as janelas e saiu do quarto.

As irmãs e o cunhado já estavam sentados à mesado almoço. “Tem feijoada com bastante carne e lin-güiça”, disse a mãe, em pé, próxima ao fogão a lenha.Era assim que ele gostava e ela sabia.

Apenas de short, sem camisa, com um corpo atlé-tico de 1 metro e 90 de altura, ele respondeu ao co-mentário da mãe balançando a cabeça. Esfregou asmãos, bem lentamente, nos próprios braços cruzadossobre o peito, em forma de “x”, como se estivesse comfrio. Era uma espécie de cacoete.

“Hoje, este teu sobrinho aqui faz três meses”, co-mentou a irmã, mexendo na barriga. Havia três meses, airmã descobrira que estava grávida. E, num acaso infeliz,naquele mesmo dia, o pai de Paulo sofrera um derramecerebral e se tornara inválido, vivendo, desde então, comgraves seqüelas físicas e mentais.

Com cara de sono, cabelos revirados, Paulo foi até asala de televisão, onde estava sentado o pai. Disse bom-dia ao “velho”, mas não obteve resposta. Sentou no sofáe ouviu no telejornal uma notícia surpreendente: “O pri-meiro furacão do Atlântico Sul foi batizado por meteo-rologistas da Epagri e Climer de Catarina. Esse fenôme-no está sendo classificado pelos norte-americanos comoclasse 1, que pode variar entre 120 e 150 quilômetros porhora”. Era sábado, 27 de março. Treze horas depois, namadrugada de domingo, Paulo seria assassinado.

Paulo Roberto Cristóvão tinha 19 anos. Nasceu em 30de outubro de 1984, a 1h50, em Florianópolis, capital deSanta Catarina. Morou a vida inteira no continente,numa comunidade chamada Vila Aparecida, do “lado delá” da ponte, como dizem os que moram na Ilha. Negroe pobre, viveu sempre do lado de lá: longe dos luxuososprédios da Beira-Mar, longe dos tradicionais colégios ca-tólicos, longe dos planos de saúde particulares, longe daspolíticas públicas e das publicidades oficiais.

Paulo era adotado. A mãe biológica, muito pobre, odeixou com uma amiga, para que o criasse. A amiga, De-nir da Silva Cristóvão, já tinha nove filhos. O mais novodeles também era adotado. Mas, mesmo morando numafavela, tendo o marido alcoolista, aceitou o desafio e fi-cou com o menino . “Onde comem nove bocas comemdez”, disse, ao pegá-lo na maternidade, ainda com pou-cas horas de vida.

Denir, mãe adotiva de Paulo, é religiosa, disciplinada,carinhosa, e não aparenta, apesar do rosto marcado e

do olhar triste, ter 66 anos. Começou a trabalhar comoempregada doméstica na casa de um fazendeiro, no inte-rior do Estado. O trabalho: lavava os pratos, arrumava ascamas, varria o chão. Em troca, recebia comida e umquarto para dormir. Ainda se lembra do banquinho demadeira que usava para alcançar a pia. “Eu era muito pe-quena, precisava desse banco, senão não conseguia lavarnada.” Tinha 7 anos de idade.

Depois, já adulta, trabalhou durante décadas numaloja de móveis no centro da capital. Fazia de tudo: limpa-va banheiro, pagava contas, atendia os clientes. Hoje, re-cebe uma aposentadoria de 352 reais por mês. Todos osfilhos de Denir estudaram e estão trabalhando. E todosmoram fora de casa, com exceção de Paulo e Leandro, de24 anos, que dividiam o beliche. Um dos filhos, ValdemirCristóvão, de 38 anos, é formado em educação física e le-ciona numa instituição para crianças carentes. Este ano,completa sua segunda graduação, em pedagogia.

Não fosse por Denir, a reforma do barraco, feita háseis anos, não teria acontecido. Com a ajuda de todos osfilhos e do marido, o antigo barraco de madeira é hojeuma ampla e confortável casa de alvenaria. Fica no altodo morro, onde se chega passando por um beco de ci-mento, de menos de 1 metro e meio de largura.

A MÚSICANaquele sábado, Paulo comeu a feijoada ao lado do pai,

em frente à televisão. Tomou Coca-Cola com gelo e, de-pois das notícias sobre o furacão, assistiu ao início de umprograma esportivo. Quase não conversou com os irmãos.Embora caseiro e carinhoso, era uma pessoa reservada.“Adorava o silêncio”, relembra a mãe. E adorava a música.

Vocalista de um grupo de rap, deixou algumas com-posições. Um trecho, da última letra que escreveu, dizia

assim: “(...) As pessoas só pensam em vencer/ não que-rem saber/ quem vai viver quem vai morrer/se vai procéu ou pro inferno/ de bermuda ou de terno/ tiro 12 docego que derrubou o marreco/ no dia e na noite eu espe-ro/ o momento certo/ porque eu tenho afeto carinho/está rindo porque não é contigo (...)”.

Duas horas depois de acordar, saiu de casa com o ca-derno nas mãos. Era onde anotava as letras que compu-nha. Vestia uma bermuda branca com riscos azuis e umacamiseta azul-clara. Foi até a casa do Alexsandro, o San-dro, amigo de infância e parceiro nas composições. Ti-nham em comum o mesmo sonho: viver da música.

Sandro mora numa viela ao lado, próxima da casa dosCristóvão. Como sempre, Paulo encontrou o portão demadeira aberto. E, com a intimidade de quem conhece afamília desde pequeno, foi entrando casa adentro. O ami-go o recebeu com um caloroso abraço. Já fazia duas se-manas que não se viam. Sandro, que também tem 19anos, trabalha o dia inteiro numa empresa de serigrafia eestuda à noite.

– Cara, quanto tempo.– Depois de cinqüenta anos – brincou Paulo, enquan-

to se abraçavam Na casa estavam as quatro irmãs de Sandro e um ou-

tro amigo. A mais velha das irmãs limpava a sala, paradesgosto do resto da turma que assistia a clipes de rap natelevisão, entre as cadeiras colocadas de pernas pro ar.

Em seguida, Paulo e Sandro foram até o minúsculoquintal, tentar pôr ordem na bagunça.

– Como estão as coisas na serigrafia? – perguntou Pau-lo, encostado na porta da cozinha, que dá para o quintal.

– O serviço tá legal, o foda é o estudo. – Por quê? – Tá difícil conciliar, por isso não tenho ido ao colégio. – Hum...– Tô pensando em desistir. – Não faz isso – disse Paulo –, se com o estudo já é di-

fícil, sem ele a gente fica sem saída.

“Era dia, era claro, quase meio, era um canto calado sem ponteio,

violência, viola, violeiro, era a morte em redor, mundo inteiro”

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Arrumado o quintal, foram ao quarto de Sandro, fazer oque mais gostavam: escrever letras de música. Pela parede,fotos de grupos de rap, do Brasil e do exterior. Paulo sentouapoiado na cabeceira da cama, com a perna esquerda do-brada em cima da colcha e a direita apoiada no chão. San-dro ficou na outra ponta, encostado na parede, com as per-nas para fora. O quarto, de 6 metros quadrados, estava ar-rumado, o que rendeu um comentário de Paulo:

– Ô, negão, pra que arrumar o quarto desse jeito? Abala mesmo é o quarto bagunçado.

– De repente vem uma gatinha. – Vem porra nenhuma.Paulo fez uma pausa e acrescentou: – Nunca vem. Paulo não teve namoradas. Tinha “ficado”, como diz a

gíria, com algumas garotas da comunidade, mas nadamuito sério. E, mesmo com toda a lábia e charme, conti-nuava virgem. Chegaria perto de sua “primeira vez” na-quela noite, minutos antes de ser assassinado.

Os dois amigos ficaram lá, escrevendo. Sandro levavaesses momentos muito a sério. Paulo, ao contrário, nashoras de maior concentração e silêncio soltava algumarima sem sentido, só pelo prazer do riso e da provocação.“Ele avacalhava, fazia cara de quem está pensando, muitoconcentrado e, de repente, soltava uma piada”, revela oamigo. A resposta de Sandro era sempre a mesma: “Ô,porra, na moral, vamo levá isso a sério, senão a gente nãovai pra frente”.

O JOGOCansados de escrever, foram até a sala de televisão onde

estava Ana Cláudia, de 15 anos, irmã de Sandro. Ana Cláu-dia e Paulo, além de amigos e confidentes, eram como doisbons irmãos. E assim era, apesar das insinuações sobre umpossível “namorico”. Ele a ajudava nas lições de matemáti-ca e história e ela lhe dava dicas de como conquistar as me-ninas. Às vezes se estranhavam, como naquela tarde,quando ele insinuou que a amiga estaria “gordinha”. Ananão gostou, fez cara de choro, mas em seguida fizeram aspazes, com um carinhoso abraço de desculpa.

Paulo era, também, amigo de outra irmã de Sandro, amais velha. Certa ocasião escreveu na contracapa de seucaderno escolar: “Você é negra na pele e na mente. Não seesqueça: você é descendente do guerreiro Zumbi. Um sal-ve do carente e sorridente mano Paulo”.

Ana e Paulo, como tinham costume de fazer, brinca-ram de pife, um jogo de cartas. Sandro, entediado comaquilo, foi até a casa da namorada. Antes de sair, já comum pé fora de casa, ouviu:

– Ô, peste! Onde vais? – gritou Paulo, já sabendo a res-posta.

– Na casa da gatinha. Tás sabendo da festa lá embaixohoje, né?

– Não.– Não? Vai rolar uma festa no centro comunitário.– Hum...– Vamos?– Talvez, depois eu decido – resmungou Paulo, displi-

centemente, concentrado no jogo. Eles jogaram a tarde inteira na sala. Ela sentada no

sofá-cama, e ele na cadeira, de costas para a porta. Só in-terromperam o jogo três vezes. Uma, quando a irmã deAna trouxe três picolés, numa sacola de plástico. Outra,quando a tia de Sandro apareceu pedindo dinheiro em-prestado:

– Quanto precisas? – perguntou Paulo à mulher debru-çada na janela.

– De 50 centavos.

– Vais ter que pagar em dobro – ele disse, tirando dacarteira uma moeda.

Pararam pela terceira vez, quando Paulo foi ao ba-nheiro. Ao voltar à sala, percebeu que a música que esta-vam escutando era a do grupo KLB, que ele detestava.

– Porra, mas que porcaria é essa que tá rolando? Toma-ra que o furacão venha e destrua esse disco.

– Mas não tem nada melhor – respondeu Ana.– Sempre tem alguma coisa melhor – rebateu Paulo,

sacando do lado da bermuda um CD de rap do grupoZ’Africa Brazil.

Por volta das 6 e meia da tarde, Sandro voltou para acasa.

– Ainda!? – espantou-se, vendo a irmã e o amigo jogan-do. – Vocês são doidos!

Foi até o aparelho de som, pegou um CD de “poperô”,que na explicação dele é “som de playboy, música de boa-te”, e aumentou a todo volume. Acendendo e apagando aluz, decretou:

– Agora, essa sala é a maior discoteca do mundo.Paulo se levantou, dizendo:– É isso aí, eu sou o segurança.E permaneceu imóvel, fazendo pose: braços cruzados,

corpo teso, peito inchado. As irmãs de Sandro, que haviamchegado pouco antes, dançavam em roda. Ficaram assimaté cansar.

Só às 7 e meia, depois de outra partida, Paulo foi paracasa.

Naquela semana havia feito inscrição num curso de in-formática e, dias depois, recebeu a notícia de que foraaceito no programa Primeiro Emprego, destinado a jo-vens da periferia. Paulo estava no 2º ano do 2º grau. Na es-cola era um bom aluno. Ano passado escreveu uma reda-ção intitulada “Vida Loka”. Depois de falar de rap, da fa-mília, de criticar o ensino público, concluía: “Eu acreditona palavra de um homem de pele escura, de cabelo cres-po, que andava no meio de mendigos e leprosos, pregan-do a igualdade. Um homem chamado Jesus. Só ele sabe aminha hora. A alegria bate no meu pensamento várias ve-zes por dia, mas não esqueço a realidade. E a realidade émuito triste. Se eu fosse mágico, não existiria droga nemfome, nem desigualdade social, nem polícia”.

Ele não era mágico, mas um bom poeta viciado em li-vros. Lia de tudo: embaixo de sua cama, misturados emduas caixas de madeira, uma infinidade de manuais deinformática e vários livros de literatura: Caetés, de Graci-liano Ramos, Amor da Salvação, de Camilo Castelo Bran-co, O Corpo Fala, de Pierre Weil e Roland Tompakow, Sexona Cabeça, de Luís Fernando Verissimo, e também um li-vro de poemas, de César Pereira, chamado Dardos deAjuste, marcado nessa parte: “Nasceste numa época cor-rosiva/ de pólvora na mesa/ bombas no prato / napalmno corpo”.

Ao retornar a casa, Paulo foi até a sala de televisão,onde continuava sentado seu pai, e viu o repórter da tele-visão local dizer: “Santa Catarina viveu hoje um dia de ex-pectativa. Pela primeira vez na história, um furacão seaproximou da costa. O fenômeno avança para o sul do Es-tado e norte do Rio Grande do Sul. O furacão foi apelida-do de Catarina”.

– O que tem pra comer?– ele perguntou à mãe. – Sobrou comida salgada. Queres? – Não. Quero só Nescau com pão. E, com a “delicada” fome de um garoto de 19 anos, co-

meu nada menos que cinco pães, cada um com manteiga,queijo e mortadela. Depois foi para o quarto, leu um pou-co e tomou banho. Vestiu uma camiseta preta com laran-ja, com decote cinza, e uma calça camuflada do exército

(à moda do rap americano). Calçou um tênis com corescinza, branca e vermelha. Meteu no pescoço seu insepa-rável crucifixo que, meses antes, havia trocado por umCD, com um amigo. Colocou o perfume Kaiak e pergun-tou à sua mãe, sentada à mesa da cozinha:

– Tô bonito?– Estás lindo, como sempre. Vais onde? – Numa festinha. – Estás levando camisinha? – Pensas que eu sou tolo, mãe? Eu sei o que tô fazendo. E então foi para a festa onde seria assassinado.A mãe de Paulo, quinze dias antes, sonhou que o Se-

nhor dos Passos, de quem é devota, tentava lhe dizer al-guma coisa. Aquilo a deixou angustiada. Falou para airmã e resolveu ir até o Hospital de Caridade, do lado delá da ponte, onde fica a imagem. Na capelinha do hospi-tal, ajoelhada, segurando com as duas mãos o terço,olhando fixamente a imagem do Senhor dos Passos, De-nir chorou compulsivamente, sem entender o porquê.

Na madrugada do assassinato, ela teve outro sonho.Dessa vez, com a imagem do Coração de Jesus. Ela pediaque Ele lhe trouxesse os filhos para casa, em segurança. E,na hora em que tocou no coração da imagem, houve umaexplosão. Ela acordou sobressaltada e percebeu que osventos tinham aumentado. Saiu da cama e ouviu a cam-painha. Abriu a porta e recebeu a notícia pela filha maisnova: Paulo havia sido assassinado. Era 28 de março, diade uma procissão que, todos os anos, toma conta do cen-tro de Florianópolis. Procissão do Senhor dos Passos.

A FESTATinha acabado de anoitecer quando Paulo saiu em di-

reção à festa. Passou na casa do amigo Leandro, conheci-do por “Bochecha”. Os dois, parceiros no rap, já haviam vi-vido e escrito muitas histórias juntos. “Ele estava semprede alto astral, era um cara alegre, chegava sempre anima-do”, lembra Leandro, de 21 anos, que é uma espécie deguia e líder dos garotos da comunidade.

– Qual é a da festa, negão? – perguntou Paulo ao amigo. – É uma festa de aniversário. Vai tá cheio de mulher. – Eu tenho 5 reais aqui – disse Paulo – podemos com-

prar uma bebida. Os dois compraram um garrafão de vinho e foram até

a casa de um outro amigo, o Juciano, de onde se vê o Cen-tro Comunitário, local da festa. A casa de Juciano fica a200 metros do Centro, separados por um enorme terrenobaldio. A distância não impedia os garotos de observar asgarotas que chegavam.

Na casa de dois andares de Juciano, com uma amplavaranda, já estavam outros garotos da comunidade. Pau-lo, enquanto bebia conhaque com refrigerante, falou desua admiração pelo cantor Silveira, de “seu rap romântico,um rap com porrada, mas também com perspectiva”, e iafalando sobre outros raps e outros ídolos, e sobre as mu-lheres imaginárias que já tinha tido e que gostaria de ter,fazia planos para festa e pro futuro: “Um dia, a gente vaiestar num palco, cantando nossa música, sendo respeita-dos, deixando nossa mensagem”. Falou também de umrap feito pelo amigo Fabiano, o Maninho, que o havia im-pressionado de modo particular. “Aquela música precisaser gravada”, repetia. Um trecho desse rap diz assim: “Afavela e a prisão é um vulcão em erupção e a lava que es-corre é o sangue dos meus irmão”. Depois desse “esquen-ta”, os amigos foram para a festa.

O Centro Comunitário é pequeno. Parece uma igrejasimples, com dizeres religiosos espalhados pela parede eum altar na frente.”Ele estava muito feliz naquela noite.Eu coloquei o som na festa, era o DJ, e por três vezes ele

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apertou a minha mão, dizendo: ‘Grande, o som está exce-lente’ “, relata o amigo Marcelo.

Os garotos ficaram bebendo e dançando. Pouco de-pois das 23 horas, uma garota pegou Paulo pelo braço.

– Tem uma pessoa que quer falar contigo lá fora – eladisse.

Paulo foi ver quem era, com um copo de plástico nasmãos. Na rua, encontrou o amigo Sandro.

– És tu? – surpreendeu-se Paulo.– Eu tava na casa da gatinha. Preciso ir lá em casa to-

mar banho e me arrumar. Vamo comigo?– Pô, logo agora que vão cantar o parabéns e servir o

bolo – reclamou Paulo.Mas, com sua reconhecida incapacidade de negar um

favor, de quem quer que fosse, o acompanhou.Chegando lá, encontraram as irmãs de Sandro na sala,

dormindo, em frente à televisão ligada. Enquanto o ami-go tomava banho e se vestia, Paulo se jogou na cama, jun-to com as meninas, acordando uma por uma.

Antes de saírem, Paulo foi até o banheiro. Abriu a tor-neira, lavou as mãos e olhou-se no pequeno espelho pen-durado na parede. Procurou uma toalha, mas não achou.E, já entre a cozinha e a sala, sacudiu com força as mãospara enxugá-las, de modo que o anel que usava no dedãoesquerdo caiu.

– Puta que o pariu! Meu anel da sorte! – ele disse.– Cara, depois a gente acha, vamos pra festa – impa-

cientou-se Sandro. – Nem a pau. Sem o meu anel da sorte eu não vou.E pôs-se a procurar. As irmãs de Sandro, acordadas, já estavam mobiliza-

das à caça do objeto perdido. Passaram um, dois, dez mi-nutos e nada, o anel não aparecia. Até que, de repente,Paulo espantou-se:

– Cacete! Olha só onde foi parar. Estava numa sapateira no lado direito da sala, dentro

de um tênis, como que embrulhado num papel de bala. – Que coisa estranha – foi o comentário de todos.Antes de saírem, a mãe de Sandro, Dona Leca, que es-

tava no quarto, alertou: – Cuidado, meninos. Estão dizendo que vem uma

ventania por aí, um ciclone. – Só mesmo um ciclone pra tirar a gente dessa festa.

Esta noite promete – falou Paulo.Na porta, com um sorriso largo, acrescentou:

– Fica tranqüila dona Leca, tá comigo, tá com Deus. Pouco antes de entrar na festa, quase na frente do

Centro Comunitário, Sandro foi abordado por um rapaz,também negro, forte e baixo:

– Ô, camarada, como está, gente boa?Sandro recebeu um efusivo abraço, sem saber quem

era aquela figura.– Não estás lembrado de mim? Sandro, sem jeito, confessou que não, mas o rapaz não

o largava. Só depois de muita insistência conseguiu sedesvencilhar.

Na festa, Paulo perguntou:– Sandro, quem é aquele doido? – Não faço a mínima idéia, disse que me conhece. – Tá, esquece – cortou Paulo –, vamos curtir, olha só

quanta mulher. Os dois ficaram por ali, dançando e bebendo. Paulo foi

conversar com uma garota que não lhe deu a mais remotaconfiança. Mas não desistiu. Conversou com outra e comoutra, até que, na fila do banheiro, encontrou uma jovemde sorriso fácil e olhar doce que caiu nos seus encantos:

– Vais entrar? – ele perguntou.– Vou – respondeu a menina, rindo.

– Vou entrar contigo, então. Passaram um bom tempo entre beijos e abraços, den-

tro do banheiro. Ele, com jeito de menino inocente, suge-riu que “ficassem mais à vontade”. A garota recusou. De-pois, Paulo voltou ao assunto e, antes da resposta, a portase abriu. Era um amigo da turma do rap. Ele conta:

– Acho que atrapalhei alguma coisa. Quando entrei,Paulo ajeitava a calça, com aquela cara: “Pô, dá o fora,chegaste na hora errada, se manda”.

O TIROTEIOAo deixar o banheiro, Paulo percebeu que o “estranho”

da entrada saíra correndo do Centro Comunitário, comum revólver calibre 38 na mão. Depois de ter criado algu-mas pequenas confusões na festa e ser de uma outra co-munidade, o rapaz era chamado de “invasor”. Atrás dele,sempre juntos, dois garotos de 14 e 15 anos. Vendo aqui-lo, curioso, Paulo foi até a rua ver o que estava acontecen-do. Jéferson, o “invasor”, arma em punho, discutia comalgumas pessoas. O filho de dona Denir, desarmadocomo sempre, foi acalmar os ânimos:

– Camarada, guarda essa arma, vamos curtir a festa,tem um monte de bebida de graça.

Jéferson não gostou: – Tá me tirando, mano? E apontou o revólver para o peito de Paulo. – Cara, guarda essa arma, é pro teu bem, guarda isso –

insistiu Paulo. O que aconteceu em seguida foi uma sucessão de ab-

surdos. Um dos rapazes da comunidade, num gesto rápi-do, imobilizou o braço de Jéferson. Aproveitando-se des-sa situação, um outro garoto, amigo de Paulo, apontouum revólver para o rapaz, agora indefeso. E outro, tam-bém da comunidade, encostou mais uma arma na cabe-ça do “invasor”. Não tiveram dificuldade em desarmá-lo.

Paulo, quase cara a cara com os garotos, disse: – Chega, chega. Acabou. Vamos embora. A cena permaneceu congelada por longos segundos.

Com dois revólveres apontados para sua cabeça, Jéfersonparecia ter perdido “o jogo”. Mas, sem que nenhum delespercebesse, um outro rapaz da comunidade pegou o re-vólver de Jéferson, que passava de mão em mão, e o en-tregou a um de seus amigos, menor de idade.

Isso revoltou os colegas de Paulo, que iniciaram, entreeles, violenta discussão. Os dois rapazes, que antes apon-tavam o revólver para a cabeça do “invasor”, discutiamaos berros, sem cessar. Paulo, no meio, tentando acalmaros amigos. Foi aí, esquecido no meio da confusão, que omenino que estava com a arma conseguiu devolvê-la aJéferson. Num gesto lento, mas seguro, ele se afastou dogrupo, outra vez com a arma em punho.

– Cuidado, o cara vai atirar! – gritou alguém. A briga entre os amigos parou e ouviu-se o primeiro

tiro. Jéferson atirou para o alto. Os amigos de Paulo, assusta-

dos, responderam atirando em direção a ele. E foi na res-posta de Jéferson, nesse seu segundo tiro, em meio ao fogocruzado, que Paulo foi baleado. Ele era alto, curvou o cor-po, virando-se de costas para Jéferson, tentando se prote-ger. A bala acertou a nuca e saiu na testa. Uma única bala.

No final do tiroteio, que durou segundos, o cenárioera este: Jéferson, caído no chão, com três tiros, aindavivo. Paulo, morto, estendido perto de um carro, quaseem frente ao Centro Comunitário, na mesma rua em quepassou toda a sua infância, onde tinha seus amigos e suafamília. Era 1h50 da manhã. Jéferson sobreviveu, apesardos três tiros, e, uma semana depois, já havia deixado ohospital.

Sandro, que viu o tiroteio escondido atrás de um car-ro, relata:

– Vi o Paulo caído, aquele sangue, não podia acredi-tar, não poderia ser verdade, morto por nada, por nada. OPaulo era da paz, não devia nada a ninguém, ele só queriacantar e cantar, sair cantando por aí...

Um dos amigos de Paulo, que apontou o revólver a Jé-ferson, justifica:

– Às vezes, tu não queres andar armado, mas é a neces-sidade de sobrevivência. Ninguém iria imaginar que fosseacontecer aquilo, logo com o Paulo, que era da paz, quenunca foi metido em rolo, que não tinha maldade. Foi porisso que ele foi morto, porque não tinha maldade, porquenão imaginava que o cara fosse capaz de apertar o gatilho.

Odirlei Goulart, também amigo de Paulo, que não es-tava na festa, complementa:

– Paulo era uma pessoa boa, emprestava tudo pra todomundo, queria vencer na vida pela música, sem armas,sem guerra.

SEMENTE DE JUSTIÇAO Atlas da Exclusão Social - Os Ricos do Brasil, organi-

zado pelo economista Márcio Pochmann e lançado emabril, revela que 5.000 famílias brasileiras possuem umpatrimônio que representa 46 por cento do PIB. No“lado de lá” dessa ponte estão 56 milhões de pessoas quevivem com uma renda inferior a 79 reais por mês. O“Mapa do Fim da Fome”, pesquisa realizada pela Funda-ção Getúlio Vargas, mostra que um em cada três brasilei-ros é considerado miserável.

Os jornais publicaram, semanas depois, como se umacoisa não estivesse ligada à outra, uma pesquisa do IBGEsobre o número de assassinatos no país. De 1980 a 2000foram assassinadas 598.367 pessoas, indicando um au-mento de 130 por cento nas taxas de homicídio. Segun-do a ONU, 11 por cento de todos os assassinatos do pla-neta são cometidos no Brasil, que abriga menos de 3 porcento da população mundial.

“A violência sofrida por Paulo”, disse Vilson Groh, pa-dre ligado à Teologia da Libertação, durante o velório, “éfruto dessa criminosa distribuição de renda, é fruto dosistema capitalista, altar da morte. Que o corpo de Pauloseja uma semente de justiça, que seu corpo seja o símbo-lo de nossa resistência e que mais essa morte não seja emvão.” Só em 2002, esse padre que mora e trabalha há 23anos entre os favelados, fez oitenta funerais de morado-res das favelas, todos vítimas da violência.

No dia 4 de maio, Jéferson Luiz Lisboa, 23 anos, o ga-roto que matou Paulo, foi encontrado morto numa outrafavela de Florianópolis. Ele levou três tiros: um no pesco-ço e dois na cabeça. Os jornais, os de sempre, noticiaramo assassinato como sendo o 54º. Números. Afinal, é dissoque se trata. Em 95 dias, na tranqüila capital de Santa Ca-tarina, 54 pessoas, quase todas jovens, quase todas ne-gras, quase todas pobres, foram assassinadas. Os policiaisdo 8º DP constataram: “Ele (Jéferson) chegou para acer-tar as contas com alguém, mas foi acertado antes”.

Dias depois, na mesma favela em que Paulo foi assas-sinado, uma estudante de 14 anos foi morta com um tirona nuca, por um jovem de 16 anos. Mais mortes, mais nú-meros. Mortos sem nome, sem história, mortes sem dor.“Era dia, era claro, quase meio, era um canto calado semponteio, violência, viola, violeiro, era a morte em redor”,Brasil inteiro.

Fernando Evangelista é jornalista. Dirigiu o documen-tário Reações em Marcha, sobre o Movimento Sem [email protected]

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