Da ficção em Leviathan de Paul Auster: jogos de escrita ... Helena de Queirós Pereira Da ficção...

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Maria Helena de Queirós Pereira Da ficção em Leviathan de Paul Auster: jogos de escrita, identidade e alterídade PORTO 1997

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Maria Helena de Queirós Pereira

Da ficção em Leviathan de Paul Auster:

jogos de escrita, identidade e alterídade

PORTO

1997

Maria Helena de Queirós Pereira

Da ficção em Leviathan de Paul Auster:

jogos de escrita, identidade e alteridade

Dissertação de Mestrado em Estudos Anglo-Americanos

(Literatura Norte-Americana) apresentada à

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

UNIVERSIDADE DO PORTO Faculdade de Letras

aiBUOTEÇA . , ^ B . I O L I U U

Data g T / a: JfL/19-aí.

PORTO

1997

Desejo publicamente expressar o meu reconhecimento ao

Professor Doutor Carlos Azevedo por todo o apoio que me

concedeu na elaboração deste trabalho. Para além de me ter

motivado para áreas de leitura e estudo que mal conhecia, não

posso esquecer a paciência e a disponibilidade com que aceitou as

inconstâncias do meu ritmo de trabalho, nem deixar de salientar a

relevância da sua orientação em todas as fases de desenvolvimento

desta dissertação.

Os ecos do convívio, do diálogo e da partilha de

conhecimentos com os meus colegas de Mestrado estão também

presentes no trabalho. Devo mesmo às palavras lúcidas da Cristina

o impulso final que evitou o abandono deste projecto.

A colaboração "técnica" e a amizade da Júlia e da sua família

foram também extremamente importantes, assim como o

encorajamento e as ajudas pontuais de muitos outros amigos, cujo

apoio não esquecerei.

À Paula e aos meus pais agradeço a crença incondicional nas

minhas potencialidades e as suas palavras motivadoras, bem como a

compreensão que demonstraram perante a minha falta de tempo

para os assuntos domésticos e familiares. Esta dissertação também

lhes pertence.

Introdução

He recalls an exhibit of Renaissance picture frames at the Alte Pinakothek in Munich. The frames were empty, hung against white walls; elsewhere in the museum, the masterpieces of Altdorfer, Grunewald, and Durer, of Breughel and Rembrandt, hung in their plenitude. He sensed that the museum had now become the frame of frames. And the frame of the museum? Finally, of course, the Universe.

But the Universe was an unspeakable fiction - a "thing" turned into fiction precisely in order to be spoken. Did framing and its opposite, deconstruction, then turn everything into fiction?

He refuses the thought. Desire and Death, he needs to assume, are "literal." Else the Universe is but a trope on the Void. This goes against something in him.1

A relação ambígua e paradoxal entre realidade e ficção na cultura

contemporânea, que a epígrafe de Hassan preocupadamente reflecte, é o ponto de

partida para o presente trabalho.O seu propósito é analisar na obra de Paul Auster - e

especificamente em Leviathan - o modo como se manifesta e é tratada a actual

tendência relativizante do poder da linguagem (e, por consequência, da ficção), no

que diz respeito à expressão de um real que a percepção humana encontra sempre

mediado por pressupostos e matrizes linguístico-ideológicas. Esta tendência será

associada a uma visão construcionista do mundo e a um cepticismo crescente em

relação à possibilidade de expressão de um real cada vez mais caótico, violento,

incompreensível.

1 Ihab Hassan, The Postmodern Turn: Essays in Postmodern Theory and Culture (Ohio: Ohio State University Press, 1987), p. 119.

2

Depois de, nesta Introdução, ser levada a cabo a contextualização ideológico-

cultural da obra, o primeiro capítulo tentará analisar a construção narrativa de

Leviathan, tendo por base os parâmetros já referidos e salientando o papel fulcral da

multiplicação de versões sobre a mesma realidade na estruturação da obra. Para isso,

será feita uma aproximação de Leviathan a As Mil e Uma Noites e aos contos

tradicionais, nomeadamente em relação às motivações para a escrita e ao

encadeamento narrativo. Esta aproximação será a base de um estudo do inevitável

processo de ficcionalização da realidade e do homem inerente à própria condição do

ser humano, e de como este tema é retratado e problematizado em Leviathan.

O segundo capítulo pretenderá, partindo das reflexões do primeiro,

desenvolver uma investigação sobre as ambiguidades existentes no romance ao nível

das instâncias narrativas e das personagens. Tentar-se-á, por isso, fazer um

levantamento das relações de dependência e influência entre os diferentes discursos

que explícita ou implicitamente se manifestam em Leviathan, o que acarretará a

exploração do papel do autor no romance e a aceitação de uma concepção

palimpséstica do texto e do homem. As ambiguidades investigadas serão depois

equacionadas com a questionação subversiva de Paul Auster dos poderes e dos

limites da linguagem e da ficção na descrição e/ou criação do real.

Não pretendendo encontrar soluções finais (o próprio objecto de estudo

impossibilita-o), a última parte do trabalho tentará, antes, construir uma ou várias

estruturas interpretativas parciais e provisórias que reflitam a problematização em

que todo ele está imerso, sendo também fonte de motivação para novas e frutuosas

discussões sobre esta temática.

3

Em A Condição Pós-Moderna, Jean-François Lyotard afirma:

Na sociedade e na cultura contemporâneas, sociedade pós-industrial, cultura pós-moderna, a questão da legitimação do saber põe-se noutros termos. A grande narrativa perdeu a sua credibilidade, qualquer que seja o modo de unificação que lhe está consignado ...2

Este passo surge na sequência de uma análise da evolução das formas de

legitimação do saber nas sociedades do Ocidente, contrastando a época actual com a

"modernidade", na qual, segundo Lyotard, as próprias ciências sentiram necessidade

de justificar o seu saber através de metanarrativas de legitimação. A temática que

Lyotard aflora neste passo é central às preocupações epistemológicas da cultura

contemporânea, designada por ele como pós-moderna, na sequência da designação

dada por muitos autores, entre os quais o próprio Ihab Hassan3. De facto, a questão

da credibilidade das grandes narrativas legitimadoras do saber parece preocupar

sobremaneira filósofos, historiadores, artistas, críticos, sociólogos, cientistas e todos

os que se dedicam a um qualquer campo do conhecimento humano, uma vez que elas

funcionaram durante muito tempo como fundações de todo o saber. Pôr em causa

uma metanarrativa auto-legitimadora, uma história que se explica e se torna

fundamentadora de todo o saber implica, assim, pôr em causa o próprio valor do

conhecimento adquirido dentro dos seus parâmetros.

Ora só uma grande desconfiança em relação ao seu poder explicativo e auto-

legitimador poderia justificar o abandono de estruturas tão profundamente

facilitadoras do desenvolvimento do saber. De facto, o que está por trás deste

2 Jean-François Lyotard, A Condição Pós-Moderna, trad. José Navarro (Lisboa: Gradiva,1989), p. 79. 3Hassan, The Postmodern Turn, pp. xvi-xvii e 167-173.

4

descrédito das metanarrativas é a consciência cada vez mais firmada de que nada é

auto-justificável, absoluto, universal.

Em The Postmodern Turn, Ihab Hassan explica as manifestações desta

consciência:

All my comments so far evade the peculiar provocations of our postmodern thought. It is an antinomian moment that assumes a vast unmaking in the Western mind (...) I say "unmaking" though other terms are now de rigueur, from deconstruction to dispersal to a variety of virtual "deaths". Such terms express an ontological rejection of the traditional full subject, the cogito of Western philosophy. They express, too, an epistemological obsession with fragments or fractures, and a corresponding ideological commitment to minorities in politics, sex, and language. To think well, to feel well, to act well, to read well, according to this epistémè of unmaking, is to refuse the tyranny of wholes; totalization in any human endeavor is potentially totalitarian.4

A tendência para desconstruir, para pôr em dúvida, é de novo associada ao

momento contemporâneo, ao pós-moderno. Ela funciona como uma forma de fuga

ao poder tirânico das metanarrativas, sempre totalitárias porque sempre impregnadas

por interesses ideológicos que pretendem, antes de mais, o consenso inquestionável e

a aceitação das suas premissas como valores absolutos.

Consequência desta descredibilização das grandes teorias fundamentadores é

a questionação da natureza universal e incontestável da noção de verdade. O

verdadeiro é relativizado, já que só o é dentro de certa teoria e, por isso, de certo

poder ideológico. Como Linda Hutcheon afirma, referindo-se à ficção pós-moderna,

não se deve procurar dizer a verdade, antes questionar " whose truth gets told" .

A relativização da verdade implica, naturalmente, a fragmentação do conceito

de realidade, a que não é alheia a consciência apocalíptica do potencial de destruição

disponível para o ser humano. Perante a hipótese cada vez mais próxima da

4Hassan, The Postmodern Turn, pp. 133-134, sublinhado meu. 5 Linda Hutcheon, A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction (New York/London: Routledge, 1995), p. 123.

5

destruição do planeta e do fim da humanidade, a noção tradicional de realidade

desfaz-se, tornando-se também ela relativa: "We are, I believe, inhabitants of another

Time and another Space, and we no longer know what response is adequate to our

reality"6. Se a própria realidade se dilui enquanto entidade superior a qualquer

necessidade de legitimação, surgindo sempre mediada por pressupostos ideológicos,

também todas as concepções tomadas como absolutas e universais se fragmentam:

daí a rejeição da ideia tradicional do sujeito uno e total (a explorar mais adiante) e a

desmistificação do poder da linguagem como ponte objectiva de acesso ao real.

A preocupação com o papel da linguagem na expressão do real é bem visível

nas questões sobre a referência que, segundo Linda Hutcheon, estão a ser postas em

várias áreas de conhecimento: "Does the linguistic sign refer to an actual object - in

literature, history, ordinary language? If it does, what sort of access does this allow

us to that actuality? Reference is not correspondence, after all (...) Can any linguistic

reference be unmediated and direct?"7 De facto, o referente nunca corresponde ao

real: a sua "realidade" pertence a uma estrutura discursiva regida por valores

ideológicos específicos, não existindo no mundo objectivo enquanto tal. Esta

constatação implica a impossibilidade de acesso directo ao real e a imersão necessária

de qualquer hipótese de conhecimento num mundo de linguagens e discursos:

"Postmodern representation is self-consciously all of these - image, narrative, product

of (and producer of) ideology."8

6 Hassan, The Postmodern Turn, p.39. 7 Hutcheon, A Poetics of Postmodernism, 144. 8 Linda Hutcheon, The Politics of Postmodernism (London/New York: Routledge, 1993), p.31.

6

O carácter ideológico da referência constitui mais um aspecto do processo de

desconstrução (que, segundo Hassan, caracteriza a cultura pós-moderna), e acarreta

um cepticismo crescente em relação ao conhecimento. Em "Postmodern

Characterization and the Intrusion of Language"9, Hans Bertens explica sucintamente

o que implica a descoberta deste carácter. Ao reflectir sobre um assassínio cometido

por Bloch, a personagem principal de The Goalie's Anxiety at the Penalty Kick, de

Peter Handke, afirma:

Bloch's sometimes unbearable awareness of the inadequacy of language is indirectly responsible for the murder. Furthermore, it is obvious that the failure of language is so threatening to Bloch because what he experiences as his identity, his hold on himself and the world, is bound up with language so that the awareness of that failure acutely threatens his sense of himself as a coherent subject. If language's supposed competence in dealing with the world is a fiction, then Bloch as he knows himself and the world is a fiction as well.10

Quando a competência da linguagem para transmitir objectivamente o real é

questionada, o que está em causa é mais do que um problema de comunicação: há um

conjunto de axiomas e valores de ordem epistemológica e ontológica que deixam de

ter ancoragem legitimadora. Sem metanarrativas para enquadrar o saber e a própria

condição humana, com a perda do acesso directo ao real e da consciência do sujeito

como entidade coerente, provocada pelo falhanço da linguagem, é natural que Bloch

considere a hipótese de ser ele próprio e o seu mundo uma ficção. São todos os

pressupostos da sua - e da nossa - civilização que estão a ser desafiados.

O desafio não implica, contudo, o cepticismo total, e a solução de Bloch

não é a única possível. Ele provoca, antes, uma procura de novas formas de

9 Hans Bertens, "Postmodern Characterization and the Intrusion of Language", Exploring Postmodernism: Selected papers presented at a workshop on postmodernism at the Xlth International Comparative Literature Congress, ed. Matei Calinescu e Dowe Fokkema (Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Pub. Comp., 1987), pp. 139-159. 10Bertens, "Postmodern Characterization", pp. 151-152.

7

entendimento do real e do saber. Se linguagem, sujeito e mundo são ficções,

construções feitas com base em discursos ideologicamente intencionados, também é

verdade que são estas ficções que nos permitem enfrentar o próprio real: "Men

manage reality by their constructions", afirma Ihab Hassan em The Dismemberment

of Orpheus11, e é esta perspectiva construcionista que dá sentido à cultura pós-

moderna. Brian McHale define em Constructing Postmodernism a noção de

construcionismo:

Constructivism's basic epistemological principle is that all our cognitive operations, including (or especially) perception itself, are theory-dependent. This means, first of all, that data do not exist independently of a theory that constitutes them as data; they are not so much "given" as "taken," seized....

Granted the theory-dependency of "facts", it follows that faithfulness to objective "truth" cannot be a criterion for evaluating versions of reality (since the truth will have been produced by the version that is being evaluated by its faithfulness to the truth, and so on, circularly). (...) In other words, constructions, or what I have been calling versions of reality, are strategic in nature, that is, designed with particular purposes in view.12

O real e a verdade são conceitos que deixam de ser considerados como

existindo objectivamente, passando a ser relativizados como construções com

interesses estratégicos, imersas em discursos contextualizados e dependentes de

teoria. Se há representação, a procura da descrição do real, ela é sempre parcial, já

que cada versão do mundo institui a sua própria realidade. As fundações

metanarrativas para o conhecimento desaparecem, mas isto não implica o fim da

representação, que continua a ser o meio de que dispomos para dar sentido aos dados

da experiência, apesar da dependência da teoria relativamente a esses dados.

1 ' Ihab Hassan, The Dismemberment of Orpheus: Toward a Postmodern Literature (New York: Oxford University Press, 1971), p. 3. 12 Brian McHale, Constructing Postmodernism, (London/New York: Routledge, 1992), p. 2.

8

Por outro lado, é a própria consciência de que todas as construções

representacionais são dependentes de valores ideológicos (e, por trás deles, de

diversos tipos de poder) que está na base de um movimento pragmático para

legitimar as "pequenas narrativas"13 como tentativas provisórias e parciais de

conhecer e compreender os "factos" empíricos das culturas em que se inserem. Dada

a incapacidade representacional de ter acesso directo ao real, as diferentes versões

que sobre ele se podem construir tornam-se as únicas estruturas capazes de lhe darem

sentido. A linguagem surge, assim, como matriz para a percepção - ou, melhor

dizendo, para a criação - do mundo.

Daí a viragem para as pequenas histórias: "Narrative in particular

recommends itself as a means of building foundations by constructing constructions

because storytelling (at least in its traditional forms) bears within it its own

(provisional) self-grounding, its own (local, limited) self-legitimation."14 São estas

pequenas narrativas auto-legitimadoras (mas também narradas sob a consciência

irónica das suas limitações) que permitem sair do impasse causado pela desilusão

com as metanarrativas. O seu objectivo é precisamente a fuga à totalização e à

uniformidade ideológicas próprias das grandes narrativas legitimadoras. Esta

tendência para a construção de versões narrativas de uma pluralidade de culturas

(porque cada hipótese ideológica instaura uma percepção específica do todo cultural

em que se integra) constitui, deste modo, uma forma de compromisso entre a

13Lyotard, A Condição Pós-Moderna, p.121. 14McHale, Constructing Postmodernism, p. 5.

9

necessidade de legitimar de alguma forma o saber e a consciência das limitações da

representação.

Depois de defender o estabelecimento destes "contratos temporários", do

"determinismo local" em torno de cada uma destas histórias como forma de

responder às ambiguidades da representação, Lyotard não deixa de afirmar a

necessidade de estudar as formas assumidas por este compromisso: " Há que nos

regozijarmos por a tendência para o contrato temporário ser equívoca: ela não é

pertença exclusiva da finalidade do sistema, é este que a tolera, e ela mostra no seu

seio uma outra finalidade, a do conhecimento dos jogos de linguagem como tais e a

decisão de assumir a responsabilidade das suas regras e dos seus efeitos." A

sociedade em que vivemos é ainda a mesma, a impregnação ideológica da linguagem

e do conhecimento mantém-se, mas torna-se necessário estudar a ligação entre estas

pequenas histórias e a sua forma de representação, por um lado, e as formas de

conhecimento e poder que acabam por legitimar, por outro.

Nas ciências ditas exactas e nas ciências sociais, na literatura e na

historiografia, a narração de pequenas ficções sobre cada campo de conhecimento

parece ser a forma suprema de criação do mundo e do seu sentido. Contudo, ela

surge sempre enraizada num contexto definido e temporário e na abertura ao diálogo

com outros discursos, pois só assim os seus próprios interesses estratégicos se

tornam visíveis:

Discourse, then, is both an instrument and an effect of power. (...) Discourse is not a stable, continuous entity that can be discussed like a fixed formal text; because it is the site of conjunction of power and knowledge, it will alter its form and significance

Lyotard, A Condição Pós-Modema, p. 132.

10

depending on who is speaking, her/his position of power, and the institutional context in which the speaker happens to be situated...'6

Baseando-se nas ideias de Foucault17 sobre o poder, Hutcheon refere neste

passo dois aspectos fundamentais destas "pequenas histórias": antes de mais, o seu

carácter discursivo, já que são narrações localizadas espacial e temporalmente,

integradas em contextos definidos que as influenciam; decorre daqui uma ligação

ambígua, mas sempre presente, com o poder que as institui e que elas constantemente

reafirmam. Este aspecto parece fazê-las cair de novo na dependência total de

perspectivas ideológicas específicas e com intenções bem definidas em relação ao

tipo de conhecimento a valorizar, como acontecia com as metanarrativas.

Há, contudo, diferenças fulcrais a salientar. A primeira tem a ver com o seu

carácter local e provisório, a sua circunstancialidade, mas mais importante ainda é a

consciência irónica de que não passam de construções linguísticas, de ficções que

seguem determinados pressupostos ideológicos. O seu valor nunca é absoluto, já que

a sua construção se baseia sempre numa perspectiva irónica que não esquece o seu

carácter ficcional: se legitimam certos tipos de conhecimento e de poder, não o fazem

inocentemente. Narrador e narratário estão cientes da dependência destas histórias do

seu contexto cultural, e reconhecem até que o facto de terem perspectivações

diferentes sobre o mundo influenciará também a comunicação. Cada história é, deste

modo, construída pelo menos duas vezes: no discurso do seu narrador e no momento

da sua recepção, na leitura que cada narratário faz dela. E, de novo, Lyotard quem

16 Hutcheon, A Poetics of Postmodernism, p. 185. 17 Ver Michel Foucault, The History of Sexuality: Volume I: An Introduction (New York: Vintage, 1980), p. 100.

11

resume esta característica das pequenas narrativas: "Nós não formamos combinações

de linguagem necessariamente estáveis e as propriedades das que formamos não são

necessariamente comunicáveis."18

Por outro lado, contextos diferentes podem levar o mesmo narrador a

construir histórias paradoxalmente diferentes ou mesmo opostas. Em Constructing

Postmodernism, Brian McHale publica várias construções sobre o pós-modernismo

que assume terem uma integração pelo menos imperfeita. A justificação para estes

choques temáticos entre os seus ensaios é simples:

I choose to regard the "imperfect" integration of these essays as illustration and corroboration of the point I have tried to make throughout this book about the plurality of possible constructions in literary history (and cultural studies generally) and the strategic nature of construction. I wish I could pretend that I set out programmatically to produce a plurality of constructions; unfortunately, it was not as deliberate as that. However, having recognized post factum that these essays do possess this kind of plurality, I have not sought to reduce multiplicity by imposing upon it some (arbitrary) uniformity of model; rather, I have let the multiplicity stand, as appropriate to the book's thesis.19

Pluralidade parece ser a palavra-chave para o conhecimento pós-moderno, a

atitude irónica de quem tem apenas a certeza de que as verdades universais não

existem, mas nem por isso deixa de acreditar na possibilidade - ou na necessidade -

de criar sentidos através de construções narrativas parcelares e provisórias. O

objectivo destas construções é, assim, produzir arquipélagos de significado a partir de

uma percepção subjectiva de um mar de impressões caóticas e contraditórias em que

o real se afundou. Elas são formas metafóricas de dizer e recriar o caos da

experiência, de assimilar o inacreditável e o indizível. Nas palavras de ihab Hassan,

"irony, perspectivism, reflexiveness: these express the ineluctable recreations of mind

18Lyotard,^4 Condição Pós-Moderna, p. 12. 19 McHale, Constructing Postmodernism, p. 3.

12

in search of a truth that continually eludes it, leaving it with only an ironic access or

excess of self-consciousness."20

Na literatura, o campo que merece reflexão mais aturada no âmbito deste

trabalho, a ironia subjacente à procura de uma realidade fugidia através de

construções parcelares e subjectivas está implícita na revisão das definições e

fronteiras entre os géneros literários, e mesmo entre diferentes tipos de

conhecimento. É assim que, por exemplo, ficção e historiografia se aproximam e

confundem, já que ambas não constituem mais do que estruturas modelares

aproximativas do real empírico. Neste sentido, ambas são entidades discursivas que

se legitimam pelo uso da linguagem (e da sua perspectivação do mundo) em

contextos específicos: "... history and fiction are discourses, human constructs,

signifying systems, and both derive their major claim to truth from that identity"21.

A historiografia não pode, assim, ter pretensões mais "científicas" do que a

ficção, pois também ela se constrói na e pela linguagem, fazendo uso da

representação, e nunca conseguindo alcançar o estatuto de correspondência com o

passado que tenta descrever. Todas as narrativas que produz não têm, por isso, valor

superior às narrativas ficcionais, dado o carácter representational de ambas e a

impossibilidade, semelhante à da ficção, de ter acesso directo ao passado: este só

pode ser estudado (construído) a partir dos vestígios textuais (e, logo, também já

impregnados por interesses estratégicos e ideológicos) que chegaram até à nossa

época.

Hassan, The Postmodern Turn, p. 170. Hutcheon,yl Poetics of Postmodernism, p. 93.

13

A aproximação entre estes dois tipos de estruturação do real levou ao

surgimento de um novo tipo de romance, que Linda Hutcheon designa

"historiographie metafiction", definindo-o como "those well-known and popular

novels which are both intensely self-reflexive and yet paradoxically also lay claim to

historical events and personages (...) In most of the critical work on postmodernism,

it is narrative - be it in literature, history, or theory - that has usually been the major

focus of attention. Historiographie metafiction incorporates all three of these

domains: that is, its theoretical self-awareness of history and fiction as human

constructs (historiogra/?/Mc metaôcûon) is made the grounds for its rethinking and

reworking of the forms and contents of the past"22. A uma ficção perpassada pela

ironia, pela reflexão sobre o modo como representa o real e o estatuto que pode

pretender como fonte de conhecimento, liga-se, deste modo, uma concepção

revisionista e com intuitos reconstrutivos da história. As pretensões à verdade da

história e da ficção são relativizadas, tornando-se visível que tanto uma como outra

são discursos que nos permitem enformar o real em padrões assimiláveis, e assim

enfrentar a vida.

Apesar de usar as convenções próprias da ficção e da historiografia, o que a

metaficção historiográfica consegue é, assim, subverter estas convenções, numa

tentativa de rever os pressupostos escondidos atrás da ficção histórica tradicional:

"The postmodernist historical novel is revisionist in two senses. First, it revises the

content of the historical record, reinterpreting the historical record, often

Hutcheon, A Poetics ofPotmodernism, p. 5.

14

demystifying or debunking the orthodox version of the past. Secondly, it revises,

indeed transforms, the conventions and norms of historical fiction itself"23

A subversão das convenções históricas e literárias tradicionais, através da sua

mistura, associa-se, deste modo, à atitude revisionista deste tipo de ficção

relativamente às teorias canónicas de entendimento do passado. Subjacente a esta

mudança está a ideia de que qualquer descrição do passado está naturalmente

impregnada, não só pelos valores implícitos nos vestígios textuais em que se baseia,

mas também pela leitura contemporânea que deles faz o historiador-narrador, que

apenas conta a sua história, a sua versão. Esta é claramente informada por valores

ideológicos em que a sua forma de representação se ancora, pelo que também aqui o

caminho a seguir só pode ser o das pequenas narrativas, sem pretensões de validade

universal.

Ficção e historiografia assumem estatutos paralelos, diferindo apenas em

termos de enquadramento teórico para as suas narrativas. O seu intercâmbio na

metaficção historiográfica parte deste pressuposto, mas este tipo de ficção não deixa

também de chamar a atenção para os paradoxos que esta convivência implica: "The

interaction of the historiographie and the metafictional foregrounds the rejection of

the claims of both "authentic" representation and "inauthentic" copy alike, and the

very meaning of artistic originality is as forcefully challenged as is the transparency of

historical referentiality."24

McHale, Constructing Postmodernism, p. 90. Hutcheon,v4 Poetics of Postmodernism, p. 110.

15

Se um documento tido como "fiel" à representação que faz de determinada

realidade se revela agora como uma construção sempre parcial, manchada por

pressupostos ideológicos em que se baseia a visão do mundo que preconiza, que

estatuto pode pretender um texto tido desde o início como "falso" ou plágio? Esta é

uma questão que está no âmago das preocupações da cultura pós-moderna, sendo a

única resposta possível uma atitude de indeterminação e abertura a todas as formas

de representação, contudo sempre ironicamente alerta para as limitações de todas e

cada uma destas formas.

O que esta atitude acarreta e preconiza é, como diz Hutcheon, o desafio de

noções centrais à "modernidade" (Lyotard), nomeadamente a fidelidade e

transparência da referência histórica (e literária) e a possibilidade da originalidade

artística, quando se apregoa a impossibilidade de distinguir o que é uma

representação "autêntica" do que constitui uma cópia. Se, por um lado, é feita a

apologia do conhecimento e do discurso individuais, intuitivos e conscientemente

parciais, das versões limitadas de entendimento do real, por outro assume-se uma

posição céptica em relação à possibilidade da originalidade destas pequenas histórias,

da produção artística como processo de criação autorial autónomo e estanque.

Isto deve-se, naturalmente, à consciência contemporânea da importância da

contextualização de qualquer discurso: este depende, antes de mais, da visão do

mundo que a sua forma de representação linguística institui, estando alicerçado em

outros discursos (literários, históricos, sociais, científicos, etc.), que o influenciam e

com os quais dialoga. A ficção pós-moderna baseia-se nesta concepção de

dialogismo cultural, de intertextualidade, em que o sentido da originalidade deixa de

16

ser primordial. Pelo contrário, são o retomar irónico e paródico dos textos do

passado e a pluralidade de construções linguísticas auto-reflexivas sobre a mesma

realidade que fundamentam agora a criação artística. Daí a importância da metaficção

historiográfica no quadro do romance contemporâneo como género híbrido em que

discursos diferentes se confrontam e mostram as suas semelhanças, contradições e

limitações enquanto modelos de estruturação do real.

M. Bakhtin foi precursor da concepção do romance como entidade dialógica.

Em The Dialogic Imagination, defende a noção de "heteroglossia"2 como

fundamental à construção do romance, entendendo-a como a diferenciação interna, a

estratificação característica de uma língua e, consequentemente, de uma cultura. O

romance surge, assim, como o local do diálogo entre estas vozes diferentes, os seus

valores e as suas formas de representar o real:

For the writer of artistic prose, (...) the object reveals first of all precisely the socially heteroglot multiplicity of its names, definitions and value judgements. Instead of the virginal fullness and inexhaustibility of the object itself, the prose writer confronts a multitude of routes, roads and paths that have been laid down in the object by social consciousness. Along with the internal contradictions inside the object itself, the prose writer witnesses as well the unfolding of social heteroglossia surrounding the object, the Tower-of-Babel mixing of languages that goes on around any object; the dialectics of the object are interwoven with the social dialogue surrounding it. For the prose writer, the object is a focal point for heteroglot voices among which his own voice must also sound...26

O romance torna-se o local da exposição à pluralidade de formas de

representação sobre a mesma realidade e ao diálogo entre estas diferentes versões e,

consequentemente, entre as concepções ideológicas que lhes dão origem. O papel do

autor relativiza-se, mas não se perde: é a sua ironia, a sua atitude perspectivista que

25 M. M Bakhtin, The Dialogic Imagination: Four Essays, ed Michael Holquist (Austin: University of Texas Press, 1990), p. 67. 26 Bakhtin, The Dialogic Imagination, p. 278.

17

possibilita o diálogo. Daí que o modo próprio do seu discurso seja paródico: a

representação dialógica de discursos diversos não é inocente, antes pressupõe uma

posição crítica para com as limitações inerentes à sua condição de representação. É

de novo Bakhtin quem descreve as características da paródia:

But it is not a dialogue in the narrative sense, nor in the abstract sense; rather it is a dialogue between points of view, each with its own concrete language that cannot be translated into the other.

Thus every parody is an intentional dialogized hybrid. Within it, languages and styles actively and mutually illuminate one another.27

Os paradoxos inerentes à confrontação entre pontos de vista opostos não

podem, deste modo, ser escondidos na ficção paródica. Pelo contrário, são tornados

visíveis, na tentativa de demonstrar a diversidade de formas de representação a que se

pode ter acesso e as limitações de todas elas para transmitir "fielmente" o real a que

se referem. Linda Hutcheon afirma:

O romance contemporâneo que incorpora parodicamente formas de arte, altas e baixas, é outra variante daquilo que Bakhtin apreciava na ficção: o dialógico ou polifónico. (...)

São, todas elas, formas altamente convencionalizadas que se transformam em modelos, ou abertos ou disfarçados, dentro de obras metaficcionais, modelos que actuam como clichés narrativos que assinalam ao leitor a presença da autorepresentação textual.28

Abertamente conscientes das limitações das diferentes formas de

representação, os textos paródicos utilizam, assim, essas formas como modelos que

exemplificam a apreensão específica do mundo feita por cada uma delas. Por outro

lado, dada a necessidade implícita à nossa condição de estruturar o real com base

nestes discursos diversos, o diálogo intertextual é tomado como a forma possível de

conhecimento e (re)criação do mundo: "Languages, apt or mendacious, reconstitute

Bakhtin, The Dialogic Imagination, p. 76. 28 Linda Hutcheon, Uma Teoria da Paródia: Ensinamentos das Formas de Arte do Século XX, trad. Teresa Louro Pérez (Lisboa: Edições 70, 1989), pp. 104-105.

18

the universe (...) into signs of their own making, turning nature into culture, and

culture into an immanent semiotic system. The language animal has emerged, his/her

measure the intertextuality of all life."29

Como animal linguístico, o homem vive numa encruzilhada de discursos,

sempre posicionado entre " "nós" de circuitos de comunicação"30 a partir dos quais

faz um trabalho de re-escríta, de reconstrução da sua percepção do real: conta as

suas histórias, consciente do espírito intertextual que elas não escondem. "The writer

does not originate his discourse, but mixes already extant discourses"31, afirma B.

McHale. A criação ironiza os seus próprios pressupostos, revela os seus limites e os

seus alicerces noutras construções linguísticas, mas abre também o texto a novas

atitudes e a novos processos de questionação. Os textos expõem-se ao diálogo,

porque os seus produtores assumem igualmente a intertextualidade da sua existência,

e, consequentemente, a impossibilidade de uma percepção unitária e estanque da sua

realidade de criadores.

Este facto implica uma mudança na definição e limitação do que pode ser

considerado o centro criador de cada história, o seu autor. Se a importância da sua

originalidade é posta em causa, se o discurso linguístico em que baseia a sua

perspectivação do mundo é relativizado, então é a sua própria existência enquanto

centro nevrálgico da produção de textos e sujeito autónomo que estão em jogo,

como Hans Bertens explica32. Mais do que nunca, torna-se necessária a

Hassan, The Postmodern Turn, p. 172. 30Lyotard,^4 Condição Pós-Moderna, p. 41. 31 Brian McHale, Postmodernist Fiction (London/New York: Routledge, 1994), p. 200. 32 Ver nota 10.

19

contextualização no tempo, no espaço e no ambiente ideológico do sujeito como

entidade discursiva, o que acarreta a revisão da concepção tradicional do sujeito:

That sense of the coherent, continuous, autonomous and free subject is, as Foucault too suggested in The Order of Things, a historically conditioned and historically determined construct, with its analogue in the representation of the individual in fiction. In historiographie metafiction, written from the perspective of a different historical moment, (...) character gets represented rather differently.33

Na cultura pós-moderna, a possibilidade de conformidade da actividade

representacional com o real é posta em causa, o que provoca um movimento para a

preferência das pequenas narrativas, conscientes do seu carácter reconstrutivo do real

e da sua fundação num contexto histórico-sócio-cultural definido. Paralela a esta

tendência, e dependente dela, está a ideia de que qualquer concepção do sujeito é

também sempre uma construção contextualizada, fundada numa matriz linguístico-

ideológica que lhe dá vida. Depreende-se daqui a necessidade de estudar a forma

como esta matriz modela a noção da subjectividade criadora e de procurar outras

formas de a conceber, uma vez que a versão moderna do homem "as the measure of

all things"34 já não faz sentido.

A ficção é um campo de estudo vasto nesta área, e daí que a própria

representação do indivíduo que ela faz seja também questionada. Ao expor a

representação como uma construção, o que pretende é problematizar a possibilidade

da existência de um sujeito coerente numa realidade que já não o é. Daí o jogo com a

subjectividade narratorial que é feito, por exemplo, na metaficção historiográfica, ela

própria já uma forma híbrida e lúdica de tornar visíveis os paradoxos de todo e

qualquer modelo linguístico de estruturação do real: "On the one hand, we find overt,

Hutcheon, The Politics of Postmodernism, p. 38. Hassan, The Postmodern Turn, p. 5.

20

deliberately manipulative narrators; on the other, no one single perspective but

myriad voices, often not completely localizable in the textual universe. In both cases,

the inscription of subjectivity is problematized, though in very different ways."35

Abertamente, qualquer uma destas vias expõe o carácter "ficcional" da

representação de um sujeito na linguagem: a escolha de um narrador que manipula

sem escrúpulos os factos que narra e as personagens que descreve (rugindo do papel

a que tradicionalmente estaria restringido e dando-se todas as liberdades na

construção das suas histórias) ou a opção por uma multiplicidade de vozes narrativas

que se confundem e dialogam entre si (retirando ao leitor qualquer hipótese de

encontrar um centro de valores em que ancorar o texto) servem o mesmo propósito.

Este consiste, naturalmente, em demonstrar que é na própria linguagem que a noção

de sujeito se institui, que cada discurso estruturado em contextos ideológicos

definidos constrói a sua noção do indivíduo e da sua subjectividade. "In other words,

subjectivity is a fundamental property of language",36 afirma L. Hutcheon. É no acto

de narrar que o sujeito se constrói, porque só no discurso encontra grelhas de

significação que lhe podem dar sentido.

Pela linguagem, o homem edifica, assim, a sua visão do mundo e de si

próprio, e a consciência deste facto não conduz necessariamente à esterilidade

artística. Pelo contrário, a sua posição de produtor dentro de um determinado

contexto, que expõe as suas limitações recorrendo, por exemplo, à sua própria

ficcionalização no mundo da narrativa, acaba por favorecer a reflexão sobre a

Hutcheon, A Poetics of Postmodernism, p. 160. Hutcheon, A Poetics of Postmodernism, p. 168.

21

proximidade ontológica das histórias literárias e das construções narrativas da

história, da ciência, e de todas as áreas do saber e, por analogia, das concepções de

subjectividade inerentes a cada uma destas matrizes de acesso ao real. McHale expõe

em Postmodernist Fiction as questões que o autor contemporâneo pode explorar na

sua ficção ao confundir estes diferentes campos ontológicos:

Where, then, does the level of the irreducibly "real" world lie? The harder we look for it, the more elusive and mirage-like it becomes. Behind the "truth of the page" -the reality of the writer at his desk - lies the superior reality of the writing itself; but behind the reality of the writing must lie the superior reality of the act of writing that has produced it! An uncomfortable circularity, and one that hinges on the strangely amphibious ontological status, the presence/absence, of the author.37

De facto, o autor parece surgir na ficção pós-moderna como um ser anfíbio,

que conscientemente se instala na fronteira entre os dois mundos em que vive - o da

ficção e aquele em que tem lugar o acto de escrita dessa ficção -, chegando mesmo a

imiscuir-se autobiograficamente no mundo que narra. Esta situação possibilita a

exposição das semelhanças discursivas entre estes mundos (tanto na ficção como na

"realidade" se contam histórias sobre a vida e o homem), e a consciencialização para

questões epistemológicas centrais (a importância destas histórias como única forma

de construção do conhecimento). Apesar de McHale pretender ignorar este segundo

aspecto, ele é também central às preocupações da ficção pós-moderna, sendo fulcral

para o surgimento deste ser ambíguo e misterioso que é o autor contemporâneo.

Em resumo, a tendência actual para a relativização das pretensões de

universalidade e coerência total dos conceitos de sujeito, verdade, representação e

realidade deve-se a uma descrença em sistemas totalizantes capazes de justificar o

carácter absoluto destes conceitos. Por trás do descrédito das metanarrativas auto-

McHale, Postmodernist Fiction, pp. 198-199.

22

legitimadores está a consciência da sua imersão em pressupostos ideológicos que

modelam a sua concepção do mundo e informam todas as noções centrais à

identidade humana que elas constroem no seu discurso. O acesso ao real é, assim,

sempre mediado por uma matriz linguístico-ideológica, que constrói a sua percepção

do mundo entre uma infinidade de possíveis percepções. Daí a necessidade de

valorizar o contexto discursivo e histórico-social de cada uma destas construções, o

qual instaura a sua legitimidade (provisória e limitada, porque não conseguem ver

além dos valores inerentes à matriz que lhes dá significado). Tanto a teoria como a

arte pós-modernas exploram esta necessidade: "... both have foregrounded the need

to break out of the still prevailing paradigms - formalist and humanist - and to

"situate" both art and theory in two important contexts. They must be situated, first,

within the enunciative act itself, and second, within the broader historical, social, and

political (as well as intertextual) context implied by that act and in which both theory

and practice take root."38

Perante a perda das fundações metafísicas para os valores tidos até agora

como universais e absolutos, dá-se uma viragem para o modo narrativo, consciente

do seu enraizamento num contexto definido mas também do seu papel fundamental

enquanto veículo possível do conhecimento. Lyotard explica a sua função:

As narrativas, como se viu, determinam os critérios de competência [de cada indivíduo no sistema social em que se insere] e/ou ilustram a sua aplicação. Elas definem, deste modo, o direito de dizer e de fazer na cultura e, como elas são também uma parte desta, encontram-se assim legitimadas.39

Hutcheon,̂ 4 Poetics of Postmodernism, p. 75. Lyotard, A Condição Pós-Moderna, p. 54.

23

É nesta legitimação auto-construída, conscientemente parcelar e provisória,

dada caso a caso a cada versão narrativa da realidade, que se fundam as (in)certezas

da nossa cultura. O pluralismo torna-se a única atitude possível e razoável, porque,

regressando à epígrafe de Hassan, os conceitos centrais à vida humana, como o

desejo e a morte, têm que ser "literais", têm que existir de alguma forma para que o

mundo possa fazer sentido e não ficar vazio de significados.

O que Hassan propõe (e com ele, de formas variadas, a maior parte dos

representantes contemporâneos de todos os campos de conhecimento) é a adopção

de uma atitude pragmática de legitimação das nossas versões de realidade como

única forma de a percepcionar, não esquecendo contudo as suas limitações:

God, King, Father, Reason, History, Humanism have all come and gone their way, though their power may still flare up in some circles of faith. We have killed our gods - in spite or lucidity, I hardly know - yet we remain ourselves creatures of will, desire, hope, belief. And now we have nothing - nothing that is not partial, provisional, self-created - upon which to found our discourse.41

Os "deuses" que legitimavam o nosso acesso ao conhecimento já não existem,

mas há que procurar esperançosamente outros tipos de fundação, mesmo que parciais

e provisórios. A viragem para as pequenas histórias de âmbito local, que dialogam

entre si, produzindo novas histórias, novos sentidos (e também novas dúvidas),

constitui uma forma de crença na hipótese da existência de significados, um acto de

fé na possibilidade do conhecimento, ciente contudo dos paradoxos que implica. Em

"Pluralism in Postmodern Perspective", é de novo Hassan quem explora estes

paradoxos:

... I do not know how to prevent critical pluralism from slipping into monism or relativism except to call for pragmatic constituencies of knowledge, sharing values,

40 Hassan, The Postmodern Turn, p. 119. 41 Hassan, The Postmodern Turn, p. 180.

24

traditions, expectancies, goals. I do not know how to make our "desert" a little greener, except to invoke enclaves of genial authority, where the central task is to restore civil commitments, tolerant beliefs, critical sympathies. I do not know how to give literature or theory or criticism a new hold on the world, except to remythify the imagination, at least locally, and bring back the reign of wonder into our lives. In this, my own elective affinities remain with Emerson: "Orpheus is no fable: you have only to sing, and the rocks will crystallize; sing, and the plant will organize; sing, and the animal will be born" ...

But who nowadays believes it?42

Influenciado pela escrita visionária e pela tendência pragmática de William

James, nomeadamente em The Will to Believe and Other Essays in Popular

Philosophy, Hassan afirma a necessidade de remitificar a imaginação pós-moderna,

de criar histórias locais que lhe permitam o acesso à construção do real e dos seus

sentidos. Contudo, como continuar a acreditar, com Emerson, no poder de Orfeu,

quando o ponto de partida desta necessidade é precisamente a necessidade de

"desfazer", de perceber a priori o carácter "ficcional" de todas as formas de

representação? Só acreditando, porque a impossibilidade do sentido "goes against

something in him."43

*

Curiosamente, Emerson é o autor que Paul Auster escolheu para dar início a

Leviathan, apesar de a epígrafe da obra não ter o carácter esperançoso da frase

citada por Hassan: "Every actual State is corrupt", afirma agora Emerson, com a

consciência lúcida de que entre a ideologia política e a realidade empírica vai uma

distância intransponível. Leviathan faz esta constatação, ao contar a história trágica

de um sonhador que não aceitava esta distância.

Hassan, "Pluralism in Postmodern Perspective", Exploring Postmodernism, p. 32. Hassan, The Postmodern Turn, p. 119.

25

Esta temática é equacionada, na obra, com a questão do poder da linguagem

para construir o real, uma vez que a estruturação ideológica do estado ideal só pode

ser representada linguisticamente, o que pressupõe que nunca possa ser equivalente à

realidade de um estado concreto. Para sair deste impasse, torna-se necessário, como

já foi afirmado, aceitar pragmaticamente a "ficcionalidade" de toda a representação,

mas esta saída é, conscientemente, para Auster como para outros autores

contemporâneos, uma solução de compromisso: da teoria, das construções, dos

discursos contextualizados à veracidade empírica dos factos, à violência, à

desordenação e ao caos do real vai uma distância intransponível.

O discurso não consegue, assim, ajustar-se à realidade que descreve, e é desta

premissa que Leviathan nasce. A imagem de fragmentação com que o primeiro

capítulo abre, ao referir-se à morte violenta de Benjamin Sachs, dá o mote para a

visualização do potencial destrutivo inerente à condição humana, perante a qual o

poder referencial da linguagem só pode ser relativizado.

Em "The Book of Memory", a segunda parte de The Invention of Solitude,

obra estruturante das teorias que Auster defende nos seus romances subsequentes,

este tema é já explorado: "The first word appears only at a moment when nothing can

be explained anymore, at some instant of experience that defies all sense. To be

reduced to saying nothing. Or else, to say to himself: this is what haunts me. And then

to realize, almost in the same breath, that this is what he haunts."44. A narrativa surge

do silêncio do indizível, da incapacidade de dar sentido à experiência do caos e da

morte, tornando-se uma forma de sublimar a violência do real que assombra o seu

Paul Auster, The Invention of Solitude (Harmondsworth: Penguin Books, 1988), p. 81.

26

narrador e que este, mesmo que inadvertidamente, acaba por perseguir e tentar

integrar numa construção assimilável à sua consciência. É, pois, deste contacto com

o indizível da violência e da morte que a narrativa de Peter Aaron desponta. O seu

dilema é descobrir como sublimar pela narrativa a sua perda, quando está consciente

da impossibilidade de referência directa desta narrativa à realidade que tenta

descrever.

O caminho é, naturalmente, a aceitação do carácter limitado e provisório das

construções com que cria sentidos para a vida e a morte de Sachs, e a desconfiança,

implícita em toda a obra, dos valores absolutos e universais. "Language is not truth.

It is the way we exist in the world", diz Auster em "The Book of Memory"45, e as

implicações desta consciência são bem visíveis em Leviathan. As construções

linguísticas com que Aaron, como as outras personagens, tenta assimilar e

compreender o inacreditável da vida empírica são, por isso, assumidas como

ficcionais, incapazes de corresponderem directamente ao mundo que descrevem.

Durante o romance, muitos são os episódios em que esta relativização do conceito de

verdade é afirmada, e o próprio narrador descreve a sua perplexidade quando

posicionado perante versões antagónicas de um mesmo facto:

After that lunch, I no longer knew what to believe. Fanny had told me one thing, Sachs had told me another, and as soon as I accepted one story, I would have to reject the other. There wasn't any alternative. They had presented me with two versions of the truth, two separate and distinct realities, and no amount of pushing and shoving could ever bring them together. (...) I hesitated to choose between them. I don't think it was a question of divided loyalties (...), but rather a certainty that both Fanny and Ben had been telling me the truth. The truth as they saw it, perhaps, but nevertheless the truth. Neither one of them had been out to deceive me; neither one had intentionally lied. In other words, there was no universal truth.46

45 Auster, The Invention of Solitude, p. 161. 46Paul Auster, Leviathan (London/Boston: Faber and Faber, 1993), p. 98, sublinhado meu. Futuras referências ao romance serão apenas seguidas da respectiva página.

27

Desacreditada a possibilidade da existência de uma verdade universal, resta a

Aaron (e, por trás dele, a Auster) assumir a credibilidade parcial das diferentes

versões de realidade a que tem acesso, e com elas construir uma interpretação

subjectiva e minimamente coerente dos acontecimentos. Proliferam, assim, no

romance, versões de realidade controversas, mesmo antagónicas, que, contudo, se

iluminam mutuamente e dialogam entre si, abrindo a obra a uma infinidade de vozes e

percepções do mundo ficcional.

Para esta concepção pluralista e dialógica implícita em Leviathan contribui

sobremaneira o relevo que Auster dá à teoria do romance de M. M. Bakhtin,

expresso claramente em "Interview with Larry McCaffery and Sinda Gregory":

LM: That sounds like Bakhtin's notion of the 'dialogic imagination ', with the novel arising out of this welter of conflicting but dynamic voices and opinions. Heteroglossia... PA: Exactly. Of all the theories of the novel, Bakhtin's strikes me as the most brilliant, the one that comes closest to understanding the complexity and the magic of the form.47

O romance surge como a forma adequada à expressão da "heteroglossia", e

daí a procura por parte de Auster de modelos que integrem este conceito: é o caso

dos contos tradicionais, nomeadamente da estrutura narrativa d'As Mil e Uma

Noites, em que a narradora faz um encadeamento de histórias paralelas que acabam

por se esclarecer mutuamente e pelas quais ela consegue vencer a ameaça da morte

que pesa sobre a sua cabeça e criar novos sentidos para a vida. Parece ser este o

objectivo do confronto de histórias tão diversas (e, contudo, tão próximas no

material empírico que as originou) que se dá em Leviathan. Posto perante o facto

47 Paul Auster, "Interview with Larry McCaffery and Sinda Gregory", The Red Notebook and other writings (London/Boston: Faber andFaber, 1995), pp. 133-134.

28

indescritível da morte de Sachs, Aaron começa a narrar um conjunto de histórias

sobre a sua vida, não se inibindo mesmo de expor versões diferentes de outras

personagens e do próprio Sachs, que acabam por, indirectamente, fazer luz sobre os

possíveis sentidos da morte do amigo, criando construções interpretativas que o

tornam assimilável.

O próprio Aaron expõe versões pessoais contraditórias, mas nem por isso

deixa de acreditar na hipótese de extrair sentido do seu diálogo. Se cada contexto dá

origem a um discurso, então naturalmente cada discurso dá origem a significados

diferentes e complementares. Na entrevista já mencionada de The Red Notebook,

Auster explica a importância do romance a este nível: "Like everyone else, I am a

multiple being, and I embody a whole range of attitudes and responses to the world.

Depending on my mood, the same event can make me laugh or make me cry; it can

inspire anger or compassion or indifference. Writing prose allows me to include all of

these responses. I no longer have to choose among them."48

O diálogo destas diferentes respostas na obra conduz, assim, à relativização

de todas elas: apesar da perspectiva centralizadora do narrador, o centro de valores

da narrativa perde-se na confusão de versões e na incerteza das construções que o

próprio Aaron apresenta. Ele baseia a sua narrativa na memória (naturalmente

selectiva e com interesses estratégicos assumidos e inconscientes) e no seu poder de

observação, mas desde o início admite a hipótese da falsidade da sua versão. Se o seu

objectivo é " explain who he was and give the true story of how he happened to be

Auster, " Interview with Larry McCaffery and Sinda Gregory", The Red Notebook, p. 133.

29

on that road in northern Wisconsin" (2, sublinhado meu), a "verdade" desse

testemunho nunca é assumida como absoluta:

I can only speak about the things I know, the things I have seen with my own eyes and heard with my own ears. (...) I have nothing to rely on but my own memories. (...) There is nothing definitive about it [this book]. It's not a biography or an exhaustive psychological portrait, and even though Sachs confided a great deal to me over the years of our friendship, I don't claim to have more than a partial understanding of who he was. I want to tell the truth about him, to set down these memories as honestly as I can, but I can't dismiss the possibility that I'm wrong, that the truth is quite different from what I imagine it to be. (22)

A honestidade do seu propósito manifesta-se precisamente pela admissão da

parcialidade das construções que vai fazendo sobre a vida de Sachs. O que conhece

dele corresponde apenas a uma parte do que pode ser conhecido sobre qualquer ser

humano, e não se pode esquecer: "... even if we're surrounded by others, we

essentially live our lives alone: real life takes place inside us."49 Isto pressupõe a

existência de pelo menos duas vidas, a exterior, supostamente mais artificial, e a

interior, o local da "verdadeira" vida. Ora Aaron só pode ter acesso ao que viu e

ouviu, e mesmo isto não corresponde a uma percepção unitária da personagem que

descreve. Daí que, logo no seu primeiro encontro, não seja apenas o excesso de

álcool que lhe permite ver Sachs como "a man with two heads and two mouths" (22).

A descrição de alguém implica, assim, a relativização das percepções

individuais, e torna-se uma tarefa impossível em toda a sua plenitude. Contudo, são

estas construções subjectivas que permitem o conhecimento parcial e limitado do

outro, como Auster explica em "Portrait of an Invisible Man", a primeira parte de

The Invention of Solitude:

Impossible to say anything without reservation: he was good, or he was bad; he was this, or he was that. All of them are true. At times I have the feeling that I am writing

Auster, The Red Notebook, p. 142.

30

about three or four different men, each one distinct, each one a contradiction of all the others. Fragments. Or the anecdote as a form of knowledge50

As palavras do narrador sobre o seu pai expressam igualmente as

ambiguidades que Aaron encontra na descrição que faz de Sachs. Novamente se

afirma a consciência irónica das limitações mas também das possibilidades das

pequenas histórias para estruturarem a estranheza do real em formas de

conhecimento. Numa cultura em que, como diz Ihab Hassan, a palavra de ordem é

desconstruir, são as versões localizadas que, pragmaticamente, possibilitam

enquadrar e dar sentidos à realidade.

Leviathan constitui, assim, para Auster, um instrumento de exploração das

finalidades e paradoxos inerentes ao acto de escrita enquanto momento da

reconstrução do mundo. Daí o pendor meta-reflexivo da obra, a que se associa a

integração desestabilizante de elementos autobiográficos (os episódios da visita à

Estátua da Liberdade, da queda amparada por um estendal de roupa, das dificuldades

económicas e pessoais do narrador após o seu divórcio e dos autógrafos falsos são

bons exemplos) e de figuras históricas e literárias exteriores ao mundo do romance

(principalmente em The New Colossus, o livro dentro do livro em que Ralph Waldo

Emerson, Buffalo Bill Cody e Walt Whitman convivem com Raskalnikov,

Huckleberry Finn e Ishmael). Entra-se, pois, na área da metaficção historiográfica,

em que os campos ontológicos da vida presente e passada se confundem com o da

ficção para expor a semelhança das construções que os fazem compreensíveis à

Auster, The Invention of Solitude, p. 61.

31

experiência humana, e apostar de forma irónica nas "anecdotes" como sustentáculos

narrativos dessas construções.

"Auster's work always contains aspects of the author's own life, references to

other literature, and descriptions of actual historic figures and events. This is

historiographie metafiction as Linda Hutcheon defines it", afirma Dennis Barone na

Introdução a Beyond the Red Notebook51 Como foi exposto, Leviathan não foge à

regra, apesar do realismo, ou, talvez mais correctamente, da verosimilhança patente

em toda a obra. Barone explica: "He [Auster] does use the metafictional devices of

his predecessors (...), but he does not use them to frustrate or disrupt the reading

process. (...) Auster does not turn typography on its head (...), but rather he embeds

philosophical investigations on the nature of fiction within a narrative that never takes

itself to be the real itself"52

Apesar de desestabilizado, o processo de leitura de Leviathan não é frustrado.

Pelo contrário, a narrativa de Aaron é, desde o início, assumida por este como uma

construção interpretativa (como uma ficção), mas a forma da narração acaba por ser

propícia à investigação da natureza e limites da ficção e do conhecimento. De facto,

todo o livro constitui para Aaron uma forma de relatar subjectivamente a história de

Sachs (ou seja, de ficcionalizar o seu passado), esbatendo-se assim os contornos

definidos do conceito de verdade. Este não é um testemunho isento (nem o poderia

Dennis Barone, "Introduction: Paul Auster and the Postmodern American Novel", Beyond the Red Notebook: Essays on Paul Auster, ed. Dennis Barone (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1995), p. 5. 52 Barone, "Introduction", Beyond the Red Notebook, p. 7.

32

ser), mas uma tentativa de encontrar sentidos e de reflectir sobre esta demanda, no

mundo do romance como no da realidade.

"In a work of fiction, one assumes there is a conscious mind behind the words

on the page. In the presence of happenings in the so-called real world, one assumes

nothing. The made-up story consists entirely of meanings, whereas the story of fact is

devoid of any significance beyond itself, afirma Auster em "The Book of

Memory"53. E, contudo, as personagens dos seus romances, dentro da "realidade" do

seu mundo, não param de procurar ligações e padrões entre os acontecimentos, à

semelhança do que se considera hoje acontecer a cada instante com cada ser humano

"real". Daí que, em Leviathan, não sejam os leitores os primeiros a procurar sentidos:

toda a obra se funda na criação de estruturas de compreensão do real por parte de

Aaron, mas também de Sachs, Maria Turner, Fanny, Lillian Stern, e todas as outras

personagens.

O modelo interno de toda a narrativa é, por isso, The New Colossus, o único

romance publicado por Sachs. Este é também uma metaficção historiográfica em que,

segundo Aaron, se procuram relatar pequenas histórias verídicas ou verosímeis

ligando as personagens, as figuras históricas e os acontecimentos mais estranhos e

diversos. As coincidências ganham significados, e o real parece ser lido como uma

obra literária: Benjamin Sachs mitologiza o passado; a narrativa de Aaron faz

exactamente o mesmo em relação à vida de Sachs, e daí a ambiguidade, mas também

a riqueza, de Leviathan.

Auster, The Invention of Solitude, p. 146.

33

O projecto de Aaron pressupõe, assim, um trabalho de re-escrita a dois níveis:

ao nível da avaliação subjectiva que fez do que viu e ouviu na memória, e ao nível da

construção com interesses específicos e contextualizados da vida de Sachs que

empreende agora. Os modos de focalização da narrativa têm por base estes dois

níveis de re-escrita: a presença de um narrador conscientemente manipulador e

centralizador não consegue nem pretende escamotear a multiplicidade de

perspectivas, de versões de realidade presentes na obra. Deste modo, o acto de

reconstrução de Sachs a partir dos fragmentos passíveis de observação e análise não

é fruto de uma subjectividade independente, mas de um processo de recriação

colectivo e intertextual, em que participam o próprio Sachs, as personagens que o

conheceram, o narrador e os textos de todos os escritores presentes na obra. O papel

do narrador-escritor é, pois, também relativizado, o que põe em questão a

possibilidade da originalidade autorial no mundo da narrativa e, por analogia, no

mundo do escritor "real", Paul Auster. Em ambos, a função autorial é dispersa por

um grande número de discursos, entre os quais o de cada leitor individual, que re­

escreve a obra no acto de a 1er. Auster não esquece este facto, e daí o comentário em

"Portrait of an Invisible Man": "... once this story has ended, it will go on telling

itself, even after the words have been used up."54

Auster, The Invention of Solitude, p. 67.

Capítulo 1

Construindo histórias

Falou. E tendo Xerazade ouvido toda a história de seu pai, disse: «Desejo, meu pai, faças tudo como já te pedi!» O vizir, sem mais insistir, mandou fazer a trouxa da filha Xerazade e fez sabedor do facto o rei Schariar. Xerazade entretanto fez recomendações a sua irmã mais nova e disse-lhe: «Quando eu estiver ao lado do rei, mandarei que te vão buscar; e quando tu chegares e vires o rei a acabar de fazer coisas comigo, dir-me-ás: "Conta-me, minha irmã, uns contos maravilhosos que nos ajudem a passar a noite!" E eu então contar-te-ei uns contos que, se Alá quiser, serão a causa da libertação das filhas dos Muçulmanos.» J. C. Mardrus, As Mile Uma Noites

35

1. As histórias, a morte e a vida: de Xerazade ao espaço

da memória Parler, c'est célébrer, et célébrer, c'est glorifier, faire de la parole une pure consumation rayonnante qui dit encore quand il n'y a pas plus rien à dire...'

A narrativa de Xerazade ao rei Schariar, descrita em As Mil e Uma Noites,

parte da necessidade sentida pela narradora de acabar com o reino de terror e morte

que Schariar instituiu, libertando as vítimas inocentes ("as filhas dos Muçulmanos")

de um destino trágico a que parecem estar votadas. Xerazade narra com a

consciência da sua morte iminente, transformada pelo rei em forma de vingança pela

traição da sua mulher, usando de uma estratégia narrativa planeada para retardar a

morte e libertar as donzelas do reino para a vida. Em The Invention of Solitude, Paul

Auster sintetiza de forma clara as motivações e o projecto de Xerazade para contar

as suas histórias:

The invention of solitude. Or stories of life and death. The story begins with the end. Speak or die. And for as long as you go on speaking,

you will not die. The story begins with death.2

Sendo uma donzela culta e letrada, Xerazade usa os textos e os autores que

conhece para salvar vidas (a sua, mas também a das poucas virgens que sobreviveram

à ira do rei), quebrando a cadeia de mortes promovida por Schariar. O discurso que

ela escolhe, contudo, não é teórico, argumentativo ou informativo: não expõe factos,

antes narra histórias maravilhosas que acabam sempre por espelhar a situação em que

o rei, o reino e ela própria se encontram.

1 Maurice Blanchot, L'espace littéraire (Paris: Gallimard, 1955), p. 210. 2 Auster, The Invention of Solitude, p. 149.

36

A primeira história que Xerazade conta, a "História do Mercador e do

«Efrit»", é já constituída por uma série de níveis narrativos que reflectem o modo de

construção próprio d'As Mil e Uma Noites, em que diferentes contos se vão

encadeando e criando sentidos metafóricos amplos, ao mesmo tempo que suspendem

a ameaça da morte. Ao reflectir sobre o momento em que o "efrit" explica ao

mercador a razão por que pretende a sua morte (como vingança pelo papel

inadvertido deste na morte do seu filho), Auster afirma:

This is guilt out of innocence (echoing the fate of the marriageable girls in the kingdom), and at the same time the birth of enchantment - turning a thought into a thing, bringing the invisible to life. The merchant pleads his case, and the genie agrees to stay his execution. But in exactly one year the merchant must return to the same spot, where the genie will mete out the sentence. Already, a parallel is being drawn with Sherhzad's situation. She wishes to delay her execution, and by planting this idea in the king's mind she is pleading her case - but doing it in such a way that the king cannot recognize it. For this is the function of the story: to make a man see the thing before his eyes by holding up another thing to view.3

A estrutura narrativa d'As Mil e Uma Noites invoca, assim, um conjunto de

narradores pertencentes a diferentes níveis ontológicos que conseguem, pelas

imagens metafóricas infundidas nos diferentes patamares de recepção, enfrentar a

ameaça ou a certeza da morte através da consciencialização dos ouvintes para os

valores positivos e regeneradores da vida. Se a maior parte dos narradores das

histórias que Xerazade dá a conhecer ao rei partem da constatação do luto, do nojo,

da perda, ou da ira dos seus respectivos ouvintes, a verdade é que as suas narrativas

acabam por sublimar a dor destes sentimentos, ao permitirem o regresso ao contacto

com o mundo e com a vida. A "História do Rei Ornar Al-Nemán" é um bom

exemplo: de luto pelo assassinato violento e traiçoeiro de seu irmão Scharkán,

3 Auster, The Invention of Solitude, p. 151.

37

envolto em sentimentos de tristeza e amargura que o faziam definhar de dia para dia e

abandonar a sua costumada valentia, Daul'makan apela ao vizir Dandán, pródigo

contador de histórias e fiel amigo da sua família real:

"Que farei, meu vizir, para olvidar as penas que me atormentam e pôr fim ao nojo que sobrecarrega a minha alma?" Respondeu o vizir Dandán: "Ó rei, conheço um único remédio para a tua moléstia, e vem a ser o contar-te uma história de antigamente, daqueles famosos reis de que falam os anais. (...) Esta noite, quando o acampamento estiver completamente mergulhado no sono, contar-te-ei, se Alá quiser, uma história que te deixará maravilhado, e te dilatará o peito, e te fará achar demasiado curto o período do cerco."4

Começa aqui uma de entre muitas histórias dentro da história, a "História de

Aziz e de Aziza e do Belo Príncipe Diadema", que surtirá os efeitos desejados, ao

conduzir o rei Daul'makan para sentimentos de amor e paz, fazendo-o esquecer a

perda do irmão e lembrando-lhe a necessidade de cuidar do seu povo e da sua família.

No âmbito da narrativa principal, é o próprio rei Schariar o ouvinte-alvo desta

história: ao narrar contos sobre contadores de histórias que conseguiram, pelo

encantamento e pela mensagem implícita nas suas palavras, trazer para a vida e fazer

esquecer a morte a ouvintes obcecados pelas ideias de vingança, saudade,

desconfiança e amargura, Xerazade consegue, ao cabo de mil e uma noites, acalmar

os intuitos de violência e ira do rei. Mais ainda, as suas histórias acabam por

literalmente produzir a vida, já que só o seu poder lhe permitiu sobreviver o tempo

necessário para dar ao rei três herdeiros. Daí o agradecimento de Schariar à sua

salvadora, fonte de vida e esperança no futuro:

"Ó Xerazade, como esta história era esplêndida e admirável! Tu, sábia e inteligente, instuíste-me, fizeste-me ver o que sucedeu a outros que não eu e reflectir atentamente nos ditos dos reis e dos povos antigos, e nas coisas extraordinárias e maravilhosas ou tão-somente dignas de atenção que com eles se passaram. E, com ter-te ouvido durante estas mil noites mais uma, a minha alma ficou profundamente mudada e feliz e

4 J. C. Mardrus, As Mil e Uma Noites, trad. Manuel João Gomes (Lisboa: Temas e Debates, 1996), vol. 1, p. 515.

38

embebida do gosto de viver. Glória, pois, ao que te concedeu, filha do meu vizir, tantos dons escolhidos, ao que perfumou a tua boca e pôs na tua língua a eloquência e na tua fronte a inteligência."5

Como as histórias de Xerazade, também as obras ficcionais de Auster nascem

da necessidade de sublimar o silêncio, a ausência, o luto, a própria morte, tentando

de diferentes modos expressar e assimilar metaforicamente o que é, à partida,

indizível e incompreensível, e, consequentemente, reconstruir sentidos para a vida. A

própria poesia do autor aponta já este caminho, expondo a relação implícita entre a

escrita, a morte e a vida. "S. A. 1911-1979", um poema dedicado a seu pai, é um

bom exemplo:

From loss. And from such loss that marauds the mind - even to the loss

of mind. To begin with this thought: without rhyme

or reason. And then simply to wait. As if the first word comes only after the last, after a life of waiting for the word

that was lost. To say no more than the truth of it: men die, the world fails, the words

have no meaning. And therefore to ask only for words.

Stone wall. Stone heart. Flesh and blood.

As much as all this. More.6

Perante a morte, o silêncio e a falência do mundo, que as palavras não

conseguem expressar, é, contudo, à linguagem que o poeta recorre: é a própria

consciência do sem-sentido da perda que dá lugar à expressão verbal, único meio

(conscientemente fugaz e auto-limitado) de renovar o acesso à vida e à hipótese do

5 Mardrus, As Mil e Uma Noites, vol. 3, p. 942. 6Paul Auster, Ground Work: Selected Poems and Essays 1970-1979 (London/Boston: Faber and Faber, 1991), p. 92.

39

significado. Como Xerazade, também Auster encontra na linguagem a última

alternativa viável ao silêncio da morte. "White Spaces", o poema em prosa que marca

a sua viragem para a ficção narrativa, nasce também desta necessidade de usar a

escrita para expressar o inominável, o silêncio e o vazio:

I dedicate these words to the things in life I do not understand, to each thing passing away before my eyes. I dedicate these words to the impossibility of finding a word equal to the silence inside me.7

Há uma relação ambígua, mas fulcral na obra ficcional de Auster, entre

silêncio e morte, por um lado, e linguagem e vida, por outro. De facto, se a origem

da linguagem está no silêncio provocado pela incapacidade de dizer a morte, o seu

objectivo, nunca totalmente alcançado, é criar significados para a vida e sublimar o

vazio que a morte instala. Para Xerazade, a voz articula-se de modo directo com a

sobrevivência; para Auster, a narrativa torna-se também um campo incerto para

sucessivas tentativas de adiamento do momento último da morte. A sua prosa

pretende, assim, ser uma forma de arte nascida de uma necessidade vital, de um

impulso visceral, ser uma "art of hunger", como a intitula num ensaio com o mesmo

nome: "In the end, the art of hunger can be described as an existential art. It is a way

of looking death in the face, and by death I mean death as we live it today: without

God, without hope of salvation. Death as the abrupt and absurd end of life."8

Começam aqui as distanciações irónicas do modelo intertextual d'As Mil e

Uma Noites. Xerazade conhece o seu mundo e tem confiança total nas suas palavras

e nos desígnios de Alá, que manobrará para que a morte dê lugar à vida. Auster, por

7 Auster, Ground Work, p. 86. 8 Paul Auster, The Art of Hunger (Los Angeles: Sun & Moon Press, 1992), p. 20.

40

seu lado, espera conseguir superar a violência do real e encontrar réstias de sentido

que lhe permitam sobreviver através das suas narrativas, mas está consciente das

limitações inerentes a esta arte da fome. "This hope is what I define as courage, but

whether there is reason to hope is another question entirely", afirma o narrador de

"The Locked Room"9

Todos os romances de Auster descrevem este tipo de coragem que é ter

esperança (provavelmente infundada) na possibilidade de enfrentar a perda, o

silêncio, a morte, através da própria literatura: em "Portrait of an Invisible Man",

Auster é impulsionado para a escrita pela morte inesperada do pai; "The Book of

Memory" parte deste impulso para reflectir sobre o significado da perda de um filho;

o fim de The New York Trilogy demonstra que todo o romance é uma fuga ao poder

das trevas; Anna Blume tenta escapar da morte que a rodeia (e que já atingiu o seu

útero) através de uma carta; M. S. Fogg usa a sua narrativa como forma de superar

os enigmas e as perplexidades da sua árvore genealógica; em The Music of Chance,

Nashe parte para o acaso com a herança de um pai ausente; Mr Vertigo conta a

história corajosa de um sobrevivente que só não perdeu o dom da palavra;

finalmente, Leviathan, como não poderia deixar de ser, parte da constatação da

ausência e da morte para tentar reconstruir uma vida a partir dos seus destroços.

O próprio trabalho de escrita torna-se, assim, uma das temáticas centrais das

obras de Auster, como explica Sophie Chambon em "L'invention de l'écriture et la

fabrication du roman":

Il tient à nous offrir des romans qui, sous une forme volontairement traditionelle, nous racontent des histoires. Une attention aussi soutenue pour la construction du récit le

9 Paul Auster, The New York Trilogy (Harmondsworth: Penguin Books, 1990), p. 278.

41

pousse à faire du récit même l'un de ses thèmes favoris. En fin de compte, ses textes ont tendance à preindre la littérature pour objet (qui devient alors sujet de réflexion): ce sont des histoires méta-littéraires, des paraboles, des contes à l'instar des Mille et Une Nuits, le modèle absolu de l'engrenage du récit. Comme Scheherazade, Auster retarde et diffère sa fin en racontant toujours la même histoire au moyen de pièces qui se font écho plus ou moins lointainement.10

Dada a ligação forte existente nas obras de Auster entre escrita e vida, é

natural que os seus romances tematizem esta arte existencialista de contar. A sua

ficção baseia-se numa sequência de ecos entre pequenas histórias, que acabam por se

informar mutuamente e possibilitar ao leitor a descoberta de sentidos - e, por

consequência, de vida: "Libre au lecteur d'y voir en puissance l'amorce de ses autres

textes ou la persistence d'une relation critique."11

Este tipo de narração em cadeia de histórias dialogantes entre si e apontando

para o mesmo conjunto de questões é visível, na obra de Paul Auster, a dois níveis.

Primeiramente, ao nível da retoma, em cada romance, de temas já tratados em

romances anteriores, o que torna cada obra individual apenas uma parte de um livro

especial: 'The story of my obsessions, I suppose. The saga of the things that haunt

me. Like it or not, all my books seem to revolve around the same set of questions,

the same human dilemmas. Writing is no longer an act of free will for me, it's a

matter of survival."12 A construção sucessiva de narrativas impregnadas de

recorrências temáticas equaciona-se com a sobrevivência do próprio autor, cuja obra

questiona sempre os enigmas centrais à sua existência. Em segundo lugar, a narração

10 Sophie Chambon, "L'invention de l'écriture et la fabrication du roman", L'Œuvre de Paul Auster: Approches et lectures plurielles, éd. Annick Duperray (Université de Provence: Actes Sud, 1995), pp. 53-54. 11 Françoise Sammarcelli, "L'invention d'une écriture: filiation et altérité dans L'Invention de la Solitude", L'Œuvre de Paul Auster, p. 33. 12 Auster, The Red Notebook, p. 123.

42

em cadeia é também usada ao nível da estruturação interna de cada obra, retratando

também aqui um processo de adiamento do fim pela multiplicação de histórias.

Leviathan não foge à regra, e, por isso, está imerso numa intrincada e

complexa teia de episódios, versões, referências intertextuais que, contudo, acaba por

conseguir afastar (ou pelo menos adiar) o espectro do desmembramento e do vazio

que constantemente ameaça a narração de Peter Aaron. A explicação da necessidade

de construir a obra com base nesta rede de intertextos não se afasta, deste modo, da

que é exposta, por exemplo, em The Invention of Solitude: "I want to postpone the

moment of ending, and in this way delude myself into thinking that I have only just

begun, that the better part of my story still lies ahead. No matter how useless these

words might seem to be, they have nevertheless stood between me and a silence that

continues to terrify me. When I step into this silence, it will mean that my father has

vanished forever."13. O processo que Aaron usa para enfrentar a ausência e o silêncio

de Sachs é também, como o do narrador de "Portrait of an Invisible Man", adiar o

fim pelo prolongamento da escrita e pela reconstrução de sentidos. A questão é saber

se qualquer um dos dois consegue evitar totalmente este silêncio, que acarretará o

desaparecimento das figuras que tentam trazer para a vida.

As primeiras frases de Leviathan, que fazem a descrição da explosão

acidental e da fragmentação do corpo de Benjamin Sachs, dão o mote para uma

tarefa de recomposição:

Six days ago, a man blew himself up by the side of a road in northern Wisconsin. There were no witnesses, but it appears that he was sitting on the grass next to his parked car when the bomb he was building accidentally went off. According to the forensic reports that have just been published, the man was killed instantly. His body

13 Auster, The Invention of Solitude, p. 65.

43

burst into dozens of small pieces, and fragments of his corpse were found as far as fifty feet away from the site of the explosion. (1)

Sob o signo da fragmentação começa, assim, uma cadeia de histórias à volta de Sachs

e do narrador, cada uma das quais constitui uma hipótese de recomeço. Em "Le

hasard et la nécessité dans l'œuvre de Paul Auster", Charles Grandjeat explica

sucintamente os objectivos deste processo:

De fait le roman répond à la fragmentation pour reconstruire, réparer, remembrer le corps déchiqueté (...) Volonté de rassembler les morceaux épars pour rétablir la vérité, et ramener l'innommable dans l'ordre du discours (...) Le narrateur, Peter Aaron, incarne cette volonté de sauver, sinon l'unité, du moins la continuité de la personne

14

A vontade de salvar pelo menos esta ideia de continuidade da identidade de Sachs é

responsável pela decisão de Peter Aaron de começar a narrar. Salva-se a memória e a

identidade (embora de modo ambíguo e difuso) de Sachs e criam-se significados para

o seu percurso e a sua morte.

Os episódios narrados constituem sempre, por isso, tentativas parciais de

ordenação do real, de construção de sentidos para a vida, fugindo de conceitos como

literalidade ou verdade, em que nem Auster nem o narrador principal, Aaron,

acreditam. Pelo contrário, o narrador confronta ostensivamente diversos tipos de

leitura e de estruturas de significação a partir dos fragmentos narrativos que expõe,

lançando mão, como Xerazade, das potencialidades do campo metafórico aberto pela

constatação de que "each thing leads a double life, at once in the world and in our

minds, and that to deny either one of these lives is to kill the thing in both its lives at

14Charles Grandjeat, "Le hasard et la nécessité dans l'œuvre de Paul Auster", L'Œuvre de Paul Auster, p. 159. 15 Auster, The Invention of Solitude, p. 153.

44

Em Moon Palace, ao comentar a narração que Thomas Effing faz da sua vida

passada a Fogg, este afirma: "His narrative had taken on a phantasmagoric quality by

then, and there were times when he did not seem to be remembering the outward

facts of his life so much as inventing a parable to explain its inner meanings."16 O

objectivo de Aaron em relação a Sachs é precisamente o mesmo: apesar de contar os

factos que conhece e os que outrem lhe contou, a preocupação do narrador não é

fazer uma biografia fidedigna, mas inventar modos de dizer o incompreensível. Cada

fragmento da sua narrativa é, pois, uma forma de 1er a realidade que se pretende

recriar, e as contradições e paradoxos entre eles acabam por favorecer a construção

de sentidos, já que o seu carácter provisório e subjectivo é reconhecido desde o

início.

Todas as versões de sentido adquirem, deste modo, o estatuto de matrizes de

compreensão do real, pelo que todas são formas legítimas (mas subjectivas, limitadas

e contextualizadas) de acesso à hipótese do conhecimento da verdade. Cada discurso

está sempre dependente do contexto que o originou, fazendo, por isso, um uso

subjectivo da linguagem com que constrói sentidos para o mundo.

In the Country of Last Things evoca o pessimismo implícito nesta noção da

linguagem: "In effect, each person is speaking his own private language, and as the

instances of shared understanding diminish, it becomes increasingly difficult to

communicate with anyone."17 O mundo de Anna Blume, que à partida parece tão

distante do nosso, acaba por caracterizar lucidamente as dificuldades inerentes à

lsPaul Auster, Moon Palace (Harmondsworth: Penguin Books, 1989), p. 183. 17 Paul Auster, In the Country of Last Things (London/Boston: Faber and Faber, 1989), p. 89.

45

relativização da verdade e à incapacidade da linguagem para expressá-la. E, contudo,

é a própria obra que dá testemunho de que a comunicação ainda é possível, e, mais

importante ainda, obrigatória para a sobrevivência humana: o caderno de Anna chega

até nós e é lido (das mais variadas e antagónicas formas), pelo que a personagem

principal sobrevive pela sua narrativa. No seu testemunho, ela fornece as pistas para

o tipo de reconstrução do real que todos somos obrigados a fazer, através da

descrição das actividades inerentes à profissão de caçador de objectos:

As an object hunter, you must rescue things before they reach this state of absolute decay. You can never expect to find something whole (...) but neither can you spend your time looking for what is totally used up. (...) Everything falls apart, but not every part of every thing, at least not at the same time. The job is to zero in on these little islands of intactness, to imagine them joined to other such islands, and those islands to still others, and thus to create new archipelagoes of matter. You must salvage the salvageable and learn to ignore the rest.18

Salvar o recuperável e integrá-lo numa estrutura de sentido e

simultaneamente aprender a conviver com o que não pode ser assimilado por essa

construção é a tarefa que Peter Aaron tenta, com dificuldade, levar a cabo. Para isso,

procura ilhas de sentido nos mais variados quadrantes da experiência humana, e

tenta-as integrar de uma forma subjectiva e frutuosa no âmbito dos seus objectivos

(criando arquipélagos, já não de matéria, mas de significados para o percurso de

Sachs). Recorre a todo o tipo de testemunhos: os episódios que guardou na sua

memória; as histórias que ouviu a outras personagens; os depoimentos e escritos do

próprio Sachs; as diferentes versões sobre o mesmo facto descritas por uma ou

diferentes personagens; os dados obtidos através dos jornais e dos detectives. Como

em "The Locked Room", texto com motivações paralelas a Leviathan, o que emerge

Auster, In the Country of Last Things, p. 36.

46

desta rede de histórias é uma multiplicidade de cadeias de relações que se tornam o

único meio de compreensão da vida humana:

I got dozens of statements like this one - from letters, from phone conversations, from interviews. It went on for months, and each day the material expanded, grew in geometric surges, accumulating more and more associations, a chain of contacts that eventually took on a life of its own. It was an infinitely hungry organism, and in the end I saw that there was nothing to prevent it from becoming as large as the world itself. A life touches one life, which in turn touches another life, and very quickly the links are innumerable, beyond calculation.19

As ligações entre vidas multiplicam-se, os contextos e as motivações também,

pelo que se torna impossível encontrar o significado e a justificação de uma vida.

Surge, por isso, a necessidade de abranger e descrever o maior número de

significados e justificações, o que transforma os projectos do amigo de Fanshawe e

de Aaron em empresas irrealizáveis na sua totalidade. Daí a semelhança do passo

anterior com a seguinte citação de Leviathan:

One thing leads to another, and whether I like it or not, I'm as much a part of what happened as anyone else. If not for the breakup of my marriage to Delia Bond, I never would have met Maria Turner, and if I hadn't met Maria Turner, I never would have known about Lillian Stern, and if I hadn't known about Lillian Stern, I wouldn't be sitting here writing this book. Each one of us is connected to Sachs's death in some way, and it won't be possible for me to tell his story without telling each of our stories at the same time. Everything is connected to everything else, every story overlaps with every other story. (51)

O encadeamento narrativo próprio d'As Mil e Uma Noites, com a

sobreposição de contos que se iluminam mutuamente, é aplicado por Aaron à sua

narrativa, já que só assim pode lutar para superar a necessária parcialidade e

fragmentação de cada história individual. Em Real Presences, George Steiner

descreve um tipo de leitura da arte que se pode aplicar à estruturação que Aaron cria

para o real: "... no man can read fully, can answer answeringly to the aesthetic, whose

19 Auster, The New York Trilogy, p. 332.

47

'nerve and blood' are at peace in sceptical rationality, are now at home in immanence

and verification. We must read as if.'"20 Temos que 1er como se as interpretações que

construímos pudessem ser verificadas e fazer sentido, e é a este impulso que Aaron

obedece. Mais do que um testemunho real, a narrativa de Aaron é uma tentativa de

construir histórias que dêem significado ao passado, de acordo com os pressupostos

do que Paul Auster considera ser a maior influência da sua ficção: os contos

tradicionais.

Através da sua estrutura metafórica e simples, estes contos conseguem

sublimar os pensamentos mais funestos e indescritíveis da mente humana. Daí as

extensas referências que Auster faz a As Mil e Uma Noites em "The Book of

Memory", e a admiração que manifesta pela voz revitalizante de Xerazade, capaz de

provocar leituras profundas e respostas que já não pertencem ao mundo da ficção,

mas ao da realidade do leitor. Em "Interview with Larry McCaffery and Sinda

Gregory", Auster explicita o papel deste tipo de contos na sua obra:

In the end, though, I would say that the greatest influence on my work has been fairy tales, the oral tradition of story-telling. The Brothers Grimm, the Thousand and One Nights - the kinds of stories you read out loud to children. These are bare-bones narratives, narratives largely devoid of details, yet enormous amounts of information are communicated in a very short space, with very few words. What fairy tales prove, I think, is that it's the reader - or the listener - who actually tells the story to himself. The text is no more than a springboard for the imagination.21

A influência da estrutura narrativa dos contos tradicionais na obra de Auster é

visível, por um lado, na sua procura de fidelidade à simplicidade, à limpidez e à

contenção que caracteriza estes contos; por outro, no tipo de expectativas que põe

George Steiner, Real Presences: Is there anything in what we say? (London/Boston: Faber and Faber, 1991), p. 229. 21 Auster, "Interview with Larry McCaffery and Sinda Gregory", The Red Notebook, p. 140.

48

no seu trabalho de escrita: apesar de reconhecer o seu carácter ficcional, está sempre

implícita a crença do autor nas suas potencialidades para ordenar e explicar o mundo

em que vive (como nas histórias de Xerazade, é pela ficção que se consegue criar

sentidos e transformar o real).

O próprio Auster explica o papel das histórias que conta no seu entendimento

da realidade:

In the long run, I suppose, I tend to think of myself more as a storyteller than a novelist. I believe that stories are the fundamental food for the soul. We can't live without stories. In one form or another, everybody is living on them from the age of two until their death. (...) It's through stories that we struggle to make sense of the world. This is what keeps me going - the justification for spending my life locked up in a little room, putting words on paper. The world won't collapse if I never write another book. But in the end, I don't think of it as an entirely useless activity. I'm part of the great human enterprise of trying to make sense of what we're doing here in the world.22

Pelas histórias, o homem tenta dar sentido à sua existência, e daí que elas

estejam necessariamente presentes em todas as etapas da sua vida. Como contador de

histórias, o que Auster pretende é, antes de mais, criar narrativas que de alguma

forma lhe possibilitem um melhor entendimento de si próprio e dos outros, e

simultaneamente facultem também aos seus leitores um pequeno "alimento para a

alma".

Em Leviathan, este interesse do autor pelo papel das histórias na estruturação

da vida humana é mesmo explicitamente retratado na exploração do episódio da ida

para a Califórnia de Sachs, em que este, após a descoberta da identidade de

Dimaggio, se tenta penitenciar do seu erro através de Lillian Stern. Para além de

todas as conotações explícitas e implícitas à construção central da identidade da

22 Mark Irwin, "Memory's Escape: Inventing The Music of Chance - A Conversation with Paul Auster", Denver Quarterly 28.3 (1994), pp. 118-119.

49

cultura americana (a hipótese do recomeço e do sonho americano), são importantes

as referências recorrentes às semelhanças desta viagem com um conto de fadas, uma

"fairy tale". De facto, Sachs parece pretender enquadrar o seu percurso de vida e

justificá-lo de acordo com os padrões de simplicidade e a riqueza de sentidos

metafóricos dos contos, transformando a viagem para oeste numa história que tenta

seguir os trâmites desta literatura.

Embora tenha a vantagem da distância temporal, o próprio Aaron subscreve

este tipo de leitura, ao não deixar de fora da sua narração as referências que o

protagonista lhe fizera aquando do relato da sua aventura:

That was the reason he had come to California in the first place: to reinvent his life, to embody an ideal of goodness that would put him in an altogether different relation with himself. But Lillian was the instrument he had chosen, and it was only through her that his transformation could be achieved. He had thought of it as a journey, as a long voyage into the darkness of his soul, but now that he was on his way, he couldn't be sure if he was traveling in the right direction or not. (198)

A viagem é considerada, por Sachs e por Aaron, como uma forma de

expiação e redenção, e é vivida pelo primeiro em conformidade com os seus

objectivos. Naturalmente, o real que ele encontra na Califórnia não se compadece

com a forma que lhe pretendia dar a priori, pelo que os sentidos para a aventura se

vão perdendo progressivamente. Desde o início, Sachs está consciente da

impossibilidade de viver a vida como uma "fairy tale", mas nem por isso deixa de

tentar criar significados para as contrariedades do seu percurso a partir dos quais

possa viver o seu sonho de retribuição:

Once Maria had told him about Dimaggio and Lillian Stern, he understood that the nightmare coincidence was in fact a solution, an opportunity in the shape of a miracle. The essential thing was to accept the uncanniness of the event (...) He would go to California and give Lillian Stern the money he had found in Dimaggio's car. Not just the money - but the money as a token of everything he had to give, his entire soul. The alchemy of retribution demanded it, and once he had performed this act, perhaps there would be some peace for him, perhaps he would have some excuse to go on living.

50

Dimmagio had taken a life; he had taken Dimaggio's life. Now it was his turn, now his life had to be taken from him. That was the inner law, and unless he found the courage to obliterate himself, the circle of damnation would never be closed. (...) By handing the money over to Lillian Stern, he would be putting himself in her hands. That would be his penance: to use his life in order to give life to someone else; to confess; to risk everything on an insane dream of mercy and forgiveness. (167, sublinhado meu)

Perante o poder inexorável do acaso,23 Sachs opta pela construção de

sentidos, transformando as desgraças estranhas que sucessivamente lhe acontecem

em elos de uma cadeia de necessidade, na qual baseia toda a sua acção posterior. O

campo semântico do sonho e da redenção pela penitência, próprio dos contos

tradicionais, começa então a ser explorado, como as palavras sublinhadas bem

exemplificam, e será alargado ao longo de todo o episódio da estadia em Berkeley,

lançando uma névoa de irrealidade sobre ele. De facto, a vivência da viagem como

uma história padronizada, cujos passos estão ligados por uma lógica conhecida e

visando resultados precisos, acaba por levantar a Sachs problemas graves, já que não

consegue coadunar o que experiência com o percurso "ficcional" que estabelecera à

partida. Daí que a sua primeira ideia de dar o dinheiro a Lillian de uma só assentada

seja abandonada:

It was supposed to have been a quick, dream-like gesture, an action that would take no time at all. He would swoop down like an angel of mercy and shower her with wealth, and before she realized that he was there, he would vanish. Now that he had talked to her, however, now that he had stood face to face with her in the kitchen, he saw how absurd that fairy tale was. Her animosity had frightened him and demoralized him, and he had no way to predict what would happen next. If he gave her the money all at once, he would lose whatever advantage he still had over her. Anything would be possible then, any number of grotesque reversals could follow from that error. (177-178, sublinhado meu)

Como não poderia deixar de ser, o esquema de acção em que baseara a ida

para a Califórnia não consegue enfrentar o poder da contingência, mas nem assim

O papel do acaso na estruturação da obra será tratado na página 64 e seguin

51

Sachs o abandona: perante situações imprevistas, ele faz ajustes ao seu modelo, na

expectativa de assim poder controlar os acasos. Estes ajustes são, contudo, um sinal

claro de que a sua posição é sempre diferente da que imagina, pelo que a sua decisão

de dividir as dádivas de dinheiro não é o único "act of pure improvisation, a blind

leap into the unknown" (178). Dai que, apesar de se assumir como um "anjo

misericordioso", uma "fairy godmother" (179) que vem resolver todas as dificuldades

de Lillian, esta se sinta justificadamente amedrontada pelas suas acções: Sachs

começa por dar-lhe enormes quantidades de dinheiro, mas acaba por desaparecer

com o resto; estabelece com ela uma relação amorosa para a vir depois a abandonar

novamente na solidão; ocupa o papel de pai para a pequena Maria, mas troca-a pela

defesa dos direitos das crianças em geral.

Cada viragem dos acontecimentos acarreta, assim, um afastamento da "fairy

tale" que imaginara antes da partida, mas isso não o impede de continuar a criar

novos padrões interpretativos pelos quais nortear a sua actuação. É mesmo das

próprias ruínas deste sonho que Sachs cria uma nova história para dar sentido à vida:

Not only would I be using it [the money] to carry out Dimaggio's work, but I would be using it to express my own convictions, to take a stand for what I believed in, to make the kind of difference I had never been able to make before. All of a sudden, my life seemed to make sense to me. Not just the past few months, but my whole life, all the way back to the beginning. It was a miraculous confluence, a startling conjunction of motives and ambitions. I had found the unifying principle, and this one idea would bring all the broken pieces of myself together. For the first time in my life, I would be whole. (228)

Surge uma nova hipótese de recomeço, uma nova "fairy tale" de

enquadramento da acção futura, um novo "milagre" do acaso, que o desenrolar dos

acontecimentos vem provar ser, de facto, apenas mais um elemento do que Aaron

52

chama uma "valsa de desastres".24 É com ironia que o narrador recorda as palavras

de Sachs, já que o próprio início da narrativa se deve principalmente à fragmentação

causada por esta viragem para Dimaggio e para a Estátua da Liberdade. Ao contrário

do que o protagonista afirma, a escolha do princípio do terrorismo não será

unificadora, mas destruidora da sua identidade: também esta história não consegue

contrariar o poder do acaso.

Sachs, contudo, não parece aprender a lição do fracasso da viagem para a

Califórnia e da estruturação da vida de acordo com "contos de fadas" simplificadores

e redentores. Pelo contrário, continua até ao fim a criar histórias pelas quais guia a

sua existência, pois elas permitem-lhe encontrar, pelo menos provisoriamente, o

"princípio unificador" que dá sentido à vida. O próprio Aaron, que tem a vantagem

de conhecer toda a história, embora relate o auto-engano do amigo, acaba por seguir

o tipo de estruturação da vida proposto por Sachs na sua narrativa. A mensagem

implícita do autor é clara: apesar de todas as suas limitações e decepções, o homem

não consegue viver sem as histórias, como ele próprio diz. Arthur Saltzman afirma:

Leviathan is riddled with Aaron's disclaimers and misgivings, so much so that the story of Benjamin Sachs quickly evolves into a book-long delineation of the inevitability of storification. For every insight there is an apology. (...) Indeed, Leviathan, whose title Aaron appropriates from Sachs's own book-in-progress "to mark what will never exist" [142], does not conclude so much as capitulate to the fact that "the story would go on and on, secreting its poison inside me forever. The struggle was to accept that, to coexist with the forces of my own uncertainty" [242],25

A historificação do percurso de Sachs pressupõe que não há hipótese de

conhecer o real na sua totalidade, ou, ainda que parcialmente, de forma objectiva. Daí

Ver página 71. 25 Arthur Saltzman, "Leviathan: Post Hoc Harmonies", Beyond the Red Notebook: Essays on Paul Auster, ed. Dennis Barone (Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1995), p. 164.

53

que o final da narrativa não corresponda à conclusão da história, mas sim, como diz

Saltzman, à capitulação perante o facto de que ela não tem fim. Como os contos

tradicionais, que sofrem desenvolvimentos e alterações e ganham significados a cada

nova leitura (ou transmissão oral), a historificação do percurso de Sachs pressupõe

que o livro que Aaron escreve nunca consiga dizer tudo sobre ele.

Em "The Locked Room", o narrador afirma: "Stories without endings can do

nothing but go on forever, and to be caught in one means that you must die before

your part in it is played out."26 É isto que parece acontecer com a narrativa de

Aaron: a própria construção em sucessivas fases de esboço, sob a ameaça da chegada

iminente dos detectives com as provas da ligação de Sachs ao acidente em

Wisconsin, é evidência de que Aaron tem ainda muito para narrar, apesar de o tempo

se ter esgotado.

I wrote a short, preliminary draft in the first month, sticking only to the barest essentials. When the case was still unsolved at that point, I went back to the beginning and started filling in the gaps, expanding each chapter to more than twice its original length. My plan was to go through the manuscript as many times as necessary, to add new material with each successive draft, and to keep at it until I felt there was nothing left to say. Theoretically, the process could have continued for months, perhaps even for years - but only if I was lucky. As it is, these past eight weeks are all I will ever have. (...) I was forced to stop writing. That was yesterday, and I'm still trying to come to grips with how suddenly it happened. (243)

O esqueleto da narrativa (os momentos essenciais da vida do seu

protagonista) pode, assim, ser enriquecido com o relato de infinitas coincidências e

inúmeros episódios e com a criação, a partir deles, de pequenas histórias capazes de

os tornar compreensíveis para Aaron, mas também para os leitores da obra. O final é,

por isso, arbitrário, já que está dependente da solução do caso, que corresponde a

Auster, The New York Trilogy, p. 278.

54

uma reconstrução paralela da vida de Sachs, com intuitos profundamente diversos da

de Aaron (já não abonatórios, mas incriminâtórios). A narrativa só poderia ser

considerada uma estruturação equilibrada se apresentasse também o outro lado da

história, o da investigação, mas nem assim estaria completa, porque ficariam sempre

por conhecer outras versões essenciais à perfeita compreensão dos sentidos do

percurso de Sachs. A tarefa que Aaron se propõe é, pois, irrealizável em toda a sua

plenitude, uma vez que a existência humana não pode ser reduzida a um processo de

historificação.

Em In the Country of Last Things, Anna Blume, uma personagem que, como

Aaron, procura encontrar arquipélagos de sentido no caos da realidade, explica bem a

situação em que os dois narradores se encontram quando são confrontados com a

necessidade de pôr um fim às histórias que contam:

I've been trying to fit everything in, trying to get to the end before it's too late, but I see now how badly I've deceived myself. Words do not allow such things. The closer you come to the end, the more there is to say. The end is only imaginary, a destination you invent to keep yourself going, but a point comes when you realize you will never get there. You might have to stop, but that is only because you have run out of time. You stop, but that does not mean you have come to the end.27

Pelo contrário, a paragem da escrita nos dois romances corresponde a uma

promessa de recomeço: Anna Blume assegura que voltará à escrita; Peter Aaron

entrega as páginas do seu livro ao detective Harris, que irá construir, a partir da sua

comparação com a versão que já conhece, uma nova história mais abrangente das

acções e motivações de Benjamin Sachs. O que o narrador lhe entrega é, contudo,

mais do que um testemunho. Harris descobre o "Phantom of Liberty" através da

ficção de Peter Aaron, pelo que está consciente que o livro que recebe não é somente

Auster, In the Country of Last Things, p. 183.

55

uma versão subjectiva da história de Sachs, mas uma obra de arte, que se abre, para

ele como para os leitores extradiegéticos, a todas as interpretações. "J'aime que les

choses se ouvrent, ne se terminent pas"28 diz Paul Auster, e Leviathan não é

excepção à regra. Harris é o primeiro de uma sucessão de parceiros de leitura e

construção do real do narrador, e por isso o cumprimenta jovialmente, "as though we

were old familiars, colleagues in the quest to solve life's mysteries" (244). Mais

virão, a outros níveis ontológicos, abrindo a narrativa a uma rede de significações

que Aaron não consegue (nem pode) sequer aflorar, mas que acaba por concretizar o

seu primeiro objectivo: reconstruir e trazer o amigo para a vida através do discurso.

Avons-nous la force non seulement de plonger au cœur de notre solitude, mais aussi de fouiller cet amas de non-sens, de choses disconnectées les unes des autres, et de sauver ce qui fait encore sens, ce qui entretient des rapports avec le reste du monde? Qu'importe que l'on échoue dans cette démarche, il nous faut la tenter. Bien sûr, il nous reste la possibilité de fermer les yeux, de refuser de porter un regard ferme sur le monde qui nous entoure, mais si nous choisissons de le faire, nous risquons d'étouffer ce qui demeure vivant en nous; et si cela aussi vient à disparaître, si l'imagination s'abandonne à la fragmentation, le monde s'effondrera pour de bon, et plus rien de nouveau ne verra jamais le jour.29

É preferível, por isso, usar a imaginação e a memória, apesar de todas as suas

limitações e perigos, mesmo com o envio a Alice:

Alice! A childish story take, And with a gentle hand

Lay it where Childhood's dreams are twined In memory's mystic band,

Like pilgrim's withered wreath of flowers Pluck'd in a far-off land.30

Gérard de Cortanze, "Le Monde est dans ma Tête, mon Corps est dans le Monde", Magazine Littéraire 338 (Décembre 1995), p. 25 29Cristophe Metress, "îles et archipels, sauver ce qui est récupérable: la fiction de Paul Auster", L'Œuvre de Paul Auster, p. 257. 30 Lewis Carroll, The Annotated Alice: Alice's Adventures in Wonderlandand Through the Looking-Glass, ed. Martin Gardner (Harmondsworth: Penguin Books, 1970), p. 23.

56

Deste modo, a necessidade sentida por Aaron (e por Auster) de sobrepor as

histórias de todos os que rodearam Sachs, de modo a conseguir assim contar a

história do amigo, não é um objectivo fácil de atingir, ou mesmo realizável, uma vez

que a única via de acesso às diferentes versões da realidade que pretende descrever é

a observação, sempre orientada por um contexto ideológico-cultural e linguístico

específico. Daí que os resultados da narração destas histórias estejam à partida

conscientemente viciados.

A preocupação com a distância entre a realidade, a sua percepção e a sua

representação pela linguagem é, aliás, já visível na poesia de Paul Auster. 'Tacing the

Music" retrata esta distância:

Impossible to hear it anymore. The tongue is forever taking us away from where we are, and nowhere can we be at rest in the things we are given to see, for each word is an elsewhere, a thing that moves more quickly than the eye, even as this sparrow moves, veering into the air in which it has no home.31

As limitações inerentes a este carácter fugidio e duplo da linguagem enquanto

forma de expressão do observado complica-se ainda mais quando, como no caso de

Aaron, se tenta criar sentidos para uma identidade humana, sempre única e

intransmissível. Leviathan parte desta constatação, já anteriormente aprofundada em

The Invention of Solitude: "Impossible, I realize, to enter another's solitude. If it is

true that we can ever come to know another human being, even to a small degree, it

31 Auster, Ground Work, p. 100.

57

is only to the extent that he is willing to make himself known. (...) Where all is

intractable, where all is hermetic and evasive, one can do no more than observe. But

whether one can make sense of what he observes is another matter entirely."32 À

partida, Sachs não corresponde à descrição que aqui se faz da figura enigmática do

pai do autor: o relato em que Aaron baseia a maior parte da sua narrativa foi feito

pelo próprio Sachs ('"Just in case something happens to me'" - 221). A verdade,

contudo, é que a imagem de fragmentação do início da obra só a custo é alterada: até

ao final, a representação do amigo feita por Aaron nunca perde um pendor evasivo e

fantasmagórico. Este facto não deixa, porém, de ser natural, já que o acto de escrita

parte do pressuposto da impossibilidade de conhecer a natureza humana. É isto que

Dennis Barone defende:

The truth shifts with every few pages, and yet Aaron tells it - even if he must lie to do so. (...) Aaron presents events from a number of different perspectives. (...) In such uncertainty, what action can one take? Though Aaron acts now in writing the book, he feels that he failed his friend because he failed to act four years ago ...

But Aaron did not know then what he knows now. His failure to act can be forgiven as can any of ours. For what can we know? And if we cannot know all, how can we act?33

De facto, o único modo de acção à disposição de Aaron é a dedicação à

escrita, actividade corajosa de quem não consegue nem pode ancorar a narração a

uma noção única, segura e absoluta de verdade. Aaron faz juz ao espírito subversivo

da personagem que descreve, ao contar histórias que fogem dos parâmetros

tradicionais de verosimilhança e estabilidade narrativas. O seu texto não esconde a

contextualização de cada episódio ou voz, abrindo-se à representação do plural.

32Auster, The Invention of Solitude, pp. 19-20. 33 Dennis Barone, "Introduction: Paul Auster and the Postmodern American Novel", Beyond the Red Notebook, p. 19.

58

"Novel writing is a way of speaking out of both sides of your mouth at once. It's

multi-voiced",34 afirma Auster numa entrevista. De facto, Leviathan demonstra como

o autor põe em prática esta sua concepção dialógica do romance, em que ideologias e

culturas diversas são expostas, contrastadas e relativizadas, sem se acreditar,

contudo, na possibilidade de encontrar fundações mais seguras para o discurso.

Roland Barthes explica o que se pretende deste tipo de textos:

Certains veulent un texte (un art, une peinture) sans ombre, coupé de l'«idéologie dominante»; mais c'est vouloir un texte sans fécondité, sans productivité, un texte stérile (...). Le texte a besoin de son ombre: cette ombre, c'est un peu d'idéologie, un peu de représentation, un peu de sujet: fantômes, poches, trainees, nuages nécessaires: la subversion doit produire son propre clair-obscur}5

Como Barthes, também Auster não acredita em textos sem "sombras"

ideológicas. Por isso, apresenta através de Peter Aaron uma narrativa tecida a partir

de uma rede de textos em que as "nuvens necessárias" a que Barthes se refere estão

explícitas, pondo a descoberto as limitações e os poderes destas "sombras". A

multiplicação de versões surge, assim, como estratégia de exposição das dificuldades

próprias da representação e da sua reconstrução do real e da natureza humana, assim

como do carácter local e provisório de qualquer noção de verdade.

Em The Red Notebook, obra construída com base em pequenos episódios

"reais" e surpreendentes, através dos quais Auster expõe as suas motivações para a

escrita, vários são os passos que poderiam exemplificar o processo usado em

Leviathan, assim como a importância deste tipo de estratégia na possibilidade do

conhecimento. É o que acontece na história 9, que confronta duas perspectivas

completamente irreconciliáveis (ou talvez não):

34Irwin, "Memory's Escape", Denver Quarterly, p. 113. 35 Roland Barthes, Le Plaisir du Texte (Paris: Éditions du Seuil, 1973), p. 53.

59

completamente irreconciliáveis (ou talvez não): "Cs life had now become two lives.

There was Version A and Version B, and both of them were his story. He had lived

them both in equal measure, two truths that cancelled each other out, and all along,

without even knowing it, he had been stranded in the middle."36

A vida de Sachs (e também a de todas as outras personagens que gravitam à

sua volta) sofre uma divisão ou multiplicação semelhante em Leviathan, só que o

número de versões é infinitamente superior. A obra está impregnada deste espírito

relativista, que provoca uma sensação de incerteza constante ao narrador (e aos

leitores). Se o que relata pretende ser a "história verdadeira" de Sachs, Aaron está

consciente de que pode apenas falar do que conhece, e que mesmo os elementos que

conhece "could have been entirely false" (31). A cada momento, todas as

personagens criam sentidos a partir do que observam ou ouvem, mas esta informação

é sempre parcial:

Knowing what I know now, I can see how little I really understood. I was drawing conclusions from what amounted to partial evidence, basing my response on a cluster of random, observable facts that told only a small piece of the story. (126)

O passo refere-se a um episódio específico, em que Aaron constrói uma

concepção do estado de Sachs com base na observação de comportamentos

aparentemente desconexos deste, vindo a descobrir mais tarde que tudo não passava

de um projecto lúdico com Maria Turner. No entanto, ele poderia servir de mote para

toda a narrativa, em que as personagens respondem aos dados parciais que possuem

em determinado contexto (o próprio Sachs é perito neste tipo de construções),

Auster, The Red Notebook, p. 27.

60

criando uma parte (a possível em determinado momento e determinadas condições)

de uma história, à semelhança do que acontece na vida "real".

Uma personagem da obra é emblemática deste espírito de relativização:

Lillian Stern. Desde o início, o conteúdo da informação que dá é sempre exposto

como ambíguo, parcial ou falso. Assim, o seu aparecimento na narrativa é marcado

pela aceitação do carácter dúbio do seu testemunho: "Even if Lillian is not always to

be trusted, even if her penchant for exaggeration is as pronounced as I'm told it is,

the basic facts are not in question" (69), afirma Aaron, para, logo a seguir, dar duas

versões (uma contada por Lillian a Sachs, a outra a Maria) das razões que a levaram

a tornar-se prostituta. Esta marca continua ao longo da narrativa. Ela é, por isso,

capaz de levar os outros à total perplexidade, como acontece com Sachs, incapaz de

decidir que interpretação dar ao seu aparente desprezo pelo dinheiro que lhe oferece

dia após dia - "both interpretations made sense, and therefore they cancelled each

other out ..." (203) -, sendo o contraponto deste seu poder o facto de encontrar as

justificações menos plausíveis para o comportamento alheio, chegando, por exemplo,

a aventar a hipótese de o ex-marido, Reed Dimaggio, ser um agent provocateur ao

serviço da espionagem do Estado - ideia estranha, mas " that doesn't mean it isn't

true" (239).

Ao contrário do que Aaron afirma sobre a incapacidade de as versões de

Lillian afectarem a base da história, o decorrer da narrativa vai provar que todos os

detalhes contam, que há sempre distorções nos factos básicos por causa dos

pormenores mais ínfimos. Daí que, perante a contínua ambiguidade desta

personagem, o narrador se sinta na necessidade de a observar e analisar por si

61

próprio, tentando encontrar-se com ela: "Everything I knew about her had come

from either Sachs or Maria, and she was too important a figure for me to rely on their

accounts" (240). Este encontro nunca se realiza, o que só por si abala definitivamente

a credibilidade da história, já afectada pela desconfiança em relação aos testemunhos

de Maria e Sachs. Por outro lado, a posição que assume em relação a Lillian acaba

por ser um comentário à situação da narrativa principal: apesar do que viu e ouviu

directamente de Sachs, Aaron não esteve presente nas duas partes fundamentais da

vida do seu amigo, a infância e o período do "Phantom of Liberty". Poderá ou deverá

então confiar nas histórias de outros sobre estes períodos? Como em "City of Glass",

o livro que escreve nunca conseguirá ser mais do que "half the story"37, e o trabalho

dos detectives é a melhor prova disso.

O carácter parcial e necessariamente subjectivo do relato de Aaron prende-se

também com o papel selectivo, hierarquizador e subjectivo da memória, estrutura

activa de armazenamento de toda a informação da experiência através da qual Aaron

constrói (consciente, mas também inconscientemente) formas de assimilação das

realidades violentas que tenta descrever na sua narrativa.

Memory distorts and it transforms; it causes some people pain and others happiness, or it brings both pain and happiness at the same time; it apologizes and it justifies, it accuses and it excuses; it fails to recall anything and then recalls much more than was ever there - indeed, memory does virtually everything but what it is supposed to do: that is, to look back on a past event and to see that event as it really was.38

A informação estruturada na memória não equivale à matéria "real" em que se

baseia, sendo, neste sentido, sempre uma forma de ficção. Em "The Book of

37 Auster, The New York Trilogy, p. 158. 38 James Olney, "Some Versions of Memory/ Some Versions of Bios: The Ontology of Autobiography", Autobiography: Essays Theoretical and Critical, ed. James Olney (Princeton: Princeton University Press, 1980), p. 254.

62

Memory", Auster faz uma definição sucinta do significado deste espaço: "Memory:

the space in which a thing happens for the second time."39 Nada acontece duas vezes

da mesma maneira, o que implica que o próprio acto de recordar envolva sempre

interpretação e estruturação. Torna-se, por isso, impossível tomar uma narrativa -

qualquer que seja - como verídica e factual.

Daí a contradição implícita nas histórias que Aaron conta: apesar de tentar

criar sentidos para a vida de Sachs a partir delas, o narrador tem sempre que as

assumir como tentativas subjectivas de estruturação do real, à semelhança de

qualquer outra forma de representação. Esta contradição não impede, contudo, a

afirmação da necessidade de recorrer à memória para levar a cabo a tarefa que Aaron

se propôs, já que as potencialidades deste espaço são imensas, e a própria condição

humana sobrevive através dele:

Memory, therefore, not simply as the resurrection of one's private past, but an immersion in the past of others, which is to say: history - which one both participates in and is a witness to, is a part of and apart from.40

Na memória ligam-se as histórias de todas as personagens, advindo daqui a

necessidade sentida por Aaron de descrever a cadeia de relações que envolvia a vida

de Sachs. É o espaço da memória que, consequentemente, possibilita a construção do

passado histórico e sua narração por um sujeito que observou esse passado e nele se

envolveu a dois níveis: como contemporâneo do que conta e como seleccionador e

estruturador da informação recolhida. Daí que esta nunca seja equivalente à sua

Auster, The Invention of Solitude, p. 83. Auster, The Invention of Solitude, p. 139.

63

estruturação nesse espaço. Em "City of Glass", o narrador descreve o tipo de dúvidas

inerentes a esta situação:

Later, when he had time to reflect on these events, he would manage to piece together his encounter with the woman. But that was the work of memory, and remembered things, he knew, had a tendency to subvert the things remembered. As a consequence, he could never be sure of any of it.41

Peter Aaron não consegue nem pode fugir deste tipo de subversão, pelo que a

sua narrativa permanece, em certa medida, duvidosa. Esta é, contudo, uma dúvida

diferente da que o motivou para a escrita, como o comentário do narrador sobre a

sua atitude aquando do desaparecimento de Sachs explica:

I had lost contact with him, and his absence felt less and less like a personal matter. Every time I tried to think about him, my imagination failed me. It was as if Sachs had become a hole in the universe. He was no longer just my missing friend, he was a symptom of my ignorance about all things, an emblem of the unknowable itself. (146)

A equação que Aaron faz entre memória e imaginação é, à partida, estranha.

Seria mais natural que o narrador afirmasse que a sua memória já não conseguia

congeminar uma imagem nítida do amigo desaparecido. Aaron apela, no entanto, ao

poder criativo da imaginação, na expectativa de construir com base na memória uma

imagem viva, e não vazia de causas e motivações, de Benjamin Sachs. O seu

objectivo não é alcançado, o que demonstra que a ausência acarreta o esquecimento,

pelo que, após a explosão que tira a vida a Sachs, se decide a escrever a "verdade"

sobre ele, na tentativa de encontrar sentidos para o seu percurso e, assim, torná-lo

vivo pela escrita.

"At that moment the equation became clear to him: the act of writing as an

act of memory"42, afirma o narrador de "The Book of Memory", o que sem dúvida

Auster, The New York Trilogy, p. 15. Auster, The Invention of Solitude, p. 142.

64

parece ser o que se passa com Aaron. É no espaço da memória que o narrador

constrói a imagem de Sachs que representa na sua narrativa, a qual só tem lugar

perante a perda do amigo. A memória é, assim, despoletada por uma motivação

muito especial, de acordo com o que Auster considera passar-se no mundo em que

vivemos:

I believe that the world is filled with stories, that our lives are filled with stories, but it's only at certain moments that we are able to see them or to understand them. You have to be ready to make sense of what's happening to you. Most of us, myself included, walk through life not paying much attention. Suddenly, a crisis occurs when everything about ourselves is called into question, when the ground drops out from under us. I think it's at those moments when memory becomes a most powerful force in our lives. You begin to explore the past, and invariably you come up with a new reading of the past, a new understanding, and because of that you're able to encounter the present in a new way.43

A história que Aaron narra parte do tipo de crise descrito por Auster: Sachs

confiara-lhe um segredo, e só as circunstâncias excepcionais em que se encontra

fazem Aaron quebrar a promessa de não o revelar. É a imagem da queda no abismo e

da fragmentação no desconhecido do amigo que o impele para a escrita, que parte da

memória para encontrar sentidos para os factos narrados, mas que acaba por

acarretar leituras diferentes para o presente. O acto de escrita torna-se, assim, um

processo criativo de assimilação do passado e procura de sentidos para a existência

actual do seu produtor.

2. À volta da história: a música do acaso e a pulsão

ficcional From an aesthetic point of view, the introduction of chance elements in fiction probably creates as many problems as it solves. I've come in for a lot of abuse from critics because of it. In the strictest sense of the word, I consider myself a realist. Chance is a part of reality: we are continually shaped by the forces of coincidence, the unexpected occurs with almost numbing regularity in all our lives. And yet there's a widely held notion that novels shouldn't stretch the

Irwin, "Memory's Escape", Denver Quarterly, p. 114.

65

imagination too far. Anything that appears 'implausible' is necessarily taken to be forced, artificial, 'unrealistic'. I don't know what reality these people have been living in, but it certainly isn't my reality. In some perverse way, I believe they've spent too much time reading books. They're so immersed in the conventions of so-called realistic fiction that their sense of reality has been distorted. (...) Anyone with the wit to get his nose out of his book and study what's actually in front of him will understand that this realism is a complete sham. To put it another way: truth is stranger than fiction. What I am after, I suppose, is to write fiction as strange as the world I live in.44

No desenvolvimento do processo de construção de significados no romance é

fulcral o tratamento que nele (como na restante obra de Auster) é dado ao acaso,

assim como às sucessivas tentativas de o interpretar e padronizar de acordo com

critérios subjectivos de estruturação da realidade. De facto, esta parece ser uma das

obsessões fundamentais do "livro da obra" de Paul Auster, pelo que os seus

romances são construídos e desenvolvidos a partir das coincidências mais

inverosímeis e de encruzilhadas de acontecimentos perfeitamente acidentais.

Inscrever o poder do acaso no enredo dos seus romances corresponde, assim,

a uma estratégia subversiva (dos cânones tradicionais de realismo) de fidelidade a um

real caótico e contingente, estranho e incontrolável, em que, como repete na maior

parte dos seus romances, "anything can happen. And one way or another, it always

does" (160). Se tudo pode acontecer, então não é de estranhar a cadeia de

coincidências e acontecimentos improváveis que fazem descer Sachs da popularidade

mediana como escritor ao terrorismo e à morte, já que o acaso não tem regras ou

medidas.

"In the end, each life ts no more than the sum of contingent facts, a chronicle

of chance intersections, of flukes, of random events that divulge nothing but their

Auster, "Interview with Larry McCaflery and Sinda Gregory", The Red Notebook, pp. 116-117.

66

own lack of purpose", afirma o narrador de "The Locked Room". O poder total do

acaso para simplesmente acontecer, sem propósitos escondidos ou planos traçados,

parece ser o princípio por trás de The New York Trilogy. E, contudo, a própria

narração é prova de que o amigo de Fanshawe pretende criar sentidos para o

conjunto de factos contigentes que formam a história da sua ligação com a

personagem principal. É pela linguagem que o homem tem possibilidade de estruturar

e dar significado ao mundo e à vida. Ora, sendo a vida um conjunto de acasos, torna-

se necessário que eles forneçam a matéria-prima para a elaboração de uma concepção

obrigatoriamente subjectiva e parcial do homem e das coisas. Apesar de eleger o

poder da contingência para tema dos seus romances, Auster não deixa, assim, de

expor o enquadramento deste poder numa "música do acaso", numa construção

estruturante e legitimadora de um certo tipo de propósitos ou motivações.

The Music of Chance é, naturalmente, emblemático da dualidade entre acaso

e necessidade visível em toda a obra de Auster, como bem explica Tim Woods:

The title of The Music of Chance suggests an oxymoronic state of affairs, wherein there is a harmony of discontinuities, a set of uncontrollable parameters that nevertheless provide a fine pattern of togetherness and interconnectedness. This paradoxical "ordered disorderedness" signals the text's central concern with the implications of chance, and the extent to which an arrangement of events is predetermined or not.46

O realismo de Paul Auster obriga-o a tomar o acaso como elemento

fundamental da construção da narrativa, mas fá-lo também integrar as interpretações

que narradores e personagens apresentam a posteriori para a cadeia de contingências

45 Auster, The New York Trilogy, p. 256. 46 Tim Woods, "The Music of Chance: Aleatorical (Dis)harmonies Within 'The City of the World'", Beyond the Red Notebook, p. 146.

67

que efectivamente ocorreu e as especulações sobre os possíveis resultados de outras

sequências de acontecimentos.

Daí que o oximoro do título desta obra deva, num sentido lato, ser

considerado como estando na origem de todo o seu processo de escrita, na tentativa

de descrever o paradoxo da condição contemporânea do homem, consciente da sua

incapacidade para conhecer e controlar o caos da realidade, mas também

profundamente embrenhado na construção de laços de determinismo entre os

acontecimentos. 'Tacts are events to which we have given meaning", afirma Linda

Hutcheon,47 o que significa que todos os factos se enquadram necessariamente em

estruturas subjectivas de interpretação que desenvolvem ligações entre diferentes

acontecimentos. Este tipo de ligações torna-se essencial para a criação de sentidos e

finalidades para a vida, permitindo, deste modo, a sobrevivência. Regressando a

Hutcheon, "the process of making stories out of chronicles, of constructing plots out

of sequences, is what postmodern fiction underlines";48 neste âmbito, a obra de Paul

Auster é exemplar.

Subjaz a esta "música do acaso" a consciência irónica do escritor de que a

necessidade de encontrar sentidos não implica que eles existam de facto, e é por isso

que expõe como "versões de verdade" as sucessivas interpretações da contingência

em termos de necessidade presentes nas suas obras. Jean Baudrillard descreve o

papel desta procura incessante de sentidos, da "verdade":

La rage de déshabiller la vérité, d'arriver à la vérité nue, celle qui hante tous les discours d'interprétation, la rage obscène de lever le secret est exactment proportionelle à l'impossibilité d'y arriver jamais. Plus on s'approche, plus la vérité recule vers le point oméga, et plus se renforce la rage d'y parvenir. Mais cette rage ne

47 Hutcheon, The Politics of Postmodernism, p. 57. 48 Hutcheon, The Politics of Postmodernism, p. 66.

68

fait que témoigner de l'éternité de la séduction et de son impuissance d'en venir à

A obra de Auster parte da constatação do paradoxo da sedução humana pela

verdade e da sua impotência para a alcançar, o que o leva à construção de narrativas

também elas paradoxais, já que conseguem transcrever para o seu universo o carácter

contraditório desta "música do acaso". Podem-se, por isso, notar na sua obra duas

tendências opostas, que lutam pela supremacia mas permanecem num estado de

equilíbrio instável:

L'œuvre de Paul Auster, le vrai Auster, est configurée par deux mouvements contraires. D'abord, l'entropie, "du grec, entropia: «retour en arrière»; en thermodynamique, fonction définissant l'état de désordre d'un système, croissante lorsque celui-ci évolue vers un autre état de désordre accru". Chez Auster on voit partout la dégradation des choses, des objets qui subissent l'usure et l'effritement de leur matière, des objets qui tombent en désuétude, l'ordre qui se défait, un retour en arrière. Et contre cette tendance il y a un Formtrieb, une pulsion de forme qui produit des figures d'une beauté hallucinante et géométrique: les coïncidences, le système d'identifications fausses et vraies, les doubles, les symétries, les jeux de miroirs, la machinerie textuelle bien huilée, soigneusement construite.50

Estes dois movimentos contrários são, ao nível da construção da narrativa, a

forma encontrada por Auster de tornar visível na engrenagem do processo de escrita

o carácter paradoxal da "música do acaso": por um lado, surge a desordem, a

fragmentação, a perda de sentidos, a mudança contínua; por outro, a tendência para o

controlo, a estruturação do texto de acordo com parâmetros definidos, em que

objectos, acontecimentos e personagens são envolvidos numa rede de recorrências e

contrastes que lhes dá forma, significado e, consequentemente, vida.

As suas personagens tentam, por isso, 1er nos acasos, apesar das suas

contradições, os sinais de uma realidade construída à medida do seu destino. É o caso

Jean Baudrillard, L'Autre par Lui-Même: Habilitation (Paris: Éditions Galilée, 1987), pp. 64-65. Roy C. Caldwell, "New York Trilogy: Réflexions Postmodernes", L'Œuvre de Paul Auster, p. 79.

69

de Aaron, que, embora consciente do risco de se enganar, procura encontrar uma

"música" unificadora capaz de dar sentido à sequência de acontecimentos na base da

história que conta, e também de Nashe, o protagonista de The Music of Chance. Daí

a semelhança dos seguintes episódios dos dois romances, em que as contradições

inerentes a este paradoxo são claramente expostas:

At ten thirty, he switched off the television and climbed into bed with a paperback copy of Rousseau's Confessions, which he had started reading during his stay in Saratoga. Just before he fell asleep, he came to the passage in which the author is standing in a forest and throwing stones at trees. If I hit that tree with this stone, Rousseau says to himself, then all will go well with my life from now on. He throws the stone and misses. That one didn't count, he says, and so he picks up another stone and moves several yards closer to the tree. He misses again. That one didn't count either (...) He is no more than a foot away from it now, close enough to touch it with his hand. Then he lobs the stone squarely against the trunk. Success, he says to himself, I've done it. From this moment on, life will be better for me than ever before.

Nashe found the passage amusing, but at the same time he was too embarassed by it to want to laugh. There was something terrible about such candor, finally, and he wondered where Rousseau had found the courage to reveal such a thing about himself, to admit to such naked self-deception.51

O jogo com a sorte, a tentativa de a enquadrar em esquemas de necessidade,

acreditando (ou talvez não) na possibilidade de criar sentidos para o que

acidentalmente acontece e de chegar mesmo a controlar o acaso são aqui expostos

como formas de auto-engano. Em Leviathan, o próprio narrador expõe

corajosamente uma atitude semelhante, o que acaba por servir de comentário às bases

obrigatoriamente instáveis de todo o seu discurso:

As I walked toward the table, I wondered how close I would have to get before he noticed I was there. The sooner it happened, the worse our conversation was going to be, I said to myself. If he looked up, that would mean he was anxious - which would prove that Fanny had already talked to him. On the other hand, if he kept his nose buried in his paper, that would show he was calm, which might mean that Fanny hadn't talked to him. (90)

Paul Auster, The Music of Chance (Harmondsworth: Penguin Books, 1991), pp. 53-54.

70

A leitura de elementos arbitrários do real como sinais de uma significação

corresponde a uma tentativa de construção - ficcionalização - do acaso em modelos

de sentido que o simplifiquem e o tornem assimilável, se não compreensível. Há, em

ambos os passos, uma tentativa de criar e moldar o real segundo grelhas de sentido

subjectivas, apesar da consciência de que esta criação só é resistente à interpretação

de quem a constrói.

Leviathan, como The Music of Chance, nasce desta ordenação estratégica e

sempre parcial dos acasos da vida. Daí que a narração intencionada de Aaron sobre o

percurso de Sachs, que parte da crença na existência de significados para e ligações

entre cada um dos momentos do seu percurso, nunca exclua a possibilidade de estas

conexões não existirem de facto. No terceiro capítulo, em que Aaron tenta explicar

as causas e consequências do acidente do protagonista, dando uma lógica de

continuidade aos acontecimentos, o narrador vê-se na necessidade de pôr a nu o seu

discurso como pura especulação:

All this is speculation. (...) If I question this optimistic portrait of Sachs during those years, it's only because I know what happened later. Immense changes occurred inside him, and while it's simple enough to pinpoint the moment when these changes began, to zero in on the night of his accident and blame everything on that freakish occurrence, I no longer believe that explanation is adequate. Is it possible for someone to change overnight? Can a man fall asleep as one person and then wake up as another? Perhaps, but I wouldn't be willing to bet on it. (...) there are a thousand different ways in which a person can respond to a brush with death. That Sachs responded in the way he did doesn't mean I think he had any choice in the matter. On the contrary, I look on it as a reflection of his state of mind before the accident ever took place. (...) the accident did not change him so much as make visible what had previously been hidden. If I'm wrong about this, then everything I've written so far is rubbish, a heap of irrelevant musings. Perhaps Ben's life did break in two that night, dividing into a distinct before and after (...) But if that's true, it would mean that human behavior makes no sense. It would mean that nothing can ever be understood about anything. (105-106)

71

Aaron admite que a sua história é apenas uma das possíveis versões para o

que aconteceu, e não põe de lado a hipótese de não haver nexos de causalidade para

os acontecimentos que relata, mas nem por isso abandona o seu esforço de

construção de sentidos para a vida e a morte de Sachs. Pelo contrário, prefere

continuar a narrativa, porque só assim pode sublimar a ausência do amigo e continuar

a acreditar na possibilidade de a vida humana ter significado. A história que conta

articula-se, pois, com a necessidade de ordenar o caos de fragmentação que a

originou, de modo a o assimilar em padrões de entendimento subjectivos e

específicos. Por isso, todas as pequenas viragens do acaso contam, todas têm um

sentido, todas são integradas na "música" estruturante que recria o percurso de

Sachs. Daí a importância dada, por exemplo, à descoberta tempestuosa de Sachs da

"traição" de Fanny:

Considering that Sachs was the one who had pushed for the separation, this probably shouldn't have mattered. But it did. Other factors were involved as well, but this one counted as much as any of those others. It kept the music playing, so to speak, and what might have ended at that point did not. The waltz of disasters went on. and after that there was no stopping it. (138, sublinhado meu)

O próprio campo semântico explorado no passo aponta para um jogo com

uma visão determinista da realidade, que entra em confronto com a constatação

lúcida dos passos anteriores de que a vida é feita de acasos. A narrativa de Aaron

subsiste, pois, entre duas tendências com direcções opostas: a de tomar o percurso de

Sachs como resultado de uma cadeia de contingências e escolhas subjectivas (e daí a

recorrência das orações condicionais, que chamam a atenção para o que teria

acontecido caso outro caminho fosse seguido, como por exemplo: tcMaria was the

link between Sachs and Lillian Stern, and if not for Maria's habit of courting trouble

72

in whatever form she could find it, Lillian Stern never would have entered the

picture" - 65, sublinhado meu); e a de interpretar a sua história como um caminho

pré-determinado para uma morte violenta, que ecoa o destino do mundo ameaçado

pela "bomba", e se transforma, por isso, numa "valsa de desastres", um percurso

quase ritual de preparação para o fim, uma dança da morte. Como Arthur Saltzman

afirma, "like Maria Turner, the novel's provocative performance artist who believes

in the revelatory power of aleatory techniques and focuses, and like Sachs himself,

who takes life's contingencies as cues, Aaron has to accomodate the leakiness,

contradiction, and dubious leads that beset his enterprise within that enterprise."52

A procura de criar padrões e nexos de necessidade para os acontecimentos

que se descrevem está, assim, directamente relacionada com a incapacidade humana

de conseguir resistir à caótica rede de acasos da vida, à totalidade e contradição de

todos os seus detalhes, à sua entropia. A referência de Saltzman a Maria Turner neste

contexto é, de facto, importante. Torna-se necessário compartimentar a realidade,

ordená-la segundo critérios que facilitem a sua compreensão, e Maria Turner é, na

obra, o expoente máximo e mais radical desta tentativa de estruturação do

quotidiano: cria a priori modelos de vivência do real, vive o dia-a-dia segundo

padrões pré-estabelecidos de comportamento. A necessidade de ordenação da vida

que parece preocupar tanto o narrador como todas as personagens atinge o seu

ponto máximo com a tentativa de Maria de criar lógicas, perfeitamente arbitrárias

mas objectivamente estruturadoras do real, que servem de base ao seu quotidiano. A

inutilidade de qualquer um dos projectos que se impõe, das dietas cromáticas à

52 Saltzman, "Leviathan: Post Hoc Harmonies", Beyond the Red Notebook, p. 166.

73

viagem pelos estados americanos ("a totally meanigless and arbitrary act to which she

devoted almost two years of her life" - 61), não é relevante, já que o essencial parece

ser o esforço no sentido de compartimentar a vida, de viver um aspecto da existência

de cada vez, transformando o quotidiano num processo artístico de construção de

regularidades - numa "música" de recorrências assimilável pela mente humana.

Maria inventa a vida apenas com base na informação que possui (porque não

interessa - e é impossível - conhecer verdades finais) e transforma-a numa

"archeology of the present" (63): uma reconstrução subjectiva do presente a partir

dos detalhes mais ínfimos e arbitrários, a narração de uma história que não é mais do

que uma interpretação possível, ainda que altamente polémica, do real, próxima,

afinal, de todas as interpretações que vão sendo propostas, repetidas e contrariadas

pelas personagens e, principalmente, pelo narrador de Leviathan. Neste processo

interpretativo, o mundo objectivo desaparece, e as personagens ficam mais perto de

encontrar modelos invisíveis que o estruturem subjectivamente, como acontece com

Maria num dos seus projectos fotográficos: "The camera was no longer an instrument

that recorded presences, it was a way of making the world disappear, a technique for

encountering the invisible" (64).

Não será, assim, de estranhar o tributo que Aaron presta a Maria como

propiciadora do seu encontro com íris:

It strikes me as both strange and fitting that Maria Turner should have been the person who made that meeting possible. Again, it had nothing to do with intentionality, nothing to do with a conscious desire to make things happen. (...) It's not that Maria actually brought us together, but our meeting took place under her influence, so to speak, and I feel indebted to her because of that. Not to Maria as flesh-and-blood woman, perhaps, but to Maria as the reigning spirit of chance, as goddess of the unpredictable. (101-102)

74

Maria é, de facto, a personagem ideal para encarnar este espírito do acaso,

capaz de acolher os acontecimentos mais arbitrários, mas também de os procurar

integrar numa lógica de necessidade. Por um lado, ela vive de acordo com os

pressupostos inerentes a este espírito; por outro, a sua própria condição de mulher

confere-lhe um estatuto especial, como A. afirma em "The Book of Memory": 'Tor it

is his belief that if there is a voice of truth - assuming there is such a thing as truth,

and assuming this truth can speak - it comes from the mouth of a woman."53 Na

incerteza do mundo contemporâneo, em que a verdade perdeu o seu carácter

absoluto e o poder da linguagem foi relativizado, a presença feminina surge, em The

Invention of Solitude como em Leviathan, dotada de um poder sibilino e terapêutico,

e daí a comparação de Maria a uma "deusa do imprevisível".

No entanto, esta caracterização da presença feminina faz, também ela, parte

do impulso para a forma como estratégia de ordenação do acaso. Mais do que

personagens "reais", as mulheres e os seus discursos surgem como construções das

personagens masculinas de Auster (e, por extensão, do seu autor?) que os ajudam a

estruturar a entropia da realidade que descrevem:

Dès la première rencontre, ces femmes sont également caractérisées par un double langage que le narrateur décode immédiatement.

(...) La femme établit d'emblée une complicité qui passe par un échange verbal indirect

et privilégié. Pas plus que leur corps, qui semble n'avoir de réalité que dans le regard englobant du personnage masculin, leur discours n'est vraiment à elles. Il est à moitié autre, appartenant pour moitié à celui du point de vue narratif masculin.54

Auster, The Invention of Solitude, p. 123. 54 Sophie Valias, " "The voice of a woman speaking": de Paul Auster", L'Œuvre de Paul Auster, p. 170.

voix et présences féminines dans les romans

75

O discurso profético ou a actividade regeneradora femininas são, assim, antes

de mais construções das personagens masculinas - no caso de Leviathan, de Aaron e

Sachs - com intuitos específicos de criação de lógicas de necessidade para os

acontecimentos.

Se Maria Turner desempenha, em Leviathan, um papel importante a este

nível, não se pode, contudo, negligenciar também a função regeneradora e profética

conferida a outras personagens femininas, como por exemplo Fanny e a pequena

Maria. A performer propicia a preparação e o encontro de Aaron e íris, está presente

nos momentos-chave de resolução do "destino" de Sachs (a queda e a descoberta da

identidade de Reed Dimaggio) e tenta, pelo caminho e com algum sucesso,

restabelecer a personalidade deste, ou pelo menos é esta a crença de Aaron: "Even if

the Thursdays with Ben never developed into a coherent, ongoing work, they had a

therapeutic value for Sachs - which was all Maria had hoped to accomplish with them

in the first place" (129, sublinhado meu).

Por outro lado, a filha de Lillian Stern e Dimaggio acaba também por

profetizar o destino trágico de Sachs, apesar de este não entender o alcance das suas

palavras:

'I was only pretending,' he said. 'I know,' she said. 'It's just that I don't like people to die.' He understood his mistake then, but it was too late to undo the damage. 'I'm not

going to die,' he said 'Yes you will. Everybody has to die.' 'I mean not today. And not tomorrow either. I'm going to be around for a long time

to come.'(183)

A história que Aaron conta virá provar que a pequena Maria tinha razão, e que o

futuro de Sachs era bem mais curto do que ele esperava.

76

Quanto a Fanny, dá a Sachs o conforto de que ele precisa nos seus momentos

de crise, mas tem, além disso, atitudes que parecem de inspiração profética. É o caso

do seu envolvimento amoroso com Aaron, que é interpretado por este, a posteriori,

como uma forma de o preparar para uma nova paixão e uma nova vida:

There's no question that Fanny was responsible for this change of heart. If not for her, I never would have been in a position to meet Iris, and from then on my life would have developed in an altogether different way. A worse way, I'm convinced; a way that would have turned me toward the bitterness that Fanny had warned me against the first night we spent together. By falling in love with Iris, I fulfilled the prophecy she made about me that same night - but before I could believe that prophecy, I first had to fall in love with Fanny. Was that what she was trying to prove to me? Was that the hidden motive behind our whole crazy affair? It seems preposterous even to suggest it, and yet it tallies with the facts more closely than any other explanation. What I'm saying is that Fanny threw herself at me in order to save me from myself (...) Is such a thing possible? (...) If so, then Fanny's actions become nothing less than extraordinary, a pure and luminous gesture of self-sacrifice. (89)

De novo, uma mulher serve de instrumento "terapêutico" para a reconstrução

pessoal de um homem, no caso o narrador, e é também ela a única que continua a

afirmar, com razão, que Sachs irá regressar: "Fanny was a Christian, Iris said,

because she never abandoned her faith in Sachs's eventual return ..." (146).

Se estas personagens femininas têm ou não o poder de profetizar o futuro,

controlar o acaso e regenerar a vida é uma questão que Peter Aaron nunca consegue

comprovar. Isto não o impede, contudo, de partir desta premissa para o seu discurso.

A sua reconstrução da história de Sachs necessita de justificações, e acreditar que os

acasos têm sentidos ulteriores e que as personagens femininas os conhecem ou os

impulsionam, mesmo que inadvertidamente, é uma forma de legitimação tão viável

como qualquer outra.

77

Toda a sua narrativa é, aliás, estruturada com base no pressuposto de que,

mais do que provar as ligações e os sentidos entre os acontecimentos, o importante é

precisamente criar essas ligações e sentidos. Referindo-se ao passo já citado em que

Aaron interpreta o envolvimento com Fanny como um gesto de auto-sacrifício desta

(89), Arthur Saltzman comenta:

We immediately recognize in this passage Aaron's subjective criteria not for the truth but for the story he will settle for: not verifiability so much as shapeliness, not authenticity so much as immunity to authentication and refutation alike. Doubt makes room to ruminate and maneuver.

The trick is to discover the opportunities that chance provides and transform them, through the fervency that the political activist and the novelist share, into a calling.55

O que norteia a escrita de Aaron é, assim, a procura de uma forma para o

acaso, o uso das dúvidas em que a história que conta está impregnada para criar

espaços de conexão - os arquipélagos de sentido de que Anna Blume fala em In the

Country of Last Things: "L'archipel, c'est la métaphore parfaite pour comprendre

comment les personnages austériens peuvent accepter le chaos du monde et parvenir,

dans le même temps, à préserver un sentiment de totalité, d'harmonie. L'archipel,

tout d'abord, est une invention de l'imagination. Alors que l'île, création de la nature,

existe en soi et pour soi, l'archipel, lui, n'apparaît créé que lorsque l'imagination

assemble une série de fragments épars et décide qu'ils forment un ensemble inclus

dans un Tout plus vaste."56 O significado é um produto da imaginação (é, como a

noção de arquipélago, uma construção humana), mas criá-lo torna-se fundamental

para a sobrevivência das personagens de Auster. Para isso, é necessário encontrar

elos de ligação entre os fragmentos conhecidos, fazer deles uma leitura orientada

Saltzman, "Leviathan: Post Hoc Harmonies", Beyond the Red Notebook, p. 168. Christophe Metress, "îles et archipels...", L'Œuvre de Paul Auster, pp. 249-250.

78

para a procura de recorrências e motivos, independentemente de essas conexões

existirem ou não.

Este parece, aliás, ser um processo intrínseco à condição humana, imersa nas

incertezas de uma cultura fragmentada, pelo que também esta obsessão da obra de

Auster pode ser considerada uma marca do "realismo" possível que ele afirma

subscrever (bem distante do romance realista tradicional). Ao propor leituras

parcelares, contraditórias ou complementares, do percurso da vida (e da morte) de

Benjamin Sachs, Auster tenta, assim, permanecer fiel ao que acontece no nível

ontológico da realidade. The Invention of Solitude é, neste âmbito, um campo de

germinação frutífero para o pensamento do autor, como o seguinte passo bem

exemplifica:

Playing with words is merely to examine the way the mind functions, to mirror a particle of the world as the mind perceives it. In the same way, the world is not just the sum of the things that are in it. It is the infinitely complex network of connections among them. As in the meaning of words, things take on meaning only in relationship to each other. (...) To carry the proposition one step further, A. would contend that it is possible for events in one's life to rhyme as well. (...) The rhyme they create when looked at together alters the reality of each. Just as two physical objects, when brought into proximity of each other, give off electromagnetic forces that not only effect the molecular structure of each but the space between them as well, altering, as it were, the very environment, so it is that two (or more) rhyming events set up a connection in the world, adding one more synapse to be routed through the vast plenum of experience.51

Como as palavras e as coisas, também os acontecimentos se ligam através de

relações de maior ou menor proximidade, semelhança, contraste ou repetição. As

"rimas" entre acontecimentos existem de facto, ocasionando as mais inesperadas

coincidências e surpresas, mas o acaso que está na sua origem não as pré-determina.

Pelo contrário, a forma de necessidade ou significação que estas "rimas" adquirem é-

Auster, The Invention of Solitude, p. 161.

79

lhes imposta exteriormente, pela mão (ou melhor, pela memória e pela mente)

humana. Neste sentido, as "rimas" que A. encontra na vida são literais, uma vez que

acontecem de facto, mas ganham também um valor metafórico,5 já que são

utilizadas como sinal ou consequência de uma certa conjuntura, de uma realidade que

lhes é ulterior. Os acontecimentos perdem, pois, o seu carácter arbitrário, e as

interpretações que os ligam transformam-nos em factos construídos que ultrapassam

a sua realidade objectiva para se inscreverem num quadro subjectivo de assimilação e

ordenação do mundo, num todo mais amplo que modifica a percepção individual de

cada um deles. A. continua a sua argumentação:

These connections are commonplace in literary works (...), but one tends not to see them in the world - for the world is too big and one's life is too small. It is only at those rare moments when one happens to glimpse a rhyme in the world that the mind can leap out of itself and serve as a bridge for things across time and space, across seeing and memory.59

O poder da mente para criar cadeias de recorrências arrancadas à

arbitrariedade da vida só é activado, segundo o narrador, em momentos especiais de

confluência de um conjunto de condições que o propiciem. É o que acontece com A.

no seu apartamento de Varick Street numa noite de Natal, mas também com Aaron

quando descobre a morte do amigo. Inicia-se nesses momentos um processo

imparável de procura de conexões, explorado de forma exaustiva pela literatura, em

que, contudo, a estranheza e a arbitrariedade do real não conseguem nem podem ser

representadas em toda a sua extensão, como o próprio Auster reconhece. Toda a

construção literária constitui, por isso, um trabalho de "tecelagem" de motivos

58 A designação destes dois sentidos para as "rimas" é de Kathie Birat, em "Le langage de l'argent: la métaphore comme monnaie d'échange dans La Musique du Hasard\ L'Œuvre de Paul Auster, p. 205: "Les rimes créés entre les événements sont à la fois littérales et métaphoriques." 59 Paul Auster, The Invention of Solitude, p. 161.

80

recorrentes, de ligações entre episódios, de criação de "rimas" com vários níveis de

sentidos. O que este autor consegue fazer é acomodar esta procura de relações em

textos que parecem estar abandonados ao poder do acaso e da contingência.

Ironicamente, torna-se necessário, para alcançar este equilíbrio instável, elaborar

enredos intrincados em que nada pode ser deixado ao acaso: todos os detalhes são

profundamente pensados, as relações entre acontecimentos e personagens bem

estruturadas, os momentos de surpresa e coincidência colocados estrategicamente, de

modo a que as lógicas de ligação não adquiram o carácter de verdades absolutas, mas

também de modo a que seja viável (quer para as personagens, quer para os

receptores das obras) fazer leituras subjectivas das histórias e encontrar-lhes sentidos.

É isto que Pascal Bruckner advoga em "Paul Auster, or The Heir Intestate":

All of Auster is there in his love of coincidences that rhyme the most remote, improbable events. He excels at sprinkling his characters' adventures with correlations, which have no a priori meaning, but to which the story gives unexpected consequences. Noting the signs that fate strews along our path is the only way to combat the arbitrary: suddenly, in the randomness of existence, a certain order appears just below the surface, an order which seems mysteriously to control us. There is meaning in the world, but this meaning is only suggested, never clearly expressed. (...) The novelist's challenge here is to endow this image of the unexpected with the weight of necessity, to continue converting the improbable into the inevitable, to avoid gratuitousness. The novelist must also be a bit of an acrobat: plunging his characters into confusing situations, then weaving among them a fabric of dense analogies, linking the episodes together in such an inevitable manner that the reader cannot imagine the story occurring any other way.60

É através deste trabalho acrobático que Auster tenta representar a "música do

acaso" subjacente aos seus romances, sugerindo significados a partir de coincidências

e analogias, mas nunca os abraçando como "reais". Se a maior parte das suas

personagens não consegue deixar de adoptar um modelo de ordem para estruturar a

arbitrariedade do mundo em que vivem, elas acabam sempre por reconhecer que este

Pascal Bruckner, "Paul Auster, or The Heir Intestate", Beyond the Red Notebook, p. 29.

81

modelo não passa disso mesmo: de uma construção com intenções ordenadoras do

que, à partida, não tem ordem nem sentido para além dos decorrentes da sua

existência. Peter Aaron é um bom exemplo: a sua construção subjectiva do passado

permite-lhe assimilar e encontrar motivos para o desaparecimento de Ben Sachs,

apesar da sua incerteza em relação à verosimilhança da interpretação que criou. O

testemunho que escreve não deixa, contudo, de ser uma homenagem ao amigo,

visível a dois níveis: pela justificação abonatória que apresenta das atitudes de Sachs;

e pela forma como, ao encontrar "rimas" no seu percurso, retoma o tipo de leitura da

realidade que o protagonista preconizava. Daí, com toda a lógica, a retoma do título

da obra inacabada deste.

Desde o início da sua narrativa, Aaron chama a atenção para a necessidade

evidenciada por Sachs de procurar explicações para as coincidências mais estranhas e

justificações para o encadeamento da história e do seu passado pessoal. O acaso é,

para ele, necessariamente subjugado a um trabalho frutífero de interpretação, como o

passo seguinte bem exemplifica:

If Sachs invented the rest, it was no more than a bit of innocent mythologizing on his part. He was a great one for turning facts into metaphors, and since he always had an abundance of facts at his disposal, he could bombard you with a never-ending supply of strange historical connections, yoking together the most far-flung people and

events.(23)

Sachs estrutura, pois, a sua existência passada (e a da humanidade) em

esquemas interpretativos que lhe permitem "mitologizar" o passado, ou seja,

construir a partir dele uma, ou melhor, muitas histórias explicativas dos sentidos dos

acontecimentos. O real é, para ele, um livro aberto a todas as leituras, em que

episódios casuais ganham o valor de metáforas de realidades mais profundas, num

82

processo contínuo de procura de sentidos. Esta é, contudo, como o narrador afirma,

uma actividade inocente, apesar de necessariamente produzir efeitos e levar a

alterações de atitudes e a mudanças de percursos, já que é intrínseca à vida de Sachs

e à sua sobrevivência enquanto ser humano:

(...) Sachs est un charognard qui utilise son imagination pour sauver sens et forme des débris innombrables de l'univers. Là où d'autres se complaisent dans la fragmentation, Sachs, bien que mesurant parfaitement la profondeur de l'abîme dans lequel il a sauté, distingue d'improbables correspondances dans l'obscurité.61

A "mitologização" do passado parece ser a única maneira de salvar o sentido

e a forma numa realidade fragmentária, caótica e arbitrária, e neste sentido Sachs é a

figura emblemática dos valores subjacentes a todo o romance: a narrativa de Aaron

rege-se por padrões interpretativos muito semelhantes aos de Sachs, partindo

também ela da constatação da fragmentação e do vazio de significados. O tipo de

conexões encontradas pelo protagonista em The New Colossus, a sua única obra

acabada, acaba por ser tomado por Aaron como modelo para a sua própria narrativa,

apesar da estranheza destas ligações. Como Sachs, o narrador ficcionaliza a partir

dos acontecimentos reais, inscreve o acaso numa lógica de necessidade e sublima a

perda (não de liberdade ou valores, mas de um amigo) pelo acto de escrita. A única

diferença é que The New Colossus é abertamente um trabalho de metaficção

historiográfica, enquanto a narrativa de Aaron se assume como um testemunho

certamente subjectivo e parcial, mas baseado na "realidade". As implicações são

evidentes: 1er o real ou fazer ficção são actividades que pressupõem o mesmo tipo de

trabalho criativo, já que o mundo pode (tem que) ser lido como uma obra literária

Cristophe Metress, "îles et archipels...", L'œuvre de PaulAuster, p. 251.

83

construída a partir de elementos recorrentes, enquanto a literatura procura construir

uma visão do mundo pela linguagem. Daí o interesse de Sachs pelas coincidências

proporcionadas pelo acaso. Não é só no seu romance histórico que Sachs explora as

ironias da vida: a sua própria postura como ser social baseia-se na descoberta

imaginativa de significações para os dados da experiência:

By gorging himself on those facts, he was able to read the world as though it were a work of the imagination, turning documented events into literary symbols, tropes that pointed to some dark, complex pattern embedded in the real. I could never be quite sure how seriously he took this game, but he played it often, and at times it was almost as if he were unable to stop himself. (24)

Sachs não consegue evitar a procura destes padrões escondidos no real. Tem

necessidade de organizar as suas experiências e a herança do passado, do mesmo

modo que Maria Turner precisa de construir uma "arqueologia do presente". Os seus

movimentos são contrários, já que enquanto esta parte da construção de modelos

para a sua imposição à vivência quotidiana, o protagonista, como Aaron, procura

enformar o passado numa "mitologia" que lhe dê sentido. Os objectivos e resultados

são, contudo, semelhantes: ambos pretendem enfrentar a contingência, o sem-

sentido, o vazio, mas nenhum consegue alcançar totalmente os seus objectivos.

A Estátua da Liberdade surge, na obra, como um motivo recorrente no

âmbito desta "música do acaso" a que tanto Aaron como Sachs associam conotações

importantes para o desenrolar do percurso do protagonista. É a partir da visualização

do monumento na capa de The New Colossus que Sachs elabora todo o plano de

exortação política através do terrorismo que o levará à morte. Aaron não deixa de

aproveitar este facto, ligando-o a uma vasta rede de episódios em que a Estátua da

Liberdade aparece, o que possibilita a interpretação destes episódios como elementos

84

de um caminho pré-determinado que Sachs tem que percorrer. A primeira menção da

Estátua dá o mote para esta criação de sentidos para as recorrências. Depois de

comentar a parcialidade inerente às histórias que Sachs costumava contar sobre si

próprio, Aaron dá o exemplo de uma cujo conteúdo não pode pôr em dúvida:

I heard it toward the end of my visit to Connecticut in 1980, and since it came as much from his mother as it did from him, it falls into a different category from the rest. In itself, this anecdote is less dramatic than some of the others Sachs told me, but looking at it now from the perspective of his own life, it stands out in special relief - as though it were the announcement of a theme, the initial statement of a musical phrase that would go on haunting him until his last moments on earth. (31, sublinhado meu)

Este início do relato da visita à Estátua da Liberdade de Sachs com a sua mãe

expõe já claramente os princípios ordenadores subjacentes ao trabalho de Aaron: ele

narra a partir de uma perspectiva abrangente do passado, pelo que pode dar relevo

especial aos episódios que concebe como mais fulcrais; por outro lado, precisamente

porque tem uma visão global dos acontecimentos, pode estruturar esses episódios de

acordo com uma lógica subjectiva mas capaz de justificar a sequência dos passos

dados por Sachs. Daí que compare este primeiro contacto com o monumento ao

anúncio de um tema musical: ele constrói a cadeia de referências à Estátua de acordo

com uma lógica de necessidade entre as coincidências da vida de Sachs e o seu

destino final, ou seja, cria uma "música do acaso" que apõe à realidade que conhece

para justificar e dar sentido à morte do seu amigo.

Os fundamentos de todas as conotações que o motivo da Estátua irá

apresentar ao longo da narrativa podem-se, pois, encontrar já neste primeiro

episódio, sendo de salientar, por um lado, a sua associação ao conceito de liberdade,

de importância central para a construção da identidade americana, e, por outro, a sua

85

ligação ao perigo e à morte. O próprio Sachs, ao comentar o facto de a visita à

Estátua lhe ter permitido controlar o seu vestuário, expõe o âmago destas

conotações:

'It was my first lesson in political theory,' Sachs said, turning his eyes away from his mother to look at Fanny and me. 'I learned that freedom can be dangerous. If you don't watch out, it can kill you. ' (35)

A história vai provar que, de facto, e na perspectiva de Aaron, a luta pela

liberdade está na origem da morte do protagonista, do mesmo modo que o espectro

da Estátua da Liberdade está sempre por trás dos seus momentos de queda. Torna-

se, por isso, especialmente relevante o início do último capítulo, em que o narrador

apresenta, ainda de forma impessoal, o "Phantom of Liberty", e faz uma pequena

digressão sobre o valor simbólico do monumento:

The Statue of Liberty is immune from these conflicts. For the past hundred years, it has transcended politics and ideology, standing at the threshold of our country as an emblem of all that is good within us. It represents hope rather than reality, faith rather than facts, and one would be hard-pressed to find a single person willing to deny the things it stands for: democracy, freedom, equality under the law. It is the best of what America has to offer the world (...) They have instilled the hope in all of us that we might one day live in a better world. (215-216)

Ironicamente, embora a Estátua represente todo o potencial de liberdade e

igualdade latente na identidade americana, a verdade é que, ao promover a destruição

das réplicas do símbolo, com vista à realização dos ideais que preconiza, Sachs acaba

por ser duplamente armadilhado por ela: pelos métodos que usa, que são contrários

aos objectivos pacíficos que o norteiam; e pelo poder destrutivo da liberdade que

persegue e defende. O carácter ambivalente do monumento é, deste modo, explorado

pelo narrador de forma exaustiva, de forma a inscrever o comportamento de Sachs

numa lógica de luta pelos ideais que a Estátua simboliza, mas também de modo a

86

conceber a sua queda final na fragmentação como uma forma de retribuição pela sua

acção terrorista em torno dela.

A mesma ambivalência caracteriza o tratamento dado a um outro motivo

recorrente da obra: a queda, cuja manifestação central acontece aquando do acidente

no dia da comemoração do centenário da Estátua da Liberdade. A queda amparada

por um estendal de roupa não deixa de ser descrita como um infortúnio relativo da

sorte, mas é concomitantemente enquadrada numa perspectiva interpretativa que a

coloca numa sequência quase inevitável de acontecimentos:

There is no question that Sachs could have been killed. Given that he was four stories off the ground, it seems almost a miracle that he wasn't. If not for the clothesline that broke his fall about five feet from the bottom, there's no way he could have escaped without some permanent injury: a broken back, a fractured skull, any one of countless misfortunes. As it was, the rope snapped under the weight of his falling body, and instead of tumbling head-first onto the bare cement, he landed in a cushioning tangle of bathmats, blankets, and towels. (...) Not only did Sachs survive, but he emerged from the accident relatively unharmed. (...) One can take comfort from that, I suppose, but in the end the real damage had little to do with Sachs's body. This is the thing I'm still struggling to come to terms with, the mystery I'm still trying to solve. His body mended, but he was never the same after that. In those few seconds before he hit the ground, it was as if Sachs lost everything. His entire life flew apart in midair, and from that moment until his death four years later, he never put it back together again. (106-107)

A queda, e principalmente os instantes antes de cair ao chão, transformam-se,

para Aaron, no sinal metafórico de uma mudança radical na conduta do amigo, mais

do que na causa dessa alteração. O narrador não é, contudo, o primeiro a interpretar

a queda como a imagem de uma necessidade de renovação e recomeço: o silêncio de

Sachs após a queda corresponde ao período de tempo de que necessita para construir

à volta deste motivo toda uma lógica de expiação e recomeço: "To a considerable

degree, Sachs can trace his career as the Phantom of Liberty back to the moment he

first succumbed to gravity, as it were - that is, his drunken fall from the balcony. This

87

proves to be a fortunate fall; more accurately, in that he appears to plunge into

incendiary designs, it is a fall into fortune. Activism implies a greater degree of

predication than this, and hence it is no wonder that Sachs reads agency, connection,

and cause into his affairs, if only to confer meaning upon them."62 Ao contrario do

que acontece com Aaron, que tem a perspectiva de todo o percurso do protagonista,

Sachs assume a queda como um momento benéfico, propiciador da emenda dos seus

erros e de uma hipótese de renascimento. Sachs continua a considerá-la um castigo

pelo afastamento dos ideais que sempre defendera, mas não deixa de constatar a sua

importância para a viragem que efectua para comportamentos mais de acordo com a

sua consciência política:

'...I had put myself in a position to fall, I realized, and I had done it on purpose. That was my discovery, the unassailable conclusion that rose up out of my silence. I learned that I didn't want to live. For reasons that are still impenetrable to me, I climbed onto the railing that night in order to kill myself.' (122)

Apesar das razões objectivas da queda se prenderem com um jogo de sedução

e culpa manipulado por Sachs, ou seja, estarem dependentes de circunstâncias casuais

que ele não nega, o amigo de Aaron relata-lhe esse momento como um acto

consciente de desejo de aniquilamento, conseguindo assim integrar o acaso numa

lógica de necessidade. Na mesma conversa, Sachs explicita o que significa para ele

esse desejo de morte que idealiza como estando por trás do acidente:

'There were tears in your eyes [when you spoke for the first time]. I thought that meant you had resolved something for yourself, that you were on your way back. '

'It meant that I knew I'd hit bottom. It meant that I understood I had to change my life.'

'Changing your life isn't the same thing as wanting to end it.' T want to end the life I've been living up to now. I want everything to change. If I

don't manage to do that, I'm going to be in deep trouble. My whole life has been a waste, a stupid little joke, a dismal string of petty failures. I'm going to be forty-one

Saltzman, "Leviathan: Post Hoc Harmonies", Beyond the Red Notebook, p. 168.

88

years old next week, and if I don't take hold of things now, I'm going to drown. I'm going to sink like a stone to the bottom of the world.' (122)

O acidente põe, assim, a descoberto a vontade de mudança e reinvenção da

vida de Sachs, ao fazê-lo contactar com a morte. Naturalmente, Aaron não subscreve

esta perspectiva, uma vez que é a partir desse momento que, segundo ele, o

protagonista mergulha, não numa segunda hipótese de vida, mas num caos de

fragmentação que atingirá o ponto máximo com a sua morte. Cria-se, deste modo,

uma ambivalência nas conotações que a queda adquire (o mesmo acontecendo com a

Estátua da Liberdade), e que é explorada ao longo de toda a narrativa. The New

Colossus é, novamente, um ponto fulcral para o desenvolvimento das interpretações

em redor da imagem da queda:

As the book progresses, it takes on a more and more unstable character - filled with unpredictable associations and departures, marked by increasingly rapid shifts in tone - until you reach a point when you feel the whole thing begin to levitate, to rise ponderously off the ground like some gigantic weather ballon. By the last chapter, you've traveled so high up into the air, you realize that you can't come down again without falling, without being crushed. (39)

Sachs vive de acordo com os parâmetros de interpretação que utiliza no seu

romance, pelo que o comentário do narrador acerca do livro ilumina também o

próprio percurso existencial do seu autor: criar nexos de causalidade e necessidade

entre os acontecimentos é uma forma de levitação num mundo construído por cima

do real, que, apesar de ser proveitosa, provoca o afastamento da realidade empírica.

Regressar aos dados da experiência corresponde, pois, a uma queda que não tem

recuperação possível. Daí a inevitabilidade da morte de Sachs, tão imerso num

mundo de conexões subjectivas que acaba por perder a percepção da sua situação

real. É, contudo, irónico, e decerto não inocente da parte do autor, que o próprio

89

Aaron se entregue, na sua narrativa, à procura dos elementos recorrentes capazes de

dar sentido à realidade que descreve, o que dá uma credibilidade muito relativa ao

seu texto, depois dos comentários que tece sobre Sachs.

Um outro motivo que desde a primeira página acompanha a história de Sachs

é a bomba. Como a Estátua da Liberdade e a queda, também a ideia da deflagração

de um engenho explosivo ganha conotações ambivalentes ao longo da narrativa,

sendo, contudo, sempre associada ao final trágico do protagonista. A data do seu

próprio nascimento, que marca a primeira de muitas coincidências reveladoras para a

concepção da sua identidade pessoal, adquire para ele uma importância suprema a

este nível:

He was bora on August 6, 1945. I remember the date because he always made a point of mentioning it, referring to himself in various conversations as 'America's first Hiroshima baby,' 'the original bomb child,' 'the first white man to draw breath in the nuclear age.' He used to claim that the doctor had delivered him at the precise moment Fat Man was released from the bowels of the Enola Gay, but that always struck me as an exaggeration. (23)

A sua "mitologização" do nascimento pode ser inocente, mas as conotações

que recebe na narrativa de Peter Aaron com certeza não o são. O acaso é modelado

por este em torno da imagem da bomba na era nuclear, pelo que a morte de Sachs

adquire sinais de predestinação. Torna-se importante, por isso, a associação do seu

destino ao da humanidade, como forma de comentário à hipótese de futuro, de

sobrevivência do homem:

Sachs often talked about the 'bomb.' It was a central fact of the world for him, an ultimate demarcation of the spirit, and in his view it separated us from all other generations in history. Once we acquired the power to destroy ourselves, the very notion of human life had been altered; even the air we breathed was contaminated with the stench of death. Sach was hardly the first person to come up with this idea, but considering what happened to him nine days ago, there's a certain eeriness to the obsession, as if it were a kind of deadly pun, a mixed-up word that took root inside him and proliferated beyond his control. (24, sublinhado meu)

90

O sentimento de Sachs de pertença a uma geração que controla o seu próprio

fim colectivo possibilita a construção por parte do narrador de uma interpretação

determinista da vida e morte do protagonista, transformando a bomba no símbolo de

um processo imparável de destruição. As palavras de Sachs adquirem, assim, poderes

letais, ao porem a nu as conexões existentes entre a vida na era nuclear e a

necessidade de um fim violento. Daí a ironia subjacente à exploração do campo

semântico da explosão e da bomba: o narrador joga com os vocábulos nas situações

mais diversas para insinuar a pré-determinação de todo o caminho da personagem

principal. É isto que acontece quando, por exemplo, Sachs mostra a Maria a

fotografia de Dimaggio e ela o reconhece: "... a new element was added to the

already unstable mixture of the past twenty-four hours, and it wound up producing a

deadly compound, a beakerful of acid that hissed forth its dangers in a billowing

profusion of smoke" (160, sublinhado meu). A bomba parece, assim, fazer parte dos

elementos recorrentes na "valsa de desastres" que, segundo Aaron, leva Sachs à

morte, e daí a importância de mais uma coincidência: a descoberta do material

explosivo no carro de Dimaggio, que possibilita a viragem para o terrorismo.

Estabelece-se então um conjunto de novas conotações mais positivas para a bomba,

uma vez que ela é agora usada por Sachs para chamar a atenção da América e do

mundo para a necessidade de abandonar a violência. As contradições inerentes a este

projecto são evidentes, mas a verdade é que, como afirmam os seus apoiantes, "his

bombs hadn't hurt anyone (...), and if these two-bit explosions forced people to

rethink their positions about life, then maybe it wasn't such a bad idea after all"

(217). A ironia do seu fim é trágica, visto serem precisamente estas bombas

91

inofensivas que lhe causam a morte, pelo que o seu projecto redunda num fracasso

relativo: apesar de conseguir alertar alguns americanos para a necessidade de mudar

de atitudes, a sua fragmentação, causada por um destes engenhos, vem provar que

este caminho não é seguro nem viável.

A bomba, a queda e a Estátua da Liberdade são, assim, utilizados por Aaron

como imagens metafóricas dos sentidos que tenta construir para a história de Sachs.

Correspondem, deste modo, a peças fulcrais de um processo de "fíccionalização" do

passado, pelo qual assimila a difícil e violenta realidade de que quer dar testemunho,

conseguindo representá-la, subjectivamente, é certo, mas de forma produtiva, porque

rica em significados. O que importa na sua narrativa não é, pois, a veracidade das

relações que estabelece, mas a sua tentativa de criar essas conexões.

Desde as primeiras páginas, Leviathan é assumido por Peter Aaron como um

trabalho biográfico parcial e subjectivo, contudo capaz de fazer luz sobre as

incongruências e as contradições inerentes à vida de Sachs. Se a obra nasce de um

impulso biográfico, a verdade é que ele depressa cede o lugar a um trabalho criativo

("ficcional") de apreensão de sentidos, em que a memória, ela própria já ordenada de

acordo com interesses estratégicos, serve apenas de matéria-prima.. Este facto não é,

todavia, exclusivo da história de Aaron: pelo contrário, a construção desta história

torna visível um processo que é extensivo a qualquer biografia ou relato do passado:

In elusive essence, our experienced reconstructions of the past are grammatical and textual 'truth-fictions'. They are carpentered out of the availabilities of the past tense. No finally external verification attaches to them. Even the most neutral of archaeological or archival vestiges is made so by risk of interpretation, of the exercise of selective re-imagining which it engenders.63

George Steiner, Real Presences, p. 165.

92

A selecção dos vestígios do passado e sua interpretação com base em

interesses específicos torna-se, conscientemente ou não, parte integrante de todas as

reconstruções do passado, apesar de a maior parte delas não deixar de auto-

proclamar a sua veracidade. Aaron também pretende que a sua narrativa assuma o

estatuto de representação fiel da história de Sachs, "the true story of how he

happened to be on that road in northern Wisconsin" (2), mas nem por isso deixa de

expor as limitações inerentes à sua tarefa: descrever o percurso de uma vida humana

é uma tarefa inconcretizável na sua totalidade, e Aaron não foge desta constatação. O

caminho para a percepção do alcance e características do seu testemunho passa,

assim, por três estádios de consciencialização, que o narrador de "Portrait of an

Invisible Man" explica num dos pequenos capítulos desta obra:

Slowly, I am coming to understand the absurdity of the task I have set for myself. I have a sense of trying to go somewhere, as if I knew what I wanted to say, but the farther I go the more certain I am that the path towards my object does not exist. I have to invent the road with each step, and this means that I can never be sure of where I am.64

A consciência da enormidade e impossibilidade da tarefa que se propos (fazer

o "retrato" de um homem invisível pela morte, mas principalmente pela solidão que

norteou toda a sua vida) leva o narrador a permanecer inseguro em relação ao que

realiza, uma vez que nunca pode ter a certeza de que está a seguir o caminho

correcto (ou de que esse caminho existe realmente). Por outro lado, e paralelamente

a esta etapa de consciencialização das suas limitações, o narrador descobre a

distância inultrapassável que vai das ideias inseguras que tem à sua expressão

linguística:

Auster, The Invention of Solitude, p. 32.

93

Never before have I been so aware of the rift between thinking and writing. For the past few days, in fact, I have begun to feel that the story I am trying to tell is somehow incompatible with language, that the degree to which it resists language is an exact measure of how closely I have come to saying something important, and that when the moment arrives for me to say the one truly important thing (assuming it exists), I will not be able to say it.65

O abismo que separa o pensamento da escrita parece, assim, não poder ser

contornado, o que votaria todo o esforço investido no acto de escrita ao fracasso.

Contudo, isto não acontece, pelos motivos que o narrador explica logo de seguida.

Instead of burying my father for me, these words have kept him alive, perhaps more so than ever. I not only see him as he was, but as he is, as he will be, and each day he is there, invading my thoughts, stealing up on me without warning (...) A feeling that if I am to understand anything, I must penetrate this image of darkness, that I must enter the absolute darkness of earth.66

Apesar de todas as hesitações, incertezas e limitações relativas à

representação linguística da identidade humana, a única forma que o narrador

encontra para sublimar a ausência do pai é precisamente mergulhar na escuridão

absoluta da terra. O mesmo se passa com Peter Aaron, que se vê obrigado a entrar

no mundo das trevas originado pela morte de Benjamin Sachs para, desse modo, o

fazer regressar à vida, reconstruindo laços de sentido entre os diferentes momentos

do percurso do amigo.

Com vista a concretizar este objectivo, Aaron tem que enfrentar os mesmos

problemas que o narrador de "Portrait of an Invisible Man": a incapacidade de

conhecer uma vida na sua totalidade e de representar o que se conhece de forma

correcta através da linguagem. A sua narrativa não pode, assim, ser considerada um

retrato fiel, mas antes o esboço possível do que não se pode dizer ou escrever, uma

vez que, "like everyone else in the world, but only more so perhaps, he [Sachs]

Auster, The Invention of Solitude, p. 32. Auster, The Invention of Solitude, pp. 32-33.

94

managed to combine a multitude of contradictions into a single, unbroken presence"

(16-17). Entre "unpredictability and pattern",67 Sachs é uma personagem tão ubíqua

e paradoxal como a Moby-Dick de Herman Melville, que não perde a sua

multiplicidade de imagens apesar do carácter enciclopédico do romance que

protagoniza. A narrativa de Aaron enfrenta as mesmas dificuldades que a de Ishmael,

o que faz de Sachs um leviatã indizível enquanto forma completa e definitiva de uma

vida.

Na impossibilidade de descrever esta multiplicidade de contradições inerente à

existência de Sachs (e de toda a humanidade), Aaron conta uma história sobre o seu

protagonista a partir dos factos que conhece e das interpretações que lhes deu,

assumindo um duplo papel de detective e artífice, semelhante ao de todos os autores,

cuja matéria-prima é uma realidade fugidia que tem que ser recriada pelo acto de

escrita. A sua narrativa acaba, pois, por expor e comentar os mecanismos que

envolvem o processo de produção literária e as limitações da sua verosimilhança,

como Arthur Saltzman explica:

Although it is in many ways a more straightforward work than its predecessors, Auster's Leviathan clarifies and extends the predicament: every author is at once a detective and an artificer, and these callings are incompatible. Moreover, as we are advised in the course of the novel, "the real is always ahead of what we can imagine" [160]. The irony is that Leviathan is ostensibly Auster's most realistic novel, yet it is here that the question of what constitutes reality is rendered more subtle instead of extinguished. Whatever document results from the novelist's efforts is essentially a record of incomplete transactions whose authority must be taken under advisement.68

A autoridade dos resultados da tentativa de Peter Aaron de captar a essência

e os sentidos da vida do seu amigo tem, pois, que ser relativizada, já que as duas

Saltzman, "Leviathan: Post Hoc Harmonies", Beyond the Red Notebook, p. 163. Saltzman, "Leviathan: Post Hoc Harmonies", Beyond the Red Notebook, p. 162.

95

funções inerentes à sua tarefa são incompatíveis, não lhe permitindo criar uma visão

unificada e incontestável da realidade, ela própria fugidia, que tenta representar.

Enquanto detective, Aaron vê-se na necessidade de recriar no discurso um conjunto

de dados empíricos, partindo dos sinais (também eles já textualizados e

hierarquizados na memória) e dos testemunhos (envoltos em subjectividade e

concepções ideológicas específicas) a que teve acesso. As dificuldades de

concretização desta tarefa são, já em si, manifestas, uma vez que é impossível

desenvolver este tipo de trabalho de investigação quando o campo que pretende

analisar tem contornos tão pouco definidos como os de uma vida humana, mas

tornam-se bem mais explícitas e de maiores dimensões quando, a esta função, se liga

a de artífice. De facto, para lá de um investigador, Aaron é também um criador, um

intérprete ambíguo, que diz basear a sua narrativa em acontecimentos reais, mas que

não se inibe de os manobrar de acordo com os seus interesses e a sua criatividade.

Como artífice, ele acaba por ficcionalizar a vida de Sachs, mas parece ser esta a única

forma disponível para assimilar os seus sentidos.

Quant à la notion d'unité narrative de la vie, il faut aussi y voir un mixte instable entre fabulation et expérience vive. C'est précisément en raison du caractère évasif de la vie réelle que nous avons besoin du secours de la fiction pour organiser cette dernière rétrospectivement dans l'après-coup, quitte à tenir pour révisable et provisoire toute figure de mise en intrigue empruntée à la fiction ou à l'histoire.69

À falta de uma percepção de unidade narrativa da vida do amigo, Aaron usa a

escrita e a ficção para encontrar a posteriori elos de ligação justificativos do percurso

de Sachs, de acordo com o que este já fazia e com o que, segundo Ricœur, todo o

homem tem necessidade de levar a cabo. Escrever o livro sobre a vida de Sachs

69Paul Ricœur, Soi-même comme un autre (Paris: Éditions du Seuil, 1990), pp. 191-192.

96

significa, pois, organizar a informação com base num conjunto de intenções

justificativas e desculpabilizantes e estruturá-la subjectivamente, construindo uma

história que ultrapassa muito os padrões de objectividade por que à partida se

norteia, mas fica também muito aquém da impenetrabilidade da vida humana.

Le récit réagit à la disparition, qui prend maintes formes: il s'agit ici de retrouver celui qui manque, et dont le manque met le récit à la fois en péril et en marche (...) Ce silence libère un autre discours: celui d'Aaron, qui s'inscrit entre les lignes du discours disparu. Interligne qu'il s'agit de combler à force d'exhaustivité (...) L'interligne résiste, car c'est la condition même de la ligne, mais rétrécit en même temps que l'édifice, pierre à pierre, livre à livre, s'élève. Cité de verre semble placé sous le signe de la déconstruction; Leviathan manifeste clairement un travail de reconstruction. Le ciment épaissit à mesure qu'avance le travail d'écriture.70

O trabalho reestruturante empreendido em Leviathan desenvolve-se, assim,

com base nas linhas do discurso (e de actuação) do protagonista, mas cria novos

contornos para elas. O discurso de Aaron faz-se, deste modo, nas entrelinhas dos

vestígios da vida de Sachs, construindo um modelo invisível de interpretação e

coerência pelo qual os factos retratados se transformam, ganhando sentidos

metafóricos e sendo ligados por uma lógica de necessidade. Estando consciente da

parcialidade da sua narrativa, Aaron consegue, contudo, superar a ausência do amigo

através dela e tornar minimamente dizível o horror da fragmentação que o levara à

escrita. A imagem fractária de Sachs, qual ilusão fotográfica da multiplicação do pai

do narrador de "The Book of Memory", não desaparece (e daí o pormenor irónico

que fecha a narrativa), mas ganha uma coerência que se deve a este esforço, não só

de reconstrução, mas principalmente de criação pura.

I owed it to Sachs to keep my mouth shut, and I owed it to him to write this book. He was brave enough to entrust me with his story, and I don't think I could have lived with myself if I had let him down. (243)

70Grandjeat, "Le hasard et la nécessité...", L'Œuvre de PaulAuster, pp. 159-160.

97

De facto, Aaron não decepcionaria o amigo, uma vez que o seu relato se

torna uma forma de redenção deste, conseguindo reunir as suas contradições numa

narrativa plausível, que tem valor na medida exacta em que se assume como uma

(entre muitas possíveis) reconstrução parcial e intencionada da história de Ben Sachs.

O próprio protagonista aponta já neste sentido na mensagem de despedida que deixa

a Aaron aquando do seu último encontro:

Whatever you might think of me, I'm grateful to you for listening. The story needed to be told, and better to you than to anyone else. If and when the time comes, you'll know how to tell it to others, you'll make them understand what this business is all about. Your books prove that, and when everything is said and done, you're the only person I can count on. (236)

Aaron usa a sua narrativa para fazer precisamente o que Sachs espera dele:

criar uma obra que torne dizível e entendível a contínua queda em abismos cada vez

mais fundos do protagonista, dando-lhe sentidos que a morte parece negar, assim

como, nas suas outras obras, parece dedicar-se à elaboração de hipóteses de

significado para realidades caracterizadas pela fragmentação e pelo sem-sentido. Daí

que, como Linda Hutcheon afirma em The Politics of Postmodernism, "to represent

the self is to 'constitute' the self (...), be it in images or in stories."71 Sendo assim, o

projecto de Aaron, que tem em vista a representação da identidade, ou pelo menos da

continuidade da história do amigo, torna-se um trabalho de criação de uma vida

através da escrita, impulsionado pela ausência e a fragmentação. Leviathan não é,

contudo, o único romance de Auster que nasce deste tipo de pulsões. O mesmo

acontece, como já foi afirmado, em In the Country of Last Things, pelo que o

Hutcheon, The Politics of Postmodernism, p. 41.

98

comentário seguinte de Claire Maniez sobre esta obra se torna especialmente

relevante neste âmbito:

Anna, meurtrie et amoindie dans sa chair même par les trois années qu'elle vient de passer dans la Cité de la Destruction, renaît grâce à l'écriture, et le texte lui-même mime ce travail de la constitution du sujet: la fragmentation du début, qui laisse petit à petit la place à un récit plus structuré et relativement chronologique, reflète la façon dont Anna, au cours des six ou sept semaines qu'elle consacre à l'écriture de sa lettre, réorganise le chaos qui l'entoure et réaffirme son identité.72

Do mesmo modo, Aaron supera a fragmentação do início da narrativa através

da estruturação da história de Sachs, de uma forma ordenada e clarificadora.

Consegue, assim, reunificar a imagem que tinha do amigo, apesar de nunca perder a

consciência de que, como o próprio Sachs afirma, "we never know anything about

anyone" (96). Neste sentido, Aaron nunca ultrapassa a sua condição de intérprete

criador, de "tradutor" do percurso de Sachs para os leitores intra e extradiegéticos,

se a tradução for tomada, não como uma reprodução fiel, mas como um acto criativo

com uma legitimidade muito própria, à semelhança do que Paul Auster advoga em

The Invention of Solitude. A metáfora da tradução explicita, pois, as relações

estabelecidas entre Aaron e Sachs, como o seguinte passo de Lucienne Bozzetto-

Ditto sobre a obra referida demonstra:

L'auteur à traduire influe sur la vie du traducteur, mais le traducteur influe sur la vie, contemporaine ou posthume, de l'auteur qu'il traduit. Plus que tout autre, le traducteur est un passage, une voie, parce qu'il accepte de devenir - dans un de ces "hasards de rimes" chers à Auster - une voix. Si tout traducteur est "interprète" (comme Billie Holliday interprète Solitude de Duke Ellington, E. De Lange et I. Mills et "crée" véritablement cette chanson [123]), l'interprétation, la traduction, est créatice, elle fait renaître et vivre.13

Claire Maniez, "Parole et écriture dans Le Voyage d'Anna Blume", L'Œuvre de Paul Auster, pp. 189-190. 73 Lucienne Bozzetto-Ditto, "L'arbre et la ville invisible dans L'Invention de la Solitude", L'Œuvre de Paul Auster, p. 69.

99

Na medida em que Benjamin Sachs é o autor da sua própria vida, o sujeito

dos factos que dão origem à narrativa, o trabalho de Aaron é um acto de

interpretação com poderes criativos e regeneradores, que acaba por influenciar a

percepção dos potenciais leitores (no mundo do romance como no da vida "real") em

relação à figura do protagonista, ao transportá-lo para uma nova vida no discurso.

Entre a sua existência "real" e a sua presença na narrativa cria-se, assim, uma

distância intransponível, que é um comentário na prática aos poderes e limitações da

representação, pela qual se reordena o que a vida acabou por fragmentar: "history

and fiction exchange places, history becoming fictional and fiction becoming "true"

history - and the real world seems to get lost in the shuffle. But of course this is

precisely the question postmodernist fiction is designed to raise: real, compared to

what?"74 De facto, o mundo real enquanto tal é completamente inacessível a Aaron,

como a todos os que o tentam percepcionar e representar, pelo que só a construção

intencionada de "traduções" criativas o tornam assimilável. Daí que o valor de

qualquer uma destas representações seja sempre relativo: não há um real absoluto. E

esta consciencialização pode, segundo John Fowles, definir o próprio Homo sapiens:

But this is preposterous? A character is either 'real' or 'imaginary'? If you think that, hypocrite lecteur, I can only smile. You do not even think of your own past as quite real; you dress it up, you gild it or blacken it, censor it, tinker with it... fictionalize it, in a word, and put it away on a shelf - your book your romanced autobiography. We are all in flight from the real reality. That is a basic définition of Homo sapiens.15

McHale, Postmodernist Fiction, p. 96. John Fowles, The French Lieutenant's Woman (London: Pan Books, 1987), p. 87.

Capítulo 2

Jogos de espelhos

... e começou a decifrar o instante que estava a viver, decifrando-o à medida que o vivia, profetizando-se a si próprio no acto de decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse a ver­se num espelho falado. Gabriel Garcia Marquez, Cem Anos de Solidão

101

1. Biografia, autobiografia e o espelho de Thoreau

Autobiography is what genius makes of it.'

De maneiras diferentes, Leviathan relata dois processos de historificação: o

primeiro, explicitamente representado, corresponde à reconstrução abonatória da

imagem de continuidade de Sachs, levada a cabo por Aaron; o segundo diz respeito

ao trabalho de investigação dos detectives, que ameaça implicitamente todo o esforço

do narrador. Do mesmo modo que Aaron tenta integrar na sua narrativa a pesquisa e

a criação, também eles, apesar do seu estatuto de "profissionais da verdade", vão ter

que ultrapassar o seu papel de investigadores e tornar-se intérpretes dos elementos

que descobrem, construindo uma realidade que só parcialmente se sobreporá à

"verdade":

It was a curious way for the visit to end - writing down the titles of my books for an FBI agent. Even now, I'm hard-pressed to know what he was after. Perhaps he thinks he'll find some clues in them, or perhaps it was just a subtle way of telling me that he'll be back, that he hasn't finished with me yet. I'm still their only lead, after all, and if they go on the assumption that I lied to them, then they're not about to forget me. Beyond that, I haven't the vaguest notion of what they're thinking. (...) They know nothing, and therefore they could be working on that premise [that I'm a terrorist], furiously searching for something that would link me to the bomb that went off in Wisconsin last week. And even if they aren't, I have to accept the fact that they'll be on my case for a long time to come. They'll ask questions, they'll dig into my life, they'll find out who my friends are, and sooner or later Sachs's name will come up. It will be my story, and once they've finished it, they'll know as much about me as I do myself. (7)

Como Aaron, os detectives procuram ligações entre os acontecimentos,

partem para a sua reconstrução com intuitos bem definidos que influenciam a sua

percepção da história do narrador. Os vestígios que procuram não estão, no

princípio, à sua disposição, ao contrário do que acontece com Aaron quando começa

1 Olney, "The Ontology of Autobiography", Autobiography, p. 258.

102

o seu relato, pelo que são obrigados a desenvolver um esforço de investigação muito

superior ao do narrador, apesar de os objectivos de ambos serem semelhantes:

construir histórias explicativas de uma realidade que não conseguem compreender.

Os investigadores descobrem, através do seu trabalho de pesquisa e reconstituição, a

história de Peter Aaron, ficando a saber tanto sobre o narrador como ele próprio, mas

isto não significa que a história que encontram seja igual à auto-percepção de Aaron.

Pelo contrário, o final vem mostrar que há aspectos da sua vida e das suas relações

que o narrador desconhece, assim como as descobertas dos detectives têm que ser

complementadas com o testemunho abonatório que aquele faz por meio de

Leviathan.

Harris consegue, de facto, desvendar o mistério da explosão da bomba em

Wisconsin e ligá-lo a outros aspectos obscuros da história que vai construindo:

Ben's name must have been known to them already, and since Harris was a crafty fellow, he wouldn't have missed the connection. One thing led to another, and by the time he showed up here yesterday, he had already fit the pieces together. Sachs was the man who had blown himself up in Wisconsin. Sachs was the man who had killed Reed Dimaggio. Sachs was the Phantom of Liberty. (244)

É pelo uso do seu poder imaginativo e interpretativo que Harris consegue

juntar os fragmentos que conhece, mas mesmo após a descoberta está consciente das

limitações da história que criou. "Maybe you can tell me something more about him"

(244), pede o detective no seu último encontro com Aaron, e este entrega-lhe então o

manuscrito da sua obra, a outra metade da história de Sachs, mas também da do

narrador. É que, se a história construída pelos detectives se centra em Peter Aaron

para encontrar a identidade do homem morto na explosão, o testemunho do narrador,

103

que tenta representar o percurso de Benjamin Sachs, acaba por dar coerência e

estruturar pelo discurso a presença do próprio Aaron.

As duas personagens parecem, de facto, surgir lado a lado em ambas as

histórias, como se o espaço biográfico de reconstrução da imagem de uma estivesse

necessariamente dependente da (auto)representação da outra. A distinção

estabelecida por Philippe Lejeune entre autobiografia e o que designa como "espaço

autobiográfico" da obra de um autor é importante para a compreensão dos motivos

que conduzem a esta situação. Em "Gide et l'espace autobiographique", Lejeune

chama a atenção para a importância da leitura do conjunto de textos deste autor

como uma exploração necessariamente ambígua mas enriquecedora da história da sua

vida e das suas ideias, que o próprio Gide parece favorecer em detrimento da

compartimentalização da sua obra de acordo com o seu carácter explicitamente

autobiográfico, ficcional ou crítico:

Le but de Gide est donc de produire (au double sens d'inventer et de manifester) l'image de soi, celle d'un être vivant avec toute sa complication et son histoire; mais le moyen de ce but n'est pas l'emploi du récit autobiographique strictu sensu. C'est à une architecture de textes, certains de fiction, d'autres de critique, d'autres intimes certes, que Gide remet la tâche de manifester son image. Tout se passe comme s'il n'avait pas à écrire qui il est, mais à l'être en écrivant. L'image de soi n'a rien à voir avec un contenu d'énoncé, c'est un effet d'énonciation. Pour être produite, l'ambiguïté autobiographique ne passe pas nécessairement par l'autobiographie. Au contraire.2

De facto, uma autobiografia propriamente dita está marcada por um conjunto

de intenções e restrições que não permitem ao seu autor a expressão das contradições

intrínsecas à sua identidade. Se, contudo, a sua obra for tomada como um todo e

interpretada como um "espaço autobiográfico" amplo, conseguir-se-á pelo menos

encontrar sinais da ambiguidade inerente à sua condição humana.

2Phillippe Lejeune, Le pacte autobiographique (Paris: Éditions du Seuil, 1975), p. 171.

104

Leviathan não é, na verdade, uma autobiografia, nem sequer um romance

autobiográfico,3 mas faz parte deste "espaço" em que a presença do seu autor se

afirma indirectamente, como um "efeito da enunciação"- quer ao nível intradiegético,

quer relativamente ao autor "real", Paul Auster. Ao reflectir sobre a influência do

episódio da visita à Estátua da Liberdade do jovem Sachs na origem de The New

Colossus, Aaron explica como este "espaço autobiográfico" funciona:

If not for Sachs's novel (...), I might have forgotten all about it. But since that book is filled with references to the Statue of Liberty, it's hard to ignore the possibility of a connection - as if the childhood experience of witnessing his mother's panic somehow lay at the heart of what he wrote as a grown man twenty years later. I asked him about it as we were driving back to the city that night, but Sachs only laughed at my question. (...) In the end none of that matters. Just because Sachs denied the connection doesn't mean that it didn't exist. No one can say where a book comes from, least of all the person who writes it. Books are born out of ignorance, and if they go on living after they are written, it's only to the degree that they cannot be understood. (35-36)

Estranhamente, só ao nível extradiegético se pode entender todo o alcance

das palavras de Aaron. As ligações ambíguas entre a vida e a literatura tornam-se

evidentes quando o que o escritor-narrador escreve sobre o papel de um episódio

"verídico" na obra da personagem principal descreve o processo pelo qual o escritor-

autor usa elementos autobiográficos na obra que cria através de Aaron, Leviathan.

De facto, os livros nascem da ignorância, principalmente o que Aaron concebe, pois,

para além das suas obsessões, integra também as do autor, Paul Auster, de que ele é

apenas um veículo inocente. É o caso do episódio em questão, já retratado por A. em

3 Para Lejeune, a autobiografia pressupõe que autor, narrador e personagem tenham a mesma identidade, mesmo que implícita, enquanto o romance, ainda que possua raízes autobiográficas, assenta na distinção entre estas posições: "Pour n'importe quel lecteur, un texte à allure autobiographique, qui n'est assumé par personne, ressemble comme deux gouttes d'eau à une fiction. (...) Ce qui définit l'autobiographie pour celui qui la lit, c'est avant tout un contrat d'identité qui est scellé par le nom propre. Et cela est vrai aussi pour celui qui écrit le texte. Si j'écris l'histoire de ma vie sans y dire mon nom, comment mon lecteur saurait-il que c'était moil II est impossible que la vocation autobiographique et la passion de l'anonymat coexistent dans le même être" -Lejeune, Le pacte autobiographique, p. 33.

105

The Invention of Solitude: "He remembers visiting the Statue of Liberty with his

mother and remembers that she got very nervous inside the torch and made him go

back down the stairs sitting, one step at a time."4

O mesmo acontece com um outro episódio autobiográfico de Auster inscrito

na obra. Em The Red Notebook, o autor descreve o modo como o seu pai escapou à

morte devido à intromissão casual de uma corda de roupa:

A year or two after that, my father was working on the roof of a building in Jersey City. Somehow or other (I wasn't there to witness it), he slipped off the edge and started falling to the ground. Once again, he was headed for certain disaster, and once again he was saved. A clothesline broke his fall, and he walked away from the accident with only a few bumps and bruises. Not even a concussion. Not a single broken bone.5

O acidente de Sachs é retratado de forma em tudo idêntica à queda do pai de

Paul Auster, mas a leitura que o narrador faz dele é muito diferente da objectividade

dos factos relatados em The Red Notebook. O tratamento dado em Leviathan

possibilita, assim, que o autor explore as implicações e consequências (reais ou

imaginárias) do acaso na construção da vida humana, nomeadamente na procura de

sentidos para a estranheza e distanciamento manifestados no comportamento do seu

pai.

Leviathan fiinciona, pois, como um campo de exploração do "espaço

autobiográfico" de Auster através de um narrador criado para espelhar este processo.

Para isso, toraa-se necessário revelar em que medida a narrativa de Aaron sobre

Sachs não é estritamente uma biografia, mas um trabalho através do qual Aaron torna

visível (cria) uma imagem de si próprio ao escrever sobre o amigo. Daí que desde o

4 Auster, The Invention of Solitude, p. 169. 5 Auster, The Red Notebook, p. 33.

106

primeiro capítulo seja apontada a proximidade e a ambiguidade das relações

estabelecidas entre narrador e protagonista, indiciando que as histórias dos dois são

indestrinçáveis:

The man with the scarf wrapped around his head turned to me and smiled. 'Ah, then that means you're Peter Aaron, doesn't it?'

'I suppose it does,' I said. 'But if I'm Peter Aaron, then you must be Benjamin Sachs.' (12)

As identidades dos dois parecem, desde o primeiro encontro no bar, estar

interligadas, de tal forma que Aaron se vê forçado a admitir: "... as I sit here now

trying to make sense of who he was, I can hardly imagine my life without him" (18).

Sachs é uma referência obrigatória da vida de Aaron, e a situação inversa também é

verdadeira. Os seus percursos são paralelos e ligam-se de variadas maneiras, quer ao

nível da escrita, quer do seu desenvolvimento pessoal, como o seguinte exemplo,

também do primeiro encontro, demonstra:

'So, you went to France, and I went to jail. We both went somewhere, and we both came back. As far as I can tell, we're both sitting in the same place now.' (21)

A ausência da grande cidade é vista como mais uma evidência de que as suas

vidas estão mutuamente marcadas. No segundo capítulo, um novo campo de

aproximações é explorado, e os laços que os unem tornam-se ainda mais fortes.

Trata-se, agora, da proximidade de gostos amorosos de ambos, de que o caso de

Aaron com Fanny é o ponto fulcral: "Everything had changed, and like it or not, our

friendship had lost its innocence. Because of Fanny, we had each crossed over into

the other's life, had each made a mark on the other's internal history, and what had

once been pure and simple between us was now infinitely muddy and complex" (98-

99). De facto, a ambiguidade das relações entre os dois é visível durante toda a

107

narrativa de Aaron, que desculpabiliza Sachs ao mesmo tempo que consolida a sua

própria identidade através do relato da história do amigo. O brinde que o

protagonista lança na cerimónia do casamento de Aaron é, a este nível, bem

elucidativo:

(...) turning in my direction, Sachs lifted his glass and said: 'Grant stood by me when I was crazy. I stood by him when he was drunk, and now we stand by each other always.' (103, sublinhado meu)

As palavras do general Sherman norteiam todo o trabalho de Aaron, uma vez

que representar o amigo no discurso implica necessariamente representar-se a si

próprio e, deste modo, recriar-se. "... as soon as any of us put ourselves on paper we

create fictional characters of ourselves. And as soon as any of us put fictional

characters on paper, we create our own autobiographies, the 'scripts' of our lives",

afirma Patricia Waugh,6 e parece ser esta a situação de Peter Aaron: a representação

que faz de si próprio em Leviathan é uma criação subjectiva que tem em vista

determinados resultados, enquanto a reconstrução do protagonista que leva a cabo

(também ela já uma forma fíccionalizada de conceber a história de Sachs) o impele

para a criação de sentidos que têm que ver, antes de mais, com as suas características

pessoais. Ao transpor Sachs para o discurso, Aaron acaba por escrever também a sua

história, pois a sua identidade depende da do amigo.

A questão da identificação através do outro é, aliás, central a toda a obra de

Auster, e as motivações para mais esta obsessão são claramente expressas:

Oliver Sacies, the neurologist, has made some astute observations about such things. Every whole person, he says, every person with a coherent identity, is in effect narrating the story of his life to himself at every moment - following the thread of his own story. ...

6 Patricia Waugh, Metafiction: The Theory and Practice of Self-Conscious Fiction (London/New York: Routledge, 1993), p. 123.

108

But there's more to it than that. We live alone, yes, but at the same time everything we are comes from the fact that we've been made by others. I'm not just referring to biology - mothers and fathers, uterine birth, and so on. I'm thinking about psychology and the formation of the human personality. The infant feeding at the mother's breast looks up into the mother's eyes and sees her looking at him, and from that experience of being seen, the baby begins to learn that he is separate from his mother, that he is a person in his own right. We literally acquire a self from this process. Lacan calls it the 'mirror-stage', which strikes me as a beautiful way of putting it.7

O ser humano adulto e coerente constrói-se com base numa estrutura auto-

narrativa contínua pela qual assimila e dá sentido ao seu percurso de vida, mas só o

consegue fazer perante a consciência do olhar do outro, da imagem especular do que

lhe é semelhante e, contudo, extremamente diferente e inacessível. A tarefa que

Aaron se propõe executar nasce, pois, na ambiguidade do jogo de identidades entre

narrador e protagonista, ao contar a história de Sachs, Aaron não pode evitar deixar

marcas da sua própria experiência de vida e da sua individualidade, uma vez que elas

estão dependentes da relação que mantinha com o amigo. E da convivência entre os

dois que nasce a hipótese da individualidade, num jogo de espelhos ambíguo mas

regenerador.

Em Moon Palace, Thomas Effing cria uma imagem metafórica iluminadora

desta situação, no momento em que narra a Fogg a sua expedição ao coração da

América:

Byrne told me that you can't fix your exact position on the earth without referring to some point in the sky. (...) The crux was compelling to me, though, it's never left me since. A man can't know where he is on the earth except in relation to the moon or a star. Astronomy comes first; land maps follow because of it. Just the opposite of what you'd expect. If you think about it long enough, it will turn your brain inside-out. A here exists only in relation to a there, not the other way around. There's this only because there's that; if we don't look up, we'll never know what's down. Think of it, boy. We find ourselves only by looking to what we're not. You can't put your feet on the ground until you've touched the sky.8

7 Auster, "Interview with Larry McCaffery and Sinda Gregory", The Red Notebook, p. 143. 8 Auster, Moon Palace, pp. 153-154.

109

Do jogo com a imagem central a todo o romance - a lua, ela própria a

corporização do que é totalmente outro, e, por extensão, o vasto campo semântico

da astronomia -, nasce a reflexão sobre a possibilidade do auto-conhecimento

humano. De novo, Auster afirma a sua teoria: a geografia física nasce da astronomia,

da observação do espaço exterior, ou seja, só a observação do outro viabiliza a

criação de uma história individual. O problema que decorre desta perspectiva é que,

sendo a observação necessariamente subjectiva e probabilística, o conhecimento do

outro é sempre parcial, o que implica que a auto-compreensão seja um processo

contínuo que não admite uma realização completa. Sophie Chambon explica as

limitações deste processo visíveis em "The Locked Room" e Leviathan:

Sans adopter comme Pessoa le système labyrinthique des hétéronymes, il crée des personnages gémellaires qui, en décidant d'écrire la vie de leur ami disparu, s'engagent dans une aventure trop intime: pour le narrateur de la Chambre dérobée, pour Peter Aaron dans Léviathan, suivre la piste de ce double les oblige à remonter "au cœur de leurs propres ténèbres". Est-il réellement possible de parler de quelq'un d'autre? Les biographies des autres tournent vite à l'autobiographie, même si elle prend une forme déguisée.9

Trazer para o discurso o indizível de uma vida humana exterior ao sujeito

narrativo implica, pois, a imersão nas trevas da sua própria interioridade, pelo que o

trabalho biográfico que ambos tentam realizar depressa se confunde e é impregnado

por uma tendência narrativa autobiográfica. Fanshawe é o ponto de partida para a

história do narrador de "The Locked Room", do mesmo modo que Peter Aaron é o

centro de confluências de uma rede de acidentes que estrutura a história de Sachs. E,

no entanto, nenhuma das histórias destas personagens especulares consegue alcançar

o estatuto de relato verídico e completo. Pelo contrário, é a consciência dos

9 Chambon, "L'invention de l'écriture...", L'Œuvre de Paul Auster, p. 54.

110

narradores das limitações dos seus discursos que dá valor às suas narrativas, desde o

início imersas num cepticismo quanto à possibilidade de concretização do seu

objectivo, embora nem por isso o abandonem.

O amigo de Fanshawe explica o paradoxo inerente a esta situação:

We all want to be told stories, and we listen to them in the same way we did when we were young. We imagine the real story inside the words, and to do this we substitute ourselves for the person in the story, pretending that we can understand him because we understand ourselves. This is a deception. We exist for ourselves, perhaps, and at times we even have a glimmer of who we are, but in the end we can never be sure, and as our lives go on, we become more and more opaque to ourselves, more and more aware of our own incoherence. No one can cross the boundary into another - for the simple reason that no one can gain access to himself.10

Contar histórias é, assim, uma forma conscientemente traiçoeira de perceber e

compreender os "factos verídicos" da vida humana, uma vez que o contexto dos

jogos especulares entre sujeitos diferentes parte sempre de pressupostos situacionais

errados ou incompletos. Se é a observação do outro que permite a identificação

pessoal, então este processo é necessariamente fragmentário e parcial, na medida em

que o que se pode conhecer do outro é apenas a sua proximidade do sujeito enquanto

ser inexplicável e incompreensível.

As narrativas do amigo de Fanshawe e de Peter Aaron vivem, assim, entre

impulsos opostos e dialécticos, entre o esforço biográfico de trazer para a escrita a

fragmentação dos seus protagonistas e a intromissão inevitável e necessária do

campo autobiográfico. Do diálogo destas pulsões contraditórias nasce, na última

parte de The New York Trilogy, uma imagem que pode ser aproveitada para

Leviathan: o quarto fechado, o lugar da ausência do outro que é, no fundo, o enigma

do desconhecido da individualidade humana, mas também o ponto de partida para um

Auster, The New York Trilogy, p. 292.

I l l

trabalho de reconstituição promissor. "This room, I now discovered, was located

inside my skull",11 diz o amigo de Fanshawe, o que implica que todo o seu trabalho

de escrita, mais do que uma tentativa de representação do exterior e outro, é uma

forma de exorcizar o que é pessoal e subjectivo, de enfrentar um caos que é

essencialmente interno, ainda que parta da observação e descrição do percurso de

uma vida que não a sua.

Human contact often masks a gulf that only death or distance can bridge. We are separated from others by those very things that also connect us; we are separated from ourselves by the illusion of self-knowledge. Just as we must forget ourselves in order to reach a certain level of self-truth, we must also leave others in order to find them in the prism of memory and separation. That which is closest is often the most enigmatic, and distance, like mourning and wandering, is also an instrument of redemption.12

Sendo assim, não é surpreendente que tanto o narrador de "The Locked

Room" como Aaron se encontrem consigo próprios precisamente no momento em

que empreendem a descrição de outra personagem, uma vez que é nestes momentos

que tomam consciência das limitações do seu auto-conhecimento. Assimilar a

inevitabilidade da presença de Fanshawe ou salvar a imagem de continuidade e

sentido do percurso de Sachs pela escrita tornam-se, deste modo, projectos

indissociáveis de uma demanda interna que os funda e lhes dá sentido.

Mesmo antes da morte do seu amigo, Aaron tem consciência dos laços

indeléveis que o unem ao amigo: "Wherever he was, I was with him now. I had given

him my word to say nothing, and the longer I kept his secret, the less I belonged to

myself (237). Manter-se fiel ao discurso de Sachs, não revelando o seu segredo,

provoca um movimento gradual de osmose com a identidade deste, que é depois

11 Auster, The New York Trilogy, p. 345. 12 Bruckner, "Paul Auster, or The Heir Intestate", Beyond the Red Notebook, p. 28.

112

contrabalançado quando se decide pela narração: o Sachs que Aaron representa já

não pertence a si próprio, antes é uma modelação da memória e das intenções do

narrador, o qual acaba por desenhar, consciente ou inconscientemente, os contornos

da sua identidade no livro que rouba a Sachs. Neste jogo entre identidade e

alteridade, "l'Autre n'est pas seulement la contrepartie du Même, mais appartient à la

constitution intime de son sens", como afirma Paul Ricœur ao abordar este tema.13 O

outro faz parte do sujeito, a sua percepção é essencial para a criação de sentidos para

o sujeito, e vice-versa, pelo que Leviathan tem necessariamente que oscilar entre a

biografia e a autobiografia.

"La recréation ou création se fait à partir d'échanges symbiotiques entre le

portrait et l'autoportrait, tous deux fondés sur l'illusion et le regard ou plus

exactement la vision"14 - é assim que Martine Chard-Hutchinson caracteriza o

processo criativo de The Invention of Solitude, mas as suas palavras aplicam-se de

igual modo a "The Locked Room" e principalmente a Leviathan, onde o papel da

visão como propiciadora destas trocas simbióticas é explorado concretamente em

diferentes etapas narrativas.

Neste âmbito, torna-se fundamental a referência à relação ambígua que Sachs

estabelece com Maria Turner e a sua máquina fotográfica, que é emblemática do

processo de reconstrução de identidades que toda a obra parece advogar. Num

momento em que o protagonista se sentia cada vez mais perdido e fragmentado, após

a queda durante a celebração do centenário da Estátua da Liberdade, ele estabelece

13 Ricœur, Soi-même comme un autre, p. 380. 14Martine Chard-Hutchinson, "Les espaces de la mémoire dans L'Invention de la Solitude", L'Œuvre de Paul Auster, p. 17.

113

com Maria um projecto sem contornos definidos, que a artista intitula "Thursdays

with Ben". Comentando os possíveis resultados deste projecto, Aaron afirma a

importância das sessões fotográficas que o integram para o restabelecimento da

identidade de Sachs:

Every time Sachs posed for a picture, he was forced to impersonate himself, to play the game of pretending to be who he was. After a while, it must have had an effect on him. By repeating the process so often, he must have come to a point where he started seeing himself through Maria's eyes, where the whole thing doubled back on him and he was able to encounter himself again. They say that a camera can rob a person of his soul. In this case, I believe it was just the opposite. With this camera, I believe that Sachs's soul was gradually given back to him. (130)

Sachs encontra-se através da percepção que Maria Turner objectiva com a

ajuda da máquina fotográfica, ou seja, o objecto do trabalho da artista "rouba" a sua

identidade à imagem que esta cria, constrói-se como sujeito no próprio acto de se

deixar observar e representar por uma outra personagem.

O jogo de personagens especulares que se realiza no espaço criado pela

distância entre a ilusão e o olhar está na origem de todo o processo narrativo de

Leviathan, e daí a multiplicação dos duplos, de figuras com percursos similares e

caracterizadas por diversos pontos em comum, capazes de construir a sua identidade

a partir das imagens de si próprias que recebem umas das outras:

Leviathan, while repeating the Ishmael-Ahab setup of The Locked Room, augments the exponent, producing the triplet Aaron-Sachs-Dimaggio: Aaron substitutes in Sachs's bed and Sachs in Dimaggio's; Sachs, who "had stood for the same things" as Dimaggio [170], adopts Dimaggio's mission and while carrying out a form of it, forges in Aaron's books the signature of the author, who himself will borrow the name of Sachs's own unfinished project to title the account of Sachs's life, a life without which Aaron says he "can hardly imagine" his own [18].15

O jogo de duplos não se fica, assim, pela ambiguidade da relação Aaron-

Sachs, surgindo uma nova personagem que vai ajudar ao processo de estruturação da

Eric Wirth, "A Look Back from the Horizon", Beyond the Red Notebook, p. 178.

114

identidade de Sachs. Dimaggio é, para ele, o outro em que revê a sua identidade

ideal, o percurso de vida que não tinha ainda tido coragem de assumir, mas por que

opta quando é confrontado com a história do ex-marido de Lillian. A "música do

acaso" parece promover o encontro destas imagens especulares, e possibilitar a

identificação pelo outro. É, por isso, Dimmagio (e a sua tese sobre mais uma

personagem com estas características, Alexander Berkman) quem conduz Sachs para

a opção pela acção terrorista, que, pelo menos temporariamente, dá um sentido de

unidade à vida do protagonista:

'I couldn't help myself after that. I started to think about Dimaggio all the time, to compare myself to him, to question how we'd come to be together on that road in Vermont. I sensed a kind of cosmic attraction, the pull of some inexorable force. (...) I knew he'd been a soldier in Vietnam and that the war had turned him inside-out, that he'd left the army with a new understanding of America, of politics, of his own life. It fascinated me to think that I'd gone to prison because of that war - and that fighting in it had brought him around to more or less the same position as mine. We'd both become writers, we both knew that fundamental changes were needed - but whereas I started to lose my way, to dither around with half-assed articles and literary pretensions, Dimaggio kept developing, kept moving forward, and in the end he was brave enough to put his ideas to the test. (224-225)

Os paralelismos entre os percursos de vida dos dois (e também de Aaron) são

de tal modo notórios que Eric Wirth chega a afirmar:

That it is senseless to say whether the three names correspond to three characters enacting a single life or to one character living three lives is the point - don't say either, and certainly don't say three characters live three lives that are intricately enmeshed by coincidence. For Hobbes the leviathan is the commonwealth, the multitude voluntarily united under the absolute sovereign so that the interest of each individual is not absolute. For Auster, a counter-Hobbes surveying anarchy, the leviathan is the aggregation of missing male adults, which any one man and all men compose equally well - an anticommunal totality of zero, the whiteness of the whale, non-individuated consciousness itself (...)16

As relações entre estas personagens são, na verdade muito ambíguas e fortes.

Isto não significa, contudo, que esta seja necessariamente uma agregação de adultos

Wirth, "A Look Back from the Horizon", Beyond the Red Notebook, p. 178.

115

desaparecidos, sem existência palpável, perfazendo uma totalidade anti-comunal de

zero. Se o leviatã de Auster é a brancura da baleia, imersa numa rede de sentidos

contraditórios e mesmo insondáveis, esta brancura não corresponde a uma

consciência não individualizada que usa cada personagem para se expressar de

determinada forma e depois a anula: pelo contrário, a representação da ligação

profunda entre eu e outro tem por consequência a afirmação da distância que os

separa. O seu leviatã não é, deste modo, a omnipresença do nada, mas a consciência

da impossibilidade de determinar em definitivo o sentido e a identidade.

Ironicamente, ao pôr em prática as ideias de Dimaggio, o último elemento da

cadeia de duplos, Sachs acaba por ultrapassar e contrariar os princípios defendidos

por uma outra figura especular cuja sombra paira sobre toda a sua vida: Henry David

Thoreau, o modelo do protagonista, de quem decalca "an attitude of remorseless

inner vigilance" (26) que o vai caracterizar até ao fim e acaba por o levar à morte. O

pormenor de morrer com a mesma idade que Thoreau torna-se, assim, relevante, uma

vez que propicia a leitura da aproximação do destino de Sachs ao modus vivendi que

conhecera através de Thoreau.

Auster explica a importância desta figura real na sua obra, nomeadamente em

Leviathan, da seguinte maneira:

Thoreau est avant tout un très grand styliste. (...) Mais ses grandes idées, celles rassemblées notamment dans son essai La Désobéissance civile, sont d'une extrême modernité. Son dernier grand concept, celui de «résistance passive», a fait le tour du monde. (...) Mais son grand livre reste Walden, où il raconte l'expérience de la solitude. Il est un des premiers à avoir vu les contradictions de cet immense pays que sont les Etats-Unis, pays agricole, pays de fermes et de paysans, que l'industrialisation allait peu à peu transformer. (...) Thoreau était un immense visionnaire et c'est ce qui me touche chez lui.17

17 Cortanze, "Le Monde est dans ma Tête... ", Magazine Littéraire, p. 24.

116

Também Sachs, nas passadas do seu mestre, é um visionário que tenta alertar

a América para as contradições existentes entre os ideais representados pela Estátua

da Liberdade e a sociedade real do seu tempo. O último meio pelo qual tenta chamar

a atenção para esta situação não se enquadra, contudo, na ideologia da resistência

passiva defendida por Thoreau, ao contrário do que acontecera com a ida para a

prisão em defesa da sua posição relativamente à guerra no Vietname. A escolha do

terrorismo marca o distanciamento deste modelo e a identificação com as posições de

Dimaggio, e daí o corte da barba, que usava em homenagem a Thoreau.

Se há uma proximidade especular entre Sachs e o autor de Walden, torna-se

também visível, deste modo, um conjunto de características que os distanciam. O

jogo paródico com Thoreau explora esta relação ambígua em dois campos

interligados de investigação: o papel das teorias políticas defendidas por este

transcendentalista na cultura americana contemporânea e as implicações que advêm

destas teorias para a compreensão da solidão humana e das limitações do diálogo:

What sort of space is that which separates a man from his fellows and makes him solitary? I have found that no exertion of the legs can bring two minds much nearer to one another. What do we want most to dwell near to? Not to many men surely (...), but to the perennial source of our life (...)18

Torna-se importante, neste âmbito, o regresso a The New York Trilogy, mas

agora a "Ghosts", que está, como Leviathan, imerso na sombra do fantasma de

Thoreau e na ambiguidade da interdependência entre observador e observado, o

sujeito e o seu duplo.

He [Blue] imagines himself somewhere else, far away from here, walking through the woods and swinging an axe over his shoulder. Alone and free, his own man at last. He would build his life from the bottom up, an exile, a pioneer, a pilgrim in the new

18 Henry David Thoreau, Walden and Other Writings by Henry David Thoreau, ed. Joseph Wood Krutch (New York/Toronto: Bantam Books, 1989), p. 204.

117

world But that is as far as he gets. For no sooner does he begin to walk through these woods in the middle of nowhere than he feels that Black is there, too, hiding behind some tree, stalking invisibly through some thicket, waiting for Blue to lie down and close his eyes before sneaking up on him and slitting his throat.19

A parodia de Walden é por demais produtiva e enriquecedora, ao equacionar

a questão da liberdade com as da identidade e da solidão. Ao retirar-se para Walden

Pond, Thoreau faz a afirmação do seu direito à discordância e à escolha, mas o que

"Ghosts" vem provar é que este poder não existe de facto. Em "Plagiarism in Praise:

Paul Auster and Melville", Maria Irene Ramalho de Sousa Santos explica em que

medida The New York Trilogy é um comentário crítico à hipótese do isolamento

proposta em Walden.

In the third and last story of The New York Trilogy, titled "The Locked Room," [t]he narrator confirms the reader's suspicions that the "three stories are finally the same story". The story, in short, is a story about "stepping aside" - like Hawthorne's "Wakefield," as the narrative of "Ghosts" makes clear; but also like Melville's Bartleby and like Thoreau in Walden. (...) As in Hawthorne, in Auster "stepping aside" means to reject both the comforts and the commitments of social life. (...) Walden's Thoreau wanted to learn "the gross necessaries of life"; Melville's Bartleby shows us that you can't reduce your needs to "the grossest groceries" of "private business", as Thoreau likes to put it in Walden, and continue to be human. Thoreau wanted to "from only the essential facts of life," "to drive life into a corner, and reduce it to its lowest terms," expecting to find it sublime; in Bartleby's "dead wall," the wall of John Jacob's Wall Street, Melville shows how mean such a life can be.20

A rejeição ou, pelo menos, o afastamento temporário dos confortos e dos

compromissos sociais, propostos em Walden e sonhados por Blue em "Ghosts" são,

assim, abertamente questionados por Auster através da referência implícita desde

"City of Glass" a Melville e à passividade vazia e mesquinha de Bartleby. O que está

em causa é, de facto, a própria humanidade de Blue, que percebe o sem-sentido da

19 Auster, The New York Trilogy, p. 222. 20 Maria Irene Ramalho de Sousa Santos, "Plagiarism in Praise: Paul Auster and Melville", Dedalus: Revista Portuguesa de Literatura Comparada 1 (Dezembro 1991), p. 111.

118

sua atracção pela solidão quando o que o define é precisamente o seu envolvimento

social, a sua necessidade do outro (de Black). Maria Irene Sousa Santos continua:

Bartleby's pathetic vulnerability and dependency in Melville's tale throws a dark shadow over transcendalist radical self-sufficiency, and if Walden's Thoreau may be said to be an inspiringly step-asider (...), Melville's Bartleby, who doggedly forces stepping-aside on himself, helps us understand Auster's probings, in The New York Trilogy, into this beautiful and seductive American cultural myth.21

Contemporânea de Walden, a história de Bartleby funciona assim como a

imagem inversa do mito da auto-suficiência radical, desenvolvido pelos

transcendentalistas e revitalizado na cultura americana de hoje. Auster recupera a

questionação feita por Melville ao criar personagens que, como Blue, se apercebem

que a auto-suficiência não passa de uma ilusão e que o isolamento, a solidão,

escondem sempre a presença do outro e a necessidade dos vínculos sociais. E por

isso que Blue nunca está livre para escolher o seu caminho. Uma vez que Black faz

parte da imagem que tem de si próprio, da sua condição humana (do mesmo modo

que Black se revê nele), o direito à escolha do isolamento não existe de facto.

A viragem de Sachs para o terrorismo representa também uma forma de

contestação dos ideais transcendentalistas de Thoreau, embora a solução preconizada

pelo protagonista não tenha mais sucesso: se os ideais de Thoreau são um mito, o

activismo militante de Sachs não passa de uma decepção, e a única alternativa com

algum poder parece ser a escrita, que é pelo menos capaz de retratar as experiências

políticas de Thoreau e Sachs. Por outro lado, a questionação da viabilidade do

isolamento humano possibilitada pelas referências ao autor de Walden acaba por

legitimar a leitura de Leviathan como uma narrativa não sobre uma, mas duas

21 Santos, "Plagiarism in Praise ...", Dedalus, p. 112.

119

(várias) vidas que se espelham mutuamente e assim conseguem uma forma de

estruturação baseada nas trocas entre ambas.

Em L'Autre par Lui-Même, Baudrillard refere-se à forma de prazer

proporcionada pelo delírio da comunicação e da hiper-realidade que sente invadir a

sociedade contemporânea:

Si on suit Callois dans sa classification des jeux: mimicry, agôn, aléa, ilynx - jeux d'expression, jeux de compétition, jeux de hasard, jeux de vertige -, alors la tendance de toute notre culture nous mènerait d'une disparition des formes de l'expression et de la compétition vers une extension des formes de l'aléa et du vertige.

Celles-ci n'impliquent plus de jeux de scène, de miroir, de défi ou d'altérité - elles sont plutôt extatiques, solitaires et narcissiques.22

Apesar da sua contemporaneidade, a escrita de Auster parece não acreditar

no abandono dos jogos de expressão e competição, como a multiplicação dos duplos

parece provar, ainda que não deixe de representar a importância do aleatório e da

vertigem. Pelo contrário, a linguagem e a ficção parecem constituir para ele o campo

de expressão por excelência dos jogos agonísticos e de imitação, à semelhança do

que Lyotard propõe. No espaço inseguro entre a ambiguidade do confronto e do

diálogo entre figuras especulares e a constatação da necessidade de representar o

homem como ser solitário exposto ao poder vertiginoso do acaso, o autor invoca,

assim, a hipótese da existência de um homem e uma realidade concretos, ainda que

inacessíveis, na tentativa de afastar o espectro da hiper-realidade que, segundo

Baudrillard, se sobrepôs já a essa hipótese.

2. Os espelhos na escrita: palimpsestos e "ghost writing"

But not yet have we solved the incantation of this whiteness, and learned why it appeals with such power to the soul; and more strange and far more

Baudrillard, L 'Autre par Lui-Même, p. 23.

120

portentous - why, as we have seen, it is at once the most meaning symbol of spiritual things, nay, the very veil of the Christian's Deity; and yet should be as it is, the intensifying agent in things the most appalling to mankind

Is it that by its indefmiteness it shadows forth the heartless voids and immensities of the universe, and thus stabs us from behind with the thought of annihilation, when beholding the white depths of the milky way?23

A existência de um homem e de uma realidade concretos parece ser a

primeira aposta da escrita de Auster. Ela só faz, contudo, sentido quando fundada na

aceitação de que a sua compreensão é necessariamente parcial e subjectiva. Torna-se

necessário, por isso, representar o homem como manuscrito ou, melhor, palimpsesto

escrito por diversos autores, entre os quais ele próprio. Daí a importância do papel

dos duplos e dos modelos em Leviathan: a identidade de Sachs (e de Aaron)

constrói-se a partir de contributos de diversas fontes, e a sua representação é um

trabalho colectivo naturalmente envolto em paradoxos intransponíveis. O trabalho de

escrita que Aaron empreende, na tentativa de relatar a sua versão da história de

Sachs, torna-se, assim, um projecto a várias vozes, em que a sua e a do protagonista

têm papéis preponderantes, mas não exclusivos. Assim, as palavras de Sachs

mantêm-se vivas no ambiente em que Aaron escreve:

... this is the room where I saw him for the last time, where he poured out his heart to me and let me in on his terrible secret. If I concentrate hard enough on the memory of that night, I can almost delude myself into thinking that he's still here. It's as if his words were still hanging in the air around me, as if I could still reach out my hand and touch him. (9)

Sachs participa, como não poderia deixar de ser, na reconstrução que Aaron

leva a cabo, mas não é a única voz presente neste projecto, do mesmo modo que, em

vida, continuamente se expõe às colisões de diferentes influências e modelos, e

através delas encontra sentidos para a sua existência. Esta só é possível quando

Herman Melville, Moby-Dick, ed. Harold Beaver (Harmondsworth, Penguin Books, 1986), p. 295.

121

aberta ao diálogo e à aceitação da multiplicidade intrínseca à condição humana. Daí a

dificuldade que Aaron sente ao tentar representar Sachs: o seu trabalho pretende

alcançar o impossível, ou seja, integrar numa visão coerente um todo de contradições

e influências que é a vida humana.

Ao analisar The Invention of Solitude, Pascal Bruckner refere-se a esta

temática, pelo que as suas ideias podem ser proveitosas numa análise de Leviathan.

Through writing we can choose other fathers to compensate for our own, discover a spiritual link, go beyond ourselves. Memory is immersion in the past of all those others who comprise us. The narrator distinguishes, one by one, these voices that speak through him that must be quieted before his true inner voice can be heard. But this goal is impossible to attain: the palimpsest self, like an ever-peeling onion, resists categorization. This peregrination through the continents of memory may be a marvellous journey, but it does not succeed in easing the pain. No matter how far it roams, the self is always haunted and tortured by others; it is a room full of strangers and intruders who speak in his place.24

Neste quarto a abarrotar de estranhos e intrusos que rodeia a identidade não

há, deste modo, hipótese de fugas: o sujeito é o centro nevrálgico de uma rede de

textos e contextos que o enformam e de que se não pode libertar. Sachs é um bom

exemplo: ao longo da narrativa que Aaron faz da sua vida, ele surge como uma figura

em constante mutação, na sequência de um conjunto vastíssimo de trocas com o

meio ambiente, outras personagens, obras literárias e ideologias. Ele constrói a sua

história pessoal passo a passo, narra-se o seu percurso e com isso procura encontrar

nexos de coerência para ele, mas este trabalho é mais do que a elaboração de um

manuscrito. Em Moon Palace, M. S. Fogg, apoiado pelo tio Victor, começa a sua

vida de adulto crente na liberdade humana para criar o seu destino, que as iniciais do

seu nome parecem preconizar:

Bruckner, "Paul Auster, or The Heir Intestate" Beyond the Red Notebook, p. 31.

122

"Every man is the author of his own life," he [Uncle Victor] said "The book you are writing is is not yet finished. Therefore, it's a manuscript. What could be more appropriate than that?"25

A história que conta vem, contudo, provar que esta é uma ideia errada. Se a

vida pode ser comparada ao processo de criação de um livro, este livro é

necessariamente o produto de uma rede intertextual, na qual o protagonista é apenas

um co-autor. A esta altura, M. S. conhece apenas um dos lados da sua história, mas a

progressiva descoberta da identidade e do percurso de vida do seu avô e do seu pai

obriga-o a rever a sua posição. Quer biologicamente, quer cultural e socialmente, os

seus ascendentes têm um papel fulcral na autoria da sua história, ao qual ele não pode

fugir, pelo que o livro da sua vida não é um simples manuscrito, mas uma

sobreposição de textos, um palimpsesto.

O mesmo acontece com Sachs, e daí a dificuldade de Peter Aaron em o

representar na escrita: "The difficulty comes from trying to pin him down in any

conclusive way. Sachs was too unpredictable for that, too large-spirited and cunning,

too full of new ideas to stand in one place for very long" (18). De facto, se a própria

identidade humana é um trabalho corporativo, a sua transposição para o mundo da

linguagem tem que ser feita a várias vozes, de modo a captar, ainda que de forma

limitada, a cadeia de lugares, pessoas e ideias que constitui a história do protagonista.

A narrativa de Aaron tem, por isso, que integrar no seu discurso dois níveis

de influências externas. A primeira, menos visível para o narrador, tem a ver com o

conjunto de intenções, ideologias e experiências que o levam à escrita: como Sachs,

também ele é um palimpsesto em que convivem diferentes vozes, as quais com

Auster, Moon Palace, p. 7.

123

certeza estão latentes na estruturação do seu discurso. Roland Barthes explica em

que medida este tipo de contexto é intrínseco à vida humana:

Et c'est bien cela l'inter-texte: l'impossibilité de vivre hors du texte infini - que ce texte soit Proust, ou le journal quotidien, ou l'écran télévisuel: le livre fait le sens, le sens fait la vie.26

Aaron não pode viver fora da influência do texto infinito que é o primeiro contexto

da sua escrita, pois é ele que lhe possibilita a criação de sentidos (para a sua vida,

mas também, inevitavelmente, para a de Sachs). Por outro lado, e precisamente

porque reconhece as limitações do seu discurso, Aaron integra na narrativa uma

segunda ordem de factores que influenciam o seu trabalho: os diferentes testemunhos

e versões a que tem acesso, que dialogam com a visão do próprio narrador e

permitem chegar a um texto de certo modo coerente, ainda que impregnado de

arestas, de sobreposições não totalmente conseguidas que tornam visível o carácter

palimpséstico desta recriação. De novo, Le plaisir du texte é elucidativo:

Texte veut dire Tissu; (...) nous accentuons maintenant, dans le tissu, l'idée generative que le texte se fait, se travaille à travers un entrelacs perpétuel; perdu dans ce tissu - cette texture - le sujet s'y défait, telle une araignée qui se dissoudrait elle-même dans les sécrétions constructives de sa toile. Si nous aimions les néologismes, nous pourrions définir la théorie du texte comme une hyphologie (hyphos, c'est le tissu et la toile d'araignée).27

É no entrelaçar contínuo e perpétuo de diferentes discursos e ideologias que o

texto (a teia) se gera, pelo que o acto de escrita perde valor enquanto projecto

individual. Daí que Barthes considere que o sujeito que escreve se dissolva na rede de

textos e contextos que tece. De facto, decorre desta caracterização do acto de escrita

a intertextualidade implícita em qualquer hipótese de conhecimento ou de

Barthes, Le plaisir du texte, p. 59. Barthes, Le plaisir du texte, pp. 100-101.

124

representação, pelo que o produtor do texto perde o estatuto de autoridade suprema:

ela tem que ser partilhada com o conjunto de vozes latentes no seu discurso ou

convidadas a se integrarem na narrativa.

Esta temática é, aliás, explorada na prosa de Auster desde "The Book of

Memory", obra em que o narrador retrata a solidão na escrita como o momento

máximo de comunhão com o tecido de discursos que tem dentro de si:

Your language, your memories, even your sense of isolation - every thought in your head has been born from your connection with others. This is what I was trying to explore in "The Book of Memory", to examine both sides of the word 'solitude'. I felt as though I were looking down to the bottom of myself, and what I found there was more than just myself -1 found the world. That's why that book is filled with so many references and quotations, in order to pay homage to all the others inside me. On the one hand, it's a work about being alone; on the other hand, it's about community. That book has dozens of authors, and I wanted them all to speak through me. In the final analysis, "The Book of Memory" is a collective work.28

Apesar de (ou talvez devido a) todo o seu pendor introspectivo, "The Book

of Memory" é, assim, considerado pelo seu autor como um trabalho colectivo em que

cede a voz ao mundo que está no âmago de si próprio. A sua concepção de autoria

está, deste modo, distante das definições claras e explícitas do produtor no romance

tradicional, baseando-se, antes, na defesa da necessidade de fragmentação da posição

autorial.

Ao nível intradiegético, a situação de Aaron como "autor" de Leviathan

assenta também na partilha do poder reconstrutivo da escrita com as vozes que falam

dentro de e paralelamente a ele, espelhando de forma ambígua a posição autorial do

próprio Paul Auster, envolvido numa teia de relações e influências que não pode

(nem quer) deixar de fora do seu romance.

Auster, "Interview with Larry McCaffery and Sinda Gregory", The Red Notebook, p. 144.

125

Daí que este se construa com base numa estrutura de níveis de narração que

se ecoam mutuamente, numa cadeia estratificada de narradores e histórias, chamando

a atenção para o facto de que a actividade de escrita está sempre dependente de

outros níveis de narração que a precedem e influencia necessariamente os que a

seguem: partindo do nível metaliterário do autor, Auster escreve um livro sobre um

escritor (Aaron) que escreve um livro sobre a vida de um escritor-terrorista (Sachs),

que lhe narrou a história do seu assassinato de um novo escritor-terrorista

(Dimaggio), o qual, por sua vez, escreveu uma tese sobre um escritor-anarquista

(Alexander Berkman). Os diferentes produtores estão, assim, dependentes da

recepção do discurso de outrem, reconstruindo-o e assimilando-o nos seus próprios

discursos, cuja originalidade só pode ser relativizada. A sua escrita é influenciada pela

sua história pessoal e cultural, e daí a afirmação de Patrícia Waugh:

... 'authors' do not simply 'invent' novels. 'Authors' work through linguistic, artistic and cultural conventions. They are themselves 'invented' by readers who are 'authors' working through linguistic, artistic and cultural conventions, and so on.29

Cada narrador funciona, deste modo, como o representante de uma visão do

mundo, contextualizada por convenções e ideologias específicas, e o receptor de

cada um destes discursos torna-se, ele próprio, construtor de uma história que nunca

pode ser idêntica à que leu ou ouviu. Os níveis de produção e recepção confundem-

se, e a narrativa principal promove o diálogo entre discursos. Daí as constantes

contradições dos testemunhos das personagens-escritores presentes em Leviathan,

que Aaron tenta integrar dentro da sua própria estrutura interpretativa, apesar de nem

por isso as esconder. A sua narrativa conforma-se, deste modo, à concepção

Waugh, Metafiction, p.134.

126

polifónica e dialógica que Bakhtin tem do romance: "The novel is the expression of a

Galilean perception of language, one that denies the absolutism of a single and

unitary language - that is, that refuses to acknowledge its own language as the sole

verbal and semantic center of the ideological world."30

Apesar de todo o cariz realista deste romance, ele consegue, assim, ser

altamente metaficcional, ao pôr a descoberto, por intermédio desta estrutura de níveis

ontológicos que se espelham reciprocamente, o carácter "ficcional" (construído) e

intertextual de todo o conhecimento e toda a representação e, consequentemente, a

necessidade de fragmentar a posição autorial característica do romance realista

tradicional ou mesmo do romance moderno. Advoga-se, por isso, a exposição no

romance da personagem-autor que é, antes de mais, receptor, leitor de histórias que

vai depois integrar na sua. O papel da recepção torna-se, deste modo, fundamental

para a produção literária, uma vez que, como diz George Steiner, "all readings are

misreadings"31 Na riqueza profunda de criação de sentidos que todo o acto de

leitura implica, o escritor encontra a matéria-base para contar uma nova história,

ainda que o seu propósito consciente seja, como acontece com Aaron, ser fiel à

versão que conhece. Baudrillard explica a inevitabilidade deste processo em L'Autre

par Lui-Même:

... les signes, pour en revenir à eux, s'ils ont à l'origine une destination, ont aussi un destin. Et le destin des signes est d'être arrachés à leur destination, dévoyés, déplacés, dérivés, récupérés, séduits. C'est leur destin dans le sens où c'est toujours ce qui leur arrive, c'est notre destin dans le sens où c'est toujours ce qui nous arrive.32

Bakhtin, The Dialogic Imagination, p. 366. 31 Steiner, Real Presences, p. 126. 32 Baudrillard, L'Autre par Lui-Même, p. 70.

127

O destino de cada acto de fala (ou, por extensão, de qualquer acto

comunicativo) é, pois, ser desviado do significado que lhe foi dado pelo seu

produtor, ser lido de uma forma incorrecta pelo receptor e ser depois recriado,

seduzido pelo discurso deste. As limitações da linguagem, que exasperam Aaron,

advêm deste facto, mas a riqueza da sua narrativa está também dependente dele: o

universo do seu discurso está povoado por uma cadeia de processos de leituras

erróneas e actos de escrita naturalmente subjectivos que ultrapassa os diferentes

níveis diegéticos e é prolongada indefinidamente por cada leitura individual. A

entrega do livro ao detective Harris marca, no universo diegético, o início deste

percurso, que o próprio Aaron explica ao detective no seu primeiro encontro:

Because my books are published, I said. People read them, and I don't have any idea who they are. Without even knowing it, I enter the life of strangers, and for as long as they have my book in their hands, my words are the only reality that exists for them. (...) A book is a mysterious object, I said, and once it floats out into the world, anything can happen. All kinds of mischief can be caused, and there's not a damned thing you can do about it. For better or worse, it's completely out of your control. (4)

Um livro é um objecto misterioso, quer para o seu autor, quer para os seus

leitores: o primeiro não conhece (nem pode conhecer) a sua origem, a totalidade das

influências, ideologias e motivações que o levaram à escrita, e as diferentes leituras

que poderá ter; os últimos desconhecem os propósitos e a identidade do autor, pelo

que constroem a sua própria história a partir das suas experiências e influências

individuais. "Chacun tente de déchiffrer son propre chaos dans celui des autres, dans

cet épais fourré de confusion", afirma Paul Auster,33 e é isto que a leitura da obra

parece provar. No fundo, Auster equaciona os paradoxos, os poderes e as limitações

Cortanze, "Le Monde est dans ma Tête... ", Magazine Littéraire, p. 20.

128

inerentes à fruição do prazer do texto, concebido por Roland Barthes como a vitória

de Babel, do diálogo linguístico:

Fiction d'individu (...) qui mélangerait tous les langages, fussent-ils réputés incompatibles; qui supporterait, muet, toutes les accusations d'illogisme, d'infidélité; qui resterait impassible devant le ironie socratique (...) et la terreur légale (...) Or ce contre-héros existe: c'est le lecteur de texte, dans le moment où il prend son plaisir. Alors le vieux mythe biblique se retourne, la confusion des langues n'est plus une punition, le sujet accède à la jouissance par la cohabitation des langages, qui travaillent côte à côte: le texte de plaisir, c'est Babel heureuse.34

A confusão de discursos que dialogam nesta Babel feliz implica, ao nível da

estrutura narrativa, a utilização de modos de focalização capazes de a integrar: antes

de ser escritor, Aaron é um leitor de textos (o relato de Sachs, as suas obras

ensaísticas e literárias, os testemunhos das outras personagens, as mensagens do

"Phantom of Liberty", entre outros) que vai assimilar, modificar e reestruturar no seu

próprio discurso, mas a sua abertura ao prazer dos textos só se pode tornar visível

através da multiplicação de pontos de vista no espaço do seu trabalho de escrita. Daí

a necessidade de englobar na sua narrativa as versões de outras personagens, e

principalmente de Sachs, que iluminam, contrariam ou complementam a história que

conta, expondo a sua intertextualidade.

Em A Poetics of Postmodernism, Linda Hutcheon explica a importância dos

modos de focalização na construção dos romances metaficcionais historiográficos:

... historiographie metafictions appear to privilege two modes of narration, both of which problematize the entire notion of subjectivity: multiple points of view (...) or an overtly controlling narrator. In neither, however, do we find a subject confident of his/her ability to know the past with any certainty.35

Em Leviathan, Paul Auster consegue associar estes dois modos de

focalização narrativa, o que lhe permite integrar toda a questionação do

34 Barthes, Le plaisir du texte, pp. 9-10. 35 Hutcheon, A Poetics of Postmodernism, p. 117.

129

conhecimento e da subjectividade sem abandonar totalmente os padrões literários

tradicionais. O processo de leitura não sofre, assim, disrupções violentas, mas nem

por isso se representa o narrador como figura omnisciente ou testemunha de

confiança. Surge, antes, um narrador abertamente manipulador da história que relata,

o qual, contudo, dá espaço à multiplicação de pontos de vista dentro da sua narrativa,

ainda que os estruture e lhes dê sentido de acordo com os seus próprios intuitos. O

autor joga constantemente entre uma focalização centralizadora e um conjunto de

perspectivas múltiplas: "It [historiographie metafiction] uses and abuses those

intertextual echoes, inscribing their powerful allusions and then subverting that power

through irony."36 Ao nível diegético, esta ironia subjaz à consciência do narrador de

que toda a sua narrativa pode ser falsa, uma reconstrução errónea dos discursos que

conhece. Extradiegeticamente, cabe ao leitor descobrir as intenções subversivas do

autor ao pôr a claro os ecos a partir dos quais se constrói uma obra de ficção e, num

sentido mais lato, qualquer tentativa de representação.

Escreve McHale:

The author, in short, is another tool for the exploration and expoitation of ontology. S/he functions at two theoretically distinct levels of ontological structure: as the vehicle of autobiographical fact within the projected fictional world; and as the maker of that world, visibly occupying an ontological level superior to it.37

O jogo de focalizações existente na obra é complementado pela exploração de

um outro jogo de escrita e identidade, central desde o início à prosa de Auster: o

"ghost writing", que põe a descoberto a ambiguidade das relações intertextuais e das

Hutcheon, A Poetics of Postmodernism, p. 118. McHale, Postmodernist Fiction, p. 202.

130

trocas simbióticas entre as personagens principais do romance. Roy C. Caldwell

explica os significados que este termo pode ter:

Comment traduire l'expression? L'écriture de fantôme? Oui et non. Le dictionnaire français-américain dit plutôt pour ghost writer "nègre" et offre l'exemple: "les nègres d'Alexandre Dumas". Mais Alexandre Dumas savait écrire; ses nègres étaient des sous-romanciers, des gens qui avaient la responsabilité de préparer certains plats sous la supervision du chef. Ghost writing, dans la tradition américaine, n'est pas du tout cela. C'est quand on loue la plume d'un professionnel, quand quelqu'un écrit pour un autre, un autre qui n'ait ni le temps ni la technique pour écrire lui-même. (...) Le ghost writer n'écrit pas n'importe quoi; il fabrique de fausses autobiographies. Il est l'instrument invisible par lequel une vie apparaît en écriture.38

No espaço ficcional de Leviathan, os dois sentidos do termo são de reter: a

colagem ao título da obra inacabada de Sachs mostra desde logo que Aaron não nega

a herança da escrita do amigo, escrevendo de acordo com directrizes ficcionais deste

(sentido francês); por outro lado, o trabalho de Aaron tem em vista a reconstrução

da identidade de Sachs pela escrita, o que aponta para o sentido americano do termo.

A ambiguidade de significados e da autoria deste tipo de escrita é, assim, um dos

pontos a explorar na obra, no seguimento das ideias de Auster sobre a ficção e a

identidade. Uma nova referência ao trabalho de tradução e ao que ele envolve para o

autor pode, neste âmbito, ser útil. Em "Autobiographie d'un Autre", Pierre-Yves

Pétillon refere-se do seguinte modo à concepção de Auster do acto de tradução:

Traduire, c'est entrer par effraction dans la solitude d'un autre, et, du coup, ce n'est plus une solitude - ou c'est une solitude palimpseste, hantée de voix. Le traducteur est un écrivain-fantôme, qui, doublant la voix des autres, se dédouble lui-même, et découvre à quel point son propre "je" est un autre, traduit d'une langue étrangère.39

Como a tradução, também a escrita "original" é um encontro com uma

solidão-palimpsesto, em que convivem outras vozes que não a do autor. Mais ainda,

na medida em que este trabalho tenta, como no caso de Peter Aaron, descrever a vida

Caldwell, "New York Trilogy...", L'Œuvre de Paul Auster, p. 83. Pierre-Yves Pétillon, "Autobiographie d'un Autre", Magazine Littéraire, p. 42.

131

de outrem, o autor tem necessariamente que desdobrar a sua voz, dando lugar à

identidade que constrói, e descobrindo-se neste processo a si próprio através do

outro. Daí que também Pétillon designe o tradutor como escritor-fantasma: como no

caso do autor normal, também ele paira sobre uma outra vida, cujo discurso integra

na sua solidão, pelo que tanto o acto de tradução como o de escrita correspondem a

trabalhos especulares de reconstrução de dois discursos e duas identidades.

Curiosamente, também Philippe Lejeune converge para este tipo de

designação ao analisar a importância da ficção na exploração do "espaço

autobiográfico" de cada autor. Como ele afirma, mais do que no género literário da

autobiografia propriamente dita, é no vasto campo de significados abertos pela obra

romanesca de um autor que os seus elementos autobiográficos podem ser mais

extensamente tratados e descobertos:

Le lecteur est ainsi invité à lire les romans non seulement comme des fictions renvoyant à une vérité de la "nature humaine", mais aussi comme des fantasmes révélateurs d'un individu. J'appellerai cette forme indirecte du pacte autobiographique le pacte fantasmatique.40

O "pacto fantasmático" a que Lejeune se refere aponta para um segundo

aspecto explorado por Auster no campo do "ghost writing": a presença do autor na

representação que leva a cabo das suas personagens, instrumentalizando-as num

trabalho reconstrutivo que é antes de mais autobiográfico. No caso de Leviathan,

esta situação é, ao nível intradiegético, ainda mais complicada pela especificidade da

narrativa, que pretende ser um testemunho tão fiel quanto possível, apesar da

consciência de Aaron de que o resultado será necessariamente uma ficção. De facto,

Lejeune, Le pacte autobiographique, p. 42, sublinhado meu.

132

não pode mesmo deixar de o ser, uma vez que serve, ainda que inconscientemente,

interesses subjectivos alheios à história do seu protagonista.

A interpretação que A. faz de Pinóquio em "The Book of Memory" põe a

claro o tipo de motivações envoltas neste "pacto fantasmático":

By plunging his marionette into the darkness of the shark, Collodi is telling us, he is dipping his pen into the darkness of his inkwell. Pinocchio, after all, is only made of wood. Collodi is using him as the instrument (literally, the pen) to write the story of himself. (...) No less than Proust's novel in search of lost time, his story is a search for his lost childhood.41

Sachs é, no universo ontológico de Leviathan, bem mais do que um boneco

de madeira, e daí o carácter intrincado do "ghost writing" presente no mundo do

romance. Contudo, nem por isso deixa de servir de instrumento para a escrita de uma

história-fantasma nas entrelinhas da sua própria história, propiciada pela leitura que o

narrador sugere da sua relação com Sachs como um jogo de duplos. A

instrumentalização do protagonista pelo narrador (e vice versa) ao nível

intradiegético permite, no espaço extradiegético, 1er o universo romanesco como um

campo aberto para a escrita fantasmática do autor. A preocupação de Auster com a

ambiguidade inerente ao processo de tradução e autoria, quer na teoria, quer na

prática ficcional, vêm apoiar esta concepção da produção literária como esforço

latente de escrita da história pessoal do autor, do "livro das suas obsessões".

Daí a importância dada por ele, em Leviathan como em The Invention of

Solitude ou The New York Trilogy, à rede intertextual que envolve cada livro e à

questão da descoberta da instância autorial "real" dos seus textos. Roy C. Caldwell

41 Auster, The Invention of Solitude, p. 163.

133

expõe originalmente a pergunta a que The New York Trilogy tenta responder, e que

pode também ser considerada como central à estrutura das outras obras:

La Trilogie appartient bien au genre du roman policier, car il est batî sur une énigme. Whodunnit, comme disent les Américains. En effet, qui l'a fait? Pas le crime mais le texte. L'énigme ici n'est pas l'identité du criminel, mais celle de l'écrivain. L'homologie remarquée par Jim Van Dine est littéralement réalisée ici: dans le roman policier, dit-il, l'auteur est au lecteur ce que le coupable est au détective; le lecteur suit les traces de l'auteur comme le détective poursuit le coupable. Aux lecteurs réels donc de jouer aux détectives maintenant. Qui est le coupable, le ghost writer derrière ce narrateur [de "The Locked Room" et de The Invention of Solitude]?42

A pergunta é, de facto, essencial para a compreensão da obra, e daí a criação

de uma personagem, "Paul Auster", que expõe ao nível narrativo este tipo de dúvidas

(e implica o autor neste jogo de sombras fantasmáticas) através de uma interpretação

polémica da autoria de D. Quixote de la Mancha. Quem escreveu esta obra? Ben-

Engeli, o autor árabe cujo texto Cervantes supostamente recria; Cervantes, o autor

da capa do livro que usa o fantasma do texto árabe para dar credibilidade à sua

narrativa; ou, como o Paul Auster-personagem parece acreditar, o próprio D.

Quixote, que manipula Cervantes e as outras personagens para se recriar pela escrita?

O processo interpretativo proposto por esta personagem (pelo autor também?) serve

de modelo para uma leitura semelhante de The New York Trilogy, mas, continua

Caldwell, as respostas para esta pergunta são, ao nível da recepção do romance,

múltiplas e ambíguas: "En plein postmoderne, les solutions classiques et définitives

du roman policier restent-elles possibles?"43

Mais do que descobrir a solução final, o trabalho que o autor propõe ao leitor

é, assim, encontrar pistas para a exploração da questão da autoria na ficção, e o

Caldwell, "New York Trilogy..:', L'Œuvre de Paul Auster, p. 84. Caldwell, "New York Trilogy... ", L'Œuvre de Paul Auster, p. 85.

134

desdobramento de possíveis autores acaba por apontar para a indefinição própria

desta condição na cultura contemporânea. Daí o jogo de escritores-fantasmas visível

em Leviathan, que não torna possível a resposta segura à pergunta de Caldwell.

Apesar de, à partida, parecer ser Aaron quem inequivocamente ocupa, no mundo do

romance, a posição autorial, as pistas que são lançadas através da sua narrativa

possibilitam outras leituras, outras hipóteses de definição da entidade produtora do

texto.

Quem faz, então, o texto que constitui Leviathan? Aaron parece narrar, de

facto, uma história construída por ele com base nos elementos que conhece da

biografia de Sachs. Neste sentido, ele é fonte do material narrativo, seu editor e

intérprete. Enquanto personagem participante na história que conta, Aaron é,

contudo, antes de mais um "ghost writer" que constrói uma identidade outra pela

escrita, ao mesmo tempo que ganha consistência pela troca simbiótica com a imagem

que cria do amigo. A vários níveis ele é, assim, "the place where everything begins"

(51), expressão que novamente remete para "The Locked Room" e para a relação

com contornos paralelos entre Fanshawe e o amigo que narra a sua história. Este

explica, aquando da descoberta de todo o material literário de Fanshawe que tem que

editar, a dependência da sua identidade (e da sua escrita) da herança que o amigo lhe

deixara:

Given the strain of reconciling myself to the project, it was probably necessary for me to equate Fanshawe's success with my own. I had stumbled onto a cause, a thing that justified me and made me feel important, and the more fully I disappeared into my ambitions for Fanshawe, the more sharply I came into focus for myself.44

Auster, The New York Trilogy, p. 273.

135

O caso de Aaron parece ser semelhante: se a partilha do segredo de Sachs o

leva a uma progressiva anulação de si próprio na incerteza do destino do amigo, a

sua revelação pela escrita corresponde a um processo de auto-consciencialização, em

que a imagem da sua identidade surge reflectida na descrição que apresenta da

história do protagonista. Os motivos que o levam à escrita não se restringem, como

deixa transparecer no final do romance, a um sentimento de dívida em relação a

Sachs: pelo contrário, a entrega do livro ao detective Harris é o momento da sua

afirmação como autor, cujo desejo está latente em toda a narrativa, ainda que seja

feita à custa do sacrifício do texto que Sachs lhe narrou.

Na sequência do passo de "The Locked Room" acima citado, Arthur

Saltzman afirma:

We are moved to consider the possibility that, despite his stronger sense of wordly footing and dimension (Aaron has family, occupation, friends), the narrator of Leviathan has entered the same secretarial purgatory of The New York Trilogy and turned into another ghost writer commemorating, and becoming, a quarry, an absence.45

De facto, e na medida em que o objecto das suas buscas (o sentido de

continuidade para a vida de Sachs e, por extensão, para a sua) é inacessível à

compreensão humana na sua totalidade, aquilo que Aaron comemora e em que se

transforma é uma ausência, um enigma inatingível. Isto não significa, contudo, que

estas buscas sejam infrutíferas: se não consegue transportar para a escrita a

identidade do amigo (e a sua), a narrativa permite-lhe reconstituir uma imagem

parcial mas enriquecida de sentidos de Sachs e estruturar através dela uma percepção

de si próprio. Mais do que uma ou várias ausências, o que Aaron comemora é o

45 Saltzman, "Leviathan: Post Hoc Harmonies", Beyond the Red Notebook, p. 166.

136

surgimento no papel de uma ou mais presenças interligadas e mutuamente

subvertidas.

O livro que escreve é, deste modo, uma forma de "ghost writing", uma

paródia do livro que se perdeu no silêncio, o Leviathan que Sachs deixa incompleto

no quarto em que mais tarde Aaron o reescreve: "Mais de ces feuillets déchirés, de ce

récit inachevé naîtra un autre livre palimpseste, celui qu'écrit le narrateur, et qui vient

faire parler l'absence", afirma Charles Grandjeat.46 A narrativa de Aaron corresponde

a uma tentativa de trazer para o discurso o silêncio do livro inacabado de Sachs: um

trabalho (só em parte consciente) de retoma da escrita e da vida do protagonista,

através do qual se estruturam dois percursos de vida (o do narrador e o do seu

amigo) e dois textos (o da visão subjectiva da imagem de Sachs e o palimpsesto

deste, no qual Aaron descobre a imagem de si próprio).

Mas Aaron não é o único "ghost writer" presente em Leviathan. Se é verdade

que toda a sua narrativa está dependente da história e da ficção de Sachs, a verdade é

que este não é inocente no processo. Desde o início do texto, Sachs é caracterizado

como um escritor manipulador, e a versão que Aaron apresenta parece não estar

isenta da influência da sua escrita:

We learn from a particularly dilligent FBI agent who has been scouring used bookstores that Sachs has been surreptitiously signing copies of Aaron's books, which means that just as Aaron's intentions cloud his rendition of Sachs's life, the dead man's fingerprints are all over our narrator's work. We likewise recall Aaron's suspicion (again, City of Glass provides the model for this) of whatever findings may have arisen from watching a man who may have known he had been tailed... much less the dictated details of an authorized biography.47

Grandjeat, "Le hasard et la nécessité...", L'Œuvre de PaulAuster, p. 159. Saltzman, "Leviathan: Post Hoc Harmonies", Beyond the Red Notebook, p. 170.

137

De facto, as impressões digitais de Sachs cercam toda a obra de Aaron, e não

apenas os seus romances anteriores, uma vez que a sua versão se baseia, antes de

mais, no relato extenso, pormenorizado, mas mesmo assim incompleto, parcial e

subjectivo que o protagonista lhe faz aquando do seu último encontro em Vermont:

"In between, he talked his head off. He talked so much, it almost scared me. But that

was when I heard his story, and given how determined he was to tell it, I don't think

he left anything out" (147). Sachs lega ao amigo, neste encontro, a herança do

conhecimento dos factos como ele os percepciona. A sua prontidão para falar

demonstra o grau de preocupação que tinha com a necessidade de deixar uma

testemunha capaz de transmitir a sua versão dos acontecimentos. Se diz toda a

verdade (o que já em si é dúbio após o confronto com os relatos das outras

personagens), di-la também de acordo com o seu universo de interesses, sentimentos

e ideologias.

A questão que se levanta é, pois, a do nível de autonomia do discurso de

Aaron. Embora a sua narrativa acabe por mostrar intenções subjectivas distantes da

preocupação com a desculpabilização de (e a homenagem a) Sachs, não é, contudo,

de menosprezar a manipulação que o próprio Sachs faz dos factos que relata a Aaron

e das expectativas que expressa em relação a ele. O narrador faz uma recriação

pessoal dos sentidos do trabalho do protagonista como "Phantom of Liberty"; Sachs

usa o amigo como instrumento de escrita e criação de significados para uma vida

perdida: será, então, Aaron o Pinóquio insuflado de vida por um Gepetto que já

adivinha a sua fragmentação e encontra nele uma hipótese de reunificação?

138

Em "The Locked Room", Fanshawe arquitecta a sua morte e deixa ao

narrador a incumbência de editar a sua obra, perante a qual este se considera "no

more than an invisible instrument".48 Esta função está presente durante todo o

período do desaparecimento de Fanshawe, e é de novo solicitada pelo protagonista

no momento do seu suicídio. Desta vez, todavia, o narrador tem a hipótese de ser ele

o manipulador, pelo que destrói a única obra que Fanshawe não renega, reescrevendo

a história deste de acordo com objectivos pessoais e uma perspectiva subjectiva. A

voz do amigo não deixa, no entanto, de ser sentida na sua narrativa, e daí a

constatação de que a sua própria existência se funda na sua relação com ele. O

narrador subverte o espírito da herança de Fanshawe, mas este imprime também as

suas impressões digitais no trabalho do amigo.

A relação de Aaron e Sachs com o trabalho de escrita de Leviathan retoma a

questão da ambiguidade da autoria de "The Locked Room", uma vez que, também

aqui, ambos se dedicam a um trabalho de "ghost writing" que é mutuamente

subvertido. Aaron não é, assim, o único escritor activo na obra: apesar das indicações

em contrário, Sachs nunca abandona a sua actividade de escrita, como provam as

suas constantes recriações dos acontecimentos em termos de uma "música do acaso".

O seu abandono da ficção é parcial, pois refere-se apenas à elaboração de romances

propriamente ditos, ficando o caminho aberto para outras formas ficcionais, que o

protagonista reconhece como tal. O caso da descoberta de Aaron das infidelidades

fictícias de Sachs é um bom exemplo.

'I tell her stories. It's part of a game we play. I make up stories about my imaginary conquests, and Fanny listens. It excites her. Words have power, after all....

48 Paul Auster, The New York Trilogy, p. 263.

139

... You thought I'd stopped writing fiction, but I'm still at it. My audience is down to just one person now, but she's the one who really counts. ' (95)

Após o acidente, que Sachs lê como o sinal de uma necessidade imperativa de

mudança e renascimento (outra ficção), ele decide-se pelo abandono de qualquer

pretensão literária, confirmando as intenções entretanto subvertidas que assumira

depois da publicação de The New Colossus, a escolha da acção directa em vez do que

considera ser uma vida de sombra:

... I don't want to spend the rest of my life rolling pieces of blank paper into a typewriter. I want to stand up from my desk and do something. The days of being a shadow are over. I've got to step into the real world now and do something.' (122)

Toda a descrição do seu percurso aponta, contudo, para a sua incapacidade

de abandonar esta vida na sombra inerente à escrita. Mais ainda, uma vez que a

primeira referência a esta sua condição se faz precisamente no âmbito da sua

assinatura falsa das obras de Aaron, aquando do primeiro encontro deste com os

detectives, o seu trabalho de escrita acaba por ser conotado com formas de "ghost

writing": "Just last year, I continued, I discovered that someone had been

impersonating me - answering letters in my name, walking into bookstores and

autographing my books, hovering like some malignant shadow around the edges of

my life" (4). Sachs, de facto, rapidamente se transforma numa sombra

fantasmagórica, por um lado, a fuga decorrente do assassinato de Dimaggio torna-o

uma figura ausente de que restam apenas "a few ghostlike facts" (143); por outro

lado, o trabalho-fantasma da escrita nunca chega a ser totalmente abandonado, já que

é precisamente devido ao seu embrenhamento na elaboração do romance inacabado

Leviathan que ele encontra Dimaggio e se torna um assassino.

140

O próprio contacto com a história deste terrorista, que marca a sua viragem

para a acção política radical, não o impede de continuar ligado à ficção. Pelo

contrário, a sua escolha da subversão do "Phantom of Liberty" torna-se mais uma

forma ficcional: cria uma personagem alegórica ("a kind of underground folk hero" -

217) que vai buscar toda a retórica da cultura americana e a integra num espírito

subversivo - mais uma actividade de "ghost writing".

No entanto, a sua última ficção, depois de The New Colossus e Leviathan (a

obra que deixa inacabada), das histórias contadas a Fanny e da "fairy tale" da

reinvenção da vida na Califórnia, da criação de sentidos para a queda e do "Phantom

of Liberty, é Leviathan, o livro que escreve através de Aaron. As referências

explícitas que o narrador faz à participação do amigo como fonte principal de

informação para a sua narrativa são uma primeira e fundamental pista neste sentido,

mas igualmente importante é a forma como expõe as implicações da sua ocupação do

local de trabalho de Sachs em Vermont:

If anything, it was a source of pleasure to me. I enjoyed having my friend close to me again, and I sensed that if he had known I was occupying his old space, he would have been glad. Sachs was a welcoming ghost, and he'd left behind no threats or evil spirits in his shack. He wanted me to be there, I felt... (218-219)

Mesmo antes da revelação da sua aventura como "Phantom of Liberty",

Sachs é um fantasma hospitaleiro que não deixa de marcar presença nas entrelinhas

do romance que Aaron escrevia na altura. Após o relato da sua história, o

protagonista deixa na atmosfera do escritório não uma ameaça mas a insinuação de

um desejo, não espíritos do mal mas o sussurro de um discurso a que Aaron se vê

obrigado a dar voz quando o amigo morre. Os falsos autógrafos são, assim, apenas o

141

sinal mais visível de que o livro que Aaron entrega ao detective constitui um trabalho

feito pelo menos a duas mãos. "I mention these things because that is where I am

now - sitting at a green table in the middle of the largest room, holding a pen in my

right hand" (9). Aaron segura a caneta, mas a sua mão é manipulada pelo espírito e

pelas intenções de Sachs, que envolvem toda a sala - e o quarto fechado na sua

mente.

Naturalmente de fora desta ambiguidade autorial fica Paul Auster, o autor

"real" da obra, mas dado que, em "City of Glass", é uma personagem com o seu

nome, no seu ambiente familiar e com a sua profissão quem põe em evidência a

possibilidade de questionação da autoria em D. Quixote - remetendo para a situação

da própria obra de que faz parte, The New York Trilogy -, torna-se viável (desejável)

uma leitura subversiva do seu papel na obra. No meio de tantos "ghost writers", até

que ponto não é ele também manipulado por uma ou várias vozes que se estruturam

nas entrelinhas do seu discurso? E, inversamente, em que medida são os escritores

intradiegéticos marionetas que, como Collodi, manipula na procura da recriação da

sua própria vida? O autor transforma-se, assim, numa figura anfíbia e ambígua, o

mistério de um leviatã enigmático cujo papel a narrativa explora mas não consegue

definir totalmente.

Toda a obra de Auster (os ensaios, as memórias, as entrevistas, os

argumentos, os romances) indicia a possibilidade ou é mesmo incentivo para este tipo

de leitura intertextual, manipuladora e autobiográfica do seu trabalho de escrita. O

leitor torna-se, assim, uma parte constitutiva do que Philippe Lejeune designa como

"pacto autobiográfico", pelo qual aceita tacitamente que a identidade do autor se

142

revela na globalidade da sua escrita, onde o "livro das suas obsessões" pode ser mais

produtivamente explorado. A realização deste contrato não impede, contudo, que a

interpretação do leitor seja necessariamente distante da do autor, o que implica que

também ele pode e deve ser equacionado neste universo de "ghost writers".

3. Consequências de espelhos: a linguagem, a América e

o papel da ficção Écrire ne consiste jamais à perfectionner qui a cours, à le rendre plus pur. Écrire commence seulement quand écrire est l'approche de ce point où rien ne se révèle, où, au sein de la dissimulation, parler n'est encore que l'ombre de la parole, langage qui n'est encore que son image, langage imaginaire et langage de l'imaginaire, celui que persone ne parle, murmure de l'incessant et de l'interminable auquel il faut imposer silence, si l'on veut, enfin, se faire entendre.49

No espaço diegético de Leviathan, o tratamento dado à ambiguidade autorial

paraleliza a exploração do confronto entre duas percepções distintas e contraditórias

de linguagem, representadas por cada uma das personagens principais. De facto, num

livro em que a escrita parece estar no centro das preocupações, o tratamento da

questão da linguagem torna-se indispensável, e acaba por esclarecer questões

fundamentais sobre a posição do autor em relação a esta temática.

Desde o primeiro encontro de Aaron e Sachs que a narrativa marca a

distância entre as suas perspectivações da linguagem e da literatura. É o próprio

Sachs quem torna clara a diferença de posições dos dois escritores:

... I ran across your piece on Hugo Ball's diaries. An excellent little article, I thought, deft and nicely argued, an admirable response to the issues at stake. I didn't agree with all your points, but you made your case well, and I respected the seriousness of your position. This guy believes in art too much I said to myself, but at least he knows where he stands and has the wit to recognize that other views are possible. Then, three or four days after that, a magazine arrived in the mail, and the first thing I opened to was a story with your name on it. The Secret Alphabet, the one about the student who keeps finding messages written on the walls of buildings. I loved it. (13-14)

Blanchot, L'espace littéraire, p. 48.

143

As coordenadas estão lançadas para o diálogo entre estas duas posições:

Aaron parece ser o que mais acredita no poder das palavras e da arte para expressar e

agir sobre o real, enquanto Sachs se mostra mais céptico em relação a este poder. Por

outro lado, ambos se mostram pelo menos receptivos à possibilidade de uma leitura

do universo empírico como uma obra de arte imersa em significados a destrinçar,

como prova o interesse de Sachs pelo conto adequadamente intitulado The Secret

Alphabet, da autoria de Aaron. De facto, tanto um como o outro se embrenham neste

tipo de leitura, cujo espírito está por trás da elaboração de The New Colossus, como

o narrador explica no seu relato sobre a obra, mas também do próprio Leviathan de

Aaron, que nasce da herança dos dois livros de Sachs (sendo o segundo, o Leviathan

que não consegue acabar).

O próprio facto de Sachs não ter terminado o seu segundo romance e de se

mostrar mesmo arrependido de ter publicado o The New Colossus mostra, contudo,

que a importância que dá à literatura (e nomeadamente aos seus romances) é muito

diferente da que lhe vota Aaron, que afirma: "I always take novels seriously" (19).

Durante todo o seu relato, Aaron descreve como incentivou o amigo a regressar à

escrita, e principalmente à ficção, como forma de se encontrar e criar sentidos para a

sua existência, mas este não consegue deixar a convicção de que este tipo de trabalho

na sombra não se coaduna com os imperativos de acção impostos pela sua

consciência: "Inventing stories was a sham, he said" (48). Estranhamente, é Sachs

quem, apesar do seu menosprezo relativamente ao trabalho de escrita, consegue uma

144

relação mais directa e imediatista com a linguagem que utiliza na sua escrita, e daí

toda a admiração que o narrador sente pelo seu trabalho:

... the words always seemed to be there for him, as if he had found a secret passageway that ran straight from his head to the tips of his fingers. 'Typing for Dollars,' he sometimes called it, but that was only because he couldn't resist making fun of himself. His work was never less than good, I thought, and more often than not it was brilliant. (...) The smallest word is surrounded by acres of silence for me, and even after I manage to get that word down on the page, it seems to sit there like a mirage, a speck of doubt glimmering in the sand. Language has never been accessible to me in the way that it was for Sachs. (...) Words and things matched up for him, whereas for me they are constantly breaking apart, flying off in a hundred different directions. (49)

A contradição marca as palavras do narrador: Aaron nunca abandona a

ficção, mas considera que as palavras não são pontes de ligação entre o mundo e a

sua mente, e sim entidades estranhas e ambíguas cujo sentido foge sempre, em menor

ou maior grau, ao que lhes propusera dar. O esforço que envolve a sua escrita

caracteriza-se, pois, por tentativas progressivas e árduas de aproximação do seu

objectivo de representação, que nunca chega a ser alcançado na totalidade. Por seu

lado, Sachs, que, pelo contrário, retira qualquer valor ao seu anterior trabalho de

romancista e se decide mesmo a abandonar totalmente a escrita, paradoxalmente

encontra na linguagem o instrumento ideal de ligação entre o mundo das coisas e o

seu universo mental. Os seus ensaios, como os seus romances, não podem, deste

modo, deixar de ser relevantes, uma vez que representam por palavras as ideias e

realidades que ele pretendia transmitir. Daí que Aaron continue as considerações

sobre esta diferença de perspectivações com uma comparação esclarecedora:

The act of writing was remarkably free of pain for him, and when he was working well, he could put words down on the page as fast as he could speak them. It was a curious talent, and because Sachs himself was hardly even aware of it, he seemed to live in a state of perfect innocence. Almost like a child, I sometimes thought, like a prodigious child playing with his toys. (49-50)

145

Como as crianças, que constroem com os brinquedos um mundo que, mais do

que representar, equivale e se sobrepõe ao mundo real, também Sachs, na opinião do

narrador, cria pelas palavras um universo equivalente ao que quer expressar. Decorre

desta relação com a linguagem uma inocência pré-babélica, em que signos e

significados se correspondem sem que o seu produtor se dê conta disso. Talvez seja,

contudo, por esta razão que Sachs decide abandonar a ficção como uma fraude, uma

vez que a realidade a que se refere só indirectamente se relaciona com o universo

empírico, de onde extrai, como diz Lejeune, as "verdades humanas" para construir

depois um mundo autónomo e não coincidente com o primeiro.

Ironicamente, é a sua desconfiança em relação à ficção que o faz considerar o

amigo um escritor inocente. O uso do mesmo tipo de adjectivação não pressupõe,

contudo, a proximidade de sentidos do termo quando aplicado a cada um dos dois

amigos, como a mensagem que Sachs deixa a Aaron aquando do seu último encontro

bem explicita:

The story needed to be told, and better to you than to anyone else. If and when the time comes, you'll know how to tell it to others, you'll make them understand what this business is all about. Your books prove that, and when everything is said and done, you're the only person I can count on. You've gone so much farther than I ever did, Peter. I admire you for your innocence, for the way you've stuck to this one thing for your whole life. My problem was that I could never believe in it. I always wanted something else, but I never knew what it was. Now I know. (236)

Para os dois amigos, a admiração mútua que sentem é equacionada com a

percepção de uma inocência que, no entanto, ganha relevos distintos nos dois casos:

Aaron admira a limpidez da escrita de Sachs; este, por seu lado, presta a sua

homenagem à persistência do amigo, capaz de continuar a acreditar no poder da

ficção para fazer compreender aos seus leitores "what this business is all about", quer

146

se trate do percurso de Sachs, quer de qualquer outro aspecto da "verdade humana".

Daí que, apesar do seu pessimismo pessoal relativamente à ficção, Sachs se decida

por contar toda a história a Aaron, na certeza de que este a saberá reescrever no

momento oportuno e mostrar os sentidos que possa ter.

Ao fazê-lo, Sachs demonstra que tem consciência do poder criador

decorrente da crença inocente de Aaron no seu trabalho de escrita. Pelo contrário, o

seu estado de inocência em relação à elevada capacidade representacional da sua

linguagem, responsável pelo pessimismo que vota à ficção, submerge o protagonista

num remoinho de forças destrutivas, que acaba por o levar à morte. Apesar de pensar

o oposto, Sachs é, de facto, o mais inocente dos dois, pois não consegue admitir a

possibilidade de uma escrita consciente das suas limitações, porém com capacidade

para as ultrapassar (ou, pelo menos, se desviar delas) e recriar significados a partir

dos fragmentos de sentido que consegue transmitir.

A exploração das contradições intrínsecas às perspectivas das duas

personagens principais sobre a linguagem serve, pois, de instrumento de reflexão

sobre as ambiguidades inerentes à representação linguística, ao mesmo tempo que

parece favorecer a aceitação dessas ambiguidades como parte integrante deste

processo indispensável de ordenação do mundo: Sachs não as aceita, e por isso

escolhe um caminho sem saída e sem sentido (a via do terrorismo); Aaron convive

com elas, pelo que consegue, ainda que limitadamente, trazer à luz do dia

justificações para os actos clandestinos do amigo.

O sentimento de desconfiança de Sachs relativamente às potencialidades da

ficção tem, antes de mais, de se ligar a um esforço que norteia toda a sua vida: a

147

fidelidade absoluta à sua consciência, impossível de concretizar através da escrita.

Daí a sua opção pelo activismo político, que o protagonista considera responder a

esta sua necessidade:

... his politics were nevertheless tinged with something I would call a religious quality, as if political engagement were more than a way of confronting problems in the here and now, but a means to personal salvation as well. I believe this is an important point. Sachs's political ideas never fell into any of the conventional categories. He was wary of systems and ideologies, and though he could talk about them with considerable understanding and sophistication, political action for him boiled down to a matter of conscience. (25)

A articulação explícita entre acção política e salvação pessoal põe a claro o

papel dado por Sachs ao seu envolvimento como cidadão participativo enquanto

peça-chave da construção e entendimento da sua própria identidade. Daí a sua

criação do Fantasma da Liberdade e a opção pelo terrorismo, que lhe permitem (ou

assim lhe parece na altura) encontrar-se como sujeito coerente pela primeira vez na

vida:

I felt inspired invigorated cleansed. Almost like a man who had found religion. Like a man who had heard the call. The unfinished business of my life suddenly ceased to matter. I was ready to march out into the wilderness and spread the word ready to begin all over again. (228)

Depois de um longo caminho na procura de formas de redenção e reinvenção

da vida, Sachs parece encontrar na clandestinidade terrorista o princípio unificador de

todo o seu percurso e dos traços da sua identidade, mas a narrativa vem demonstrar

que esta escolha é ainda mais ilusória do que a da escrita. Deste modo, se, como

Dennis Barone afirma, "Leviathan can be read as a consideration of the place of a

sort of 1960s commitment in the 1980s ..."50, o resultado desta consideração parece

ser bastante negativo. A acção política redunda em morte, e o sucesso do esforço do

Barone, "Introduction", Beyond the Red Notebook, p. 20.

148

protagonista no sentido de chamar a atenção para o afastamento da América dos

ideais em que assenta a sua identidade é muito relativo. "The world had changed

around him, and in the present climate of selfishness and intolerance, of moronic,

chest-pounding Americanism, his opinions sounded curiously harsh and moralistic"

(104). O Fantasma da Liberdade não é ignorado, e consegue reacções de apoio e

repúdio em diferentes quadrantes da sociedade americana (chega mesmo a ser

equacionado pelo narrador com as manifestações na Praça de Tienanmen em 1989),

mas pouco consegue mudar, sendo a morte o destino quase esperado que fragmenta

qualquer hipótese de renovação.

A articulação da concepção do Fantasma da Liberdade com um militantismo

de índole religiosa, que pressupõe espalhar a palavra, não de Deus, mas do sonho

americano, na expectativa de um recomeço na selva, de uma Nova Cana, permite,

por outro lado, 1er Leviathan como um comentário à própria ideia de América, real e

ideal, construída e reestruturada ao longo de séculos como estratégia de geração de

consenso. Torna-se incontornável a referência a Sacvan Bercovitch:

The counter-culture swam into my view in a series of abstractions, two by two, like the procession of leviathans at the start of Moby-Dick, as the gates of Ishmael's wonder-world swing open: Freedom versus Tyranny, Opportunity versus Oppression, Progress versus Chaos, and midmost of them all, like a Janus-faced phantom in the air, America, real and ideal.51

O fracasso da acção política na defesa dos ideais simbolizados pela Estátua da

Liberdade pode, então, ser interpretado como uma forma de chamar a atenção para o

carácter ficcional desses próprios ideais, sem qualquer sustentação empírica. Daí a

impossibilidade do sucesso de Sachs: apesar de, à partida, não parecer pretender o

51 Sacvan Bercovitch, The Rites of Assent: Transformations in the Symbolic Construction of America (New York/London: Routledge, 1993), p. 18.

149

impossível - "the Phantom's statements did not ask for the impossible. He simply

wanted America to look after itself and mend its ways. In that sense, there was

something almost Biblical about his exhortations, and after a while he began to sound

less like a political revolutionary than some anguished, soft-spoken prophet" (217) -,

Sachs é o profeta de uma realidade que só existe enquanto construção ideológica

colectiva, um modelo interpretativo, explicativo e normativo continuamente recriado

à medida das necessidades de progresso, estabilidade e controlo de uma sociedade

heterogénea e em movimento.

O próprio Auster parece indicar a viabilidade desta leitura, nomeadamente

numa entrevista dada a Gérard de Cortanze:

— Comme le soutient Peter Aaron dans Leviathan: "L'Amérique a perdu le nord"? — Oui. C'est cela que je veux dire. Et aussi que l'Amérique a perdu son grand et bel

idéal.52

É esta a mensagem que Sachs tenta transmitir através das suas bombas: a

América perdeu os grandes ideais em que baseia toda a sua identidade. Como

entidade construída, inventada a partir desses ideais, a possibilidade do regresso a

uma sociedade ajustada às exigências que eles pressupõem torna-se uma

impossibilidade, uma vez que isso corresponderia ao alcance de uma meta que

funciona como arquétipo intransponível:

Ce qui me fascine, dans ce pays, ce sont ses contradictions. Voici une terre merveilleuse, qui a changé la face du globe, qui a contribué à ce que soit forgée une nouvelle idée de la nation, avec des principes admirables constituant une sorte de modèle pour le reste du monde et qui, dans le même temps, baigne dans une hypocrisie totale (...) Je me sens en conflit permanent avec les Etats-Unis... Je ne suis pas le seul... Les Etats-Unis n'ont rien à voir avec les autres pays; il s'agit d'un pays inventé, "découvert"... La France est habitée par des Français, on ne remet pas en question la validité de l'idée de la France. Depuis que l'Amérique existe, on ne cesse

52Cortanze, "Le Monde est dans ma Tête...", Magazine Littéraire, p. 23.

150

de demander: "Mais qu'est-ce que l'Amérique? Que veut dire être Américain?" Il n'y a pas de race américaine: on vient des quatre coins du monde!53

Se a América é uma ficção, o activismo político de Sachs não tem bases de

sustentação, e daí que redunde na sua morte. Por outro lado, o próprio facto de as

acções do protagonista enquanto Fantasma da Liberdade serem relatadas e explicadas

por Aaron na sua narrativa põe a claro a preocupação do narrador com a manutenção

da discussão sobre a distância existente entre a imagem inventada de uma América

ideal e as contradições observadas na sociedade americana real. Apesar do seu

afastamento das escolhas activistas de Sachs, Aaron recupera, pela escrita, a

mensagem do Fantasma da Liberdade, assumindo o discurso só aparentemente

oposicionista da ideologia em que se baseia toda a concepção da América. Esta

parece, aliás, ser a posição do próprio autor, dividido entre o fascínio e a repulsa pela

sociedade em que vive, mas sempre consciente do papel que a escrita (mais do que a

acção política) pode revelar enquanto campo de expressão das ambiguidades

inerentes à sua sociedade:

— On n'échappe pas à la politique. J'appartiens (...) au premier groupe - celui qui pense qu'on vit ensemble dans une société et que nous sommes tous solidaires. En ce sens, oui, chaque œuvre d'art, consciemment ou non, est un acte politique.54

Toda a obra é, de facto, um acto político, uma vez que espelha as

preocupações latentes e manifestas da sociedade em que está enraizada e toma

posição sobre elas. Em Leviathan, é mesmo a narrativa que expande os sentidos e

torna mais assimilável a mensagem de um outro acto político, em certa medida

falhado: a opção pelo activismo subversivo feita pelo protagonista. O trabalho de

Cortanze, "Le Monde est dans ma Tête...", Magazine Littéraire, pp. 22-23. Cortanze, "Le Monde est dans ma Tête...", Magazine Littéraire, p. 24.

151

escrita afirma-se, assim, como uma forma legítima e viável de tomada de posição

sobre o mundo, as pessoas e as coisas, marcada, é certo, por limitações ideológicas

várias, mas capaz de influenciar autor e leitores para novas perspectivações da vida.

É por isso que a fragmentação do protagonista, causada pela sua escolha do

terrorismo, só consegue ser sublimada precisamente através da escrita, apesar de

todas as suas incertezas. Daí que Aaron considere o abandono da elaboração de

Leviathan como a pior desgraça que poderia ter acontecido ao seu amigo:

Of all the tragedies my poor friend created for himself, leaving this book unfinished becomes the hardest one to bear. I don't mean to say that books are more important than life, but the fact is that everyone dies, everyone disappears in the end, and if Sachs had managed to finish his book, there's a chance it might have outlived him. That's what I've chosen to believe, in any case. (142)

Na medida em que Aaron recupera o espírito deste romance e usa o seu título

na narrativa que dedica a Sachs, a verdade é que, realmente, o livro sobrevive ao seu

autor e torna possível a criação de uma imagem unificada deste. A crença neste poder

da linguagem equaciona-se com a sobrevivência (e daí que seja Aaron quem conta a

história), enquanto o pessimismo em relação a esse poder parece conduzir à morte. O

final da narrativa de Peter Aaron corresponde, assim, à afirmação das (in)certezas da

ficção, através da qual Sachs se mantém vivo no espírito de cada leitor, como Paul

Auster dá a entender quando, ao referir-se a In the Country of Last Things, afirma:

"In the end, I find it the most hopeful book I've ever written. Anna Blume survives,

at least to the extent that her words survive."55 Apesar de as palavras de Sachs serem

subvertidas no discurso de Aaron (à partida necessariamente ficcional), a sua voz está

Auster, "Interview with Larry McCaffery and Sinda Gregory", The Red Notebook, p. 149.

152

implícita em toda a narrativa, reestruturada no mundo do romance apesar da

explosão que a tentou calar.

Dennis Barone entende do seguinte modo a situação dos dois escritores:

In Leviathan they [words] fall apart for Sachs (a writer who stops writing) as his life also falls apart. Aaron puts his life together and, of course, like Fogg in Moon Palace, he's the one who tells the story.56

O acto de escrita é, deste modo, articulado com a reconstrução da vida do

seu autor e a criação de sentidos para ela, e daí a fragmentação no final do percurso

de Sachs. No entanto, e já que a voz-fantasma deste (assim como as suas impressões

digitais) se esconde por trás de todo o discurso do narrador, a sua vida consegue

também recompor-se através de Leviathan, paralelamente à do amigo.

Mesmo que inconscientemente, os objectivos das personagens principais da

obra só são alcançados pela ficção, pelo que se torna razoável 1er Leviathan como

uma tentativa de Paul Auster de explorar os poderes e limitações deste tipo de

escrita. Já em The Invention of Solitude o autor aborda estas questões através da

referência a vários exemplos de escritores e artistas que se embrenham no seu

trabalho apesar de conhecerem as contradições e insuficiências que lhe estão

inerentes. É o caso do músico S., que A. encontra em Paris, o qual tenta concretizar

uma obra inviável em toda a sua plenitude, e que, por isso, nunca conseguirá acabar:

It was unlikely that he ever imagined he would finish the piece. He seemed to accept the inevitability of his failure almost as a theological premise, and what for another man might have led to an impasse of despair was for him a source of boundless, quixotic hope. At some anterior moment, perhaps at his very darkest moment, he had made the equation between his life and his work, and now he was no longer able to distinguish between the two. Every idea fed into his work; the idea of his work gave purpose to his life.57

56 Barone, "Introduction", Beyond the Red Notebook, p. 19. 57 Auster, The Invention of Solitude, p. 91.

153

Apesar do extremismo da posição de S., os princípios por trás da sua

dedicação à arte, que assentam na ligação indestrutível entre o artista e a sua obra,

são comparáveis à perspectivação de Auster em relação à ficção. De facto, embora o

escritor se dê conta de todas as limitações e ambiguidades deste trabalho, ele

continua a acreditar nas suas potencialidades, na esperança quixotesca de conseguir,

através dele, recriar os sentidos para a "verdade da natureza humana" que tenta

assimilar ou sublimar. A sua relação com a escrita ficcional torna-se, pois, obsessiva,

na medida em que é através dela que se entende e é por ela que vive. A obra do

escritor está implícita na sua vida, e vice-versa, pelo que o narrador de "The Locked

Room" tem todas as razões do mundo para afirmar que "together, they [Fanshawe's

books] were as heavy as a man."58 A herança literária que Fanshawe lhe deixa tem,

de facto, o peso do seu autor, e é indestrinçável dele.

Também Moon Palace, um romance que se baseia na história de uma família

de artistas e escritores, desenvolve naturalmente reflexões sobre as motivações do

artista para se dedicar à arte (especificamente à pintura, mas, por analogia, a outras

formas de expressão artística e literária, entre as quais a ficção). Referindo-se ao seu

período de isolamento no deserto americano, em que Effing se dedicara à pintura, ele

explica a Fogg o tipo de relação que mantinha com o seu trabalho:

The true purpose of art was not to create beautiful objects, he discovered It was a method of understanding, a way of penetrating the world and finding one's place in it, and whatever aesthetic qualities an individual canvas might have were almost an incidental by-product of the effort to engage oneself in this struggle, to enter into the thick of things.59

Auster, The New York Trilogy, p. 246. Auster, Moon Palace, p. 170.

154

A arte, como a escrita, surge, assim, como um método de compreensão dos

sentidos subjacentes à posição do seu autor (e possivelmente dos seus receptores) no

mundo, uma forma de criação de pontos de ancoragem ao real e de estruturação da

existência humana através da sua representação. Ela pressupõe a coragem de

enfrentar os enigmas em que assenta a vida humana (a origem e razões da existência,

o seu destino, a morte), na expectativa de os conseguir integrar na própria

construção da identidade individual, se não de os tomar entendíveis. Já em "On the

High Wire", o ensaio que Auster dedica a Philippe Petit, um performer de

equilibrismo, o autor explorara estas questões. Para ele, este é um trabalho artístico

tão importante como a pintura ou a escrita, a que dá especial valor precisamente

porque "high-wire walking is not an art of death, but an art of life - and life lived to

the very extreme of life. Which is to say, life that does not hide from death, but stares

it straight in the face."60

Como Philippe Petit, também os escritores, na sua opinião, enfrentam cara a

cara os enigmas com que se debatem, procurando obedecer aos princípios da "arte da

fome" que advoga. O seu objectivo de escrita liga-se, pois, a uma necessidade de

naturalização de esquemas interpretativos e ordenativos destes enigmas, que se faz à

custa da exploração consciente das suas subjectividades. Apesar do carácter

provisório e instável deste processo, a escrita (e a arte em geral) parece ser, para

Auster, um meio privilegiado de criação de sentidos para a vida e o mundo, e daí que,

em Leviathan, seja através dela que as personagens principais se afirmam.

Auster, "On the High Wire", The Red Notebook, p. 98.

155

De facto, o final do romance pressupõe, da parte do autor, a escolha

ideológica da reflexão ficcional em vez da acção política (que, na diegese, conduz à

morte). O narrador da história, o escritor fiel ao seu modo de representação,

sobrevive e afirma-se através do seu trabalho de escrita, continuando o tipo de

relação com a escrita que tivera aquando da elaboração do seu romance Luna:

I had become interchangeable with my work, and I accepted that work on its own terms now, understanding that nothing could relieve me of the desire to do it. This was the bedrock epiphany, the illumination in which doubt gradually dissolved. Even if my life fell apart, there would still be something to live for. (100)

O desejo da escrita acaba por ser responsável pela dissipação da dúvida

relativamente à coerência da vida do escritor, que, como Effing, vive pela e para a

sua obra. Por seu lado, Sachs não é poupado, uma vez que a sua opção consciente é

o terrorismo. Ao contrário de Walt Rawley, a personagem principal de Mr Vertigo,

que partilha com ele o desejo da levitação e a inclinação para encontrar nas suas

sucessivas quedas sinais de renascimento e renovação, Sachs fragmenta-se numa

explosão. Walt sobrevive, porque a sua última queda o faz renascer através da

escrita:

Business had been fun because of Marion, but without her around to liven things up, there wouldn't have been any point. I thought about getting away from Kansas for a few months and seeing the world, but before I could make any definite plans, I was rescued by the idea of writing this book. I can't really say how it happened. It just hit me one morning as I climbed out of bed, and less than an hour later I was sitting at a desk in the upstairs parlor with a pen in my hand, scratching away at the first sentence.61

O narrador de Mr Vertigo está muito distante de todas as preocupações de

consciência demonstradas pelo protagonista de Leviathan. A atitude de vigilância

interior que leva Sachs a optar pelo terrorismo não faz sequer parte dos horizontes de

Paul Auster, Mr Vertigo (London/Boston: Faber and Faber, 1994), p. 275.

156

entendimento de Walt, que luta desde o início pela sobrevivência pura e simples. A

ideia da escrita da sua história é a última de um conjunto de decisões quase instintivas

na defesa da própria vida, o que implica que há uma relação directa e imanente entre

a sua manutenção e a possibilidade de a representar. Ao contrário de Sachs, o

protagonista de um romance escuro e pesado que Auster contrabalança com a leveza

da levitação de Mr Vertigo, Walt " dies a thousand deaths and reinvents himself a

thousand times (or, perhaps, it's one thousand and one times)."62 A referência de

Barone a As Mil e Uma Noites marca precisamente a importância da ligação da

sobrevivência de Walt à reconstrução da sua história pela escrita, ao mesmo tempo

que aponta também para a necessidade de não sub-valorizar o papel da ficção como

actividade contínua e subjectiva de remodelação do percurso individual de cada ser

humano: "Therefore Walt Rawley, the writer, the ghost. Or the art of living and life

as an art. Or fiction as a venture that can make the difference between life and death:

fiction as a ghost dance."63

É neste sentido que se torna possível afirmar que, apesar da fragmentação

resultante da sua opção pelo terrorismo, Sachs sobrevive através da ficção como uma

personagem contínua e minimamente reunificada. De facto, a sua arte de mitologizar

o passado e criar para o presente a necessidade de uma "música do acaso" mais não é

do que uma forma indirecta de ficcionalização permanente da vida, que lhe permite

criar sentidos para a existência e, por isso, continuar vivo até à explosão. O próprio

62 Dennis Barone, "Introduction", Beyond the Red Notebook, p. 20. 63 Carlos Azevedo, "A Portrait of The Indian Woman As Ghost Dancer: Mother Sioux In Paul Auster's Mr Vertigo", Native American Women in Literature and Culture, ed. Susan Castillo e Victor M. P. Da Rosa (Porto: Fernando Pessoa University Press, 1997), p. 75.

157

Fantasma da Liberdade é disso exemplo. Ao ouvir a versão de Sachs sobre este

período, Aaron afirma: "... he talked with the assurance of an artist who knows he

has just created his most important work" (231).

Em "Paul Auster, or The Heir Intestate", Pascal Bruckner afirma o seguinte

sobre as personagens principais dos romances de Auster:

All his characters - vagabonds, gamblers, semi-tramps, magnificent losers, failed writers - are under way. Like Marco Stanley Fogg at the end of Moon Palace, facing the ocean in the hazy moonlight, these characters are more serene at the end of the day, but they are never sovereign. Their chaotic odyssey never ends in peace, and they always fail to regain their lost innocence. Writing never removes the agony, but, rather, alters and deepens it. Writing is futility because it fails to express the experience of loss and renunciation.64

O percurso de Sachs foi interrompido pela escolha do trajecto errado, ou pelo

menos é essa leitura que Aaron parece favorecer; o narrador caminha na

reconstrução hesitante e imersa em paradoxos da imagem do protagonista através da

narrativa que lhe dedica, e, no fim do dia (da história), consciencializa-se que a

linguagem não diz nem pode dizer tudo, embora nem por isso abandone a opção por

este percurso. Sachs admira-lhe a inocência de continuar a acreditar no poder da

escrita, mas o facto de ser Aaron o sobrevivente torna claro quem é verdadeiramente

inocente. O narrador conhece a instabilidade e o grau de falibilidade do seu projecto,

vive na agonia provocada pela consciência das limitações inerentes ao poder de

representação da escrita, e, contudo, só pára quando é a isso obrigado. Ao contrário

do que Bruckner pretende, esta actividade não é fútil: a agonia está implícita no

próprio projecto de escrita, que gradualmente torna visível a sua incapacidade de

responder de maneira satisfatória à expressão da perda, mas a tentativa de a

Bruckner, "Paul Auster, or The Heir Intestate", Beyond the Red Notebook, p. 32.

158

representar é, já em si, um acto de coragem capaz de originar sentidos fugazes para a

existência, de criar "un système d'images provisoires, de lueurs timides et

hésitantes", nas palavras de William Dow.65

A busca destes pequenos e inconstantes clarões de significado é, assim, o

fundamento básico para todo o trabalho de escrita de Auster. Num mundo que só

pode ser percebido através de diferentes discursos, a ficção ganha o relevo de um

discurso abertamente manipulador, mas também ideologicamente carregado de

significados, de modelos de entendimento do mundo e dos acontecimentos empíricos.

Fiction does not mirror reality; nor does it reproduce it. It cannot. There is no pretense of simplistic mimesis in historiographie metafiction. Instead, fiction is offered as another of the discourses by which we construct our versions of reality, and both the construction and the need for it are what are foregrounded in the postmodernist novel.66

A mimese não parece, de facto, ser uma preocupação central de Leviathan:

Aaron assume o seu relato como uma versão que construiu dos acontecimentos, a

qual só tenta obedecer à imagem interpretativa criada na sua própria mente. Ao

expor, através da sua narrativa, o estatuto ficcional de qualquer testemunho, Auster

acaba, pois, por pôr em evidência a necessidade de conceber qualquer discurso (e

principalmente a ficção) como um processo através do qual se torna compreensível

uma realidade empírica para a qual não há acesso directo. Este processo pressupõe,

naturalmente, a relativização do conceito de verdade, aceite em Leviathan como

propriedade implícita em qualquer tentativa de representação, uma vez que a

65William Dow, "L'Invention de la Solitude: lueurs dans l'appréhension de l'authenticité", L'Œuvre de Paul Auster, p. 41. ^Hutcheon,^! Poetics of Postmodernism, p. 40.

159

linguagem não espelha, mas cria sentidos. É isto que George Steiner afirma no

seguinte passo:

... language itself possesses and is possessed by the dynamics of fiction. To speak, either to oneself or to another, is in the most naked, rigorous sense of that unfathomable banality, to invent, to re-invent being and the world Voiced truth is, ontologically and logically, 'true fiction', where the etymology of fiction directs us immediately to that of 'making'. Language creates (...) I believe that this capability to say and unsay all, to construct and deconstruct space and time, to beget and speak counter-factuals (...) makes man of man.67

A opinião de Auster não parece ser muito diferente da expressa por Steiner, e

Leviathan é um bom exemplo disso: a apresentação de versões contraditórias, a

articulação da sobrevivência com o acto de escrita, a imagem de continuidade do

protagonista através da narrativa pretendem demonstrar que a própria condição

humana depende da capacidade criadora e ordenadora da linguagem e,

especificamente, da ficção. Esta torna-se, assim, uma forma discursiva capaz de

integrar os enigmas inerentes à própria vida em esquemas interpretativos passíveis de

serem assimilados pela mente humana. O mesmo papel é, ainda segundo Steiner,

dado a todas as outras formas de representação artística:

In no theoretical or experimental mode can we make accountable to analytic proof our coming into being or death. It is the compelling licence of imagining and of thought. Literature, art, music are the willed compactions of that freedom. Their open-endedness to understanding or misprision, to welcome or rejection, their inexhaustibility, are the best access we have to the 'otherness', to the freedom, at once bracing and abyssal, of life itself.68

Daí a rede caótica de acasos, de quedas e mortes inesperadas, de

coincidências, tratada no âmbito de uma "música do acaso" e da mitologização do

passado, em que se baseia a estrutura de Leviathan e das outras obras ficcionais de

Auster. Se o melhor acesso ao que é totalmente outro (desde logo sem significado

Steiner, Real Presences, pp. 55-56. Steiner, Real Presences, p. 164.

160

definido) é a liberdade da imaginação e do pensamento, a ficção torna-se um campo

aberto à criação livre e consciente de sentidos para os enigmas que envolvem a vida e

a morte. Os significados construídos não são, naturalmente, finais ou decisivos, e

cada obra corresponde a mais uma versão num diálogo de discursos que dá coerência

à existência humana. Linda Hutcheon afirma isso mesmo em A Poetics of

Postmodernism: "If we accept that all is provisional and historically conditioned, we

will not stop thinking, as some fear; in fact, that acceptance will guarantee that we

never stop thinking - and rethinking."69

Os romances de Auster partem desta constatação, correspondendo cada um a

um estádio de reflexão diferente, na procura contínua da expressão do "livro das

obssessões" do autor. O comentário que o narrador de "The Locked Room" faz

sobre a autoria de The New York Trilogy poderia, deste modo, representar a situação

do romancista relativamente a toda a sua obra ficcional: "These three stories are

finally the same story, but each one represents a different stage in my awareness of

what it is about."70 As três histórias (e o conjunto dos romances do autor)

correspondem, pois, a tentativas sucessivas e obrigatoriamente provisórias de re­

escrita e assimilação do que a vida tem de incompreensível e enigmático.

"If the world is not made up of texts, none can talk about it and, if it is made

up of stories, one can only discuss it through them", afirma Marc Chénetier,

referindo-se a The Invention of Solitude e The New York Trilogy,71 mas Leviathan

poderia também ser a obra visada neste comentário. A dúvida relativamente à

69 Hutcheon, A Poetics of Postmodernism, p. 53. 70 Auster, The New York Trilogy, p. 346. 71 Marc Chénetier, "Paul Auster's Pseudonymous World", Beyond the Red Notebook, p. 39.

161

possibilidade do conhecimento e compreensão do mundo e da vida é equacionada,

nestes livros, com as incertezas da linguagem como veículo de transmissão da

realidade. Isto implica, contudo, a dependência do conhecimento das suas formas de

representação, por mais limitações que estas possam ter. Entre a consciência do

carácter artificial de qualquer ordenação através da produção textual e a necessidade

de enfrentar o vazio de sentidos que provocaria o cepticismo total em relação à

linguagem, a ficção de Auster escolhe o compromisso de uma crença parcial no

poder dos textos para expressar o que é, na verdade, indizível: "Le discours

d'Auster, tout en admettant la nature incompréhensible du monde, ne cesse de

souligner l'importance de la plus petite victoire de la connaissance, fut-elle

fragmentaire ou parciel."72

Daí que, embora consciente das falhas e lacunas da sua narrativa, Aaron não

desista de a concretizar, conseguindo uma pequena vitória do conhecimento sobre a

morte, uma vez que o seu objectivo é alcançado, ainda que de forma bastante

distorcida. O título da obra toraa-se, por isso, adequado ao seu conteúdo: em certo

sentido, ela própria funciona como leviatã, à semelhança do ventre da baleia em que

Jonas renasce para uma vida de obediência e confiança no seu Deus. De facto,

Leviathan é o espaço escuro (porque ambíguo e aberto à contradição) e

reconfortante de gestação para uma nova vida de sentidos para a história de Sachs,

após a experiência da fragmentação que dá início à narrativa.

A importância dada por Auster à história de Jonas e da baleia como metáfora

do processo de recolhimento que conduz à escrita credibiliza esta leitura:

72 Dow, "Z 'Invention de la Solitude...", L'Œuvre de Paul Auster, p. 44.

162

The popular mythology of the whale notwithstanding, the great fish that swallows Jonah is by no means an agent of destruction. The fish is what saves him from drowning in the sea. (...) We are told that "Jonah was in the belly of the fish three days and three nights," and elsewhere, in a chapter of the Zohar, we are told, "'Three days and three nights': which means the three days that a man is in his grave before his belly bursts apart." And when the fish then vomits Jonah onto dry land, Jonah is given back to life, as if the death he had found in the belly of the fish were a preparation for new life, a life that has passed through death, and therefore a life that can at last speak. For death has frightened him into opening his mouth. (...) In the darkness of the solitude that is death, the tongue is finally loosened, and at the moment it begins to speak, there is an answer. And even if there is no answer, the man has begun to speak.73

Como Jonas, que é engolido pelo grande peixe e contacta com o silêncio da

morte para ser depois vomitado para a praia, nascendo para uma nova vida que já

não teme a linguagem, também Sachs começa por surgir fragmentado e destruído na

narrativa de Aaron, recuperando depois uma forma de continuidade através do

próprio acto de escrita. A narrativa surge, deste modo, como o espaço regenerador e

criador que substitui o leviatã de Jonas.

O narrador, um escritor que não abandona a crença no seu trabalho, espelha,

assim, a posição do próprio autor, que também não abdica das potencialidades

regeneradoras e criadoras da actividade de escrita, apesar de retratar nos seus

romances as ambiguidades, contradições e limitações que lhe estão inerentes.

O próprio Auster explica a origem paradoxal da sua ficção:

At bottom, I think, my work has come out of a position of intense personal despair, a very deep nihilism and hopelessness about the world, the fact of our own transience and mortality, the isolation of one person from another. And yet, at the same time, I've wanted to express the beauty and extraordinary happiness of feeling yourself alive, of breathing in the air, the joy of being alive in your skin. To manage to wrench words out of all this, no matter how inadequate they might be is at the core down of everything I've ever done. And the people in my books are engaged in struggles that matter to them. I've never been able to write about what most novelists seem to concentrate on - what we might call the sociological moment (...) It's simpler than that, it's deeper than that, it's probably a lot more naive than that. It's about living and dying and trying to make sense of what we're doing here. All the basic questions you ask yourself when you're fifteen years old, trying to come to terms with the fact

Auster, The Invention of Solitude, pp. 125-126.

163

that you are on this planet, figuring out some reason for being here. These are the questions that are driving my characters.14

Arrancar palavras da experiência do imprevisível, da solidão, da inexplicável

alegria de viver, mesmo da distância entre as palavras e as coisas é uma actividade

com valor e importância. Escrever faz, na opinião de Auster, a diferença, já que

funciona como campo de questionação e reflexão sobre o que há de mais profundo e

inexplicável para o ser humano. Contar histórias de personagens que procuram

respostas para estas questões básicas torna-se, assim, um modo de assimilar e

sublimar os paradoxos que envolvem a problematização que o próprio autor faz

delas. O seu trabalho ficcional prende-se, deste modo, com a sua percepção

pragmática da necessidade de estabelecer uma relação de compromisso entre os

poderes e as limitações da linguagem como forma de representação e ordenação da

realidade empírica.

A este nível, Auster vai de encontro às expectativas de Ihab Hassan

relativamente à ficção pós-moderna, cuja base é, na sua opinião, um pragmatismo

aberto e esclarecido, que aceita sob determinadas condições o valor representativo

dos textos ficcionais, apesar de os apresentar apenas como hipóteses de sentido,

interpretações possíveis mas não exclusivas. Esta visão pressupõe uma concepção

pluralista da ficção, pela qual cada história contada é tão somente mais um texto num

palimpsesto literário aberto a todas as leituras e a todas as hierarquizações, que

obedece apenas a um compromisso:

It is a commitment to satisfy as many claims as we vitally can; a commitment, otherwise, to mediation, negotiation, rather than to dogmatism or contumacy; and a commitment to a scheme of uncertified possibilities that we can actually trust. It is finally a commitment to recognize beliefs for what they are: rungs in our "faith

74 Irwin, "Memory's Escape", Denver Quarterly, p. 118.

164

ladder" on which we climb from "might be true" to "shall be true," and as we climb come to see that life extends farther than conceptual reason.75

Neste universo pluralista relativamente à aceitação de todas as histórias e de

todos os discursos, as crenças individuais são o fiel (subjectivo) da balança e o

garante (necessariamente provisório) do valor dos textos. Reconhecidamente, a vida

não se deixa coarctar pela reflexão e/ou pela imaginação, mas a "escada de fé" em

que assentam tem o mérito de permitir que, pela negociação e pela abertura à rede

intertextual em que vivemos, se tornem viáveis e parcialmente confiáveis diferentes

modelos aproximativos ao real.

Dai a multiplicação de histórias, de versões que se verifica em Leviathan:

todas são leituras possíveis, com um valor intrínseco que corresponde à possibilidade

de ordenação e reunificação do caos de fragmentação que tentam descrever. O facto

de Aaron as integrar na sua narrativa, também ela apresentada explicitamente como

uma interpretação sustentável, fundada na necessidade de acreditar, demonstra que o

narrador já assumiu este compromisso, que lhe permite sobreviver e contar a sua

história. Por outro lado, o facto de Auster escrever acerca de contadores de histórias

e de expor ao conflito e ao diálogo as suas diferentes versões corresponde a uma

forma de se envolver num esforço contínuo de questionação do valor da ficção, mas

é também um meio de justificação da necessidade de acreditar neste valor.

75 Hassan, The Postmodern Turn, p. 207. Citações inclusas de William James, A Pluralistic Universe (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1977).

Para uma conclusão

The core of our human identity is nothing more or less than the fitful apprehension of the radically inexplicable presence, facticity and perceptible substantiality of the created. It is; we are. This is the rudimentary grammar of the unfathomable.1

Leviathan foi publicado pouco depois de um conto de Auster que antecipa a

sua constatação do poder da ficção na procura da criação de sentido para o real.

Trata-se de Auggie Wren's Christmas Story, em que o papel deste poder é afirmado

(naturalmente, sem qualquer tipo de inocência e sem lhe dar um cariz absoluto). O

narrador da história comprometera-se a entregar uma história de Natal para

publicação num jornal, mas não sabe como começar:

The very phrase "Christmas story" had unpleasant associations for me, evoking dreadful outpourings of hypocritical mush and treacle. Even at their best, Christmas stories were no more than wish-fulfillment dreams, fairy tales for adults, and I'd be damned if I ever allowed myself to write something like that. And yet, how could anyone propose to write an unsentimental Christmas story?2

Preocupado com o carácter sentimentalista e ureal das histórias de Natal,

escritas com o intuito de sublimar as angústias do quotidiano através do recurso à

fabulação e do apelo à crença, o narrador expõe as suas dúvidas a Auggie, um

vendedor de revistas e tabaco com interesses artísticos. Este promete ajudá-lo, e

conta-lhe a história de como adquiriu a máquina fotográfica com que realiza os seus

1 Steiner, Real Presences, p. 201. 2 Paul Auster, Auggie Wren's Christmas Story (New York: William Drenttel New York, 1992), p. 11.

166

projectos num dia de Natal. O seu relato é estranho, mas consegue coadunar a

incompreensibilidade da situação com o espírito natalício a que Auster parece não

conseguir fugir.

"And now you've got your Christmas story, don't you?" "Yes," I said "I suppose I do." I paused for a moment, studying Auggie as a wicked grin spread across his face. I

couldn't be sure, but the look in his eyes at that moment was so mysterious, so fraught with the glow of some inner delight, that it suddenly occurred to me that he had made the whole thing up. I was about to ask him if he'd been putting me on, but then I realized he would never tell. I had been tricked into believing him, and that was the only thing that mattered. As long as there's one person to believe it, there's no story that can't be true.3

Além do comentário óbvio à história do nascimento de Jesus, cuja

legitimidade e aceitação são equacionadas com uma questão de fé, a conclusão do

conto permite criar uma síntese de dois impulsos contraditórios com que Auggie, o

narrador, mas também Aaron, Sachs e, implicitamente, Auster se debatem: o

cepticismo relativamente ao poder ambíguo da linguagem para dizer (ou escrever) o

real e a necessidade de encontrar pontos seguros para a contingência e o sem-sentido

da vida. Essa síntese é, sem sombra de dúvida, alcançada através da aceitação da

crença como valor supremo no esforço contínuo de compreensão dos enigmas que

estruturam a existência humana.

A escrita de Auster está, assim, implicada no seu projecto de vida e

impregnada de valores que, num sentido lato, poderiam ser considerados como

religiosos e que funcionam como garantes das potencialidades da ficção na

reconstrução do real. E, contudo, os seus romances são lucidamente conscientes e

3 Auster, Auggie Wren's Christmas Story, p. 17.

167

consciencializadores do (auto)engano que constitui a crença nestes valores. Daí que

Pascal Bruckner afirme:

Perhaps Paul Auster's rich works already prefigure what certain historians foresee as the religion of the future: Christian-Buddhism, that is, a concern with personal salvation linked to an acute awareness of uncertainty and the void.4

Em Leviathan, a consciência da incerteza e do vazio que ameaça a vida

afirma-se pelo poder destrutivo da contingência, pela dificuldade em legitimar o

conhecimento, pelas implicações da memória e dos discursos na capacidade de

reconstrução da vida através da linguagem, pela ambiguidade das motivações para a

escrita. Esta consciência é, no entanto, contrariada pela preocupação com a

recuperação dos fragmentos de sentido que restaram da vida do protagonista e sua

reestruturação num modelo ordenador do seu percurso, pela qual se salvam (ainda

que provisória, parcial e subjectivamente) duas vidas: a de Sachs e a do narrador, que

se revê na história do amigo. O romance prefigura, pois, os parâmetros pelos quais

Bruckner classifica uma provável corrente de pensamento religioso (a própria

narrativa faz referências explícitas à preocupação com a salvação pessoal, ao

crescente poder do nada, a atitudes de inspiração cristã e budista), e apresenta duas

personagens principais que, de formas diferentes, se inscrevem na linha desta

corrente: Sachs cai repetidamente no abismo do cepticismo, mas encontra-se através

das suas ficções mais importantes (o Fantasma da Liberdade e o seu "ghost writing"

de Leviathan), Aaron aprende a integrar na sua escrita a dúvida e o vazio, e a

sublimá-los por seu intermédio, o que lhe permite um melhor entendimento de si

próprio e do mundo.

4 Bruckner, "Paul Auster, or The Heir Intestate", Beyond the Red Notebook, p. 32.

168

Também desta leitura ressalta a importância da escrita como acto de fé na

possibilidade do sentido. Daí a última ironia deste romance, "the ultimate twist that

concludes the story" (243): apesar da incredulidade demonstrada por Aaron no início

da narrativa sobre a relevância da sua ficção na descoberta da identidade do terrorista

que os detectives procuram ("... when I came to the business about the impostor, he

actually offered to start an investigation into the problem for me. That might have

been a trick, of course, but I somehow doubt it." - 6), é através dela que os homens

do FBI chegam à identidade de Sachs. A vida e os textos interligam-se: a primeira

deixa as suas impressões digitais nos textos; estes, por seu lado, são pistas

importantes para a compreensão da vida. O trabalho de escrita dá respostas e coloca

questões sobre os enigmas da existência, e daí a necessidade de fazer leituras

responsáveis e receptivas dele.

Em Real Presences, George Steiner tenta equacionar a literatura (e todas as

outras artes) com a presença real e necessária da transcendência. As suas conclusões

apontam no sentido da ligação incondicional e obrigatória da vida ao trabalho

artístico:

So far as it wagers on meaning, an account of the act of reading, in the fullest sense, of the act of the reception and internalization of significant forms within us, is a metaphysical and, in the last analysis, a theological one. (...) The meaning of meaning is a transcendent postulate. To read the poem responsibly ('respondingly'), to be answerable to form, is to wager on a reinsurance of sense. It is to wager on a relationship - tragic, turbulent, incommensurable, even sardonic - between word and world, but on a relationship precisely bounded by that which reinsures it. For poets, these matters are straightforward: over and over, a Dante, a Hõlderlin, a Montale tell us of what poetry is saying when, exactly when, words fail it. So does the light at the Vermeer casement. And all great music.5

5 Steiner, Real Presences, pp. 215-216.

169

A aposta na existência do sentido e na consequente relação instável entre

palavra e mundo é central a Leviathan, mas também a toda a obra ficcional, poética,

crítica e teórica de Paul Auster. O seu trabalho de escrita procura o sucesso que

resulta das vitórias parciais sobre o falhanço absoluto da linguagem na criação de

sentidos para o real, os "clarões" de significado escondidos no túnel escuro e

afunilado que percorre a distância entre a palavra e o mundo.

Leviathan é dedicado a Don DeLillo, um romancista que partilha com Auster

a preocupação com a exploração do enigma do desejo de escrita e as suas

potencialidades na ordenação da vida. No final do seu romance The Names, o

narrador faz uma visita adiada desde o início do livro ao Parténon, para constatar que

a dádiva que o homem traz ao templo é linguagem.

Tanto DeLillo como Auster estão conscientes de que os deuses

desapareceram, mas ambos sentem a necessidade de usar a linguagem e a literatura

como um acto de fé na possibilidade (provavelmente infundada) do sentido, mesmo

que esse sentido seja apenas a expressão do nada. Neste contexto, também Umberto

Eco deve ser convocado:

— Os livros não são feitos para se crer neles, mas para serem submetidos a investigação. Diante de um livro não devemos perguntar-nos que coisa diz, mas que coisa quer dizer, ideia que foi muito clara para os velhos comentadores dos livros sagrados. O unicórnio, tal como dele falam estes livros, encerra uma verdade moral, ou alegórica, ou anagógica, que permanece verdadeira. (...)

— Mas, então, posso sempre e só falar de alguma coisa que me fala de alguma coisa e assim sucessivamente, mas o alguma coisa afinal, o verdadeiro, nunca existe?

— Talvez exista, é o unicórnio indivíduo. E não te preocupes, mais tarde ou mais cedo encontrá-lo-ás, por mais negro e feio que seja.6

6 Umberto Eco, O Nome da Rosa, trad. Maria Celeste Pinto (Lisboa: Difel, 1980), pp. 312-314.

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178

r

Indice

Introdução 1 1 Construindo histórias 34

As histórias, a morte e a vida: de Xerazade ao espaço da memória 35 À volta da história: a música do acaso e a pulsão ficcional 54

2 Jogos de espelhos 100 Biografia, autobiografia e o espelho de Thoreau 1Q] Os espelhos na escrita: palimpsestes e "ghostwriting" U 9 Consequências de espelhos: a linguagem, a América e o papel da ficção 142

Para uma conclusão 165

Bibliografia 170