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    PAULO DEMETRE GEKAS

    CORRELAES ENTRE DESAFINADO E MOON DREAMS: UMA

    ANLISE DOS PROCESSOS LINEARES E HARMNICOS

    FLORIANPOLIS, SANTA CATARINA

    2005

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    PAULO DEMETRE GEKAS

    CORRELAES ENTRE DESAFINADO E MOON DREAMS: UMA

    ANLISE DOS PROCESSOS LINEARES E HARMNICOS

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre. Programa de Ps graduao em educao e Cultura da Universidade do Estado de santa Catarina. Orientadora: Prof.a Dr.a Maria Bernardete Castelan Pvoas.

    FLORIANPOLIS, SANTA CATARINA

    2005

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    PAULO DEMETRE GEKAS

    CORRELAES ENTRE DESAFINADO E MOON DREAMS: UMA

    ANLISE DOS PROCESSOS LINEARES E HARMNICOS

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre no Programa de Ps

    Graduao em Educao e Cultura da Universidade do Estado de Santa Catarina, para a

    Comisso formada pelos professores(as):

    Orientadora: Prof. Dr. Maria Bernardete Castelan Pvoas Programa de Ps Graduao em Msica, UDESC/DAPE

    Prof.o Dr.o Accio Tadeu Piedade Prof.o Dr.o Srgio Luiz Ferreira de Figueiredo

    Florianpolis, 16 de agosto de 2005.

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    (Jobim/Mendona)

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    Em memria de meu pai Demetre Georges Gekas.

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    AGRADECIMENTOS

    minha me e irmos, incentivadores incansveis, pelo respeito e carinho.

    minha namorada, Liza Amaral por sua orientao, colaborao e incentivo.

    minha orientadora professora Bernardete, por sua orientao, ensinamentos e

    dedicao.

    Ao amigo Carlos Lamarque pela contribuio na escrita e reviso das partituras.

    Meus agradecimentos banca pelo carinho, ateno e leitura do trabalho.

    UDESC universidade pblica e gratuita.

    A todos que de alguma forma contriburam para a realizao deste trabalho

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    RESUMO

    Na literatura sobre msica popular brasileira verifica-se a reiterada afirmao a respeito de uma possvel assimilao de elementos do Cool Jazz por compositores da Bossa Nova. Esta pesquisa tem sua origem na necessidade de localizar, por meio da anlise musical, correlaes entre obras representativas dos estilos Cool Jazz e Bossa Nova. Foram selecionados dois arranjos de obras indicadas pela literatura como representativas, sendo um de cada estilo: Desafinado do compositor Antnio Carlos Jobim em parceria com Newton Mendona, arranjada por Jobim e Moon Dreams, de Chummy MacGregor em parceria com Johnny Mercer, arranjada por Gil Evans. Para a escolha desses arranjos foram levados em considerao trs aspectos: a representatividade das obras, a originalidade e notoriedade do arranjo. Dentro da perspectiva de Arnold Schoenberg e de Almir Chediak foram levantados e relacionados, atravs da anlise de processos lineares e harmnicos, aspectos concernentes ao estrato meldico tais como: motivo bsico, procedimentos de variao meldica e traos motvicos e aos processos harmnicos, entre eles: recursos polifnicos e homofnicos, cadncias, acordes de emprstimo modal, acordes de superestrutura, relao intervalar entre linha do baixo e melodia, modulaes e notas auxiliares. Como resultado das anlises aqui realizadas observou-se a existncia de correlaes entre as obras no que diz respeito aos traos motvicos, procedimentos de variao motvica, cadncias, acordes de superestrutura, relao intervalar entre linha do baixo e melodia, acordes de emprstimo modal e notas auxiliares.

    Palavras-chaves: Msica Popular. Anlise. Correlaes. Bossa Nova. Cool Jazz.

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    ABSTRACT

    It is noticed, in literature, and about Brazilian popular music the affirmative comments about the similarity existent between Bossa Nova and Cool Jazz that may be a result from the possible adoption of Cool Jazz elements by Bossa Nova composers. This research has its origin in the need to locate, via musical analysis, co-relationships between representative works from the Cool Jazz and Bossa Nova. Two arrangements works, one of each kind, were selected, nominated by that literature, as representative: Desafinado from the composer Antnio Carlos Jobim in partnership with Newton Mendona with arrangements by Jobim and Moom Dreams by Chummy MacGregor in partnership with Johnny Mercer with arrangements by Gil Evans. For the selection of those arrangements three aspects were taken into consideration: representation of the works, the originality and the notoriety of the arrangement. From Arnold Schoenberg and Almir Chediaks perspective, aspects concerning the melodic stratum were collected and related, via the analysis of the linear and harmonic processes, aspects concerning the melodic stratum such as basic motive, melodic variation procedures and motivic traces. And the harmonic processes including the polyphonic and homophonic resources, cadences, modal loan chords, superstructure chords, interval relationship between bass line and melody, modulations, auxiliary notes. As a result of the hereto made analysis it was noticed the existence of co-relationships between those works regarding the motivic traces, motivic variation procedures, cadences, superstructure chords, interval relationship between bass line and melody, modal loan chords and auxiliary notes. The survey of those aspects allowed, in a restrict way to those arrangements, to profoundly study and confirm some of the affirmative comments existent in literature concerning the common characteristics to those musical styles.

    Keywords: Popular Music. Analysis. Co-relationship. Bossa Nova. Coll Jazz

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    LISTA DE ABREVIATURAS

    1 Unssono

    b3 tera menor

    3 tera maior

    4 quarta justa

    b5 quinta diminuta

    5 quinta justa

    #5 quinta aumentada

    6 sexta maior

    bb7 stima diminuta

    7 stima menor

    7M stima maior

    b9 nona menor

    9 nona maior

    #9 nona aumentada

    11 dcima primeira justa

    #11 dcima primeira aumentada

    b13 dcima terceira menor

    13 dcima terceira maior

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    AEM acorde de emprstimo modal

    A apojatura

    an antecipao

    B bordadura

    BN Bossa Nova

    CM contorno meldico

    Cr cromatismo

    Ds dominante secundria

    Dsub dominante substituta

    D dominante primria

    E enarmonia

    FOM forma-motivo

    N.l. nota livre

    N.p. nota de passagem

    R retardo

    S subdominante

    T tnica

    x

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    SUMRIO

    LISTA DE FIGURAS.................................................................................................... xiii

    LISTA DE QUADROS.................................................................................................. xvi

    RESUMO........................................................................................................................ vii

    ABSTRACT.................................................................................................................... viii

    INTRODUO.............................................................................................................. 17

    1 OPES TERICO-METODOLGICAS............................................................ 20 1.1 Amostras e Procedimentos de anlise........................................................................ 26 2 BOSSA NOVA: ORIGEM E PRINCIPAIS CARACTERSTICAS...................... 28 2.1 Motivos para uma Bossa Nova............................................................................. 28 2.2 Bossa Nova, o Novo Estilo Precursores............................................................. 34 2.3 Bossa Nova: Apropriaes e Transformaes...................................................... 41 3 O JAZZ MODERNO.................................................................................................. 49 3.1 O Cool Jazz: Caractersticas e Principais Expoentes............................................ 53 4 DESAFINADO E MOON DREAMS. PROCESSOS LINEARES E

    HARMNICOS: ANLISES E CORRELAES............................................... 62

    4.1 Desafinado: Processos lineares............................................................................. 62 4.1.1 O motivo bsico e suas transformaes............................................................. 62 4.2 Moon Dreams: Processos lineares........................................................................ 76

    4.2.1 O motivo bsico e suas transformaes............................................................. 76 4.3 Desafinado: Processos verticais............................................................................ 94

    xi

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    4.3.1 Anlise Harmnica, Notas Auxiliares e Aspectos da Relao Intervalar

    Entre Linha do Baixo e Melodia........................................................................ 96

    4.4 Moon Dreams: Processos verticais........................................................................ 106

    4.4.1 Anlise Harmnica, Notas Auxiliares e Aspectos da Relao Intervalar Entre

    Linha do Baixo e Melodia.................................................................................. 106

    4.5 Desafinado e Moon Dreams: Correlaes e Particularidades............................... 124

    CONSIDERAES FINAIS........................................................................................ 128 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................ 131 ANEXO .......................................................................................................................... 134

    xii

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    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Motivo bsico a ....................................................................................... 63

    Figura 2 Forma-motivo a1 e o acorde de suporte.................................................... 63

    Figura 3 Forma-motivo a2 e o acorde de suporte.................................................... 64

    Figura 4 Primeiro contorno meldico...................................................................... 65

    Figura 5 Comparao entre o CM1 e o CM2).......................................................... 66

    Figura 6 Terceiro contorno meldico (CM3)........................................................... 67

    Figura 7 Relao motivo bsico-forma motivo a4................................................... 67

    Figura 8 Forma-motivo a5 e relao intervalar harmnicomeldica..................... 68

    Figura 9 Correspondncia entre notas do acorde e melodia.................................... 68

    Figura 10 Quarto contorno meldico......................................................................... 69

    Figura 11 Sexto contorno meldico (CM6)............................................................... 69

    Figura 12 Seqncia meldica e nova forma motivo do CM7.................................. 70

    Figura 13 Oitavo contorno meldico (CM8)............................................................. 71

    Figura 14 Variaes motvicas do CM9..................................................................... 71

    Figura 15 Relao motivo bsico - CM10................................................................. 72

    Figura 16 Comparao entre CM9 (l maior) e CM11 (transposio para d maior).........................................................................................................

    73

    Figura 17

    CM12.........................................................................................................

    73

    xiii

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    Figura 18 Comparao entre CM6 e CM14............................................................... 74

    Figura 19 Seqncia com a forma-motivo a4............................................................ 74

    Figura 20 CM16 constitudo de trs novas formas-motivo........................................ 75

    Figura 21 Assimetria.................................................................................................. 75

    Figura 22 Motivo bsico (a)....................................................................................... 76

    Figura 23 Comparao motivo bsico - forma motivo a1......................... 77

    Figura 24 Forma-motivo b......................................................................................... 77

    Figura 25 CM1 e relao melodia - notas de tenso de acorde.................................. 78

    Figura 26 Comparao entre os motivos do CM1 e CM2......................................... 79

    Figura 27 CM3 e acompanhamento em contracanto harmonizado em bloco............ 80

    Figura 28 Relao entre o CM4 e as formas-motivo derivadas: a1, d e b................. 81

    Figura 29 CM5........................................................................................................... 81

    Figura 30 Sexto contorno meldico (CM6)............................................................... 82

    Figura 31 Relao motvica entre o conectivo e os motivos do CM1....................... 83

    Figura 32 Relao formas-motivo a1 e e - CM7........................................................ 84

    Figura 33 Relao entre motivo bsico, FOM g e derivadas do CM8....................... 85

    Figura 34 Segmento contrapontstico........................................................................ 86

    Figura 35 Segmento em contraponto a cinco vozes................................................... 87

    Figura 36 Contraponto imitativo................................................................................ 88

    Figura 37 Primeiro perodo da seo C...................................................................... 90

    Figura 38 Segundo perodo da seo C...................................................................... 92

    Figura 39 Anlise harmnica, relao baixo-melodia e notas auxiliares, compasso [1] ao [8]....................................................................................................

    97

    xiv

  • 15

    Figura 40 Anlise harmnica, relao baixo-melodia e notas auxiliares, compasso [9] ao [16]...............................................................................

    98

    Figura 41

    Variao da relao intervalar baixo-melodia e nota livre......................

    99

    Figura 42 Anlise harmnica, relao baixo-melodia e notas auxiliares, compasso [25] ao [32].............................................................................

    100

    Figura 43

    Anlise harmnica, relao baixo-melodia e notas auxiliares, compasso [33] ao [40].............................................................................

    101

    Figura 44 Anlise harmnica, relao baixo-melodia e notas auxiliares, compasso [41] ao [48].............................................................................

    102

    Figura 45

    Variao da relao intervalar baixo-melodia e nota livre......................

    103

    Figura 46

    Anlise harmnica, relao baixo-melodia e notas auxiliares, compasso [57] ao [64].............................................................................

    104

    Figura 47 Anlise harmnica, relao baixo-melodia e notas auxiliares, compasso [65] ao [68].............................................................................

    105

    Figura 48 Anlise harmnica e relao baixo-melodia, compasso [1] ao [10]........

    107

    Figura 49 Anlise harmnica e relao baixo-melodia, compasso [11] ao [16]...... 109

    Figura 50 Anlise harmnica e relao baixo-melodia, compasso [17] ao [19]......

    110

    Figura 51

    Anlise harmnica e relao baixo-melodia, compasso [20] ao [21]..........................................................................................................

    111

    Figura 52 Figura 52: Anlise harmnica e relao baixo-melodia, compasso [22] ao [24].....................................................................................................

    112

    Figura 53 Anlise harmnica, relao baixo-melodia e notas auxiliares, compasso [25] ao [28].............................................................................

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    Figura 54 Anlise harmnica e relao baixo-melodia, compasso [29] ao [30]......

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    Figura 55

    Anlise harmnica, relao baixo-melodia e notas auxiliares, compasso [57] ao [64].............................................................................

    116

    Figura 56 Anlise harmnica, relao baixo-melodia e notas auxiliares, compasso [33] ao [36].............................................................................

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    xv

  • 16

    Figura 57

    Anlise harmnica, relao baixo-melodia e notas auxiliares, compasso [37] ao [41].............................................................................

    118

    Figura 58 Anlise harmnica, relao baixo-melodia e notas auxiliares, compasso [42] ao [48].............................................................................

    120

    Figura 59 Anlise harmnica, relao baixo-melodia e notas auxiliares, compasso [48] ao [49].............................................................................

    121

    Figura 59 Anlise harmnica, relao baixo-melodia e notas auxiliares, compasso [55] ao [59].............................................................................

    122

    LISTA DE QUADROS

    Quadro 01

    Quadro 02

    Quadro 03

    Quadro 04

    Quadro 05

    Funes tonais dos graus diatnicos.......................................................

    Funo meldica.....................................................................................

    Processos lineares....................................................................................

    Processos verticais..................................................................................

    Processos estruturais gerais ....................................................................

    23

    25

    124

    125

    127

    xvi

  • 17

    INTRODUO

    Em minha experincia como msico e professor tenho priorizado a busca por um maior

    entendimento acerca das obras que compem o repertrio da msica popular brasileira. Pude

    observar algumas lacunas no que diz respeito s colocaes sobre as semelhanas existentes entre

    a Bossa Nova (BN) e o Cool Jazz (CJ), resultado de uma possvel apropriao de elementos do

    Cool Jazz por parte de compositores da Bossa Nova, tema este constantemente abordado na

    literatura sobre a msica popular brasileira. Apesar de haver uma relativa quantidade de textos

    sobre este assunto, verifica-se certa homogeneidade no que diz respeito aos procedimentos de

    anlise e, igualmente, uma escassez de anlises estritamente musicais que mostrem elementos

    comuns aos dois estilos e que estariam fundamentando tal influncia.

    A partir da dcada de 40 observa-se uma intensificao da entrada do jazz norte-

    americano no Brasil. No meio musical este fato desencadeia uma srie de acontecimentos que

    vo desde a formao de big bands nacionais at a criao de um tipo de samba diferenciado, o

    samba-cano. As inovaes apresentadas pelo samba-cano aliadas ao conhecimento que os

    msicos brasileiros da poca tinham sobre o Jazz, em especial o Cool Jazz, teriam preparado o

    terreno para o surgimento da BN no Rio de Janeiro por volta de 1958.

    Segundo autores como Tvola (1998), Gava (2002), Tinhoro (1998) e Motta (2000) entre

    outros, a assimilao por parte da Bossa Nova de elementos advindos do Cool Jazz foi

    determinante para o surgimento da BN. Esta assimilao estaria implcita em recursos rtmicos,

    harmnicos e meldicos encontrados na Bossa Nova. Assim sendo, os compositores da BN,

  • 18

    fazendo uso de recursos advindos do Cool Jazz, realizaram transformaes no samba tradicional

    consideradas ainda maiores do que aquelas ocorridas no samba-cano na dcada de 1950.

    Esta pesquisa de cunho terico tem origem na necessidade de localizar, por meio da

    anlise musical, correlaes entre obras representativas dos estilos Cool Jazz e Bossa Nova. Para

    tal, foram selecionados dois arranjos de obras indicadas pela literatura como representativas,

    sendo um de cada estilo: Desafinado1 do compositor Antnio Carlos Jobim em parceria com

    Newton Mendona, arranjada por Antnio Carlos Jobim e Moon Dreams, de Chummy

    MacGregor em parceria com Johnny Mercer, arranjada por Gil Evans. Para a escolha desses

    arranjos foram levados em considerao trs aspectos: a representatividade das obras, a

    originalidade e notoriedade do arranjo. Com relao ao primeiro, foi levada em conta a reiterada

    citao das obras selecionadas como marcos referenciais dos estilos BN e CJ. Quanto ao segundo

    aspecto, a originalidade, sabe-se que certos arranjos so freqentemente mais comentados na

    literatura do que as obras originais. A notoriedade dos arranjos, ltimo aspecto considerado e

    diretamente relacionado ao segundo, est no fato de serem recriaes personalizadas dentro dos

    estilos BN e CJ adquiriram o mesmo grau de importncia da composio.

    Em uma anlise preliminar de Desafinado e Moon Dreams observou-se uma marcante

    unidade temtica, esta representada por uma estrutura motvica: motivo bsico e suas variaes.

    Assim sendo, este estudo foi direcionado para a anlise dos procedimentos de variao motvica

    dentro da perspectiva analtica de Arnold Schoenberg e harmnica com base nos procedimentos

    de Almir Chediak. A escolha destas abordagens analticas se deve ao fato de possibilitarem uma

    verificao detalhada dos aspectos particulares de cada obra e de permitirem o estabelecimento

    de correlaes existentes entre composies e/ou arranjos. Na anlise motvica so destacados os

    1 A exemplo dos autores Tvola (1998) e Gava (2002), neste trabalho os nomes das composies sero apresentadas em itlico.

  • 19

    principais traos motvicos e relaes entre motivo bsico e suas variantes. Na anlise harmnica

    so levantadas funes tonais, modulaes, tipos de acordes e notas auxiliares. As relaes

    intervalares entre melodia e linha do baixo tm por suporte o terico Ian Guest. Finalmente, com

    base na anlise, so identificados aspectos de equivalncia entre linguagens, destacando-se

    elementos semelhantes e dspares entre as obras Desafinado e Moon Dreams.

    Este trabalho est organizado em quatro captulos. No primeiro captulo so apresentadas

    as opes tericas e os aspectos metodolgicos da anlise. No segundo captulo realizada uma

    sntese de textos que abordam aspectos do contexto em que surgiu o movimento Bossa Nova,

    suas principais caractersticas e conceitos relacionados s possveis apropriaes realizadas por

    compositores da BN de elementos de outros estilos. Todo o contedo deste captulo est

    organizado em trs sees. No terceiro captulo, so levantadas as principais caractersticas do

    estilo Cool Jazz atravs de um panorama histrico.

    No quarto e ltimo captulo so apresentadas as anlises motvica e harmnica

    destacando-se traos comuns entre as obras em anlise. Ainda neste captulo so apresentados

    quadros destacando correlaes existentes entre as obras analisadas assim como particularidades.

  • 20

    1. OPES TERICO-METODOLGICAS

    A anlise motvica neste trabalho tem por suporte a teoria da variao progressiva de

    Arnold Schoenberg (1874-1951). A anlise harmnica neste texto segue os procedimentos

    utilizados por Almir Chediak combinada anlise de relaes intervalares entre linha meldica e

    baixo segundo procedimentos de Ian Guest.

    A escolha pelo mtodo analtico de Schoenberg se deve ao fato de que este possibilita a

    verificao detalhada de recursos meldicos empregados em obras. Para Schoenberg toda obra

    musical surge a partir do tratamento e desenvolvimento (variao) de uma clula meldico-

    rtmica denominada motivo. O motivo aquela clula musical que aparece de forma marcante,

    geralmente no incio de uma obra musical e, via de regra, todos os elementos subsequentes tm

    alguma afinidade com ele. Dentro desta perspectiva a anlise do motivo bsico torna-se

    fundamental uma vez que os elementos caractersticos deste e de suas variantes (formas-motivo)

    constituem a obra como um todo. Segundo Pvoas:

    O motivo , em uma obra musical, o fator de projeo do discurso musical preponderante. Dentro desta perspectiva de todo indispensvel que se leve em considerao as caractersticas dos componentes meldico, rtmico e harmnico contidos na clula condutora ou modelo bsico. Estas caractersticas bsicas proliferam no decorrer do discurso musical, manifestando-se nos planos horizontal, vertical e direcional da composio. (Pvoas, 1990: 13).

    Neste sentido o motivo tambm pode ser entendido como mximo divisor comum de uma

    composio. (Schoenberg, 1993:35).

  • 21

    Para Shoenberg a composio um processo de variao progressiva em que o motivo

    inicial transformado inmeras vezes, dando origem a novas formas motivos que guardam entre

    si uma ligao com o motivo matriz (bsico). Dessa maneira a conexo de formas motivos d

    unidade a obra ao mesmo tempo que gera contrastes necessrios ao discurso. Assim, para que

    haja coerncia em uma obra necessria a repetio do motivo.

    A repetio de um motivo pode ser literal ou modificada. As repeties literais mantm as

    caractersticas do motivo prevendo transposies a diferentes graus, inverses, movimentos

    retrgrados, diminuies e aumentaes so repeties exatas se preservarem os traos e as

    relaes intervalares. As repeties modificadas so obtidas atravs da variao onde alguns

    elementos so modificados e outros mantidos. Este tipo de repetio modificada produz novos

    materiais (formas-motivo) que sero utilizados na seqncia da obra musical. Todos os

    elementos rtmicos, intervalares, harmnicos e de perfil esto sujeitos a diversas alteraes. Com

    freqncia, aplicam-se muitos mtodos de variao a vrios elementos simultaneamente, (...)

    (SCHOENBERG, 1993:37).

    Na elaborao de repeties modificadas so empregados diferentes recursos de variao.

    Na variao rtmica se modifica a durao de notas, repetem-se outras notas e determinados

    ritmos, deslocam-se os ritmos, acrescentam-se contratempos ou modifica-se o compasso. A

    variao meldica ocorre atravs da transposio, variaes intervalares, mudana na ordem ou

    direo original das notas, acrscimo ou omisso de intervalos, preenchimento de intervalos com

    notas auxiliares, abreviao do motivo atravs da eliminao ou condensao de notas, repetio

    de certos padres ou deslocamento de alguns elementos para outras pulsaes. A variao

    harmnica pode ser realizada atravs do uso de inverses, implementao de novos acordes nas

    finalizaes, insero de acordes intermedirios e substituio de acordes e utilizao de

    acompanhamento semicontrapontstico (SCHOENBERG, 1993:37-38).

  • 22

    O motivo apenas o primeiro dos elementos que pode ser observado em uma anlise. Da

    combinao de motivos formam-se as frases, que so combinadas para formando as sentenas ou

    perodos, que por sua vez so agrupadas em estruturas maiores, as sees. Estas em princpio

    definem o aspecto formal das obras. (Schoenberg, 1993:37-49). Para Schoenberg, o termo forma,

    alm de ser utilizado em referncia as sees das obras, tambm significa que a obra constituda

    de elementos inter-relacionados em um discurso lgico e coerente, ou seja, organizada.

    Em um sentido esttico, o termo forma significa que a pea organizada, isto , que ela est constituda de elementos que funcionam tal como um organismo vivo.(...) Os requisitos essenciais para a criao de uma forma compreensvel so a lgica e a coerncia: a apresentao, o desenvolvimento e a interconexo das idias devem estar baseados nas relaes internas, e as idias devem ser diferenciadas de acordo com sua importncia e funo. (Schoenberg, 1993:27).

    A anlise harmnica de Desafinado e Moon Dreams foi realizada nos moldes propostos

    por Chediak. Este tipo de anlise possibilita uma viso direta dos processos harmnicos como:

    modulaes, cadncias e emprego de acordes de emprstimo modal. Permite identificar cada

    acorde da obra enquanto grau de uma tonalidade. Esta identificao realizada por nmeros

    romanos associados extenso da cifra do acorde em destaque. Cada grau, tendo por base uma

    pr-classificao, interpretado como sendo de funo tnica, subdominante ou dominante. O

    quadro seguinte apresenta as funes de cada grau das escalas tonais.

  • 23

    Quadro 1 funes tonais dos graus diatnicos.

    FUNO HARMNICA

    ESCALAS Tnica Subdom. Tnica Subdom. Domin. Tnica Domin.

    Maior I7M IIm7 IIIm7 IV7M V7 VIm7 VIIm7(b5)

    Menor har. Im(7m) IIm7(b5) bIII7M(#5) IVm7 V7 bVI7M VIIo

    Menor nat. Im7 IIm7(b5) bIII7M IVm7 *Vm7 bVI7M bVII7

    Gra

    us d

    a es

    cala

    Menor mel. Im(7m) IIm7 bIII7M(#5) **IV7 V7 Vim7(b5 VIIm7(b5)

    * No tem funo tonal. ** Subdominante com stima.

    Fonte: Chediak (1986: 96).

    A classificao da relao intervalar existente entre melodia e linha do baixo outro

    recurso analtico a ser empregado, paralelamente anlise harmnica. Dentro desta abordagem,

    destacam-se notas de tenso meldica que formam com a linha do baixo intervalos de quarta justa

    ou aumentada, quinta diminuta ou aumentadas, nona maior, menor ou aumentada, dcima

    primeira justa ou aumentada ou dcima terceira maior ou menor, considerados intervalos

    enriquecedores dentro do contexto harmnico, tpicos de acordes de superestrutura. (Guest,

    1996: 103).

    A anlise intervalar da relao entre a linha do baixo e melodia possibilita um maior

    entendimento dos recursos contrapontsticos existentes nas obras e apoia-se na idia de

    contraponto existente entre as duas linhas.

    O contracanto ou contraponto uma melodia que soa bem (combina) com um canto dado. A msica harmonizada inclui, quando a harmonia for bem conduzida no instrumento, vrios contracantos. Entre eles, o mais evidente a linha do baixo da harmonia. A prpria palavra contrabaixo a abreviao de contracanto baixo. A linha do baixo to forte, to melodiosa, que sugere, representa ou at substitui a harmonia. (Guest, 1996: 95).

  • 24

    Segundo Guest, a relao baixo-melodia pode ainda, em alguns casos, vir em primeiro lugar

    quando se procede a harmonizao de uma melodia. Isto se deve posio de destaque que estas

    duas linhas assumem em qualquer configurao harmnica.

    Tomando por referncia a ordem em que os sons da srie harmnica ocorrem, Guest

    prope uma anlise da relao intervalar entre melodia e baixo atravs da classificao dos

    intervalos resultantes. Destaca o fato de que a ordem de aceitao das dissonncias pelo ouvido

    humano no decorrer da histria a mesma dos intervalos tal como ocorrem na srie harmnica.

    (GUEST, 1996:102). A seqncia das notas da srie harmnica envolve, historicamente, a

    descoberta das dissonncias e sua subsequente aceitao como consonncia dentro da prtica

    musical ocidental.

    A evoluo do ouvido humano em sua histria, bem como do ouvido do indivduo no processo do amadurecimento, marcada pela busca de novos estmulos em forma de dissonncias. Essas dissonncias, uma vez acostumadas e rotineiras, tornam-se consonncias e plataformas para a busca de novas dissonncias. (Guest, 1996:102).

    Assim sendo, no processo de harmonizao ou de criao de um contracanto, pressupe-

    se que a nota fundamental de cada acorde produza uma srie harmnica.

    A partir do referencial anterior, considerado que dobrar ou triplicar, ou at mesmo

    suprimir a tnica ou a quinta justa faz pouca diferena. J a tera e a stima, so notas

    caractersticas dos acordes e consideradas indispensveis. A quarta justa pode, eventualmente,

    substituir a tera e a sexta pode substituir ou enriquecer a stima. As demais notas da srie que

    enriquecem as relaes intervalares so as tenses nona maior, menor e aumentada; dcima

    primeira justa e aumentada; dcima terceira maior e menor e as alteraes da quinta justa. Este

    tipo de anlise, denominada anlise da funo meldica, apesar de justificar matematicamente

    a sonoridade da relao melodia-harmonia no serve como mecanismo de sntese ou deduo de

  • 25

    melodias ou contracantos, porm pode servir na verificao de determinados procedimentos

    dentro do processo criativo. (Guest, 1996:99).

    A analise da relao intervalar entre as linhas da melodia e do baixo feita com base na

    caracterstica do intervalo enquanto consonante ou dissonante e na importncia da nota na

    estrutura global do acorde. No Quadro 2 esto indicadas as funes meldicas de cada uma das

    notas que podem ser classificadas como: nota de acorde ou nota de tenso. Em uma terceira

    categoria seriam colocadas as notas de aproximao (notas auxiliares), que so notas de curta

    durao resolvidas diatnica ou cromaticamente em notas de acorde ou de tenso.

    .

    Quadro 2 - funo meldica

    ACORDE NOTA MELDICA Estrutura de acorde de tenso 7M/6 m7 m 7M/6 m7(b5) dim 7 7sus4

    1 1 1 1 1 1 1

    3 b3 b3 b3 b3 3 4

    5(#5) 5 5 b5 b5 (#)(b)5 5

    7M/6 7 7/6 7 bb7 7 7

    9 9 9 9 9 (#)(b)9 (b)9

    #11 11 11 11 11 #11 (b)13

    b13 b13 b13 (b)13

    7M

    A relao intervalar entre melodia e baixo, assim como a conscincia da estrutura dos

    acordes e das notas de tenso so importantes recursos no processo de harmonizao, pois

    ampliam as possibilidades de tratamento das notas meldicas enquanto relaes

    contrapontsticas: as notas do canto ou do contracanto, ouvidas junto harmonia, entram no som

    dos acordes, enriquecendo-os pelos intervalos formados com as notas do baixo. (GUEST, 1996:

    103).

  • 26

    1.1 Amostras e Procedimentos de Anlise

    Nesta pesquisa, as amostras analisadas so transcries das obras em partitura.

    Desafinado foi extrada do SongBook Tom Jobim (Chediak, s/d:60-61), em arranjo para violo

    revisado pelo compositor e, Moon Dreams extrado da obra The Birth Of The Cool arranjo de Gil

    Evans para: sax alto, sax bartono, trompete, trompa, trombone, tuba, contrabaixo e bateria

    (Leonard, s/d: 108-115). Estas partituras encontram-se em anexo.

    A partir de anlise prvia das obras Desafinado e Moon Dreams foram levantadas

    caractersticas meldicas as quais nos referimos como traos motvicos. Estes traos motvicos

    so considerados como elementos responsveis pela unidade das obras. Desta maneira, serviram

    de suporte tanto para a anlise motvica quanto para o estabelecimento de correlaes. Tendo por

    base este procedimento, a anlise foi realizada destacando-se a relao entre o motivo bsico e

    suas variantes.

    A realizao da anlise harmnica serviu como suporte para a anlise motvica e para uma

    melhor compreenso da relao entre os processos meldico-harmnicos e contrapontsticos. Em

    paralelo a esta anlise foram indicados os tipos de notas auxiliares e a anlise da relao

    intervalar existente entre a linha do baixo e melodia. Na anlise harmnica os acordes encontram-

    se escritos em partitura e cifra. Em Desafinado a disposio das notas dos acordes orientam-se

    pela digitao, para violo, sugerida pela amostra. As figuras rtmicas no representam o ritmo

    harmnico uma vez que este no se encontra indicado na amostra. Em Moon Dreams a

    disposio das notas corresponde amostra, exceto a parte da bateria e das cifras sugeridas pela

    amostra que no foram consideradas. As linhas dos instrumentos sax alto, sax bartono, trompete,

    trompa, trombone, tuba e baixo esto apresentadas nos exemplos (Figuras) de cima para baixo.

  • 27

    Acima da grade de cada exemplo, encontram-se representados os acordes em cifras, os

    sinais indicando cadncias e resolues e a anlise de relao intervalar entre baixo e melodia. A

    anlise funcional est representada abaixo da grade atravs das abreviaturas: T (tnica), D

    (dominante), S (subdominante), Ds (dominante secundria) e Dsub (dominante substituta)2.

    Abaixo dessa indicao e com base nos nmeros romanos esto indicados os graus tonais,

    modulaes e tipos de cadncia.

    A estas anlises segue-se um quadro correlacionando aspectos comuns e destacando

    particularidades das obras.

    2 Estas indicaes foram acrescentadas aos procedimentos de Chediak.

  • 28

    2. BOSSA NOVA: ORIGEM E PRINCIPAIS CARACTERSTICAS

    Neste captulo so abordados aspectos relacionados origem e caractersticas da Bossa

    Nova (BN). A maioria dos argumentos aqui considerados relacionam caractersticas da BN com

    aspectos histricos e tm por base comparaes deste estilo com outros.

    2.1 Motivos Para Uma Bossa Nova.

    No final da dcada de 50 e no incio da dcada 60 o Brasil atravessava uma onda de

    modernizao e otimismo, esta fomentadora de reformulaes. Essa "onda de modernizao"

    apontada como determinante para o surgimento do ento considerado novo estilo musical, a

    Bossa Nova. A indstria do livro, do disco, do rdio e da TV em plena expanso, ampliavam seus

    horizontes para alm do eixo Rio-So Paulo. A marca "Bossa Nova" era indiscriminadamente

    utilizada para designar uma srie de outros produtos para alm do estritamente musical. Mesmo o

    batismo do novo estilo musical como "Bossa Nova", creditado ao jornalista Moyss Fucks, surge

    em um desses variados usos que se fazia para a expresso. Fucks ao redigir o programa de uma

    apresentao de msicos amadores anunciou "uma noite bossa nova". Mais adiante a cano

    Desafinado de Jobim e Mendona consagraria a marca. (GAVA, 2002:59).

    Muitas autores afirmam que o surgimento da BN coincide e de alguma forma resultado

    de um perodo de grandes transformaes scio-polticas e tecnolgicas no pas. neste

    momento histrico que compositores e intrpretes, movidos por um mpeto vanguardista

  • 29

    associado a fatores como resistncia determinadas tradies musicais e apropriando-se de

    elementos de outras linguagens musicais, criaram um novo estilo.

    Tvola (1998) e Gava (2002) entendem que, alm de um novo estilo musical, a Bossa

    Nova tambm tornou-se um movimento. Esta classificao se fundamenta, inicialmente, no fato

    de a BN ter inserido na msica popular uma srie de novos elementos musicais verificados na

    sofisticao rtmica, meldica e principalmente harmnica, resultando assim na criao de um

    novo estilo. Um outro argumento aponta para o legado deixado pela BN, como a influncia sobre

    outros movimentos que viriam a seguir, entre eles a Tropiclia e, em parte, do que seria

    classificado genericamente por MPB - msica popular brasileira. No entanto, apesar de a

    expresso movimento Bossa Nova ser bastante usual, em seus momentos iniciais no havia

    exatamente uma organizao nem a inteno de se criar um novo estilo musical, "de fato, os

    fundadores da BN no estavam organizados para tal, tampouco possuam certeza ou convico de

    estar marcando importante etapa da msica brasileira." (Tvola, 1998:35). Assim sendo, para este

    autor, o que mais caracterizou a Bossa Nova enquanto novo estilo musical foram as descobertas e

    as ousadias realizadas inicialmente por um grupo formado, em sua maior parte por jovens da

    Zona Sul carioca inspirados no esprito de modernidade que se vivia na poca.

    Para Naves (2001:10), dentro de uma linha de pensamento bastante aproximada daquela

    de Tvola, o que marcou a BN foi o fato de que os bossanovistas, de uma maneira individualista,

    sem programas e manifestos ou ainda preparados para substituir uma esttica ultrapassada por

    outra inteiramente nova, "inventaram um ritmo e uma harmonia inusitados para a poca". Para

    Augusto de Campos, a BN foi um movimento de rebeldia contra a estandardizao e o

    consumismo. Seus integrantes brincavam com a msica, utilizando o nonsense, o humor e a

    metalinguagem, tudo isso com economia verbal." (Campos apud Gava, 2002: 55)

  • 30

    Independente das opinies divergentes no que diz respeito ao fato de ser a BN um

    movimento musical, as colocaes anteriores destacam o mpeto vanguardista da Bossa Nova

    que representou, em certos aspectos, uma ruptura com a tradio musical de ento. Denotam

    ainda uma certa resistncia a um "tipo de sensibilidade h muito arraigada na cano popular

    brasileira e que se consolidou nos anos 50: a que se associava ao excesso, nas suas mais

    diferentes manifestaes." (NAVES, 2001:10). Este excesso estaria implcito no teor

    exageradamente romntico das letras, nos arranjos que eram feitos para orquestras de grande

    porte e na interpretao carregada de intensidade e floreios de muitos cantores. Inicialmente foi o

    descontentamento com essas caractersticas que motivou a transformao do samba tradicional.

    A dcada de 50 tambm foi um perodo de entrada no pas, alm do jazz norte-americano,

    de uma variedade de estilos musicais estrangeiros. Esses estilos faziam a moda da poca e as

    verses para o portugus tambm sofriam um processo de apropriao em suas junes com o

    samba. Sobre a msica brasileira da poca imediatamente anterior Bossa Nova, Roberto

    Menescal diz que o momento em que a BN surge, coincide com o encerramento de um perodo

    em que os discursos j no encontravam mais lugar entre o pblico da nova gerao, em especial

    a gerao classe mdia da Zona Sul carioca.

    Para Menescal, foi o contedo das letras o principal fator de resistncia ao repertrio da

    poca. Fator que viria a inspirar, por exemplo, seu clssico "Barquinho": "essa histria de 'se eu

    morresse amanh de manh, minha falta ningum sentiria', no estava com nada. Imagina, eu

    com dezoito anos cantando um negcio desses." Segundo Menescal este tipo de msica tinha

    uma linha meldica linda, no entanto, o contedo da letra teria inspirado o apelido de "samba

    canseira". (MENESCAL apud LISBOA, 2002:19). Da surge o tema "dia de luz, festa de sol",

    que, segundo Menescal foi uma tentativa de transformar tudo numa coisa bonita, saudvel,

    substituindo os lamentos da vida por um clima de festa.

  • 31

    (...) a gente estava saindo de uma fase da msica brasileira que era bonita, que sempre foi bonita, mas os assuntos, o discurso da poca, no eram nossos, nem podiam ser... Era tudo feito com palavras sofridas e no batia com uma gerao feito a nossa, que vinha com a cabea voltada para a natureza, para o dia, o sol. A msica que havia era voltada para a noite: "Garon, apaga essa luz que eu quero ficar sozinha... (Menescal apud Lisboa, 2002:19).

    As letras das canes do perodo anterior Bossa Nova tinham nos excessos emotivos e

    nos arrebatamentos a sua marca principal, a exemplo da letra da cano Ningum me ama (1952)

    de Fernando Lobo e Antnio Maria que representante de um estilo de samba que marcou a

    dcada de 1950, o "samba de fossa".

    "Ningum me ama/Ningum me quer/Ningum me chama/De meu amor/A vida passa/E eu sem ningum/E quem me abraa/No me quer bem/Vim pela noite to longa/De fracasso em fracasso/E hoje descrente de tudo/Me resta o cansao/Cansao da vida,/Cansao de mim/Velhice chegando/E eu chegando ao fim/Ningum me ama,/Ningum me quer" ( Lobo e Maria, Apud Severiano e Mello, 1998:293).

    A temtica dessas canes exaltava a solido, o abandono e a infelicidade, tendo por cenrio o

    ambiente dos bares e das boates. (SEVERIANO e MELLO, 1998). A Bossa Nova rompe com

    essa esttica. As situaes e temas abordados nas letras das novas canes resumiam-se aos dados

    essenciais, com expresses contidas, privilegiando os acontecimentos cotidianos de forma

    intimista, como possvel verificar na letra da cano Samba de uma nota s (Jobim/Mendona):

    "Eis aqui este sambinha/Feito numa nota s/Outras notas vo entrar/Mas a base uma s/Esta outra conseqncia/Do que acabo de dizer/Como eu sou a conseqncia/Inevitvel de voc/Quanta gente existe por a/Que fala tanto e no diz nada/Ou quase nada j me utilizei de toda a escala/E no final no sobrou nada/E voltei pra minha nota/Como eu volto pra voc/Vou cantar com a minha nota/Como eu gosto de voc/E quem quer todas as notas/R mi f sol la si d/Fica sempre sem nenhuma/Fique numa nota s". (Jobim e Moraes, Apud Chediak, s/d: 35).

  • 32

    O arrefecimento do contedo dramtico das letras, associado ao carter interpretativo

    imposto pela Bossa Nova, contribuiu para um maior equilbrio entre os elementos poticos e

    musicais. Tambm ampliou a relao entre o valor sonoro da palavra e os elementos musicais,

    assim como entre a voz e a instrumentao, j que um passou a no mais se destacar em

    detrimento do outro.

    As letras deixaram de ser valorizadas apenas como meios transmissores de emoes ou vivncias de uma personagem ou de seu autor; deu-se um fim temporrio s rimas foradas e aos lamentos banais; o valor sonoro da palavra passou a ser explorado em estreita associao com os demais componentes estruturais da msica. Os elementos citados tornaram evidentes alguns paralelos com a poesia concretista, dotando a msica de um nvel de apreciao mais exigente. Nesse sentido, as letras das canes despojaram-se de tudo o que denotasse drama, arrebatamento e exageros emotivos (tpicos da cano latina). (Gava, 2002:32).

    A concepo dos arranjos foi outra das caractersticas da msica dos anos 50 que a Bossa

    Nova rejeitaria. Naqueles arranjos, para orquestras de grande porte, se fazia largo uso de violinos

    e metais. Na BN a orquestra substituda por um conjunto menor, mais camerstico: violo,

    piano, percusso e baixo. Isto est ligado ao fato de que para uma interpretao contida, de cunho

    intimista, se fez necessria tambm uma instrumentao menor que permitia um maior equilbrio

    entre a voz do intrprete e os instrumentos musicais. " uma voz pequena, que dialoga com o

    instrumento musical em vez de exibir sua prpria potncia." (Naves, 2001:13).

    Para Gava (2002) os arranjos da BN teriam sofrido uma forte influncia do Cool Jazz.

    Isto estaria explcito no tratamento camerstico, caracterstico do CJ que teria sido empregado nos

    arranjos da BN, ou seja, um tipo de camerismo em msica popular com uso de poucos

    instrumentos, arranjos econmicos, poesias e interpretaes delicadas". (Gava, 2002:31-51). A

    instrumentao da BN se caracterizou por uma clareza de detalhes, anos depois chamada de clean

  • 33

    ou easy listening. "Instrumentao luminosa, clara, perceptvel em suas qualidades de

    refinamento e sntese. Poucos instrumentos, contraponto, ousada poltica de acordes." (Tvola,

    1998:64).

    Outra caracterstica que diferencia a BN de alguns estilos da dcada de 40 e 50 diz

    respeito interpretao vocal. Muitos cantores desta poca utilizavam recursos opersticos,

    exibindo potncia sonora e utilizando-se de recursos de impostao tpicos do canto erudito. A

    BN, em direo oposta, imprimiu uma interpretao suave e amena s canes, caracterstica

    verificada desde o seu surgimento e, sobretudo, nas interpretaes de Joo Gilberto. Nelson

    Motta, que viveu ativamente o movimento Bossa Nova, relata sua opinio sobre as msicas que

    tocavam no rdio na poca do surgimento da BN, destacando essa questo interpretativa:

    Rio de Janeiro, 1957(...) A msica, pelo menos a que se ouvia no rdio e nos discos, era insuportvel para um adolescente de Copacabana no final dos anos 50. Boleros e samba canes falavam de encontros e desencontros amorosos infinitamente distantes de nossas vidas de praia e cinema, de livros e quadrinhos, de incio da televiso e da nsia de modernizao. Para ns, garotos de classe mdia de Copacabana, aqueles cantores da Rdio Nacional e suas grandes vozes, dizendo coisas que no nos interessavam em uma linguagem que no entendamos, eram abominveis. (Motta, 2000:09)

    Neste relato de Nelson Motta verifica-se que outra razo para o desagrado da nova

    gerao com relao ao repertrio anterior foi, alm do contedo das letras conforme destacado

    anteriormente, a interpretao destas msicas realizada por grandes vozes caracterizadas pelo

    excesso de recursos estilsticos e tcnicas de impostao vocal comuns na poca e considerada

    uma linguagem incompreensvel, abominvel.

  • 34

    2.2 Bossa Nova, o Novo Estilo - Precursores

    A cano inaugural da Bossa Nova Chega de Saudade de Antnio Carlos Jobim em

    parceria com Vincius de Moraes. Foi lanada duplamente em 1958, primeiramente no LP

    Cano do amor de mais de Eliseth Cardoso e em seguida num compacto de 78 rpm da Odeon,

    interpretada por Joo Gilberto, mesmo tendo sido lanada depois do LP de Eliseth Cardoso. Gava

    (2002:109) considera apenas a interpretao de Joo Gilberto como marco inicial do movimento

    BN. Essa afirmao se deve interpretao de Joo Gilberto que inaugurava tambm, com o

    lanamento de Desafinado de Jobim em parceria com Newton Mendona, uma nova maneira de

    interpretar. Neste mesmo ano, Joo Gilberto iniciava a produo do LP Chega de Saudade

    (Odeon # 3.073) gravado entre julho de 1958 e fevereiro de 1959. Para esta gravao Joo

    Gilberto (voz e violo) contou com a participao de Tom Jobim que, alm de ser o compositor

    de algumas faixas, foi tambm arranjador e regente. Entre as doze faixas deste LP encontram-se

    as canes Chega de Saudade e Desafinado.

    As canes Desafinado e Samba De Uma Nota S foram consideradas uma espcie de

    manifesto por serem emblemticas e representativas das mudanas provocadas pelo ento novo

    estilo musical (NAVES, 2001:14) . No que diz respeito aos elementos musicais, ambas

    evidenciavam as principais caractersticas da BN que divergiam dos estilos predominantes na

    poca como o samba-cano. Estas caractersticas so verificadas na sofisticao harmnica,

    meldica e rtmica apresentadas, pelo uso de um menor nmero de instrumentos nos arranjos e

    por uma interpretao suave e contida. Os arranjos dos sambas canes faziam largo uso de

    instrumentos de sopro e cordas, no estilo das grandes orquestras de jazz norte americano.

  • 35

    Na Bossa Nova as letras passaram a ter, sobretudo, um carter mais leve, bem humorado e

    at certo ponto irnico, indo na contramo dos temas at ento vigentes. Pode-se dizer que Chega

    de Saudade anunciou o fim da melancolia e do clima dramtico das letras aboleradas do

    repertrio anterior. J Desafinado, utilizando-se da temtica do amor no correspondido para

    justificar as melodias difceis de entoar e suportadas por uma harmonia dissonante de difcil

    assimilao poca, rendeu aos bossanovistas a fama de "desafinados". Mais adiante, as

    composies de Tom Jobim e a maneira singular de interpretar de Joo Gilberto lhes renderia a

    posio de maiores expoentes do movimento BN, estilo que viria a destacar ainda um grande

    nmero de compositores e intrpretes.

    Se Chega de Saudade inaugura a Bossa Nova, anteriormente foram verificadas

    manifestaes j antecipando o mesmo estilo musical. Um dos precursores do novo estilo,

    apontado pelo prprio Tom Jobim foi Johnny Alf. Ele utilizava, j no incio da dcada de 50,

    recursos do Cool Jazz3 em suas interpretaes, antecipando assim alguns dos elementos

    harmnicos e meldicos que a bossa viria utilizar anos depois. Foi a gravao em 1955 da cano

    Rapaz de Bem de autoria e interpretao de Johnny Alf que viria provocar mudanas no rumo do

    samba tradicional. Esta gravao com Alf ao piano e voz considerada emblemtica das

    novidades que viriam, mais adiante, transformar o samba tradicional. Com relao s novidades

    apresentadas, Mello (2001:17) nos diz que a marcao do piano em Rapaz de Bem "no se

    vinculava do contrabaixo do trio dando um apoio independente que mais parecia um cerco

    [harmnico] melodia do cantor do que uma sustentao tradicional."

    3 O Cool Jazz foi o nome dado ao estilo de jazz surgido em meados dos anos 40, nos Estados Unidos, que caracterizou-se por apresentar harmonias mais complexas e por ser executado de forma mais leve, menos enftica. Faz parte deste mesmo movimento o West Coast jazz.

  • 36

    J a melodia, com saltos inesperados, nascia de uma original seqncia harmnica -

    nada parecido[a] com o que mais se ouvia nas rdios, teatros e boates. A produo de Johnny

    Alf era o que havia de mais moderno na msica popular brasileira. Para Severiano e Mello

    (1998:324), a cano Rapaz de bem antecipou, em seis anos, o surgimento de uma outra cano

    de melodia tambm inusitada e chocante para a sua poca: Desafinado. Segundo esses autores,

    as melodias dessas duas canes podem at ser confundidas devido grande semelhana

    existente entre elas.

    Um outro precursor da Bossa Nova foi Dick Farney, tambm por razes semelhantes

    Johnny Alf (MEDAGLIA, 1986:79). Gava (2002) e Mello (2001) afirmam que a preparao para

    o terreno em que futuramente germinaria a BN teve como marco inicial uma data ainda mais

    atrs no tempo. Trata-se da gravao, em 1946, da cano Copacabana de Joo de Barro e

    Alberto Ribeiro na voz de Farnsio Dutra tambm conhecido como Dick Farney. A msica trazia

    Dick Farney acompanhado por uma orquestra de cordas com arranjos de Radams Gnattali.

    Gnattali era considerado um adepto da modernidade pelo fato de ter desenvolvido junto

    com Pixinguinha uma nova concepo orquestral que substituiu o papel dos regionais nos

    arranjos por recursos orquestrais diferenciados. Ambos eram arranjadores da gravadora Victor.

    As transformaes na concepo dos arranjos eram reflexos de uma tendncia que propunha

    modernizar a msica popular. Acreditava-se que o caminho desta modernizao era o samba

    cano. Outros msicos como Laurindo de Almeida, Lcio Alves, Agostinho dos Santos, Ismael

    Neto, Nora Ney e Doris Monteiro, arranjadores como Moacyr Santos e K-Ximbinho,

    compositores como Jos Maria de Abreu, Lus Bonf, Tito Madi, Dolores Duran, Garoto,

    Valzinho, Antonio Maria e Billy Blanco tambm faziam parte desta tendncia modernizadora.

    (MELLO, 2001:16).

  • 37

    Como resultado das mudanas provocadas por essas novas tendncias "em vez da tosca

    simplicidade dos regionais, a cano popular passou a receber orquestraes ricas de sopros e

    cordas, em que os instrumentos no eram mais utilizados para "dar o tom" e sim, de maneira

    contrapontstica, para possibilitar uma relao mais complexa entre o intrprete e os

    instrumentos." (NAVES, 2001:10-11).

    A gravao de Copacabana em uma interpretao suave e romntica de Dick Farney,

    cantando em portugus e nos moldes dos grandes arranjos caractersticos das Big Bands4 norte-

    americanas, atendeu na medida as expectativas do pblico, bastante receptivo s novidades e

    ansioso por modernidade da poca, principalmente aquelas trazidas pelo jazz norte-americano e

    interpretaes de Frank Sinatra. Segundo Gava,

    O disco que continha Copacabana foi lanado numa poca em que as bandas de swing norte-americanas e as interpretaes de Frank Sinatra faziam muito sucesso no Brasil. Dick Farney estava sendo revelado como cantor e seu grande mrito talvez estivesse em demonstrar que uma certa modernidade j pairava no ar e que o romantismo e a sensualidade podiam tambm ser cantados em portugus. O mais importante, contudo, que j no era necessrio utilizar recursos vocais opersticos, ou repetir exageros interpretativos de um Vicente Celestino (para citar um exemplo radical). (Gava, 2002:40).

    Gava destaca que o grande mrito de Farney foi apresentar uma interpretao menos

    dramtica, mais contida, revelando uma atitude inovadora e corajosa para a poca. No entanto,

    Farney no foi o primeiro nem o nico a utilizar esse recurso. Antes dele, Noel Rosa e Mrio

    Reis j cantavam sem preocupao em exibir potncia sonora. Esta maneira de interpretar menos

    enftica, contida e suave seria chamada mais adiante de "voz de travesseiro". Identificava ainda

    cantores da mesma poca de Farney que se destacavam pela conteno expressiva, a citar

    4 Big Bands o nome dado s bandas de jazz formadas por naipes de instrumentos de sopro (metais e madeiras), percusso, piano, contrabaixo e voz.

  • 38

    Lupicnio Rodrigues, Dris Monteiro, Nora Ney, Lcio Alves, Tito Madi e Ivon Cury. (GAVA,

    2002:41).

    Um outro motivo tambm propiciou o surgimento da Bossa Nova. Trata-se da revoluo

    tecnolgica verificada a partir da dcada de 50. As novas tecnologias, como por exemplo o Hi-Fi

    (high fidelity), possibilitaram a transformao da percepo do material sonoro gravado. Isto foi

    possvel atravs da ampliao dos recurso de captao e reproduo do som que destacavam as

    nuanas e traziam tona elementos musicais at ento relegados a um segundo plano, como a

    harmonia.

    A reproduo de sons em alta fidelidade comeou a aguar o ouvido dos msicos da poca. Queriam obter tecidos sonoros diferenciados. A busca levou-os a usos peculiares dos instrumentos e a junes que se prestassem s novas formas de gravao: era o ritmo em primeiro plano, harmonias ousadas e sonoridades inusitadas, podendo ser transportadas para o disco. (...) Melhorando a qualidade da reproduo de sons, o acompanhamento, antes relegado a mero apoio, poderia vir a primeiro plano para proclamar a ascenso da harmonia. (Tvola, 1998:30-31).

    Nesse perodo, alm de uma grande transformao nos meios tecnolgicos, verifica-se

    tambm um aprimoramento da qualidade musical representada pelo apuro tcnico dos

    compositores, arranjadores e intrpretes. Dentre os compositores de maior destaque deste perodo

    imediatamente anterior ao surgimento da BN e caracterizado pelo samba-cano esto: Haroldo

    Barbosa, Ary Barroso, Garoto, Tito Madi, Dolores Duran, Radams Gnatalli, Adoniran Barbosa,

    Billy Blanco, Lupicnio Rodrigues, Slvio Cezar e Luis Bonf. Tambm neste perodo atuavam

    como compositores Tom Jobim e Newton Mendona em parceria com Dolores Duran e Dora

    Lopes, respectivamente. Mais adiante Tom Jobim e Newton Mendona se tornariam parceiros de

    composio e destaques da BN. (TVOLA, 1998:33).

  • 39

    Os compositores aliados a arranjadores como Radams Gnatalli e Lrio Panicalli,

    instrumentistas como Johnny Alf e Altamiro Carrilho e cantores como Orlando Silva, Francisco

    Alves, Slvio Caldas vindos de dcadas anteriores e ainda Elizeth Cardoso, Marisa Gata Mansa,

    Dolores Duran e Dick Farney, realizaram o movimento samba-cano. Destacam-se ainda os

    arranjadores Renato de Oliveira e Gaya os instrumentistas Garoto, Faf Lemos, Chiquinho do

    Acordeon, Jos Menezes, Jacob do Bandolim, Abel Ferreira e Lus Bonf e cantores como

    Nelson Gonalves, Lenita Bruno, Dalva de Oliveira, ngela Maria, Dris Monteiro, Agnaldo

    Rayol, Lcio Alves e Cauby Peixoto, entre outros. (TVOLA, 1998:33).

    O movimento samba-cano foi to importante quanto a BN, abrindo as portas para o seu

    surgimento. (TVOLA, 1998:34). Os adeptos dessa nova tendncia na msica popular brasileira

    concentravam-se na zona sul carioca. Para Mello (2001), dois outros consagrados compositores

    compartilhavam tambm, de maneira ainda mais acentuada, dessa tendncia que resultaria no

    surgimento da Bossa Nova: Ary Barroso e Dorival Caymmi.

    Segundo Gava, as experincias desenvolvidas pela Bossa Nova apontam para uma ligao

    com os iderios modernistas apregoados no incio do sculo XX, incorporados e desenvolvidos

    no Brasil atravs da Semana de Arte Moderna.

    V-se que, tanto a Bossa Nova musical quanto as muitas experincias lanadas sob essa marca denotavam atitudes pragmticas, objetivas e realistas, na busca de uma maior clareza e simplicidade. Isso permite, talvez, a visualizao de uma linha evolutiva ligando os ideais artsticos europeus germinados no incio do sculo (incorporados e desenvolvidos no Brasil com a Semana de 22), retomados no movimento concretista da dcada de 1950 e, finalmente, cristalizados pela "vanguarda" bossanovista, traduzidos em maior controle racional sobre a obra, clareza formal, sutileza, domnio tcnico, economia de elementos e de enfeites. (Gava, 2002:34).

    O autor afirma ainda que, apesar das propostas modernistas da Semana de 22, a msica popular

    brasileira anterior Bossa Nova, de maneira geral, se manteve ligada a um iderio romntico e

  • 40

    choroso na qual predominava "a facilidade meldica e o sentimentalismo estereotipado". Dessa

    maneira, retomando alguns postulados da Semana da Arte Moderna e abandonando muitas das

    caractersticas de uma msica j tida como tradicional, os criadores da BN reformularam o

    cenrio musical. Foi a resistncia por parte dos integrantes do movimento Bossa Nova s

    caractersticas do repertrio estabelecido que possibilitou uma reao em forma de movimento

    artstico.

    Outros dois fatos ainda podem ser considerados determinantes para a consolidao da

    tendncia modernizadora da msica popular brasileira no perodo em questo. O primeiro se

    verifica na adeso de Vincius de Moraes msica popular em parceria com Tom Jobim para a

    composio das canes da pea Orfeu Negro, um espetculo sobre a verso carioca da lenda de

    Orfeu apresentado inicialmente no Rio de Janeiro. Essas canes j continham "os elementos

    meldicos e harmnicos da modernidade". (Mello, 2001:19). O segundo fato, aponta para o

    lanamento do LP Cano do Amor Demais de Elizeth Cardoso que, de certa maneira, j

    antecipava a Bossa Nova nas canes "Chega de Saudade" e "Outra Vez", frutos da parceria de

    Tom Jobim e Vincius de Moraes. Estas msicas traziam ao violo Joo Gilberto que j dava

    sinais de sua nova batida e que viria a se tornar, em breve, sua grande marca. Essa nova batida de

    Joo Gilberto caracterizava-se por acentuar as notas executadas em tempo fraco provocando,

    desta maneira, o aumento da tenso e do swing. (MELLO, 2001:24-26). No final da dcada de 50

    o ambiente encontrava-se preparado para o surgimento da BN.

  • 41

    2.3 Bossa Nova: Apropriaes e Transformaes

    "(...) Pobre samba meu/Foi se misturando se modernizando/E se perdeu/E o rebolado cad?/No tem mais/Cad o tal gingado que mexe com a gente/Coitado do meu samba mudou de repente/Influncia do Jazz (...)" (Lyra Apud Chediak, s/d: 45).

    Dentre os fatores indicados como determinantes para o surgimento da Bossa Nova, assim

    como de suas principais caractersticas esto as transformaes do samba ocorridas por

    assimilao de elementos de outras linguagens, advindos da msica brasileira, do jazz norte-

    americano e a da msica erudita europia.

    Embora refutada por muitos autores, uma das polmicas criada a respeito da BN foi a de

    que este novo estilo no seria o verdadeiro samba por razes diversas. Segundo Tinhoro

    (1998:310), a incapacidade dos fomentadores do movimento de sentirem a batida intuitiva do

    samba levou-os a modificarem esse aspecto, substituindo-o por um esquema cerebral, sugerido

    pela multiplicao das sncopes5, acompanhadas da descontinuidade do acento rtmico da

    melodia e do acompanhamento6. Surgiria assim uma espcie de birritmia7 causada pelo

    desencontro dos acentos e que viria se caracterizar, a seguir, como o acompanhamento rtmico

    "padro" dos sambas Bossa Nova. Para o autor, a BN terminou por modificar o que restava de

    original ao samba tradicional.

    Sobre esta polmica, de a Bossa Nova ser ou no samba, Medaglia, tomando por

    referenciais geogrficos a Zona Norte e Zona Sul cariocas, afirma ser a BN uma outra parte de

    5 Sncope uma nota que executada em tempo fraco ou parte fraca de tempo tem seu som prolongado at o tempo forte seguinte ou parte forte do tempo seguinte, criando um efeito de deslocamento das acentuaes naturais. 6Acompanhamento o nome usual que se d para a seqncia de acordes de uma msica na qual se sobrepe a melodia, no s na bossa nova mas em vrios outros estilos musicais. 7 Birritmia a superposio de dois ritmos ou mtricas diferentes.

  • 42

    um mesmo samba interpretado de maneira diferente. Tomando como base diferenas entre essas

    duas regies cariocas diz o autor:

    (...) se o morro e a Zona Norte comandam praticamente o carnaval carioca com seus blocos e escolas de samba (...), a Zona Sul, (...) oferece tambm um outro tipo de contribuio musical (...). Por ser Copacabana, por exemplo, a maior concentrao demogrfica do Pas, e os seus apartamentos os seus pequenos bares e boites, os locais onde circula diariamente toda uma faixa da populao, natural que a manifestao oriunda dessa regio tenha caractersticas prprias. (Medaglia, 1986:72).

    Medaglia (1986: 72) atribui o surgimento do novo estilo s diferenas regionais. Dentre os

    aspectos distintivos verificam-se a substituio, pelos moradores da Zona Sul, de algumas

    expresses utilizadas na Zona Norte. Por exemplo, a expresso cabrocha substituda por

    garota, requebrado por balano e s vezes mulata abrandado para morena. Sugerida

    pela intimidade dos pequenos ambientes, tambm uma forma de expresso musical mais sutil e

    mais elaborada e diversa de uma manifestao musical oriunda de um terreiro de Vila Isabel, se

    criaria ali. Outro aspecto distintivo entre a Zona Norte e a Zona Sul foi a vida em apartamentos

    que influenciou o cantar "baixinho", de maneira intimista, uma vez que a platia encontrava-se

    prxima.

    Surgiria uma msica mais voltada para o detalhe, [para o] canto, violo e pequenos conjuntos; desenvolver-se-ia a prtica do canto-falado ou do cantar baixinho uma vez que a audincia est prxima -, do texto bem pronunciado, do tom coloquial da narrativa musical, do acompanhamento e canto integrando-se mutuamente, em lugar da valorizao da grande voz ou do solista. (Medaglia, 1986:72).

    Outra diferena apontada reside no fato de uma parcela da populao mais bem informada e

    formada por um pblico receptivo s reformulaes apresentadas pela BN, estar concentrada na

    Zona Sul e ter acesso direto a um capital cultural intelectualizado e rebuscado. Estas

  • 43

    reformulaes dizem respeito aos aspectos poticos, complexidade harmnica e s sutilezas

    interpretativas do novo estilo musical.

    Essas condies de concentrao permitem tambm o uso de textos mais elaborados, mais refinados (...). A estrutura musical mais rebuscada; as melodias so, em geral, mais longas e mais dificilmente cantveis, as harmonias mais complicadas, plenas de acordes alterados e pequenas dissonncias, os efeitos de interpretao so mais sutis e mais pessoais, permitindo pequenos artifcios, como silncios ou pausas expressivas, assim como detalhes de execuo instrumental mais sofisticada etc. Por ser tambm essa faixa da populao mais rica, possui condies adequadas para se informar atravs da gravaes e da imprensa, recebendo assim dados sobre o que acontece em outras regies do mundo e com outras msicas, sofrendo influncias e aperfeioando as suas prprias criaes artsticas. (Medaglia, 1986:72).

    Se do lado Norte tem-se o samba de rua com melodias facilmente assimilveis e

    cantveis, prprios de uma msica com funo condutora e unificadora direcionada para as

    massas, do lado Sul verifica-se um ambiente propcio ao surgimento da Bossa Nova com muitos

    elementos sofisticados e contrastantes com relao ao samba tradicional. Esses elementos so,

    conforme dito anteriormente, melodias e harmonias dissonantes de difcil assimilao para a

    poca e ainda letras com expresses diferentes retratando uma outra realidade social.

    Um dos ambientes em que se desenvolveu a Bossa Nova foi o apartamento de Nara Leo,

    em Copacabana. Neste apartamento, com o aval dos pais de Nara Leo, passavam-se as noites e

    s vezes o dia seguinte tocando violo. (MENESCAL apud LISBOA, 2002:21). Sobre a marcante

    caracterstica de a BN ser uma msica intimista, contida e suave, Menescal diz que na dcada de

    60 Copacabana era uma regio com muitos apartamentos e que as reclamaes sobre os excessos

    de rudo provocados pela vizinhana eram constantes. Para ele, foram as reclamaes e as

    "batidas de vassoura no teto" que obrigavam o pessoal a tocar baixinho: "A msica acabou

    tomando essa feio de arte zen mas, na verdade era para no fazer barulho".(MENESCAL apud

  • 44

    LISBOA, 2002:22). Esta interpretao retomada ainda por outros autores como Motta (2000) e

    Gava (2002) para justificar o aspecto tranqilo, suave e controlado da BN.

    Para Tom Jobim, dentro da mesma linha de pensamento de Medaglia, a BN deve ser

    entendida como uma conseqncia do samba, ou seja, a inovao dentro de uma mesma

    linguagem.

    O samba autntico no Brasil muito primitivo. Nele so usados dez instrumentos de percusso, e quatro ou cinco cantores. cantado em voz alta e a msica quente e maravilhosa. Por sua vez a bossa nova mais fria e cantada mais suavemente. A bossa nova conta sua histria em linha meldica simples e com letra sria ou lrica. Joo Gilberto e eu sentimos que a msica brasileira foi como uma tempestade no mar, e ns queremos acalm-la para lev-la aos estdios de gravao. Poderamos chamar a bossa nova de um samba lavado, esfregado, freqentando a alta roda. No queremos perder coisas importantes. Temos o problema de como escrever, sem perder o balano. (Jobim apud Fernandes, s/d:02).

    Justificando o aspecto transformador da Bossa Nova como sendo a continuao de uma

    tradio musical popular, Jobim coloca a BN como sendo um movimento renovador pautado em

    transformaes poticas e musicais do samba tradicional, afirmando ainda o seu carter

    suavizador em relao ao samba tradicional. Sobre esta questo da tradio e as influncias

    que teriam norteado as composies da Bossa Nova, Tom Jobim, em entrevista para Almir

    Chediak, falando sobre quais as msicas que mais gostava de ouvir, disse:

    Gostava de muitos. Do Ary Barroso, sem dvida, do Dorival Caymmi, um mestre, do Pixinguinha, do garoto, do Custdio Mesquita... sou apaixonado pelo Custdio, um sujeito muito adiantado para a poca dele... Gostava tambm do Noel Rosa, do Jos Maria de Abreu, do Lamartine Babo, (...) No terreno erudito, o Villa-Lobos, Debussy, Ravel, Chopin, Bach, Beethoven etc. Mas Villa-lobos e Debussy so influncias profundas na minha cabea. Ao jazz, ao verdadeiro jazz, no tive muito acesso. O que a gente ouvia aqui no era o jazz. Eram aquelas orquestras norte-americanas. O negcio do jazz era para colecionador, para um cara rico, playboy, coisa assim. No sou um profundo conhecedor de jazz. (Jobim, s/d:10-14).

  • 45

    Esta resposta de Jobim demostra claramente que alm do gosto pessoal e de seu

    conhecimento acerca dos principais compositores e artistas de msica popular da poca, tambm

    se declarou profundamente influenciado por Villa-lobos e Debussy. A este ltimo, inclusive,

    credita a utilizao de acordes com nona8 por ele, muito antes da vinda ou divulgao do jazz

    americano e da Bossa Nova. Essa outra afirmao de Jobim rebate as afirmaes de que a BN

    utilizou-se de recursos harmnicos do jazz norte americano,

    (...)Depois eu vi que os puristas daqui diziam que a bossa nova era em cima do jazz. Isso virou um jazz danado. Quando esse pessoal dizia que a harmonia da bossa nova era americana, eu achava engraado, porque essa mesma harmonia j estava em Debussy. No era americana coisa nenhuma. Chamar o acorde de nona de inveno americana um absurdo. Esses acordes de dcima primeira, dcima terceira, alteradas com tenses, com adendos, com notas acrescentadas, isso a voc no pode chamar de americano. (Jobim, s/d:14).

    Jobim justifica o grande sucesso da BN junto ao pblico norte americano quando diz que:

    o norte-americano pegou a bossa nova porque achou interessante. Se fosse uma cpia do jazz,

    no interessaria. Cpia do jazz eles esto cansados de conhecer. Tem jazz sueco, jazz francs,

    jazz alemo(...). (JOBIM, s/d:14). Ainda sobre a questo do samba tradicional e se existiria de

    fato uma msica genuinamente brasileira, Jobim, entrevistado por Vincius de Moraes responde:

    Sim, se chamarmos de msica brasileira o amlgama de todas as influncias recebidas e assimiladas, tornadas nossas pelo contato com a furiosa realidade brasileira. Chamamos autntico um Ernesto Nazareth, conquanto ele traga uma enorme influncia chopiniana. O que no posso concordar com a identificao de alguns com a msica brasileira de um determinado perodo e a negao conseqente de outra msica brasileira de outro determinado perodo. (...) As pessoas, as culturas, a msica comunicam-se umas com as outras. H sempre influncias novas, pois, de outro modo, a nica msica brasileira mesmo seria a dos tupis e guaranis, que, por sua vez, dizem os antroplogos, j tm sua origem na Oceania. (...) (Jobim apud Tvola, 1998:50).

    8 Tipo de acorde largamente empregado no jazz moderno e na Bossa Nova.

  • 46

    Para Jobim a msica brasileira consiste em um "amlgama" de uma variedade de influncias

    advindas das mais diversas regies do planeta, principalmente europia e africana, possui uma

    base rtmica negra que, misturada tradio musical europia, resultou no samba, na rumba, no

    mambo e no jazz. Diz o compositor que "(...) a contribuio Europia , como se pode imaginar,

    vastssima, quer em melodia, quer em harmonia, como forma, e tambm como contribuio

    instrumental. A verdade que a velha cultura europia encontrou aqui um solo frtil e novo".

    (JOBIM apud TVOLA, 1998:51).

    Com referncia s composies de Jobim, Lorenzo Mammi (2000:16) afirma que:

    se evoluo natural da cultura musical brasileira ou adaptao de um modelo importado (...) o que faz a grandeza da msica brasileira no a existncia de uma linguagem musical pura, nem de gneros estritamente populares, mas sim a capacidade de fundir e adaptar tcnicas das provenincias as mais variadas.

    Segundo o autor, a Bossa Nova foi a expresso de uma sociedade mais articulada que

    representava a elite, no do poder, mas da cultura. Era a mesma sociedade que se identificava

    com a arquitetura de Niemeyer, os jardins de Burle Marx, os relevos espaciais de Hlio Oiticica,

    a prosa de Guimares Rosa e Clarice Lispector. Pela primeira vez o Brasil oferecia ao mundo

    uma imagem que no era apenas sedutora pelo exotismo, mas relevante pelo projeto

    modernizador que propunha. (Mammi, 2000:16-17). A BN foi uma nova linguagem que se

    estabeleceu em um ambiente movimentado pela modernidade, numa demonstrao da alta

    capacidade de transformao e adaptao da msica brasileira.

    Para Gava (2002), a Bossa Nova foi a continuidade de uma tradio musical iniciada na

    dcada de 30, perodo de fundao da linguagem prpria da msica popular brasileira. Seu estudo

    comparativo entre msicas do perodo bossanovista e msicas da dcada de 30, chamadas por ele

  • 47

    de Velha Guarda, mostra a BN como uma continuao, enquanto tratamento harmnico, de

    procedimentos tonais j verificados naquele estilo. "Em sua grande parte, a harmonia da BN

    evidenciou ter sido elaborada com base nas funes bsicas apresentadas pela Velha Guarda."

    Isto se deu atravs do uso mais freqente na BN de notas acrescentadas (quartas, stimas,

    aumentadas, diminutas, maiores e menores), de subdominantes substitutas e ainda o acrscimo de

    notas como nona, dcima primeira e dcima terceira maiores e menores s dominantes. Segundo

    o autor o objetivo do procedimento seria camuflar as funes harmnicas bsicas atravs da

    adio de notas dissonantes e acordes de superestrutura9 denominados por ele como acordes

    desdobrados. Dessa maneira A BN teria enriquecido o processo harmnico pela incluso de

    acordes de superestrutura e tambm de clichs, geralmente a quatro vozes, realizados

    cromaticamente. Gava afirma que o uso acentuado desses procedimentos na BN, ao invs de

    simples recursos ornamentais, passou a ter funo estrutural dentro da obra. Isto acabou por

    estabelecer uma nova maneira de harmonizar. (Gava, 2002:239).

    A partir de consideraes sobre elementos constitutivos da msica Moraes relata as

    novidades trazidas pela BN.

    Harmonia - Acordes feitos de intervalos raros. Um elenco de novidades ora buscadas no jazz, ora na msica erudita, notadamente na msica impressionista francesa. Ritmo - O resultado da superposio de pelo menos dois ritmos provenientes do samba tradicional, s que utilizados simultaneamente e em defasagem. Assimtrico, com acentuaes nos tempos no esperados. Melodia - Tendncia intismista de fazer com que ela soasse mais ligada declamao do que ao canto derramado. E suas marcas mais caractersticas passaram a ser as linhas sinuosas e cromticas e um gosto acentuado por certas dissonncias. (Moraes apud Tvola, 1998:53).

    9 Acorde de superestrutura uma ttrade acrescida de notas de tenso como nonas, dcimas primeiras e dcimas terceiras.

  • 48

    Nas colocaes anteriores foi possvel observar que h diferentes interpretaes e opinies a

    respeito do surgimento da BN. A grande maioria dos argumentos dizem respeito s possveis

    apropriaes realizadas por compositores e intrpretes da Bossa Nova de elementos advindos da

    msica brasileira, do jazz e da msica erudita. Estas apropriaes resultaram no surgimento de

    um estilo caracterizado, de maneira geral, pela complexidade harmnica e interpretado de

    maneira suave e contida.

  • 49

    3. O JAZZ MODERNO

    No perodo compreendido entre a dcada de 1940 e 1950, aproximadamente, surgem em

    Nova Iorque duas correntes estilsticas com muitos aspectos em comum o Be Bop e o Cool Jazz.

    Estas duas correntes fazem parte do que se convencionou chamar jazz moderno. O Be Bop, ou

    simplesmente Bop, caracterizou-se pela improvisao com melodias rpidas caracterizadas por

    assimetrias e padres de acentuao. J o Cool Jazz, surgido alguns anos aps o Be Bop, utilizava

    harmonias mais avanadas com influncia da msica europia, principalmente a de Stravinsky e

    Debussy. Considerado um estilo de jazz mais tranqilo e controlado se comparado ao jazz

    tradicional e ao Be Bop, o Cool Jazz se valia de uma execuo menos enftica, mais leve,

    caracterstica interpretativa que causou furor em alguns crticos da poca que no acreditavam ser

    possvel tocar jazz dessa maneira. Da o nome "cool" associado ao frio, fresco, calmo ou ainda

    moderado. O Be Bop tem como os dois maiores expoentes Dizzy Gillespie e Charlie Parker, o

    Cool Jazz tem Miles Davis, o Modern Jazz Quartet e ainda os grupos de Dave Brubeck e Gerry

    Mulligan conhecidos tambm por West Coast jazz10.

    Para Vidossich (1957), um dos motivos para o aparecimento dos dois novos estilos foi a

    grave crise que o jazz atravessava durante a Segunda Guerra Mundial provocada, em grande

    parte, pela morte de msicos pioneiros do jazz de Nova Orles como Fat's Waller, Albert

    Ammons, Tommy Ladnier, Jimmy Noone, King Oliver, Bunk Johnson e Jelly Roll Morton. Nova

    10 Andr Francis considera Miles Davis a estrela mxima do estilo cool jazz e ainda Stan Getz como o msico mais importante do movimento. (FRANCIS, 1987:149)

  • 50

    Orles (New Orleans) foi bero da forma mais antiga do jazz surgido a partir da fuso de formas

    folclricas negras, ragtime e o blues, com gneros populares.

    Tanto o Be Bop quanto o Cool Jazz transformaram o jazz tradicional. Seus criadores

    utilizaram-se de recursos que acabaram descaracterizando o jazz tradicional por meio de grandes

    mudanas nos seus aspectos rtmicos, harmnicos e meldicos. Um dos principais fatores que

    provocaram essas transformaes foi a incluso, na linguagem do jazz, de elementos e recursos

    advindos da msica erudita. Este fato est ligado ao processo de formao dos msicos e da

    entrada do jazz no universo acadmico.

    Estruturados dentro de uma nova concepo musical menos espontnea, se comparada ao

    jazz tradicional, O Be Bop e o Cool Jazz foram amplamente criticados desde seu surgimento. A

    nova maneira de fazer jazz foi considerada por muitos aficionados intolervel e classificada

    como msica de laboratrio. "Pouco a pouco, (...) o jazz foi decaindo perigosamente, cada vez

    mais sujeito s experincias e s novas frmulas, exatamente como acontece num vulgar

    laboratrio de pesquisas e anlises." (VIDOSSICH, 1957:208). Especificamente sobre o Cool

    Jazz, Vidossich (1957) afirma ser esse um estilo musical ainda mais "degenerado" se comparado

    ao Be Bop. Isto justifica o fato do estilo ter sido batizado de "cool", ou seja, o jazz "frio". Por

    outro lado, h quem considere a expresso "cool" mais relacionada aos aspectos meldicos e

    harmnicos do que propriamente s concepes expressivas j que "a execuo do cool jazz

    leve e contida." (FRANCIS, 1987:149).

    Uma das crticas mais ferrenhas ao Be Bop e ao Cool Jazz direcionada para a perda

    considervel do Swing11, marca principal do jazz tradicional. Isto se deve a uma maior liberdade

    11 O termo swing aqui aplicado, se refere preciso rtmica que tem por resultado o equilbio dos quatro tempos do compasso quaternrio. No entanto, necessrio dizer que o termo swing ganhou uma variedade de significados na histria da msica popular, podendo reportar-se desde o estilo de jazz que leva esse nome at a maneira sincopada e acentuada de tocar de certos intrpretes.

  • 51

    mtrica verificada nestes novos estilos. Essa caracterstica foi apontada como digressiva para o

    jazz tradicional. Em depoimento Dizzy Gillespie concorda com essa afirmao. Diz que "com o

    progresso que teve e as propores que assumiu, o bop afastou-se um pouco de ns. Estamos

    demasiado afastados do ritmo. O jazz deve ter swing, acima de tudo, o jazz deve ter swing".

    (GILLESPIE apud TERKEL, 1965:159). Vidossish, que considera o jazz moderno como a

    prpria anttese do jazz tradicional, afirma que os modernos bateristas no mantm uma

    regularidade rtmica, prejudicando assim uma das grandes caractersticas do jazz tradicional.

    Uma das principais inovaes tcnicas no modernismo concernente bateria. (...), ela tem um papel preponderante e uma funo vital num conjunto, pois a interpretao de cada msico baseia-se sobre a sua regularidade; apenas uma acelerao ou uma diminuio do tempo podem ser fatais, e prejudicar o conjunto inteiro na conservao do tempo e dos compassos. Os bateristas modernos no mantm um tempo regular. Disso deriva ausncia de "swing", essncial para criar o "hot"". (Vidossich, 1957:210).

    Um outro aspecto apontado pela crtica foi que o jazz havia se tornado demasiado

    "tcnico". O fato que a grande maioria dos msicos que fazia parte desses novos movimentos

    tinha formao musical ou tinham contato direto com a academia. Erlich (1975) afirma que aps

    a Segunda Guerra Mundial o papel da academia e do professor tornou-se cada vez mais

    importante na histria do jazz. Os msicos recm chegados da Segunda Guerra Mundial e do

    conflito coreano estudaram em escolas como a Juilliard School of Music de Nova Iorque, a

    Faculdade Estadual do Norte do Texas ou ainda no Mills College da Califrnia. A academia e os

    estudos formais contriburam para os novos rumos do jazz, ampliando os horizontes da pesquisa e

    fundindo uma prtica musical, mais comumente de base intuitiva e emprica (jazz tradicional),

    com o rigor dos estudos formais orientados pela tradio da msica europia. Um relato a esse

    respeito feito por Lester Young (1975) que tocava em meados da dcada de 30 em Kansas City

    com Count Basie. Segundo ele, muitos msicos de sua banda no sabiam ler partitura: "me sentia

  • 52

    como um garoto na escola, como os msicos da banda no sabiam ler partitura, ensaivamos os

    nmeros repetidamente at que cada um aprendesse sua parte." (Young apud Erlich, 1975:181).

    Sobre a tecnicidade das novas produes jazzsticas, em particular dos pianistas, Vidossich

    testemunha:

    As execues piansticas de hoje, ao contrrio das tradicionais, refletem a tcnica, e so o resultado de arranjos e das partituras escritas. Alm disso, falta o "swing". O estilo "stride", to apreciado h vrios anos, que permitia a marcao magistral do tempo, baseando-a em acordes percussivos da mo esquerda, deixou lugar a uma srie de "clichs" montonos e estandardizados, que foram copiados dos cadernos de estudo dos conservatrios clssicos. (Vidossich, 1957:210).

    Para Stroff (1991), a "classicizao" do jazz nos anos 50 ameaou a espontaneidade de

    expresso deste estilo provocado pela formalidade estrutural da escola erudita. O citado autor diz

    que "o jazz chegou sala de aula e dela saram duas geraes de msicos carregados de diplomas

    mas sem nenhuma experincia real onde de fato contava: no campo de batalha."

    O carter harmnico, principalmente o verificado no Cool Jazz, tornou-se tambm um

    fator de estranheza. O jazz moderno passou a utilizar harmonias consideradas complicadas e de

    difcil assimilao para os ouvintes da poca. Muito dessa "estranheza" se deve ao uso de

    procedimentos composicionais advindos da msica erudita. Destas apropriaes so destacadas: a

    complexificao harmnica, norteada por procedimentos utilizados por compositores como

    Stravinsky e Debussy; as concepes expressivas e instrumentos prprios da msica de cmara, o

    lirismo nas interpretaes e os novos recursos orquestrais e composicionais, verificados no uso de

    tcnicas como o contraponto12, a politonalidade13, o modalismo14 e harmonias em quarta15 feito

    12 Contraponto a arte de executar duas ou mais linhas meldicas distintas e relacionadas, simultaneamente. 13 Politonalidade o uso simultneo de duas ou mais tonalidades diferentes. 14 O modalismo um termo empregado para denominar a msica baseada em um ou mais modos. 15 Harmonias em quarta o procedimento que consiste no uso de harmonias construdas com a sobreposio de intervalos de quarta. (GUEST, 1996:13).

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    pelos compositores do estilo Cool Jazz. Malson afirma ainda que alguns compositores, mantendo

    uma rtmica jazzstica, apropriaram-se de certas formas da msica europia em contextos

    harmnicos diversos, que podem ir da msica barroca desintegrao, ainda que passageira, da

    msica atonal e mesmo serial. (MALSON, 1989:98).

    Outra caracterstica tradicional que o jazz moderno abandonou diz respeito sua

    associao com a dana. Como a dana sempre acompanhou o jazz desde o cake walk, o

    charleston e o jitterburg, houve quem considerasse inadmissvel um jazz sem dana. "As msi