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Música e Músicos no Paraná: sociedade, estéticas e memória. v. 1, Curitiba: Artembap, 2014. 76 PEÇAS DIDÁTICAS PARA PIANO DE HENRIQUE MOROZOWICZ Dra. Ingrid Barancoski 1 UNIRIO [email protected] Resumo O artigo faz uma apreciação das peças didáticas para piano do compositor paranaense Henrique Morozowicz (1934-2008), com base em características de didatismo do repertório de ensino apontadas por Jacobson, Lancaster e Rabinoff. A presença de tais elementos é demonstrada através de exemplos de diversas peças para piano do compositor, de níveis básico e intermediário de dificuldade. O artigo pretende resgatar este repertório discutindo sua utilidade pedagógica e comprovando sua qualidade musical. Palavras-chave: Pedagogia do piano; Técnica pianística; Música paranaense; Idiomatismo pianístico; Música contemporânea DIDACTIC PIANO PIECES BY HENRIQUE MOROZOWICZ Abstract The article makes an assessment of didactic piano pieces by the Brazilian composer Henrique Morozowicz (1934-2008), based on characteristics of the didactic teaching repertoire highlighted by Jacobson, Lancaster and Rabinoff. The presence of such elements is demonstrated by examples from several piano pieces by composer, basic and intermediate levels of difficulty. The article intends to redeem this repertoire discussing their pedagogical usefulness and proving their musical quality. Keywords: Piano pedagogy; Piano technique; Music from Paraná (Brazil); Piano idiomatic writing; Contemporary music 1 Professora Associada III da UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Concertista.

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PEÇAS DIDÁTICAS PARA PIANO DE HENRIQUE MOROZOWICZ

Dra. Ingrid Barancoski 1

UNIRIO [email protected]

Resumo O artigo faz uma apreciação das peças didáticas para piano do compositor paranaense Henrique Morozowicz (1934-2008), com base em características de didatismo do repertório de ensino apontadas por Jacobson, Lancaster e Rabinoff. A presença de tais elementos é demonstrada através de exemplos de diversas peças para piano do compositor, de níveis básico e intermediário de dificuldade. O artigo pretende resgatar este repertório discutindo sua utilidade pedagógica e comprovando sua qualidade musical. Palavras-chave: Pedagogia do piano; Técnica pianística; Música paranaense; Idiomatismo pianístico; Música contemporânea

DIDACTIC PIANO PIECES BY HENRIQUE MOROZOWICZ Abstract The article makes an assessment of didactic piano pieces by the Brazilian composer Henrique Morozowicz (1934-2008), based on characteristics of the didactic teaching repertoire highlighted by Jacobson, Lancaster and Rabinoff. The presence of such elements is demonstrated by examples from several piano pieces by composer, basic and intermediate levels of difficulty. The article intends to redeem this repertoire discussing their pedagogical usefulness and proving their musical quality. Keywords: Piano pedagogy; Piano technique; Music from Paraná (Brazil); Piano idiomatic writing; Contemporary music

1 Professora Associada III da UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Concertista.

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AS PEÇAS DIDÁTICAS PARA PIANO NA PRODUÇÃO DO COMPOSITOR

O compositor paranaense Henrique Morozowicz (1934-2008) faz parte de uma

geração de compositores brasileiros nascidos nas primeiras décadas do século XX, que se

dedicou à composição de peças didáticas para piano. Entre eles também estão: Heitor

Alimonda (1922-2002), Ernst Widmer (1927-1990), Osvaldo Lacerda (1927-2011), Ernst

Mahle (1929) e Sérgio Vasconcelos Correa (1934), entre outros.

Henrique Morozowicz iniciou sua carreira como pianista e, desde criança cultivava a

habilidade de improvisar ao piano. Teve atividade intensa como solista e também como

camerista e acompanhador, além de atuar como organista. Já na adolescência escreveu suas

primeiras obras2. A combinação das atividades de pianista e compositor resultou numa

listagem generosa de obras para piano, de todos os níveis de dificuldade3, caracterizadas por

um marcante domínio do idiomatismo do instrumento.

Na Tabela 1, podemos observar a distribuição cronológica das peças para piano de

nível elementar e intermediário (de acordo com a classificação em GANDELMAN, 1997, p.

181-192). Podemos observar que, embora a maior produção de peças didáticas se concentre

na década de 1970, o gênero foi uma constante em toda a sua carreira.

O intuito pedagógico é evidente nos títulos – com termos como ‘facílima’ e ‘acessível’

–, e também em comentários nos manuscritos – como por exemplo na partitura das 2

Invenções: “para desinibir os pianistas paranaenses”.

2 O próprio compositor afirma: “Mas foi só mais tarde, em 1950, depois de ser organista da Catedral, que

escrevi minha primeira peça original, o Para dormir, um acalanto para vozes femininas, e A Capella para embalar meu irmãozinho Norton, que tinha então um ano” (MOROZOWICZ: 1995a, p. 92). 3 O catálogo de obras de Henrique Morozowicz inclui as seguintes instrumentações: coral, canto e piano, piano

solo, 2 pianos, piano a 4 mãos, órgão, piano e instrumentos de percussão, cravo solo, duos a quinteto de instrumentos de sopro e de cordas com e sem piano, e orquestra de câmera.

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Elementar III Intermediário I Intermediário II

Década de 1950

(2 peças para uma nota

só) (1955)4 Suite facílima (1958)

(2 invenções) (1955)5• Suite acessível (1958) 3 Estudos breves (1958) 3 Prelúdios melancólicos (1958)

Década de 1960

Pequena Suite (1960) 4 pequenos estudos (1966)

Década de 1970

Sonatina I (1972) 1º. Caderno de Karina (1973) Suite de Natal (para piano a 4 mãos) (1976)

Pour Martina (1972) Marchas lúdicas (1976)

Década de 1980

Década de 1990

Sentimento Latino (1995)6

Tabela 1: Peças de Henrique Morozowicz de nível elementar e intermediário organizadas por décadas, segundo as datas de composição Fonte: elaborado com base nos dados fornecidos por Gandelman (1997)

A LINGUAGEM MUSICAL DAS OBRAS DE HENRIQUE MOROZOWICZ

O caráter cativante das peças de Morozowicz se deve em grande parte a uma

maneira intuitiva de compor, ou como ele mesmo definia, com “sentido auditivo-intuitivo e

de sensibilidade” (MOROZOWICZ, 1995a, p. 94). A comunicabilidade da música era

preocupação constante para ele, e isto estava acima de quaisquer pretensões vanguardistas:

Podemos, em música, nos exprimir coloquialmente, ou ao nível de obra literária, ou podemos escrever tratados filosóficos, obras de grande conteúdo dramático, poético e até místico, exprimindo-nos em uma linguagem diferenciada, mas ainda no bojo de um código de comunicação acessível a uma porção significativa de pessoas. Não nos cabe inventar uma língua nova (MOROZOWICZ, 1995a, p. 97).

4 Considero 2 peças para uma nota só e 2 Invenções como experimentações, provavelmente influenciadas pelas

aulas com Koelreutter na década de 1950, e não como peças com propósito didático, embora sejam de nível de dificuldade não avançada. Essa questão fica mais clara no decorrer do artigo. 5 A peça Sentimento Latino foi composta após a publicação de Gandelman. Inseri aqui no nível Intermediário II,

seguindo os mesmos critérios de classificação.

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Esta ideia nos remete ao pensamento do compositor tcheco Karel Husa (1921), seu

professor no Programa de Mestrado em Composição, na Universidade de Cornell (EUA), no

início dos anos 1980, e que ele muito admirava e considerava na sua formação. Nas palavras

de Husa:

Não quero ser um compositor cerebral. Quero ser inventivo, produzir uma partitura que revele algo interessante, instigante e sofisticado para o intérprete ou o maestro, ou outro compositor. Ao mesmo tempo, deve ser musical e terno, e demonstrar que eu me importo com as outras pessoas

7 (apud DUFFIE).

Morozowicz (1995a, p. 98) se mostrava deliberadamente contrário a métodos

intelectualizados de composição: “Tenho a impressão de que, por obra do intelecto,

podemos muito mais facilmente perder o pé na realidade e cair em devaneios surrealistas,

do que quando agimos por instinto ou pela intuição. Isso se agrava quando ignoramos a

nossa cultura”.

Paralelamente, sua atitude era contrária a preconceitos e aberta às mais diversas

linguagens, tanto do passado como do presente:

Escrever no sistema tonal é tão gratificante, intelectualmente, como escrever em qualquer sistema atonal. A diferença, porém, é que temos que ter um bom ouvido, familiarizado com as sutilezas da linguagem harmônico-tonal, para poder fazer uma música preferencialmente baseada na consonância e não na dissonância. Ao que parece, este é um privilégio reservado para poucos... E nesse sentido, quem pode ser mais extraordinário que J. S. Bach, cuja obra é tão contemporânea. (...) A presença de Bach é atemporal (apud BONK; JUSTUS, 2002, p. 215).

Morozowicz cultivava o estilo improvisatório na sua escrita, o que vai de acordo com

a prática de improvisar, sempre presente na sua atividade musical.

Eu comecei a inventar música antes de eu começar a compor, assim que eu comecei a aprender a tocar piano, quando eu ainda era um garoto. Era algo muito espontâneo tentar inventar música, me baseando nos modelos das peças que eu estudava. Eu ainda não escrevia as minhas próprias criações, mas eu improvisava e inventava meus próprios ritmos (MOROZOWICZ, 1995a, p. 11-12).

7 I don’t want to be a cerebral composer. I want to be inventive, to have a score that will reveal something

interesting and intriguing and sophisticated to the performer or conductor, or to another composer. At the

same time, it must be musical and warm, and show that I care about other people.

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Some-se ainda o caráter espirituoso e cheio de bom humor da música de

Morozowicz, próprio de sua personalidade. Um bom exemplo são as Marchas Lúdicas,

quatro peças compostas assumidamente com base no humor musical. As indicações podem

nos dar uma ideia da música, como por exemplo ‘quase tuba’ no Trio da primeira marcha e

‘um pouco teatral e germânico’, na marcha No. 4. Títulos bem-humorados também estão

presentes, como ‘Cuba-libre’, de Sentimento Latino, uma referência ao drink com este nome,

e, segundo o compositor, também à situação política de Cuba (MOROZOWICZ, 1995b:

Prefácio, s/ número de página).

CARACTERÍSTICAS DE PEÇAS DIDÁTICAS PARA PIANO

Segundo o Dicionário Aurélio, o termo pedagógico significa “que facilita o

aprendizado”. Portanto, peças com propósito pedagógico não são apenas peças com nível

acessível, mas também devem cumprir requisitos específicos.

Segundo a pedagoga Jeanine Jacobson, os professores de piano devem selecionar

para repertório de ensino as peças didáticas que satisfaçam a maioria dos seguintes itens:

(1) devem soar cativantes e os alunos devem ter vontade de estudá-las, de aprendê-las e de

tocá-las, mesmo depois de terminado o período de estudo; (2) devem soar de acordo com o

título; (3) devem ser da melhor qualidade musical, sem clichês, com surpresas e variedade

suficientes para manter o interesse do aluno e do professor; alguns elementos desejáveis

para isto são: melodias divididas entre as mãos, melodias na mão esquerda, mudanças

inesperadas de articulações, texturas, notas e/ou harmonias, posições de cinco dedos que

fogem ao padrão maior-menor, uso de todo o teclado, variedade no tamanho das frases,

métricas não usuais, uso do pedal de maneira simples; (4) devem ter nível de dificuldade

uniforme e coerente; (5) devem ter propósitos pedagógicos claros.

Outro conselho de Jacobson é que deve ser considerado, entre outros: (1) se a

partitura é clara de ler; (2) se os dedilhados fornecidos são lógicos e úteis; (3) se as peças

soam mais difíceis do que realmente são; (4) se as peças são confortáveis para tocar (no

sentido motor); (5) se incluem repetições, sequências e imitações, o que facilita o

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aprendizado e a execução; (6) se o professor terá prazer em ensinar a peça (JACOBSON,

2006, p. 189-191).

DIDATISMO NAS PEÇAS PARA PIANO DE HENRIQUE MOROZOWICZ

Nas peças de Morozowicz, podemos observar as várias questões pedagógicas

facilitadoras do aprendizado recomendadas por Jacobson, como listado a seguir:

a) em termos de caráter, as peças são curtas, concisas e cativantes; um ótimo exemplo

disso é a Sonatina I (1972):

Exemplo 1: MOROZOWICZ, H. Sonatina I, I. Amavelmente, cc. 1-17

b) os títulos e as indicações de tempo são claros e sugestivos, o que incentiva a

imaginação sonora do aluno e facilita o entendimento da concepção das peças. No exemplo

2, o título Passeio esclarece sobre as várias questões musicais a serem definidas pelo

intérprete como andamento, dinâmica, fraseado e articulação:

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Exemplo 2: MOROZOWICZ, H. Suite Facílima, III. Passeio, cc.1-8

Outros exemplos de títulos sugestivos estão na Suite Pour Martina, com os

movimentos: (1) O picapau amarelo, (2) As borboletas em flor, ao vento, e (3) Borboletas

Psicodélicas.

Exemplo 3: MOROZOWICZ, H. Pour Martina, II. As margaridas em flor, ao vento, cc.1-10

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Podemos listar muitas indicações originais e de fácil entendimento musical, como por

exemplo: ‘movido com graça’, na primeira peça da Pequena Suite; ‘balançando quase

caipira’, na quarta peça da Pequena Suite; ‘afetado e pipocante’ em 4 Pequenos estudos, No

4; ‘piccante’ em O Picapau amarelo, primeiro movimento de Pour Martina; ‘amavelmente’

no primeiro movimento de Sonatina I; ‘bem alegre’ em Cai, cai balão, No 2 e em Ti-ri-la-la-la,

No 4 do 1º Caderno de Karina; ‘pulandinho’ em Fuks Du hast, No 8 do 1o Caderno de Karina;

‘com movimento de boneca’ em Mietze, Mietze, Katze, No 10 do 1o Caderno de Karina; ‘bem

brincalhão’ em Wlas kotek na plotek, No 11 do 1o Caderno de Karina; ‘um pouco teatral e

germânico’ em Marchas lúdicas No 4.

c) o trabalho é equilibrado entre as mãos direita e esquerda, com frequentes

ocorrências de contraponto invertido, como na segunda peça da Pequena Suite:

Exemplo 4: MOROZOWICZ, H. Pequena Suite, II. Bem marcado e vivo, cc.1-4

O mesmo equilíbrio é encontrado na escrita para piano a quatro mãos, tanto entre as

partes primo e secondo como entre as mãos de cada pianista:

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Exemplo 5: MOROZOWICZ, H. Suite de Natal, I. Sinos de Belém, cc. 1-8

d) peças com melodias na mão esquerda são frequentes:

Exemplo 6: MOROZOWICZ, H. 1 o

Caderno de Karina, 6. Teresinha de Jesus, cc.1-5

e) a escrita traz riqueza de articulações e variedade de texturas, sempre com clareza de

notação e de intenção musical:

Exemplo 7: MOROZOWICZ, H. 1 o

Caderno de Karina, 7. Frère Jacques, cc. 1-11

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f) padrões não usuais de cinco dedos também são encontrados:

Exemplo 8: MOROZOWICZ, H. 4 pequenos estudos, N

o 1, cc. 1-4

g) encontramos várias peças que soam mais difíceis do que realmente são. Um dos

melhores exemplos é a Suite Pour Martina. No Exemplo 9, a facilitação motora é conseguida

pela alternância das mãos em padrões métricos regulares:

Exemplo 9: MOROZOWICZ, H. Pour Martina, III. Borboletas psicodélicas, cc.1-13

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h) o propósito pedagógico é objetivo e o nível de dificuldade sempre uniforme em cada

peça. No Exemplo 10, em Reminiscência, da Suite Facílima, encontramos um excelente

material para os professores ensinarem aos seus alunos o gesto musical anacruse, bastante

claro na escrita de cada uma das mãos e repetitivo do início ao final da peça. Não há outros

elementos desafiadores e, assim, pode-se focar na anacruse.

Exemplo 10: MOROZOWICZ, H. Suite Facílima, V. Reminiscência, cc.1-9.

i) as peças são estruturadas com repetições, sequências e imitações de motivos

melódicos também concisos:

Exemplo 11: MOROZOWICZ, H. Sentimento Latino, VIII. Xaxado, cc.1-10

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CARACTERÍSTICAS ESPECÍFICAS DAS PEÇAS DE HENRIQUE MOROZOWICZ

Como mencionado, a escrita de Henrique Morozowicz (não só das peças didáticas) é

sempre confortável para tocar. Um bom exemplo é a primeira peça da Suite acessível

(Exemplo 12), em que o uso das teclas pretas e brancas assim divididas entre as mãos e

combinada ao paralelismo dos acordes faz com que ambas as mãos possam tocar sem

problemas na mesma região do teclado; além disso, os elementos melódicos concisos e

repetitivos facilitam o aprendizado e promovem a velocidade necessária.

Exemplo 12: MOROZOWICZ, H. Suite acessível, I. Tocatinha, cc. 1-5

Outro elemento frequente é a repetição de um mesmo tema em diferentes registros,

o que possibilita a exploração de todo o teclado e incentiva a percepção dos contrastes de

sonoridades entre os vários registros (podemos entender este procedimento como uma

alusão ao órgão, que o compositor também tocava).

Exemplo 13a: MOROZOWICZ, H. Marchas Lúdicas, I. Trio, cc.1-8

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Exemplo 13b: MOROZOWICZ, H. Marchas Lúdicas, I. Trio, cc.17-25

Outra característica marcante de Morozowicz, tanto nas peças didáticas como nas de

pianismo mais adiantado, é a utilização de escolhas dadas ao intérprete. Nas peças de que

tratamos aqui, isto já aparece de diversas formas:

a) na opção de alteração ou não de uma nota:

Exemplo 14: MOROZOWICZ, H. 1º. Caderno de Karina, 6. Teresinha de Jesus, cc. 6-10

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b) na escolha de uso dos registros e tamanho de frase:

Exemplo 15: MOROZOWICZ, H. Pour Martina, III. Borboletas psicodélicas, cc. 14-22 (o compasso 16 pode ser repetido quantas vezes o intérprete quiser, e o compasso 19 pode iniciar uma oitava abaixo e terminar uma oitava acima do que está escrito)

c) no número de repetições de um mesmo elemento:

Exemplo 16: MOROZOWICZ, H. 4 pequenos estudos, N

o 4, cc. 32-34

d) na opção de transpor ou não um trecho. Por exemplo, em Cuba-libre, de Sentimento

Latino, o compositor coloca a seguinte observação: “pode-se tocar esta peça em teclas

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pretas. Para isto, leia todas as notas com bemóis, e dó sustenido e fá sustenido como

naturais”8.

Essas diferentes escolhas na interpretação das peças despertam o aluno para

possibilidades de improvisação musical. A importância da atividade de improvisar é

confirmada por pedagogos como Sylvia Rabinoff:

A habilidade de improvisar fará do aluno um músico melhor. Não é só uma questão de preencher interlúdios (...) ou adicionar ornamentos; é questão de desenvolver habilidades interpretativas e técnicas. A improvisação desenvolve uma melhor relação táctil com o teclado, a consciência auditiva, poder ficar a vontade em qualquer tonalidade, melhora a memória e a leitura, e é valiosa para o entendimento de análise, segurança ao tocar e presença como intérprete. (...) improvisação é um passo além da aquisição do vocabulário musical, é a utilização criativa deste vocabulário (RABINOFF, 2004, p. 228-229)

9.

Henrique parecia já estar ciente destas ideias pedagógicas, bastante avançadas para

o Brasil na época (décadas de 1950 a 1970).

A habilidade de transposição também é utilizada no primeiro movimento da Sonatina

I, na qual a repetição do trecho entre os compassos 2 a 9 deve ser feita “lendo em bemóis”.

Ao lado da improvisação, a transposição é uma das principais habilidades funcionais do

piano, e deve ser desenvolvida desde os níveis iniciais10. São raras as oportunidades onde

estas habilidades são integradas ao repertório, como nos oferece Henrique Morozowicz11.

8 Na partitura, em inglês e italiano: “Si pio suonare questo pezzo sui tasti neri. Per questo leggi tettu Le note

come bemolli e Il Do# e Il Fa# come naturali. This piece can be played in black-keys. For that, read all notes as

flats and the C# and F# as natural”. 9 The ability to improvise will help make the student a better performer. It is not only a question of filling in

missing interludes (…) or of adding ornaments; rather it is a matter of improving both technical and

interpretative faculties. Improvising gives a superior tactile relationship to the keyboard, an aural awareness,

and a sense of “at homeness” in any key, better memory and sight-reading ability, a gift for compositional

analysis, security, and poise. (…) Improvisation is a step beyond acquiring a musical vocabulary: it is applying

that vocabulary creatively. 10

Kowalchyk e Lancaster alertam que os métodos de ensino tendem a deixar de lado a habilidade de transposição no nível intermediário, quando o aluno passa a tocar peças do repertório tradicional, mas que este treinamento deve continuar a ser desenvolvido em todos os níveis (KOWALCHYK; LANCASTER, 1995, p. 225). 11

Entre compositores que utilizam habilidades funcionais integradas em peças de ensino podemos citar os húngaros Z. Kodaly (1882-1967), G. Kurtag (1926) e o americano R. L. Finney (1906-1997), além das sugestões deixadas por B. Bartók (1881-1945) no Prefácio dos cadernos do Mikrokosmos.

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Encontramos também uma variedade significativa de procedimentos quanto a

elaborações métricas e rítmicas, como listados a seguir:

e) um deles é o uso de temas que “passeiam livremente” pela métrica (Exemplos 17a e

b). É um procedimento bastante elaborado e complexo, mas que Morozowicz utiliza de uma

maneira de fácil entendimento:

Exemplo 17a: MOROZOWICZ, H. Suite Facílima (1958), I. Ciranda, cc. 1-5.

Exemplo 17b: MOROZOWICZ, H. Suite Facílima, I. Ciranda, cc. 20-24.

f) métricas assimétricas são bastante presentes, principalmente nos 4 Pequenos

Estudos, cada um deles trabalhando repetitivamente uma métrica assimétrica não usual:

Exemplo 18: MOROZOWICZ, H. 4 Pequenos estudos, 3. Bem ritmado, cc. 1-2

12

12

O compositor não indica fórmula de compasso em nenhum dos 4 Pequenos estudos, provavelmente acreditando que isto daria uma ideia de maior complexidade à notação musical. Os estudos N

o 1 e N

o 3

trabalham com métricas assimétricas, o No 2 com polirritmia e o N

o 4 com variação no tamanho do compasso

mantendo pulsação e unidade de tempo estáveis.

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g) no Prelúdio melancólico No

2 o compositor utiliza no ostinato de acompanhamento

divisões da métrica em valores crescentes em padrão repetitivo; isso pode ser bastante útil

para o desenvolvimento do controle e precisão de divisões variáveis do pulso estável:

Exemplo 19: MOROZOWICZ, H. Prelúdio Melancólico No. 2, cc.1-4

h) já as síncopas, características de repertório brasileiro, também são frequentes, e

estão presentes em todas as peças de Sentimento Latino13:

Exemplo 20: MOROZOWICZ, H. Sentimento Latino, III. Cha-cha-chá, cc.1-3

13

A obra Sentimento Latino foi escrita para uma encomenda de Piotr Lachert, diretor da editora Chiola Music Press, seguindo a ideia de uma série de peças fáceis para treinamento de ritmo de pianistas europeus.

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i) são procedimentos rítmicos ocasionais nas peças de Morozowicz, e também mais

comuns no repertório pianístico de ensino: polirritmia (Exemplo 21); mudança de fórmula de

compasso (Exemplo 22, onde as mudanças de compasso refletem o caráter improvisatório

deste movimento); e polimetria (Exemplo 23, onde se sobrepõem padrões de 3

semicolcheias na mão direita e de 4 semicolcheias na mão esquerda)

Exemplo 21: MOROZOWICZ, H. 4 Pequenos estudos, 2. Balançando, cc. 1-4

Exemplo 22: MOROZOWICZ, H. Suite acessível (1958), II. Sesta e seresta, cc.1-9

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Exemplo 23: MOROZOWICZ, H. Três estudos breves (1958), Estudo N

o. 1, cc.1-2

CONCLUSÃO

Henrique Morozowicz satisfaz todos os requisitos apontados por Jacobson para

qualificar boas peças didáticas para piano, como citados aqui no item III. Além disso, o

compositor: (1) explora diversas questões métricas e rítmicas com padrões repetitivos e

alusões a ritmos de danças, facilitando o entendimento e, consequentemente, o

aprendizado; (2) oferece oportunidades de escolhas para o intérprete, desde as peças de

nível básico; (3) integra a prática de habilidades funcionais ao repertório com improvisações

e transposições sugeridas nas peças; (4) faz uso de humor musical com acentuada

espirituosidade, o que dá à sua música um caráter leve e prazeroso.

O repertório de peças didáticas de Morozowicz preenche a descrição de Maris,

quando a pedagoga descreve repertório de ensino de qualidade, o que vai além de satisfazer

listagem de características técnicas:

Tal música soa prazerosa de forma que o ouvinte a percebe e a entende harmônica, melódica, rítmica e expressivamente. Além disto, é bom tocar (...) Os padrões se encaixam na configuração da mão (...) e utiliza as características do piano (teclas brancas e pretas, características acústicas, registros). Esta música prepara os alunos para o repertório mais adiantado, mas é também música para apreciar, pelo prazer da música em si

14 (MARIS, 1995, p. 184).

14

Such music sounds pleasing in ways that a listener can perceive and analyse harmonically, melodically,

rhythmically, and expressively. Further, it feels good (…) to play. The patterns fit the configuration of the hand

(…) and utilize the characteristics of the piano (black and white keys, acoustical traits, registers). Such music

prepares students for more advanced repertoire, but it is also music to enjoy now, for its own sake.

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As peças didáticas para piano de Henrique Morozowicz constituem, portanto,

repertório de ensino valioso e muito útil tanto para os alunos e professores de piano, assim

como para os professores e alunos de composição, como ótimos exemplos de peças

acessíveis, originais, concisas, musicalmente cativantes e ao mesmo tempo oferecendo

pianismo idiomático e eficiente. É um material utilizado atualmente por docentes atuando

no estado do Paraná, mas que deve ser redescoberto por todos nós, músicos, pianistas e

professores.

REFERÊNCIAS

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