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Giovana Oliveira Mendes (UFSM) Representações de alteridade no conto “O outro”, de Rubem Fonseca
Estação Literária Londrina, Vagão-volume 7, p. 48-56, set. 2011
ISSN 1983-1048 - http://www.uel.br/pos/letras/EL
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REPRESENTAÇÕES DE ALTERIDADE NO CONTO “O OUTRO”,
DE RUBEM FONSECA
REPRESENTATIONS OF ALTERITY IN THE SHORT STORY “O OUTRO”,
BY RUBEM FONSECA
Giovana Oliveira Mendes (UFSM) 1
RESUMO: Este artigo é uma proposta de estudo do tema Alteridade, sendo
fundamentado através de teorias de Eric Landowski e Zygmunt Bauman, entre outros
autores. Como exemplo literário ilustrativo dessa questão, tem-se na Literatura
Brasileira o conto “O Outro”, de Rubem Fonseca. Em tal narrativa, identificam-se
certos conflitos existentes entre dois indivíduos de classes sociais distintas que dividem
o mesmo espaço urbano. Problemas de identidade e da não-aceitação do outro se
apresentam de forma dramática no conto e demonstram a dificuldade que o ser humano
tem de conviver com as diferenças.
PALAVRAS-CHAVE: Alteridade. Identidade. Literatura brasileira.
ABSTRACT: This article is a proposal to study the topic Alterity, being based on Eric
Landowski and Zygmunt Bauman theories, among others. As a literary example
illustrating this issue, there is in Brazilian Literature the short story “O outro”, by
Rubem Fonseca. In this narrative, certain conflicts have been identified between two
individuals of different social classes that share the same urban space. Issues of identity
and non-acceptance of the other present themselves dramatically in the short story and
demonstrate the difficulty that the human being has to live with differences.
KEYWORDS: Alterity. Identity. Brazilian Literature.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo identificar as possíveis manifestações de
alteridade, encontradas no conto “O Outro”, de Rubem Fonseca. A história gira em
torno de um homem de negócios e um mendigo, considerado seu antagonista na trama.
Pretende-se analisar o tipo de relação que se constitui entre esses dois personagens no
decorrer da narrativa e suas consequências, como a tensão e o medo provocados pelo
contato estabelecido entre eles, tendo em vista a diferença social desses dois sujeitos.
Todas as reflexões expostas neste trabalho apoiam-se nas teorias de Eric
Landowski (2002), o qual se ocupa de questões relacionadas à alteridade e à identidade,
além de Zygmunt Bauman (2007), o qual discute as transformações bruscas que
ocorrem na vida moderna, usando o termo tempos líquidos para nomear a configuração
da sociedade atual, entre outros autores.
Como a obra em questão trata de relações humanas, principalmente entre
pessoas pertencentes a mundos totalmente opostos, convém mostrar os conflitos que
podem ocorrer entre elas no que diz respeito as suas identidades, sem esquecer o meio
1 Mestranda em Letras - Estudos Literários.
Giovana Oliveira Mendes (UFSM) Representações de alteridade no conto “O outro”, de Rubem Fonseca
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onde essas relações se estabelecem, que é o ambiente urbano, no qual a insegurança e o
medo imperam, frente à instabilidade provocada pelas constantes mudanças.
Este artigo é composto de 4 tópicos. No primeiro são feitas considerações a
respeito dos conflitos enfrentados pelo homem no que diz respeito a sua identidade. No
segundo, são discutidas questões recorrentes da vida moderna, como a instabilidade e o
medo, e no terceiro tem-se uma proposta de análise do conto já mencionado, em que são
consideradas as idéias defendidas nos tópicos 1 e 2. Por último, no quarto tópico, estão
as considerações finais, que retomam as idéias principais do trabalho, sem chegar a uma
conclusão única, apenas apontando caminhos possíveis a partir de uma reflexão sobre os
temas estudados.
IDENTIDADE E ALTERIDADE: O ETERNO CONFLITO DO SER
De acordo com Landowski (2002: 4), o homem está condenado a poder
construir-se unicamente pela diferença, ou seja, para que o eu exista, é necessário que
haja um Outro que se opõe e, dessa forma, afirma a identidade do eu.
À primeira vista, não parece haver um problema nessa relação, pois a tendência
é imaginar um Outro distante, inacessível, exótico. Pode ser um estrangeiro, alguém
com o qual jamais teremos de conviver, no máximo dividir o mesmo espaço por algum
tempo, como, por exemplo, quando turistas vêm ao nosso país ou quando visitamos o
país deles. Mas no mundo cada vez mais globalizado em que vivemos, esses encontros
podem ser muito mais frequentes do que desejamos e em alguns casos, esse Outro pode
estar bem mais perto do que supúnhamos. Ele não precisa ser estrangeiro, pode ser até
mesmo o nosso vizinho do lado, com costumes diferentes dos nossos, pode ser alguém
de uma classe social diferente da nossa ou uma pessoa de outra etnia.
Em qualquer um desses casos, nossa identidade estará “ameaçada” e é aí que
surgem, segundo Landowski (2002: 4), certas “práticas de enfrentamento sociocultural
de caráter, às vezes, dramático, que acreditávamos ter desaparecido”.
O mais comum ao nos depararmos com o “diferente” é negá-lo, ou seja,
colocarmos os nossos valores acima dos deles, como se a nossa maneira de ver o mundo
fosse a única possível, esquecendo-nos de que o Outro possui visões distintas que
condizem com sua cultura, suas vivências, e, por isso, não são menos verdadeiras que as
nossas, mas apenas diferentes.
Essa desqualificação do outro enquanto sujeito está relacionada, na maioria das
vezes, às relações de poder. Os “fortes” dominam os “fracos”, e, por isso, garantem a
perpetuação da espécie, se fizermos uma analogia à Teoria Darwiniana da Seleção
Natural. Assim, o rico supera o pobre, o branco é superior ao negro e ao índio, o sexo
masculino domina o feminino, etc.
Diante dessa constatação, poderíamos pensar: Mas por que agimos assim? O que
nos leva a sermos tão intolerantes em relação ao nosso dessemelhante? Seria o medo de
perder nossa identidade, que consideramos única, original e estável? Talvez esse
pensamento comum, de que a identidade é inerente a nós, que somos sujeitos prontos,
acabados, seja o que nos leva a temer a contaminação pelo “Outro” e, inevitavelmente, a
morte do nosso eu.
Tal percepção é desmistificada por Hall (2000 apud Baldissera, 2006: 4), o qual
afirma que “o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e
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estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias
identidades, às vezes contraditórias ou não-resolvidas”.
E se observarmos bem, as pessoas não são sempre as mesmas, elas se
modificam, de acordo com o tempo e com as circunstâncias. Nós mesmos agimos de
diferentes formas de acordo com o lugar, a ocasião. Representamos papéis a todo o
momento, usamos máscaras e, de tanto usá-las, muitas vezes esquecemos quem éramos
originalmente. E essas “metamorfoses” ocorrem porque não vivemos isolados, vivemos
em uma sociedade, a qual exige certas adaptações para melhor conviver com as
diversidades.
Porém, isso não significa que iremos “perder a identidade”, pois ela é criada e
recriada nessas relações de troca que estabelecemos com outros indivíduos. Somos seres
em constante transformação, assim como o mundo no qual habitamos e talvez seja essa
constatação que nos deixe tão inseguros em relação a nós mesmos. Não sabendo
exatamente quem somos, corremos o risco de perder o rumo, de nos deixarmos invadir
pelo Outro. Não conseguimos enxergá-lo como alguém que pode somar algo a nossa
vida, às nossas experiências, com quem podemos estabelecer trocas e aprender coisas
novas. O vemos como nosso inimigo e o tememos e, por isso, não somos capazes de
reconhecer sua alteridade e respeitá-la.
A INSTABILIDADE DOS TEMPOS MODERNOS
O medo que nos paralisa frente ao desconhecido, além de estar relacionado à
“ameaça de perda do eu” que supomos existir nas relações com o Outro, muitas vezes
também está atrelado à configuração atual da vida moderna, principalmente do ambiente
urbano.
Bauman (2007: 7) define o atual período em que vivemos como sendo uma
passagem da fase sólida da modernidade para uma fase líquida. Ou seja, para este autor,
estamos vivendo um momento de instabilidade em todos os sentidos. Nada mais é
imutável, duradouro; as transformações são constantes, tanto no setor político-social,
como no pessoal. Segundo Bauman (2007: 10), a flexibilidade seria a virtude que
poderia servir melhor aos interesses do indivíduo, pois isso implica estar sempre pronto
a “mudar repentinamente de táticas e de estilo, abandonar compromissos e lealdades
sem arrependimento”.
Infelizmente, nem sempre conseguimos ter essa postura frente aos
acontecimentos. Temos nossa rotina diária e, para nos sentirmos seguros, procuramos
mantê-la. Para algumas pessoas, uma simples mudança repentina já desencadeia um
desequilíbrio. É uma sensação que temos de “estar sem chão”. Esse sentimento traz
insegurança ao homem e o leva, muitas vezes, a buscar segurança no que é conhecido.
Aquele executivo que vai todos os dias para o trabalho, sempre pela mesma rua,
almoça sempre no mesmo restaurante, acaba o trabalho e volta para casa, não mantém
contato afetivo com ninguém, seria um exemplo (estereotipado, mas que existe em
maior ou menor grau) de alguém que usa o trabalho como uma forma de proteger-se do
mundo e, por conseqüência, de outros seres humanos. Esse sujeito se sente confortável
com sua rotina e não quer mudá-la em hipótese alguma. E quando algo novo acontece –
uma notícia inesperada, um encontro com um desconhecido – qualquer situação
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diferente que se apresente para ele o perturba e desestabiliza. Logo a tensão se instala e
ele passa a viver sempre em estado de alerta.
Esse fenômeno, se observarmos bem, é bastante comum nos grandes centros
urbanos. Pessoas vão para o trabalho todos os dias, apressadas, com o olhar fixo, sem
enxergar os outros que passam também apressados, sempre “correndo contra o tempo”.
Mulheres seguram firmemente suas bolsas, temendo serem assaltadas, pois as ruas estão
cheias “deles”, aqueles sujeitos que ficam espreitando, esperando a melhor oportunidade
para se insurgirem contra suas vítimas. Na opinião de Bauman (2007: 15),
a vida social se altera quando as pessoas vivem atrás de muros, contratam
seguranças, dirigem veículos blindados, portam porretes e revólveres e
freqüentam aulas de artes marciais. O problema é que essas atividades
reafirmam e ajudam a produzir o senso de desordem que nossas ações
buscam evitar.
E a probabilidade de que esse medo se propague, provocando ações defensivas é
imensa. A cada um importa sua sobrevivência individual e fazemos qualquer coisa para
defendermos a nossa vida. Não importa o Outro, pois neste mundo fragmentado cada
um cuida de si.
“O OUTRO”, DE RUBEM FONSECA: UMA ANÁLISE POSSÍVEL
Neste conto, Rubem Fonseca trata da invisibilidade dos membros da classe mais
baixa, por meio do personagem que é um mendigo, contrapondo-o com o que seria seu
oposto, um homem de negócios.
O conto é narrado em primeira pessoa, na voz de um personagem que logo será
identificado como um executivo.
Esse personagem-narrador inicia seu relato contando o percurso que fazia todos
os dias, desde a chegada ao trabalho, que era sempre no mesmo horário – “Eu chegava
todo dia no meu escritório às oito e trinta da manhã...” (Fonseca 2010: 72) –, incluindo
o que ele costumava fazer, até sua chegada em casa.
Percebemos, pela sua descrição, que ele desempenhava um trabalho bastante
exaustivo e nunca conseguia dar conta de tudo. Isso o fazia pensar que não havia feito
nada de útil. As passagens em que ele diz: “Quando chegava a hora do almoço, eu havia
trabalhado duramente. Mas sempre tinha a impressão de que não havia feito nada de
útil” (Fonseca 2010: 72) e, logo após: “E sempre no fim do dia, eu tinha a impressão de
que não havia feito tudo o que precisava ser feito. Corria contra o tempo” (Fonseca
2010: 72), demonstram que ele sente uma insatisfação com a vida profissional, que para
ele estava cansativa e improdutiva. Além disso, ele se irritava quando tinha algum
feriado no meio da semana, pois era menos um dia que tinha para produzir.
E quando ele conta: “Levava diariamente trabalho para casa, em casa podia
produzir melhor” (Fonseca 2010: 72), podemos concluir que este indivíduo é um típico
cidadão dos tempos modernos, sempre correndo contra o relógio, cada vez mais
atarefado e sem nenhum tempo livre para cuidar de si mesmo ou conviver com outras
pessoas. Ele se fecha em seu mundo, vivendo apenas para o trabalho e repetindo as
mesmas tarefas todos os dias.
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Percebemos também que as ações repetitivas desse sujeito demonstram sua falta
de flexibilidade, característica contrária ao que Bauman considerava uma virtude do
indivíduo que vive os tempos líquidos já mencionados.
Mas um dia acontece um fato novo: ele sente uma forte taquicardia enquanto
está trabalhando e já é um indício de que algo irá alterar sua rotina. Ao descrever esse
acontecimento, ele também lembra que nesse mesmo dia surgiu um “sujeito” ao seu
lado, no momento em que ele está chegando ao escritório. Esse sujeito é um pedinte,
que lhe solicita ajuda. Então ele lhe dá uns trocados e entra no escritório.
Aparentemente, esse episódio não lhe causa nenhuma estranheza, é apenas um mendigo
pedindo dinheiro, como qualquer outro que vive nas ruas da cidade. Mas, só pelo fato
de esta passagem do dia ter sido lembrada pelo personagem-narrador, intuímos que não
é um fato irrelevante na narrativa.
Aqui entra a questão da invisibilidade da classe mais baixa, pois aqueles que
vivem à margem da sociedade geralmente são ignorados e, quando são vistos, não são
vistos como um ser individual, mas como apenas mais um entre tantos dessa categoria,
a dos Outros, sem rosto, sem nome, sem identidade.
Depois de contar sobre as sensações provocadas pela taquicardia, o personagem-
narrador segue dizendo que na mesma tarde foi ao cardiologista e que, após alguns
exames, o médico lhe pedira para diminuir de peso e mudar de vida. Inclusive, lhe pede
também para parar de trabalhar por algum tempo. Mas isso para o executivo é
impossível, ele até acha graça desse pedido, pois precisa trabalhar; como vimos
anteriormente, ele vive do trabalho e, mais que isso, vive para o trabalho; não é tão fácil
alguém como ele mudar a rotina da noite para o dia. No final da consulta, o médico lhe
receita um regime alimentar e uma caminhada duas vezes por dia, pelo menos.
Acatando a recomendação do médico, no outro dia o executivo sai para fazer a
sua caminhada no intervalo do almoço e acaba encontrando novamente o mesmo sujeito
que lhe pediu dinheiro na véspera. Nesta passagem, ele descreve fisicamente o mendigo.
“Era um homem branco, forte, de cabelos castanhos compridos” (Fonseca 2010: 73).
Este lhe pede dinheiro novamente e o executivo, ao dar-lhe, simplesmente prossegue
sua caminhada. Essa descrição do mendigo feita pelo executivo nos faz pensar que o
pedinte já não é mais invisível; pelo menos sua aparência física foi lembrada pelo
executivo.
O próximo episódio descrito pelo narrador-personagem é o de um dia de
trabalho em que, apesar de ele ter tomado tranquilizantes e de não ter levado trabalho
para casa, seguindo as recomendações médicas, não conseguia livrar-se da tensão. E a
sensação de que o tempo não passava era nova para ele e difícil de suportar. Ele não
conseguia desligar sua atenção do escritório. Tenta ler um livro, liga a TV, faz uma
caminhada, lê jornal, mas continua impaciente e irritado. Isso ocorre porque ele estava
acostumado a uma vida voltada somente para o trabalho e já não sabe mais viver com
um tempo livre para o lazer. Antes, todo o seu tempo era preenchido com alguma
atividade “produtiva”; agora ele se sente incomodado com o novo estilo de vida que
deve adotar para preservar a saúde.
Observamos a partir desse episódio que esse indivíduo vive isolado, não tem
amigos, nem pessoas com quem conversar, pois se antes, quando apenas trabalhava,
poderíamos imaginar que era por falta de tempo que ele não convivia com ninguém,
agora dispõe de um tempo só para ele, em que deve cuidar-se, mas mesmo assim, fica
sozinho em sua casa quando não está no escritório. Prefere buscar atividades para passar
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o tempo do que buscar a companhia de alguém. Isso demonstra que esse sujeito é um
tanto anti-social, não tem interesse algum em conviver com outros seres humanos.
Essa atitude pode significar apenas comodismo, mas também pode sugerir que
ele não queira relacionar-se com outras pessoas por medo. Medo de expor sua
intimidade, medo de sentir-se explorado, talvez. Como não sabemos o real motivo desse
seu modo particular de viver, pois o conto não explicita isso, apenas inferimos que seu
comportamento indica certa aversão a contatos exteriores. É como se estivesse
preservando sua identidade, e o isolamento é uma forma de se autoproteger contra uma
possível invasão dos outros.
Continuando a narrativa, o personagem-narrador nos informa que novamente foi
interpelado pelo mendigo que lhe pedira ajuda e que desta vez apela dizendo que sua
mãe está morrendo, por isso precisa de remédio, e que não conhece ninguém bom no
mundo além dele. O executivo, então, dá-lhe cem cruzeiros.
A partir daqui, percebemos que esse personagem (o mendigo) que não tem
nome, apenas a designação de pedinte – pois só o que faz é pedir - começa a se mostrar
mais, a ter voz na narrativa, pois ao falar da mãe, mostra que existe, que também tem
uma história, que é alguém. Ele é o Outro, o oposto do personagem-narrador e nesse
momento o título do conto se confirma.
Por uns dias, o pedinte some, mas logo volta a atormentar o executivo, dessa vez
dizendo que sua mãe morreu e é tão dramático o seu pedido de ajuda que o executivo
entende que ele quer dinheiro para o enterro. Então, pergunta qual é a quantia e, ao
saber que é cinco mil cruzeiros, preenche um cheque e lhe dá, impaciente. Nesse
momento, a tensão já é grande, as mãos do executivo tremem e ele perde totalmente a
paciência. “Agora chega”, diz para o mendigo.
No outro dia, ele desiste de caminhar no horário do almoço, preferindo ficar no
escritório. É um dia em que tudo deu errado, segundo ele, e esses problemas no
escritório aumentam de tal forma sua tensão que à noite ele mal consegue dormir,
mesmo com tranquilizantes.
Na outra manhã, parecia estar tudo bem, mas quando o executivo sai para a
caminhada ao meio-dia, vê o sujeito que lhe pedia dinheiro e a tensão volta. Pela
descrição que ele faz, percebemos que ele já se sente perseguido, já não vê o mendigo
apenas como alguém que precisa de ajuda: “(...) estava em pé, meio escondido na
esquina, me espreitando, esperando eu passar” (Fonseca 2010: 74). Ele volta em sentido
contrário, mas o sujeito vai atrás e um sentimento de medo – “um sentimento infantil de
medo com o qual eu tentei lutar...” (Fonseca 2010: 74) – toma conta do executivo.
Quando o mendigo diz que precisa de ajuda, pois não tem ninguém no mundo, o
executivo responde com autoridade: “Arranje um emprego” e o mendigo diz que não
sabe fazer nada. Mas o executivo não quer comprometer-se com o outro e responde:
“Não tenho que ajudá-lo coisa alguma.” A resposta do mendigo, “Tem, sim, se não o
senhor não sabe o que pode acontecer” (Fonseca 2010: 75), soa como uma ameaça para
o executivo, e a forma como o pedinte se aproximou, segurando-o pelo braço e olhando-
o foi reveladora. “Pela primeira vez vi bem como era o seu rosto, cínico e vingativo”
(Fonseca 2010: 75), relata o executivo. E diz, por fim, que seria a última vez que lhe
daria dinheiro.
Neste trecho da narrativa, percebemos que o personagem do mendigo cada vez
mais reivindica sua posição, tanto dentro do texto – ele ganha importância por suas
falas, que se tornam mais persuasivas – quanto na questão social proposta, ao
demonstrar a inconformidade com a falta de reconhecimento de sua alteridade, pois o
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que está em uma posição social superior não consegue se colocar no lugar do que está
“à margem”. O homem de negócios não percebe o mundo em que vive o seu oposto,
pois para um mendigo, não é tão fácil arranjar um emprego, como sugere o executivo.
Observamos também, nesse diálogo, exemplos do que Landowski havia
identificado como práticas de enfrentamento sociocultural, assunto exposto no primeiro
tópico do artigo e reiterado pelo conto, já que os dois personagens se confrontam de
maneira dramática, cada qual tentando impor sua personalidade sobre o outro.
Outra passagem relevante para esta análise é o relato do executivo sobre o
momento em que vê pela primeira vez o rosto do mendigo. Quando o descreve, notamos
que seu olhar enxerga um lado ruim do outro, um lado até mesmo perigoso.
Ao relatar os próximos episódios, o narrador-personagem nos informa que
continuou sendo perseguido pelo mendigo, cada vez mais ameaçador, na visão dele, e,
inclusive, culpa-o por arruinar sua saúde, não percebendo que isso já vinha acontecendo
mesmo antes de ele ter entrado em sua vida. O problema inicial era com o trabalho e
agora, todos os sentimentos negativos se direcionam ao sujeito que lhe persegue. Neste
momento, o executivo quer distância daquele que lhe atormenta, e questiona: “Que
culpa eu tinha de ele ser pobre?” (Fonseca 2010: 75).
Então ele resolve parar de trabalhar por uns tempos, mas no início, como
qualquer pessoa acostumada com uma rotina, tem dificuldades, se sente perdido, sem
saber o que fazer. Com o tempo, porém, vai se acostumando e, nesse momento,
pensamos que ele realmente conseguiu mudar de vida e acabou a tensão, pois realmente
está disposto a cuidar mais de si e até mesmo pensa em trabalhar menos.
Porém, essa fase não dura muito tempo, pois um dia ele está saindo para a
caminhada habitual e novamente encontra o mendigo, que, segundo seu relato, “surgiu
inesperadamente”. O executivo fica perplexo, pois não entende como o sujeito
descobriu seu endereço. E a história se repete. O mendigo sempre com o mesmo
discurso, dizendo que precisa de dinheiro e que é a ultima vez que pede. Mas torna-se
ainda mais insistente, chegando bem perto do executivo: “Ele encostou seu corpo bem
junto ao meu, enquanto caminhávamos, e eu podia sentir o seu hálito azedo e podre de
faminto” (Fonseca 2010: 76).
A descrição feita pelo executivo sobre a aparência do mendigo agora é: “Ele era
mais alto do que eu, forte e ameaçador” (Fonseca 2010: 76). Percebemos que, apesar de
o mendigo ser considerado pelo executivo como inferior socialmente, na aparência é
superior a ele, pois é mais alto do que ele e, além disso, desperta medo, pois é forte e
ameaçador.
A atitude do executivo, a partir desse momento, muda completamente. Ele está
em uma condição limite; já não sabe mais o que fazer com essa situação repetitiva, com
essa perseguição que não termina nunca e o deixa cada vez mais tenso. Então, resolve ir
em direção a sua casa, sendo acompanhado pelo mendigo: “Com o rosto fixo virado
para o meu, me vigiando curioso, desconfiado, implacável” (Fonseca 2010: 76).
O executivo diz para o outro o esperar, quando chegam. Fecha a porta e vai até o
quarto. Quando volta, há um suspense, pressentimos que algo trágico irá acontecer,
como nos romances policiais. O mendigo ainda faz um último apelo: “Não faça isso,
doutor, só tenho o senhor no mundo” (Fonseca 2010: 76). Mas o executivo nem mesmo
o ouve com o disparo do tiro. Ele o mata e só depois percebe a verdadeira face do outro:
“Ele caiu no chão, então vi que era um menino franzino, de espinhas no rosto e de uma
palidez tão grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrindo sua face, conseguia
esconder” (Fonseca 2010: 76).
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O final do conto surpreende, pois o olhar do executivo sobre o outro, até esse
momento, levou o leitor a acreditar que esse sujeito não era mesmo confiável, tanto por
sua aparência física como por suas atitudes de perseguição. No entanto, acabamos
descobrindo a inocência de um menino.
O conto nos faz pensar sobre nossas atitudes preconceituosas e pré-julgadoras
em relação ao que é diferente. Infelizmente, temos muita dificuldade em compreender e
aceitar a alteridade, mesmo estando diariamente expostos a ela. Vemos o outro somente
a partir de nós mesmos, e, por isso, não o enxergamos realmente como é; esse olhar
superficial acaba por nos cegar, levando-nos a atitudes equivocadas e egoístas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo deste artigo foi fazer uma reflexão a respeito do choque que se dá a
partir do encontro entre classes socioculturais distintas, e, tendo como ponto de partida a
análise literária, foi escolhido o conto “O Outro”, de Rubem Fonseca, por apresentar um
conflito vivido por um dos personagens, o qual apresenta uma notável incapacidade de
conviver com a alteridade.
No conto mencionado, nos deparamos com diversas leituras que giraram em
torno de como é construído o olhar sobre o diferente, neste caso, o excluído em termos
sociais.
É por meio da visão do personagem-narrador, o qual enxergou o menino pedinte
como um sujeito ameaçador e perigoso, que está sendo representada, de certa forma, a
visão que a classe dominante tem da classe pobre, ou seja, um olhar preconceituoso e
desconfiado, sinalizando medo, desprezo e desconhecimento do outro.
Mas não podemos deixar de admitir que a própria sociedade moderna colabora
para que os cidadãos vivam constantemente nesse estado de tensão e estresse. Tal
situação, provocada pelo excesso de trabalho, pela violência e desigualdade social,
submete diariamente os indivíduos a uma competição desumana em busca de
sobrevivência em um mundo capitalista e globalizado.
A questão que permanece é: Como lidar com a heterogeneidade racial, cultural,
econômica e social, cada vez mais presente em nossas vidas?
As respostas dependem de como cada um vê o outro; se o percebemos como um
ser estranho, diferente de nós; e, por isso, indigno de confiança e até mesmo inferior; ou
se tentamos enxergá-lo a partir da perspectiva dele, do seu mundo e de suas vivências,
aceitando ou, ao menos, respeitando sua alteridade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALDISSERA, R. Comunicação, identificações e imagem-conceito. UNIrevista, v. 1,
n0 3. julho 2006. Disponível em: <http://www..unirevista.unisinos.br>. Acesso em: 20
nov. 2010.
BAUMAN, Z. Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
FONSECA, R. Feliz Ano Novo. 3. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2010.
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LANDOWSKI, E. Presenças do Outro. São Paulo: Perspectiva, 2002.
Artigo recebido em 5 de julho de 2011 e aprovado em 8 de agosto de 2011.