Pedro Bonfim Leal

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Pedro Bonfim Leal Germinações do novo - tempo e criação em Henri Bergson Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia Orientador: Prof. Eduardo Jardim de Moraes Rio de Janeiro Março de 2014

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Pedro Bonfim Leal

Germinaes do novo - tempo e criao em Henri Bergson

Tese de Doutorado Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Filosofia

Orientador: Prof. Eduardo Jardim de Moraes

Rio de Janeiro Maro de 2014

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Pedro Bonfim Leal

Germinaes do novo - tempo e criao em Henri Bergson

Tese apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de Doutor pelo Programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia do Centro de Teologia e Cincias Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo assinada.

Prof. Eduardo Jardim de Moraes Orientador

Departamento de Filosofia PUC-Rio

Prof. Edgar de Brito Lyra Netto Departamento de Filosofia PUC-Rio

Prof. Tito Marques Palmeiro Departamento de Filosofia PUC-Rio

Profa. Andrea Bieri Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO

Profa. Beatriz da Matta Andreiuolo UNILASSALLE

Profa. Denise Berruezo Portinari Coordenadora Setorial do Centro de Teologia e

Cincias Humanas PUC-Rio

Rio de Janeiro, 28 de maro de 2014

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Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou parcial do trabalho sem a autorizao da universidade, do autor e do orientador.

Pedro Bonfim Leal

Graduou-se em filosofia (Puc-Rio) em 2006. Bolsista do cnpq no programa de iniciao cientfica (pibic) em filosofia entre os anos 2004 e 2005 com o tema O tempo em Bergson e em 2006 com o tema A poesia em Heidegger. Em 2009 conclui o mestrado pela PUC-Rio com a dissertao O espao da comunho Merleau-Ponty e a percepo como contato. Termina em 2014 sua tese de doutorado com o presente trabalho.

Ficha Catalogrfica

CDD: 100

Leal, Pedro Bonfim Germinaes do novo: tempo e criao em Henri Bergson / Pedro Bonfim Leal ; orientador: Eduardo Jardim de Moraes. 2014. 135 f. : il. ; 30 cm Tese (doutorado)Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia, 2014. Inclui bibliografia 1. Filosofia Teses. 2. Criao. 3. Tempo. 4. Memria. 5. Novidade. 6. Esforo. I. Moraes, Eduardo Jardim de. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Filosofia. III. Ttulo.

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Para todos aqueles com quem mantive relaes criativas (alguns citados nos agradecimentos) os do passado, presente, e os ainda por vir

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Agradecimentos Ao Eduardo Jardim, orientador desde a graduao e amigo. Nosso contato definir para sempre minha maneira de fazer filosofia Ao Departamento de Filosofia da PUC-Rio e seus professores, com quem convivi por 12 frutferos anos Ao CNPq e FAPERJ pela oportunidade de realizar este trabalho A meus pais e demais familiares A Edna e Din, pela constante simpatia e pacincia com minhas inabilidades prticas A Marcelo Norberto e Bernardo Boelsums, principais interlocutores na filosofia em meus anos de formao A Daniel Bonfim Leal, Veronica Toste, Rafael Calebe Rodrigues, Casa Daros, Ricardo Leal que me ajudaram (material ou espiritualmente) no difcil ano de 2013 Aos meus amigos no Facebook, com quem mantenho quase diariamente afetuosas trocas em meio a um mar de impessoalidade A Marcio Zamboni, Luisa Weiner, Matheus Simes, Fernanda Miguens, Florian Raiss, que despertaram em mim novas maneiras de ser, me fazendo experienciar minha tese antes de escrev-la

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Resumo

Leal, Pedro Bonfim; Moraes, Eduardo Jardim de. Germinaes do novo tempo e criao em Henri Bergson. Rio de Janeiro, 2014, 135p. Tese de Doutorado - Departamento de Filosofia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

O tema da criao perpassa todo o pensamento bergsoniano. Erigida em

torno de um nico propsito encontrar uma considerao filosfica apropriada

sobre o tempo, a obra de Bergson encontra desde as primeiras formulaes uma

equivalncia entre o conceito de durao e seu desdobrar em novidade. Segundo

Bergson, a tradio teria partido de uma noo de presente espacializado como

modelo fundamental para pensar a marcha do tempo, estendendo este presente ao

passado e ao futuro. Com isto, passado, presente e futuro espelham um tempo

nico, sendo este, ainda, uma miragem da temporalidade concreta. Ser a partir

do entrelaamento entre as trs dimenses temporais, devidamente distinguidas

uma da outra, que Bergson compreende o tempo como produtor do novo. A tese

busca recortar na obra bergsoniana os principais momentos de formulao desta

dinmica criadora. Tal como tentamos evidenciar ainda, a relevncia da

compreenso do autor sobre o tema constitui uma das mais consistentes

formulaes sobre a criao na contemporaneidade, o que pode ser atestado pela

convergncia entre estas ideias e a de outros filsofos e saberes.

Palavras-chave

Criao; tempo; memria; novidade; esforo.

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Rsum

Leal, Pedro Bonfim; Moraes, Eduardo Jardim de (Directeur de Recherche). Germinations du nouveau temps et cration chez Henri Bergson. Rio de Janeiro, 2014, 135p. Thse de doctorat - Departamento de Filosofia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.

Le thme de la cration traverse l'ensemble de la pense bergsonienne.

Construit autour d'un seul but - trouver une considration philosophique

approprie du temps, luvre de Bergson trouve ds les premires formulations

une quivalence entre la notion de dure et son ddoublement en nouveaut.

Selon Bergson, la tradition serait parti dune notion spatialise du prsent,

modle fondamental pour penser la marche du temps, dployant ce prsent

jusquau pass et au futur. Ainsi, pass, prsent et futur refltent un temps

unique, ce dernier tant encore conu comme un mirage de la temporalit

concrte. C'est partir de l'enchevtrement entre les trois dimensions

temporelles, bien distingus les uns des autres, que Bergson comprend le temps

comme producteur du nouveau. La thse vise dcouper dans l'uvre de

Bergson les moments cls de la formulation de cette dynamique cratrice. Tel

comme nous essayons encore de le mettre en lumire, l'importance de la

comprhension de l'auteur sur le sujet en question est l'une des formulations les

plus profondes sur la cration dans la contemporanit, ce qui peut tre attest

par la convergence entre ces ides et celles d'autres philosophes et dautres

savoirs.

Mots-cls Cration; temps; mmoire; nouveaut; effort.

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Um olho jamais veria o sol sem se tornar semelhante ao sol Plotino

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Sumrio

1. Introduo ........................................................................................... 10

1.1. Sobre retratos e algumas cartas ...................................................... 10

1.2. Novidade e durao ......................................................................... 14

2. A criao no ncleo do tempo ............................................................. 20

2.1. O nada e a compreenso fabricadora de criao ........................... 22

2.2. A durao descoberta na interioridade ............................................ 27

2.3. A liberdade enraizada ...................................................................... 37

2.4. Da durao interior para uma metafsica do tempo ......................... 44

3. Uma ontologia da criao ................................................................... 48

3.1. A espessura do presente ................................................................. 49

3.2. Virtual, uma nova dimenso ontolgica ........................................... 58

3.3. O esforo como movimento criador ................................................. 64

4. A experincia do novo ......................................................................... 75

4.1. A metafsica como alargamento da experincia .............................. 76

4.2. A continuidade descontnua da vida interior .................................... 84

4.3. O sentido existencial e ontolgico da criao .................................. 89

5. Pensar o novo, uma aprendizagem dos sentidos ............................... 96

5.1. Um mtodo para acolher o novo - a intuio ................................... 98

5.2. A invisibilidade da criao .............................................................. 104

5.3. Uma indiscernibilidade de vozes .................................................... 113

6. Concluso ......................................................................................... 121

7. Referncias bibliogrficas ................................................................. 127

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1 Introduo

1.1 Sobre retratos e algumas cartas

...o retrato se assemelhar certamente ao modelo e certamente tambm ao artista1 Henri Bergson

Em um renomado site sobre filosofia francesa, o CIEPEC2, encontramos

algo que poderia ser uma das grandes publicaes deste final de sculo. Sob a

apresentao e os cuidados de Elie During, trs cartas de Henri Bergson

endereadas a Gilles Deleuze se encontram publicadas 3 . Recompostos da

surpresa e entusiasmo iniciais, nos damos conta de algo estranho na publicao -

as trs cartas no esto datadas, e Bergson menciona em uma delas o trabalho a

quatro mos que Deleuze estaria escrevendo com Flix Guattari. Malgrado a no

datao das cartas, a cronologia da vida de Bergson e Deleuze demonstra a

impossibilidade de ter havido este encontro. Quando Bergson morreu, em 1941,

Deleuze, ento com dezesseis anos, estava a quinze anos de publicar A

concepo de diferena em Bergson, seu primeiro estudo sobre o pensamento

bergsoniano, e mais longe ainda de redigir os trabalhos com Guattari, iniciados

apenas em 1972, com O Anti-dipo.

As cartas de fato no foram escritas pelo autor anunciado, mas so o

resultado de uma brincadeira de seu editor. Elie During, reconstruindo o estilo de

Bergson, formula o que poderia ter sido a resposta de Bergson a seu estudioso e

aplicado jovem leitor. Na primeira delas, pretensamente referidas publicao de

O bergsonismo, lemos a seguinte passagem:

Acrescentarei que em muitas passagens suas palavras exprimem to bem o fundo de meu pensamento que parece que me leio ou que me releio a mim mesmo, mas esta espcie de ventriloquismo se acompanha do incio ao fim por toda a forma de deslizamento, de descentramentos e s vezes quebras, que me fazem pensar que este bergsonismo que d ttulo ao seu livro contm j toda uma filosofia pessoal, a qual s posso convid-lo a elaborar e prolongar em seu

1 le portrait ressemblera srement au modle et srement aussi l'artiste (BERGSON, 2009a, p. 340). 2 Centre international dtude de la philosophie franaise contemporaine, http://www.ciepfc.fr 3 A publicao original do texto ocorreu na revista Critique, no 732, 2008/5.

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prprio nome, seria, parece-me, uma filosofia da diferena, ou, melhor, da diferena pura4.

Esta anedota no adiciona nenhum valor documental aos estudos

bergsonianos. No entanto, mesmo sem uma validade cientfica, a brincadeira

de During toca em um ponto crucial. Vemos que um acolhimento semelhante de

leituras alheias animava as trocas epistolares de Bergson, como neste trecho,

agora legtimo:

Caro senhor, o senhor me deu a honra de consagrar uma obra ao conjunto de meus trabalhos (...) sua exposio no apenas exata e precisa (...) ela testemunha ainda e sobretudo um notvel aprofundamento da doutrina e uma simpatia intelectual que faz encontrar intermedirios pelos quais passei, caminhos que segui, frequentemente termos de que eu teria me servido se eu tivesse exposto o que permaneceu subentendido (...) frequentemente meu ponto de chegada foi para o senhor o ponto de partida de especulaes pessoais, originais (BERGSON, 1972, p. 1495)5.

Na passagem acima, Henri Bergson felicita Janklvitch por sua

fundamental obra sobre o pensamento bergsoniano. Longe de um agradecimento

padro recepo dos estudos sobre sua obra, o reconhecimento de Bergson

testemunha haver nos escritos de Janklvitch algo revelado sobre sua prpria

obra, assim como o reconhecimento de uma marca pessoal do intrprete que diz

respeito a seu prprio pensamento. Haveria ali, portanto, um ponto de contato

entre ambos, um momento em que duas personalidades filosficas se tocam.

Janklvitch, no entanto, se encontra exatamente na mesma posio em

que se encontrar, anos mais tarde, a leitura de Deleuze. Bergsoniano confesso6,

o filsofo franco-russo segue, no obstante, um caminho pessoal, estendendo

suas reflexes a questes at mesmo recusadas pelo pensamento do mestre. Os

4 Jajouterai quen bien des passages, vos mots expriment si bien le fond de ma pense quil me semble me lire ou me relire moi-mme. Mais cette espce de ventriloquie saccompagne, dun bout lautre, de toutes sortes de glissements, de dcentrements et parfois de cassures, qui me font penser que ce bergsonisme qui donne son titre votre livre porte dj toute une philosophie personnelle, que je ne peux que vous inviter laborer et prolonger en votre nom propre. Ce serait, il me semble, une philosophie de la diffrence, ou plutt de la diffrence pure. 5 Chez monsieur, Vous mavez fait lhonneur de consacrer un ouvrage lensemble de mes travaux ()Votre expos nest pas seulement exact et prcis () il tmoigne encore et surtout dun remarquable approndissement de la doctrine et dune sympathie intellectuelle qui vous fait retrouver des intermdiaires par lesquels jai pass, des chemins que jai suivis, parfois des termes dont je me serais servi si javais expos ce qui est rest sous-entendu (...) Souvent mon point darriv a t pour vous le point de dpart de spculations personnelles, originales. 6 Janklvitch chegar a afirmar que Bergson o maior filsofo do sculo XX (JANKLVITCH, 1999, p. 244).

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temas da morte e do nada, pontos essenciais da crtica bergsoniana metafsica

tradicional, encontram posteriormente lugar na obra de Janklvitch, mas

coloridos de contornos bergsonianos7.

Mas que no fique a impresso de que esta maneira de se fazer histria da

filosofia seja apenas caracterstico de Deleuze e Janklvitch. Em um livro sobre

a filosofia de Janklvitch, Jolle Hansel afirmar que este autor segue o

mtodo que o prprio Bergson seguiu em sua aproximao de Spinoza, Berkeley

e ainda outros8. Enquanto historiador da filosofia, Bergson no impunha seu

prprio pensamento a seus filsofos estudados. O contato com a obra de outros

pensadores no algo inexistente na carreira do filsofo. Desde o incio do

magistrio, em 1880, Bergson se estabelece como professor de histria da

filosofia no Collge de France, inicialmente de pensamento greco-latino e

posteriormente de filosofia moderna. Sobre seus cursos ministrados, tienne

Gilson, um de seus clebres alunos, relata um diferencial que notava no

professor, particularmente nas aulas sobre Plotino:

no digo apenas do dom prestigioso que ele possua de esclarecer os textos mais difceis, mas sobretudo uma facilidade familiar com o qual entrava, como se ele reconhecesse em Plotino um outro dele mesmo; no havia, direcionado aos textos, esta atitude severa e quase hostil que vemos, por exemplo, em Hamelin; ele penetrava nos textos no como um estrangeiro, mas como um amigo (BRHIER, 1949, p. 108)9.

O pensamento e o movente, reunio de ensaios e conferncias dispersos,

foi o ltimo livro publicado por Henri Bergson. Desta vez, vemos algo indito na

obra do filsofo: trs dos seis artigos apresentados tratam de outros filsofos10.

Estes discursos sobre outros filsofos, chamados por Frdric Worms de mais

que homenagens1 possuem seu princpio orientador em A intuio filosfica,

conferncia do mesmo livro que traz menes a Espinosa e Berkeley. Sobre este

ltimo, afirmar o filsofo:

7 Jean Wahl dir que Janklvitch, cest Bergson plus zro, un zro qui change tout. 8 HANSEL, 2012, p. 23. 9 je ne parle pas seulement du don prestigieux quil avait dclairer les textes les plus difficiles, mais surtout de laisance familire avec laquelle il y entrait, comme sil reconnaissait en Plotin un autre lui-mme ; il navait pas, envers les textes, cette attitude svre et presque hostile que lon voit par exemple chez Hamelin ; il y pntrait non en tranger mais en ami. 10 O ttulo das conferncias so as seguintes: A filosofia de Claude Bernard, Sobre o pragmatismo de William James, Vida e obra de Ravaisson

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O que o idealismo de Berkeley significa que a matria coextensiva nossa representao; que ela no tem interior, nada sob si; que ela no esconde nada, no contm nada; que ela no possui nem potencia nem virtualidades de nenhuma espcie e que ela est totalmente, a todo instante, no que dela nos dado (BERGSON, 1979, p. 60).

O comentrio ao filsofo ingls surpreende pela semelhana com que os

princpios sobre a matria so expressos na prpria obra de Bergson, mais

especificamente em Matria e Memria. Ou seja, aquela confuso de vozes

detectada nas leituras de Deleuze e Janklvitch, certa fidelidade infiel,

encontramo-la tambm na aproximao de Bergson a outros pensadores.

Muitas vezes, a demarcao sobre a validade de uma leitura se faz pela

distino entre ter sido realizada por um filsofo ou um historiador. O historiador

estaria comprometido com uma fidelidade objetiva com seu material de estudo,

ao passo que ao filsofo seria concedida a possibilidade de distorcer seu autor de

modo a extrair conceitos em proveito prprio.

Se este o caso, devemos evocar uma passagem de um discpulo direto

de Bergson, mile Brhier, considerado um dos grandes historiadores da

filosofia. Em A teoria dos incorporais no estoicismo antigo, lemos a seguinte

passagem:

A causa, seja ela Ideia seja o motor imvel, tambm permanente, tal como uma noo geomtrica. O movimento, o devir, a corrupo dos seres, o que eles tm de perpetuamente instveis, no se deve a uma causa ativa, mas a uma limitao dessa causa, escapando por sua natureza a toda determinao e a todo pensamento. O que chama a ateno em um ser , primeiramente, o elemento pelo qual ele se assemelha a outros seres e que permite classifica-lo. Mas outro ponto de vista consiste em considerar este ser por sua histria e sua evoluo, do seu surgimento at o seu desaparecimento. O ser ser, ento, considerado no como uma unidade superior, mas como sendo a unidade e o centro de todas as partes que constituem sua substncia e de todos os acontecimentos que constituem sua vida. Ele ser o desdobramento no tempo e no espao desta vida, com suas contnuas mudanas (BRHIER, 2012, p. 20-1).

Esta introduo a um estudo sobre os estoicos nem ao menos cita o nome

de Bergson. Um leitor familiarizado com seu pensamento se espanta, no entanto,

em ver uma ntida inspirao bergsoniana, a ponto de quase poder se confundir

este trecho com um texto do prprio filsofo. Brhier no o nico historiador a

se inspirar nos trabalhos de Bergson. Dentre outros discpulos clebres, Victor

Goldschmidt, Martial Gueroult, tienne Gilson e Henri Gouhier tiveram contatos

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fundamentais com o pensamento bergsoniano. Todos estes autores no se

mantiveram estritamente prximos a Bergson. E, no entanto, esta no uma

razo para pensarmos que no tenham sido menos seguidores do filsofo. Ser

tienne Gilson quem dir a fundamental frase: perguntando onde esto hoje

seus discpulos, alguns cometem o erro de buscar os filsofos que repetiriam o

que disse, mas seus discpulos esforam-se, antes, de fazer como fez11. aqui

que nos surpreendemos: abraar princpios da filosofia de Bergson no implica

se restringir a seus conceitos. Um dos comprometimentos maiores deste

pensamento com o novo e a mobilidade, e no princpios fixos e estveis.

Esta orientao geral no se cristaliza em uma exigncia de fidelidade.

Ser bergsoniano levar adiante o movimento geral da realidade que, como

veremos, cria indefinidamente e de maneira imprevisvel. Aprenderemos nesta

tese de que maneira a criao se estende decisivamente atividade do

pensamento e a singularidade de cada um enquanto criador em potencial. Para

isto, ser preciso adentrar no conceito central da obra de Bergson sua peculiar

compreenso de temporalidade.

1.2. O novo no ncleo do tempo

...today is uncharted John Ashbery12

O pensamento se representa ordinariamente o novo como novo arranjo de elementos preexistentes; para ele, nada se perde, nada se cria13

Nas palavras de Deleuze, Bergson ser aquele que transformou a

filosofia ao colocar a questo do novo em vez da questo da eternidade (como

a produo e apario do novo so possveis) 14. Novidade, devemos ressaltar

desde j, se identifica em Bergson com criao e tempo.

11 Se demandant o sont aujourdhui vos disciples, certains commettent lerreur de chercher des philosophes qui rpteraient ce que vous avez dit, mais vos vrais disciples sefforces plutt de faire comme vous avez fait GILSON, in.: WORMS, (org.) 2002, p. 12 12 ...hoje inexplorado 13 La pense se reprsente ordinairement le nouveau comme un nouvel arrangement d'lments prexistants ; pour elle rien ne se perd, rien ne se cre. BERGSON, 2009a, p. 30. 14 [Bergson] avait transform la philosophie en posant la question du nouveau au lieu de celle de lternit (comment la production et lapparition de quelque chose de nouveau sont-elles possibles ? (DELEUZE, 1983, p.11).

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Se h um tema com o qual o pensamento de Bergson deve ser

identificado a inovadora formulao sobre o tempo. A durao, termo pelo qual

se consagra a temporalidade neste autor, no se identifica com nenhum conceito

anterior. Afirmar apenas isto, no entanto, praticamente nada, ao menos se

pensarmos tal como Bergson. Encontramos nesta filosofia um destes casos em

que a forma se reinventa de modo a dar conta do contedo.

Se examinarmos a obra do filsofo, ao menos um fato digno de

curiosidade chama a ateno: a durao jamais foi apresentada em uma frmula

definitiva. Se a metafsica grega e ocidental de filosofar se estabelece por um

questionamento do tipo O que isto?, isto x15, no encontraremos

determinao semelhante sobre o conceito central de Bergson. De fato, nos

defrontamos em sua obra por vezes com definies afirmativas e aparentemente

feitas ao modo tradicional. Temos, por exemplo, a durao pura a forma que

toma a sucesso de nossos estados de conscincia quando nosso eu se deixa

viver16. O teor de frases como esta, no entanto, no pretende abarcar a totalidade

do que define. Ao tomar trechos isolados para fundamentar uma crtica durao

bergsoniana, muitos filsofos se equivocam: confundem o instante de uma obra

em progresso com a fixao de um conceito definitivo17.

No livro A Evoluo Criadora, Bergson afirma a durao como

mobilidade incessante do real. O filsofo reorienta com isto a noo apresentada

no primeiro livro, em que a durao se restringia vida subjetiva. O autor afirma

que no h forma, pois a forma imvel e a realidade, movente. Isto que real,

a mudana contnua da forma: a forma apenas um instantneo tomado de

uma transio18. Apesar de no ser a hora de desdobrar as consequncias desta

afirmao, ao menos uma ideia cabe no momento. Desde a teoria platnica das

ideias, o modo como se sups acessvel o Ser foi atravs de uma forma fixa19. O

15 Ilustrado no Mnon de Plato 16 La dure toute pure est la forme que prend la succession de nos tats de conscience quand notre moi se laisse vivre (BERGSON, 2007, p. 74). 17 Justamente a frase evocada h pouco serve a muitos crticos para acusarem Bergson de subjetivismo. Supem, com isto, seu conceito central restrito a uma experincia individual. 18 BERGSON, 2009b, p. 302 Ou ainda, em O pensamento e o movente, no existem coisas feitas, mas somente coisas que se fazem, nenhum estados que se mantenham, mas somente estados que mudam (Il nexiste pas de choses faites, mais seulement des choses qui se font, pas dtats qui se maintiennent, mais seulement des tats qui changent (BERGSON, 2009a, p. 211)). 19 Apesar de negar inicialmente a noo de forma, a segunda afirmao de um instantneo retirado da mobilidade.

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trabalho do pensamento consistiria no caminho at contemplar esta forma, razo

pela qual a mobilidade passa a ser secundria:

Todas as maneiras de falar, de pensar, de perceber, implicam, com efeito, que a imobilidade e a imutabilidade so de direito, que o movimento e a mudana vm se acrescentar, como acidentes, a coisas que, elas mesmas, no se movem, nem mudam (BERGSON, 2009a, p. 73)20.

Substncia, conceito e outros termos se seguem ao de ideias platnicas,

mantendo intacta esta mesma estrutura. Bergson alterar radicalmente esta

compreenso. Ao mesmo tempo em que encontramos a abolio da forma fixa

como realidade absoluta, vemos emergir uma doutrina que rejeita a estabilidade

do conceito como mtodo de construo filosfica. Tal atitude se espelha no

tema fundamental de Bergson. Procurar em sua obra uma definio esttica de

tempo encobre o movimento de contnua expanso deste conceito. Presente do

incio ao fim de seu pensamento, a temporalidade conhece diferentes momentos

de formulao e, ainda assim, nem pode ter sido dita esgotada, simplesmente

interrompida.

Por esta razo, no basta a Bergson simplesmente tomar um conceito

pronto de tempo. A histria da metafsica oferece diferentes formulaes sobre o

termo; no entanto, tamanha foi a negligncia ao elabor-las, que as concepes

oferecidas se encontram contaminadas pelo que no da natureza intrnseca da

temporalidade. A primeira constatao do filsofo foi justamente denunciar esta

deficincia: a temporalidade da tradio espao, medida, nmero. Assim afirma

o prprio Bergson no olhar retrospectivo sobre sua carreira, na introduo de

Pensamento e o Movente. O tempo real, afirmar, escapa s matemticas. Sua

essncia consistindo em passar, nenhuma de suas partes permanece quando outra

se apresenta21.

Se existe algum elemento constante na filosofia bergsoniana, ser apenas

este - o tempo como mobilidade o pensamento do filsofo consistindo em

desdobrar as consequncias desta afirmao. Tal como ressalta a frmula capital

de Frdric Worms: toda a sua filosofia, com efeito, que Bergson apresenta 20 Toutes le manires de parler, de penser, se percevoir impliquent en effet que limmobilit et limmutabilit sont de droit, que le mouvement et le changement viennent se surajouter, comme des accidents, des choses qui par elles-mmes ne se meuvent pas, et en elles-mmes ne changent pas 21 BERGSON, 2009a, p. 2

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como decorrncia, no da questo do tempo, mas da simples constatao da

passagem do tempo, do simples fato de que o tempo passa22. Assumir esta

relao faz de Bergson o primeiro a elaborar filosoficamente uma aceitao

positiva da ordem temporal. Apesar diversos pensadores haverem tratado o

mesmo tema, nenhum deles procurou no tempo atributos positivos23. Tal como

afirmar Janklvitch,

Pela primeira vez talvez na histria das doutrinas, o mobilismo no exprime mais a condio infeliz da criatura. Tanto como um preconceito imemorial, comum a Plato, Plotino, teologia crist e ao pessimismo do sculo XIX, conectou a beatitude aos pensamentos da estabilidade e imobilidade hierrquicas, o devir pesava sobre o homem como uma maldio (JANKLVITCH, 1999, p. 244)24.

Aps constatar o tempo como pura positividade, Bergson tenta elaborar

sua descrio, e o faz a partir de seu enraizamento na experincia, sensibilidade e

mobilidade. To logo iniciado este esforo, uma caracterstica anexada

temporalidade: o tempo passa, e sua fluidez se desdobra em criao do novo:

Sabamos bem, desde os tempos de colgio, que a durao se mede pela trajetria de um mbil, e que o tempo matemtico uma linha, mas no havamos nos dado conta ainda de que esta operao decide radicalmente sobre todas as operaes de medida...A linha que se mede imvel, o tempo, mobilidade. A linha o feito, o tempo aquilo que se faz, e mesmo aquilo que faz com que tudo se faa (BERGSON, 2009a, p. 3)25.

Colocar o tempo como aquilo que faz com que tudo se faa significa

retir-lo de mera marcao numrica de instantes do tempo-linha, para, num

mesmo gesto, inseri-lo como modo de engendramento da realidade. Bergson

retira da uma ontologia distante daquela da metafsica clssica, uma vez que no

se apoia em noes de substncia, solidez e identidade. Os termos para dar conta

do tempo sero inteiramente outros: durao, novo, criao. 22 WORMS, 2004, p. 129 23 BERGSON, 2009 a, p. 10 24 Pour la premire fois peut-tre dans lhistoire des doctrines, le mobilisme nexprime plus la condition malheureuse de la crature. Tant quun prjug immmorial, commun Platon, Plotin, la thologie chrtienne et au pessimisme du XIXe sicle avait li la batitude des penss de stabilit et dimmobilit hiratique, le devenir pesait sur lhomme comme une maldiction. 25 Nous savions bien, depuis nos annes de collge, que la dure se mesure par la trajectoire dun mobile et que le temps mathmatique est une ligne ; mais nous navions pas encore remarqu que cette opration tranche radicalement sur toutes les autres oprations de mesure...La ligne quon mesure est immobile, le temps est mobilit. La ligne est du tout fait, le temps est ce qui se fait, et mme ce qui fait que tout se fait.

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18

Dbora Morato afirma que toda a filosofia de Bergson pode ser lida

como a busca pela inteligibilidade da passagem do tempo como diferenciao

interna26. Uma das consequncias imediatas deste pensamento ser conceber

uma produo imanente do novo. A prpria passagem do tempo fornece

elementos suficientes para explicar a mudana, prescindindo, com isto, do

recurso a uma eternidade transcendente.

No entanto, se o pensamento at ento se guiou majoritariamente pela

orientao do eterno, isto quer dizer que Bergson se depara com uma tradio

impregnada por este parmetro. A expectativa que animou as pesquisas da

metafsica at ento fez com que os resultados fossem apresentados com a

simplicidade arquitetural da teoria platnica das Ideias ou de um templo

grego27. Por esta razo, mais do que encontrar definies fixas, uma filosofia

convertida temporalidade deve reformular seu prprio modo de pensar. A

reforma proposta por Bergson, desta maneira, to radical que exige uma nova

maneira no apenas de definir o tempo e a realidade, como o meio de question-

los.

Para o desenvolvimento desta tese, recorreremos inicialmente exposio

de como conceitos tradicionais da filosofia - tempo, nada, liberdade - so

submetidos a uma crtica como meio de se encontrar atributos positivos

temporalidade. A mudana e a novidade, inseridas no fluxo do tempo, surgem

como consequncia imediata desta elaborao, o que exige, por sua vez, uma

nova descrio de presente, passado e futuro de modo a distinguir cada dimenso

temporal como inteiramente irredutvel uma outra.

Estabelecida a identidade entre criao e tempo, os captulos seguintes

investigam os efeitos desta colocao. Uma nova compreenso da atividade do

pensamento se faz necessria, desde seus mtodos at seu sentido existencial.

Veremos como Bergson passa a compreender a filosofia como necessria

colaborao entre autores, defendendo a ausncia de direo pr-definida para

sua marcha. A criao colocada como fundamento ontolgico da realidade faz

com que a compreenso sobre a essncia humana tambm mude inteiramente.

No mais substncia como suporte fixo imune s mudanas, mas modulao

contnua, o homem passa a ser compreendido como ser incessantemente mutante. 26 MORATO, 2005, p. 9 27 BERGSON, 2009b, p. 221

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19

O ltimo captulo investiga a criao de um ponto de vista estranho

filosofia tradicional: de que maneira testemunhar a criao alheia exige um novo

esforo criador, e no meramente uma assimilao como cpia. Trazemos luz

para isto um conceito fundamental do pensamento de Bergson: a intuio.

Entendida como mtodo de penetrar no movente respeitando sua fluidez e

mutabilidade, o pensar em durao28 consiste em um esforo por respeitar a

singularidade e novidade peculiar a cada criao. Esta problemtica se estende

tanto noo de alteridade quanto histria da filosofia e da cultura. A novidade

impe desafios que se resolvem, tentaremos mostrar, em um novo ato de criao,

o qual carrega consigo outras consequncias.

28 BERGSON, 2009a, p. 30

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2 A criao no ncleo do tempo

The breath of life and the sharp winds of change are the same thing D.H. Lawrence

Henri Gouhier, um dos grandes comentadores do pensamento

bergsoniano, aponta em uma entrevista1 como duas vises inteiramente distintas

sobre a criao determinaram os anos de formao de Bergson. O jovem, cuja

educao ocorre no seio da religio judaica, mais tarde toma contato com o

mundo grego atravs dos estudos de filosofia. Entre essas duas tradies,

compreenses inteiramente diversas se opem.

Para o judasmo, h o cosmos arrancado de um nada primitivo graas

vontade divina; para o pensamento helnico, o mundo no foi propriamente

criado apenas espelha uma essncia eterna sob a forma mvel2. Segundo ainda

Gouhier, mas em outra ocasio3, a metafsica, aps a dissoluo do mundo

helnico, tenta justamente conjugar estas concepes dspares. O pensamento

cristo j nasce com o desafio de encontrar esta sntese.

No se trata de uma questo qualquer. A maneira como o universo foi

criado designava um dos pontos de maior incompatibilidade entre filosofia e

religio. A mais clebre imagem helnica sobre o tema se encontra na gnese do

mundo presente no dilogo Timeu. No texto, o demiurgo de Plato d origem ao

universo ao inserir uma essncia transcendente em uma matria informe. Ou

seja, o demiurgo produz uma cpia de uma forma atemporal. O Deus da religio,

por outro lado, cria o mundo ex nihilo, sobre um nada prvio e, portanto, sem se

submeter a um modelo pr-existente.

Como seria possvel conjugar um dogma bblico com a eternidade de

essncias que rejeita um cosmos surgido ex nihilo? Em primeiro lugar, foi

necessrio tornar a criao um conceito filosfico, sendo este fundamentado no

princpio de relao causal. A tudo que existe, cola-se a etiqueta de uma causa

1 Deux matres: Bergson e Gilson em GOUHIER, 2005 2 Fazemos referncia aqui clebre afirmao de Plato sobre o tempo como imagem mvel da eternidade. 3 No captulo A criao como dado da experincia em Bergson na histria do pensamento ocidental.

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criadora. Todo ser existente, depende de uma causa capaz de arranc-lo da

inexistncia.

Algo digno de curiosidade a maneira como o modelo de criao de uma

gnese do mundo se torna tambm representao da criao no mbito humano.

Georges Canguilhem chama a ateno precisamente sobre esta correspondncia.

Segundo o autor, conscientemente ou no, a ideia que o homem se faz de seu

poder potico responde ideia que ele se faz da criao do mundo e soluo da

origem radical das coisas 4 . O tema da criao desenvolvido pela obra

bergsoniana no encontra correspondente nas duas tradies que o moldaram.

Nem ato ex nihilo, nem conformao a uma forma inteligvel.

O que a metafsica encontra como sntese entre estes dois extremos ser a

criao como ato intelectual. O criador buscaria com isto encontrar uma forma,

situada no plano extra-temporal. A criao designaria o ato de inserir no plano

material uma forma concebida pelo pensamento. neste sentido que se afirma

uma concepo intelectualista assumida pela tradio.

Bergson encontra em um modelo especfico de criao um meio de fugir

das determinaes da compreenso intelectualista. Em toda a obra do autor, ser

a arte a atividade que encontra concordncia direta suas propostas5. No raro nos

depararmos com frases do tipo somos livres quando nossos atos emanam de

nossa personalidade inteira, quando eles a exprimem, quando possuem com ela

essa indefinvel semelhana que encontramos eventualmente entre a obra e o

artista6, como se isto que aparece afirmado como novidade no campo filosfico

j ocorresse no artstico.

No entanto, se Bergson evoca o mbito esttico, o far ao mesmo tempo

em que subverte a compreenso do gesto artstico, ele prprio impregnado pela

compreenso clssica de criao. Sublinhar esta novidade o objetivo de

Georges Canguilhem em Reflexes sobre a criao artstica a partir de Alain7.

Segundo o autor,

4 Consciemment ou non, lide que lhomme se fait de son pouvoir potique rpond lide quil se fait de la cration du monde et la solution quil donne au problme de lorigine radicale des choses (CANGUILHEM, 2008, p. 55). 5 . Frdric Worms afirmar que Bergson toma a realidade [le fait] da arte como prova da possibilidade da metafsica (WORMS, 2003, p. 155) 6 BERGSON, 2007, p. 129 7 Apesar de focar sua anlise a partir do filsofo Alain, Canguilhem termina o artigo com preciosas colocaes sobre a novidade de uma esttica pensada a partir de Bergson.

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V-se [...] com que peso a noo helnica de causalidade exemplar pesa sobre a teoria judaico-crist de criao ex-nihilo. E por isto que a doutrina clssica de operao esttica comporta trs elementos permanentes de interpretao da obra de arte: a inspirao, o cnon e o modelo. A noo de inspirao responde analogicamente quela de contemplao, a de cnon, a de arqutipo, a de modelo, da aplicao de uma demiurgia (CANGUILHEM, 2008 p. 58)8.

Canguilhem evoca as mesmas tradies helnica e religiosa como

determinantes para a compreenso clssica de criao esttica. Nas trs

concepes apontadas por Canguilhem (contemplao, cnon e arqutipo), o

elemento material da obra de arte funciona como receptculo passivo,

reproduzindo novamente o gesto do demiurgo de Plato. A criao do artista

permanece com isto um evento intelectualista. Mesmo no redigindo diretamente

um texto sobre esttica, os comentrios de Bergson sobre o tema reelaboram com

isto o significado de criao artstica.

Demonstrar de que maneira Bergson elabora um novo entendimento do

ato criador afastado da tradio o objetivo deste captulo. O caminho que isto

ocorre em seu pensamento passa pela crtica temporalidade que guiou a

metafsica tradicional, especialmente atravs dos temas do nada e da liberdade.

2.1. O nada e a compreenso fabricadora de criao

O essencial do projeto de Bergson pensar as diferenas de natureza independentemente de toda forma de negao: h diferenas no ser e, entretanto, nada de negativo9.

Gilles Deleuze

Existe, segundo Bergson, uma secreta ligao entre o conceito metafsico

tradicional de nada e uma compreenso de criao que a encaixa em uma

atividade fabricadora. Como destaca Janklvitch, a fabricao ordena os

principais modelos de criao do pensamento ocidental - do livre arbtrio

criao do mundo:

8 On voitde quel poids la notion hellnique de causalit exemplaire pse sur la thorie judo-chrtienne de la cration ex nihilo. Et cest pourquoi la doctrine classique de lopration esthtique comporte trois lments permanents dinterprtation de luvre dart : linspiration, le canon, le modle. La notion dinspiration rpond analogiquement celle de contemplation, celle de canon celle darchtype, celle de modle celle dapplication dmiurgique. 9 Lessentiel du projet de Bergson, cest de penser les diffrences de nature, indpendamment de toute forme de ngation : il y a des diffrences dans ltre, et pourtant rien de ngatif (DELEUZE, 1999, p. 41).

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O pensamento fabricador, indo (aparentemente) do menos ao mais e da parte ao todo necessita do vazio para operar; o vazio seu meio natural, e por isso que ele [o pensamento fabricador] necessita tacitamente da impossvel possibilidade do nada. Ali onde no havia nada, o pensamento fabricador coloca algo, do pouco, faz muito, com os elementos, ele compe as totalidades. (JANKLEVITCH 1999 p. 201)10.

Se a pergunta Porque o ente e no antes o nada assombra Leibniz,

assim como de onde surgiu a ordem no universo, o filsofo no o faz por ter

nela a mais radical das questes. Segundo Bergson, tais indagaes se destinam

inevitavelmente a se tornar os problemas angustiantes, as questes que no se

podem formular sem ser tomado de vertigem11. No entanto, mais angustiante,

no significa a mais importante, sria ou mesmo digna questo de elaborao

filosfica. Ao contrrio da tese heideggeriana, por exemplo, a angstia no revela

uma dimenso ontolgica do real, mas sinaliza justamente o contrrio: a

permanncia em parmetros tpicos da subjetividade, a passagem para a

especulao, de um procedimento feito para a prtica12. Apesar de se apresentar

como conceito evidente, advindo de uma pretensa suspenso e desprendimento

da vida prtica, o nada est longe de ser uma noo puramente especulativa. O

nada, no entanto, seria para a tradio a fonte secreta, o invisvel motor do

pensamento filosfico13.

A vertigem experimentada por este problema designa, para Bergson, o

enredamento em um caminho sinalizado j em seu princpio como insolvel. Tal

como afirma Bergson, se ns pudssemos estabelecer que a ideia de nada, no

sentido em que a tomamos quando a opomos quela de existncia, uma pseudo-

ideia, os problemas que ela suscita ao redor delas se tornariam pseudo-

problemas14. Aprofundando a natureza da conexo entre o nada e a prxis,

Bergson detecta sua gnese no mbito vital.

10 La pense fabricant, allant (en apparence) du moins au plus et de la partie au tout, a besoin du vide pour oprer; le vide est son milieu naturel, et cest pourquoi elle prsuppose tacitement limpossible possibilit du nant. L o il ny avait rien, la pens fabricante met quelque chose ; de peu elle fait beaucoup, avec des lments elle compose les totalits. 11 les problmes angoissants, les questions quon ne peut fixer sans tre pris de vertige (Ibid., 275). 12 ... la spculation un procd fait pour la pratique (Ibid., p. 273). 13 ...le ressort cach, linvisible moteur de la pense philosophique (Ibid., p. 275). 14 Si nous pouvions tablir que lide de nant, au sens o nous la prenons quand nous lopposons celle dexistence, est une pseudo-ide, les problmes quelle soulve autour delle deviendraient des pseudo-problmes (BERGSON, 2009, p. 277).

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Como afirma Bento Prado Jnior, o Nada surge da contraposio entre o

dado e o desejado, entre ser e valor que instaurado pela prxis: ele a

associao entre esse sentimento de preferncia e essa ideia de substituio 15.

Portanto, o sentimento de falta provoca no ser vivo a experincia do no h, da

negatividade. Como afirmar Bergson, ...tudo o que se exprime negativamente

por palavras, como o nada ou o vazio, mais afeco do que pensamento ou,

para dizer mais exatamente, uma colorao afetiva do pensamento16 17.

O domnio por excelncia da lida com a negatividade se encontraria nas

atividades regidas pela inteligncia. Segundo Bergson, a inteligncia humana

justamente o instrumento humano voltado para a lida com a prxis, de maneira a

suprir as expectativas frustradas. Enquanto o instinto animal fornece a gama de

conhecimentos de que o ser vivo depender para sobreviver, a inteligncia

funciona como ferramenta em aberto. Dotado de poucos conhecimentos inatos, o

homem pode constru-los em funo dos obstculos oferecidos pelo meio. a

que o homem fabrica e, ainda, a maneira como nada e fabricao se implicam.

Na fabricao nossa atividade almeja um produto, objeto afirmado para

cumprir uma demanda cria-se onde minha expectativa frustrada. Por isso

mesmo, a experincia de falta o fundo que antecede uma realizao

fabricadora.

Com estes apontamentos, Bergson elabora uma das mais engenhosas e

poderosas afirmaes de seu pensamento ao defender que o nada no pode ser

menos do que o real, algo que o anteceda na ordem da criao. O que ocorre

justamente o contrrio: sobre o pano de fundo da realidade constituda, as

determinaes biolgicas do homem inserem as noes de falta e negatividade.

Portanto, o nada mais, posterior ao real j dado.

O nada se infiltra na especulao filosfica como se esta fosse a sua

ptria. Para desfazer esta contaminao, Bergson reorienta seu pensamento para

um mergulho naquilo que a metafsica julgou necessrio fugir. A tradio

filosfica tende a considerar a experincia concreta como equvoco, fonte de

15 JUNIOR 1989, p. 55 16 BERGSON 1959, p. 733 17 Apesar da aparncia, a anlise bergsoniana de modo algum pretende ser antiptica ideia de nada. Tentar negar sua importncia seria efetuar s avessas um privilgio da especulao filosfica sobre o mundo vivido, algo decididamente evitado por Bergson. No caso do conceito de nada, ser sobre o solo da falta, da expectativa frustrada, que se erige o mundo da atividade humana.

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erros. Bergson certamente segue a tradio ao localizar a atividade filosfica fora

dos interesses da prxis. No entanto, o filsofo certamente no acompanha seus

antecessores ao caracteriz-la pejorativamente. Antes que a filosofia inicie, e

aqui Merleau-Ponty segue de perto a prerrogativa bergsoniana, j possumos uma

experincia de mundo. A ironia da anlise bergsoniana ser tentar mostrar como,

apesar de pretensamente negar a experincia cotidiana, a especulao filosfica

no fez mais do que seguir e radicalizar sua tendncia natural.

Seguindo ainda Merleau-Ponty, em seu ponto de contato com o filsofo

da durao, temos num comentrio a Bergson a afirmao de que o no ser, o

nada e a desordem so apenas uma maneira inteiramente verbal de significar que

ns esperamos outra coisa, e supem, desta forma, um sujeito j instalado no

ser18. A novidade da posio bergsoniana ser a de no negar, mas, ao contrrio,

enraizar seu pensamento na experincia concreta. Esta imerso permite a

Bergson realizar um cuidadoso trabalho de discernimento entre aquilo que

pertence ao mbito da prxis e o que deveria ser voltado ateno filosfica.

Deleuze ressalta como passo inicial da filosofia bergsoniana o de detectar

diversos tipos de mistos19. A ateno prestada experincia permite a Bergson

encontrar diferentes tipos de misturas percepo/memria, tempo/espao, etc.

Pensar o tempo sem desvincul-lo devidamente de espao sem dvida o mais

famoso destes mistos mal analisados. Se a metafsica pde conceber o tempo

degradao da eternidade, isto se deve ao fato postular um espao idealizado

como realidade primeira:

metafsica, ele [Bergson] reprovar essencialmente ver apenas diferenas de grau entre um tempo espacializado e uma eternidade supostamente primeira (o tempo como degradao, reteno ou diminuio de ser...) : todos os seres so definidos por uma descida at escala de intensidade, entre dois limites de uma perfeio e um nada (Ibid., p. 13)20.

18 Le vide, le non-tre, le nant, le dsordre ne sont jamais quune manire toute verbale de signifier que nous attendions autre chose, et supposent donc un sujet dj install dans ltre (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 18) 19 DELEUZE, 2007, p. 12 20 A la mtaphysique, il reprochera essentiellement de navoir vu que des diffrences de degr entre un temps spatialis et une ternit suppose premire (le temps comme dgradation, dtente ou diminution dtre) : tous les tres sont dfinis dans une chelle dintensit, entre le deux limites dune perfection et dun nant.

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O que se recusa numa ontologia deste tipo, em ltima instncia, a

prpria temporalidade. O movimento de devir passa a ser entendido como

degradao em relao plenitude do Ser, imprimindo uma carncia no mundo

fenomnico: a impossibilidade de coincidir perfeitamente com o ser puro. Bento

Prado Jnior denomina de ontologia da repetio21, talvez o principal ndice de

um pensamento do nada.

Bergson detecta em diferentes ontologias do pensamento grego algo

comum: aplicar ordem temporal uma essncia fixa, fazendo-o atravs da

eleio de um instante privilegiado. Mesmo Aristteles manteria um esquema

semelhante, apesar de pretender uma proximidade maior com o mundo concreto

do que Plato. Se a mobilidade dirige algo realizao da potncia aristotlica, o

momento anterior e posterior a esta plenitude so entendidos como deficincias

do tipo ainda no, ou no mais.

Submetido ao devir, a ameaa de deteriorao do ente o comprime entre

dois nadas o do no e o do no mais". Isto leva o pensamento a buscar

um refgio capaz salvaguardar o ser da contaminao pela experincia,

transferindo-o a um terceiro mbito, o do sempre foi ou deveria ser. desta

maneira que o devir se metamorfoseia numa fixidez retirada das amarras do

tempo. O ser, cuja experincia a princpio se mostra mesclada ao fenmeno, se

transforma em ente eterno, lgico. A metafsica se v assim ante a necessidade

de negar a experincia, e a operao filosfica consistindo em manipular

conceitos dela retirados:

[O] desdm da metafsica para toda a realidade que dura vem precisamente de que ela apenas chega ao ser passando pelo nada e que uma existncia que dura no lhe parece suficientemente forte para vencer a inexistncia e se impor ela prpria. sobretudo por esta razo que ela tende a dotar o ser de uma existncia lgica, e no psicolgica ou psquica (BERGSON, 2009, p. 276)22.

impossvel no remeter com isto s filosofias que viram a eficcia da

dialtica como o motor do pensamento. Bergson, no entanto, nunca se contentou

com a oposio de conceitos. Os pares tradicionais da filosofia, como 21 JNIOR, 1989, p. 62 22 le ddain de la mtaphysique pour toute ralit qui dure vient prcisment de ce quelle narrive ltre quen passant par le nant , et de ce quune existence qui dure ne luit parat pas assez forte pour vaincre linexistence et se poser elle-mme. Cest pour cette raison sourtout quelle incline doter ltre vritable dune existence logique, et non pas psychologique ou physique

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materialismo/espiritualismo, idealismo/realismo no fazem mais do que partir de

um mesmo equvoco, de modo que uma aproximao adequada do objeto desfaz

o prprio problema23.

A abolio do negativo abre caminho ao que os comentadores de Bergson

chamam de um pensamento da presena e diferena:

ausncia, que miragem instaurada pela prxis e que institui a Ontologia da Repetio, possvel opor o campo luminoso da Presena, como condio de possibilidade de uma descrio da histria do real enquanto contnua criao de novidade, enquanto ponto de confluncia entre liberdade e inteligibilidade: isto , durao (JNIOR 1989, p. 41).

Bergson encontra a abertura para a pura presena na durao e esta, por

sua vez, na experincia psicolgica do tempo. Tal ser o tema da prxima seo.

2.2. A durao descoberta na interioridade

Restituamos ao movimento sua mobilidade, mudana sua fluidez e, ao tempo, sua durao24.

Henri Bergson

De acordo com Franklin Leopoldo e Silva, o entendimento avesso

abordagem de realidades processuais que so essencialmente movimento e

mudana e em que as formas seriam secundrias em relao prpria

transformao 25. O filsofo brasileiro evidencia em seu comentrio como o

pacto entre o pensamento e a estabilidade surge pelo incmodo do pensamento

perante uma realidade mvel. Para Bergson, ns temos instintivamente medo

das dificuldades que suscitariam em nosso pensamento a viso do movimento,

nisso o que ele possui de movente 26. No toa que o filsofo detecte o

surgimento da metafsica do estvel e do eterno em um impasse terico: A

metafsica data do dia em que Zeno de Elia assinalou as contradies inerentes

23 O bergsonismo prope-se, justamente, ultrapassar esta fase dialtica da filosofia e desiste da eterna e estril oposio dos conceitos (JNIOR, 1989, p. 42). 24 Restituons au mouvement sa mobilit, au changement sa fluidit, au temps sa dure (BERGSON, 2009a, p. 9). 25 LEOPOLDO E SILVA, Franklin in: LECERF, E.; BORBA, S. & KOHAN, W (org.), 2007, p. 113 26 Nous avons instinctivement peur des difficults que susciterait notre pens la vision du mouvement dans ce quil a de mouvant (BERGSON, 2009, p. 161).

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ao movimento e mudana, tais como se os representa a nossa inteligncia 27.

Uma das ideias mais retomadas de Bergson, ela aponta para a entrada na

filosofia da condenao do tempo e sua postulao como dado puramente

deficiente em relao plenitude do que no muda.

Os pr-socrticos foram tambm denominados fsicos. Investigadores da

physis, o pensamento destes primeiros filsofos buscou encontrar o princpio

primordial ontolgico no mundo concreto. gua, fogo, ar se mantinham

inerentes concretude fsica dos corpos, ou, no caso dos elementos invisveis

como o amor ou infinito, ao menos misturados a eles. Zeno leva a cabo uma

srie de paradoxos cuja consequncia, bergsonianamente pensando, converte a

filosofia a uma metafsica ao invs de fsica. No evento da corrida assim como

em outros paradoxos, o filsofo grego expe a impossibilidade de o movimento

constituir dado suficiente para o pensamento.

Aquiles, o homem mais rpido do mundo, pretende apostar corrida com

uma tartaruga. Para dar-lhe justa vantagem, permite ao animal se adiantar em

alguns passos. Pior para Aquiles, aponta Zeno: comparando as distncias entre

os dois corredores, o filsofo grego mostra que a ultrapassagem jamais ocorrer.

Cada vez que Aquiles se aproxima do animal, este d mais um passo, sendo o

espao entre ambos infinitamente divisvel e, portanto, intransponvel.

Seguindo a argumentao de Bergson, Zeno no estaria errado em

afirmar o espao entre Aquiles e a tartaruga como intransponvel. Seu paradoxo,

portanto, legtimo no que afirma uma impossibilidade de extrair a explicao

da mudana no intervalo entre os corredores. O equvoco consistiria, no entanto,

em julgar que este esquema intelectual reconstri a realidade do movimento. A

ateno se fixa no caminho, no espao percorrido, ao invs de visar o

movimento. O percurso de Aquiles tartaruga se recompe artificialmente

atravs de uma sucesso de imobilidades, uma srie de estados inertes ou

instantneos.

Tal como proclama a intuio fundamental bergsoniana a de que o

tempo passa -, o movimento no ocorre em funo de um deslocamento espacial,

no pode se confundir com ele. Traduzi-lo como deslocamento em uma reta

27 La mtaphysique date du jour o Znon dle signala les contradictions inhrentes au mouvement et au changement, tels que se les reprsente notre intelligence (BERGSON, 2009a, p. 8).

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significa abstrair-lhe o que h de mais fundamental: o fato de ser um evento de

ordem temporal. Em um famoso exemplo presente na conferncia Introduo

metafsica, Bergson afirma:

Quando vocs levantam o brao, realizam um movimento cuja percepo simples possuem interiormente; mas exteriormente, para mim que observa, o brao passa por um ponto, depois por outro, e entre estes dois pontos haveria outros pontos ainda, de maneira que, se ele comear a contar, a operao prosseguir sem fim. Visto do interior, um absoluto coisa simples; mas entrevisto de fora, quer dizer, relativamente a outra coisa, ele se torna, com relao aos signos que o exprimem, a pea de ouro cuja moeda jamais chegar a equivaler (BERGSON, 2009a, p. 180)28.

Bergson contrape duas maneiras de se considerar o movimento: como

suscetvel de desmembramento e diviso, decomponvel quantitativamente

operao teoricamente estendvel at o infinito e outra que o enxerga como ato

nico, indivisvel, qualitativo, temporal. O ato simples de levantar uma mo se

confirma como realidade por um procedimento estranho argumentao

tradicional. Sou capaz de sentir, experienciar um sentido de movimento. As

construes tericas repugnam tal argumento como insignificante a uma

elaborao intelectual. Cada cincia ou filosofia procede tentando traduzir em

linguagem prpria aquilo que pretende explicar. Sejam conceitos filosficos ou

frmulas cientficas, o objeto considerado pela teoria se converte em linguagem

simblica. Quando afirma que a metafsica a cincia que pretende dispensar os

smbolos 29, Bergson se refere a um tipo de saber que abra mo de cdigos

conceituais e se aproxime da experincia.

Levantar um brao no representa simplesmente um evento de ordem

subjetiva contraposto a movimentos exteriores. Para Bergson, este movimento se

inscreve numa ordem universal de seres que se movem, mudam e que sou capaz

de constatar em mim mesmo. Ao invs de me colocar como sujeito em face de

um objeto que analiso, me encontro implicado numa ordem universal de eventos,

me aproximo e coincido com aquilo sobre o que reflito.

28 Quand vous levez le bras, vous accomplissez un mouvement dont vous avez intrieurement, la perception simple ; mais extrieurement, pour moi qui le regarde, votre bras passe par un point, puis par un autre point, et entre ces deux points il y aura dautres points encore, de sorte que, si je commence compter, lopration se poursuivra sans fin. Vu du dedans, un absolu est donc chose simple ; mais envisag du dehors, cest--dire relativement autre chose, il devient, par rapport ces signes qui lexpriment, la pice dor dont on naura jamais fini de rendre la monnaie. 29 BERGSON, 2009a, p. 135

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Janklvitch evoca justamente o paradoxo de Zeno como smbolo

mximo de pensamento feito distncia, ao qual Bergson contrapor outro, em

que pensamos o mundo na mesma medida em que dele nos aproximamos:

O ponto de vista de Zeno representa a perspectiva fantasmtica do espectador que se recusa a viver a durao e participar da ao...O ator no possui mesmo ponto de vista, j que ele interior ao drama e percebe de dentro todos os seus aspectos, j que ele prprio o representa...(JANKLVITCH, 1999, p. 73)30.

Se a filosofia pretende descrever a realidade da qual, obviamente,

fazemos parte, no h razo porque deveramos tomar distncia dela para

explica-la. preciso reposicionar o homem em meio ontologia que pretende

descrever, preciso que, antes de pensar algo, ele possa toc-lo. Se a realidade

tempo, Bergson encontra dentro de nossa interioridade este tempo em estado

vivo; antes de buscar defini-lo, tenta descrever sua experincia direta. Esta

mudana entre duas perspectivas a do espectador ao ator - se encontra no ponto

de partida da descoberta do tempo como durao.

Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia31, primeiro livro do

filsofo, evidencia o vcio do olhar intelectualista sobre o tempo e suas

respectivas consequncias. A redao da obra se fundamenta a partir de um

contexto especfico: a tentativa da poca de tratar a subjetividade a partir de

parmetros positivistas. No final do sculo XIX, os estudos psicolgicos

esperavam construir um conhecimento sobre a subjetividade seguindo

procedimentos cientficos. Segundo Bergson, no entanto, a interioridade possui

natureza distinta de objetos estudados pela cincia. A investigao da

interioridade necessitaria de uma radical mudana de olhar.

Para isto, Bergson julga estritamente necessrio traar uma distino

entre a subjetividade e objetos do mundo fsico. Isto porque a subjetividade

fornece apenas em aparncia a suposio de que seus estados possam ser

recortados e isolados. So estas palavras que abrem DI:

30 Le point de vue de Znon reprsente la perspective fantasmatique du spectateur qui refuse de vivre la dure et de participer lactionlacteur na mme pas de point de vue , puisquil est intrieur au drame et quil en aperoit du dedans tous les aspects la fois, puisquil en joue 31 Para esta obra ser utilizada a sigla DI

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Ns nos exprimimos necessariamente por palavras, e pensamos o mais das vezes no espao. Em outras palavras, a linguagem exige que ns estabeleamos entre nossas ideias as mesmas distines ntidas e precisas, a mesma descontinuidade que h entre os objetos materiais. Tal assimilao til na vida prtica, e necessria na maior parte das cincias. Mas se poderia perguntar se as dificuldades insuperveis suscitados por certos problemas filosficos no viriam do fato de que h a obstinao em justapor no espao fenmenos que no ocupam nenhum espao... (BERGSON, 2007, p. 1)32.

Diferentes escolas psicolgicas e doutrinas filosficas outorgavam a si

um real mtodo de investigao da subjetividade. Para Bergson, nenhuma destas

teorias chega a qualquer considerao vlida, j que no consideravam a natureza

prpria da vida interior - partiam de uma objetivao dos dados psicolgicos,

tratando-os de maneira semelhante aos objetos investigados pela Fsica clssica.

Esta, ao analisar a trajetria de uma partcula de um ponto a outro se concentra

nos aspectos quantitativos do movimento, como peso, quantidade de fora

aplicada, distncia percorrida, etc. 33. Uma linha representa a trajetria de uma

bola, por exemplo. Pontos descrevem os momentos iniciais e finais do evento. A

mo que a empurrou e o intervalo de tempo que leva de um ponto a outro so

simbolizados por nmeros designando a fora aplicada e a velocidade de

acelerao e desacelerao. Uma nica visualizao apresenta simultaneamente

todos os momentos do trajeto. A anlise deste evento o reduz medida extensiva

e quantitativa. O movimento de deslocamento do corpo representado numa linha,

tornou-se imobilidade. Quanto ao tempo, tornou-se simultaneidade, j que todos

os instantes do trajeto, do movimento inicial ao final, so acessveis numa

visualizao nica. Para a Fsica, portanto, a durao e a mobilidade so

traduzidos em parmetros espaciais, atravs dos quais o objeto pode ser

imobilizado e convenientemente estudado. Contudo, retomando a colocao de

32 Nous nous exprimons ncessairement par des mots, et nous pensons le plus souvent dans lespace. En dautres termes, le langage exige que nous tablissions entre nos ides les mmes distinctions nettes et prcises, la mme discontinuit quentre les objets matriels. Cette assimilation est utile dans la vie pratique, et ncessaire dans la plupart des sciences. Mais on pourrait se demander si les difficults insurmontables que certains problmes philosophiques soulvent ne viendraient pas de ce quon sobstine juxtaposer dans lespace les phnomnes qui noccupent point despace 33 O mesmo vcio que entende a criao como evento fabricador se evidencia neste caso: a subjetividade consistiria em um mecanismo complexo e o trabalho investigativo buscaria decompor suas partes at chegar s simples. Tal ponto ser melhor desenvolvido no captulo que tratar a intuio.

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Bergson sobre Zeno, o ponto e a linha no representam o movimento em si, mas

apenas o espao percorrido.

Uma das razes para a adoo de parmetros extensivos como modelo de

investigao sobre a subjetividade seria o relacionamento predominante do

homem com objetos dispostos no espao. Segundo Bergson, nossa concepo

ordinria da durao consiste em uma invaso gradual do espao no domnio da

conscincia pura34. Haveria com isto uma ntima conexo entre espacializar o

tempo e fazer o mesmo com a conscincia.

O tempo da subjetividade se desenrola em uma espcie de paradoxo ao

senso comum, pois estados de conscincia so indivisveis, no guardam

qualquer relao com o nmero ou a extenso. Alm de essa operao retirar do

tempo sua caracterstica mais essencial - a de durar e escoar incessantemente -

ela supe que os estados da conscincia possam ser alinhados. A subjetividade,

em sua caracterstica mais prpria, sucesso mltipla.

Multiplicidade, aqui, no possui qualquer relao com o nmero.

Quantificar a subjetividade implica em homogeneiz-la, reduzindo-a a

instantaneidades. Para Bergson, quantificar algo implica em distinguir unidades,

recort-lo, e isol-lo de certo contexto. O nmero guarda uma referncia

implcita visualizao de objetos num espao ideal, em que se destituem

qualidades singulares em favor de uma identidade entre os elementos35.

Bergson concebe a interioridade como multiplicidade heterognea. No

entanto, com isto no pretende designar um mltiplo quantitativo, mas

qualitativo. O sentido mais imediato de qualitativo aqui, implica a

impossibilidade de discernir estados isolados na interioridade. A conscincia no

se estrutura a partir da reunio de tomos, mas designa justamente uma fuso de

estados dispersos, tendncias e, mais importante, momentos passados em direo

ao futuro.

Sentimos alegria, podendo este sentimento crescer, diminuir e mesmo

mudar de qualidade, tornando-se tdio ou tristeza. Como explicar esta

inconstncia afetiva da subjetividade? Ou, em outros termos, de que maneira 34 Ibid., p. 94 35 Temos aqui a prpria gnese do que seria um conceito. Uma generalizao expressa pelo conceito ignora aspectos individuais, homogeneizando-os. Ao se contar um bando de cinquenta carneiros, por exemplo, o que se faz repetir a imagem de um deles cinquenta vezes (BERGSON, 2007, p. 57). Num conjunto de unidades, portanto, a nica distino entre objetos semelhantes ser a posio ocupada no espao.

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podemos explicar a mudana que ns mesmos experienciamos? Tanto na

filosofia, quanto nas cincias, a posio predominante justape linearmente

estados e, a partir da, toma-os como unidades passveis de comparao.

A subjetividade buscada por Bergson, no entanto, se mostra mais

propriamente quando recorremos a ela atravs de nossa experincia. O que

experimentamos com isto se confunde com o conceito proposto de durao um

fluxo que se abstm de estabelecer separaes, em que nos aproximamos mais

pela coincidncia do que pela anlise. Da tiramos a famosa passagem de EI, em

que se afirma que a durao totalmente pura a forma que toma a sucesso de

nossos estados de conscincia quando nosso eu se deixa livre, quando se abstm

de estabelecer uma separao o entre o estado presente e os anteriores36.

Em diversas passagens, Bergson compara a sucesso interna da

subjetividade com o desenrolar de uma melodia37 , cujo fenmeno se distingue

de um agregado justaposto de notas. Estas fazem sentido apenas se entendidas

como parte de um todo que a sua prpria execuo. Tomadas isoladamente,

elas no so mais do que sons dispersos e alinhados. A lgica da escuta musical,

por outro lado, depende de que uma nota escutada apenas faa sentido por conter

em si, virtualmente, a noo do todo da pea. De maneira anloga, a transposio

da mesma lgica para tratar da subjetividade transforma uma sucesso indivisvel

em um agregado de estados justapostos.

Os momentos da durao para a subjetividade no so exteriores uns aos

outros, sucedem-se sem se exclurem. Tal coexistncia mltipla no se explica

por uma atomizao da vida consciente. Como sabemos, no uma

multiplicidade numrica, quantitativa, que Bergson concede vida interior, mas

qualitativa. Segundo Janklvitch38 e Deleuze39 , a noo de multiplicidade

qualitativa no surge unicamente por uma oposio quantitativa, mas tambm

por proporcionar uma distino entre uma realidade temporal e outra espacial

(totalidades orgnicas e totalidades materiais, na designao de Janklvitch40).

36 La dure toute pure est la forme que prend la succession de nos tats de consciente quand notre moi se laisse vivre, quand il sabstient dtablir une sparation entre ltat prsent et les tats antrieurs (BERGSON, 2007, p. 74-5). 37 Mais uma vez a arte serve como comprovao para aspectos fundamentais do pensamento bergsoniano. 38 JANKLVITCH, 1999, p. 8 39 DELEUZE 1999, p. 29 40 JANKLVITCH, 1999, p. 6

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Um objeto pode ser dividido sem perder sua natureza, mudando apenas de

grandeza. A vida da subjetividade, por outro lado, se divide mudando de

natureza:

[U]m desejo obscuro se tornou, pouco a pouco, uma paixo profunda. Voc ver que a fraca intensidade deste desejo consistia, a princpio, em que ele parecia isolado e como estranho a todo o resto de sua vida interna. Mas, pouco a pouco, penetrou em um nmero maior de elementos psquicos, os tingindo por assim dizer com sua prpria cor; e eis que seu ponto de vista sobre a totalidade das coisas te parecer agora mudado (BERGSON, 2007, p. 6) 41.

A experincia nos apresenta, tal como este bonito exemplo nos mostra,

um tipo de sucesso que subverte a quantificao e atomizao da vida subjetiva.

Os estados emotivos redefinem o modo como a totalidade de nossa existncia

nos afeta. A diferena tamanha, que tais sentimentos no mereceriam nem ser

colocados sob o mesmo nome. O que revela esta inadequao , novamente, no

a anlise conceitual ou da razo, e sim nossa prpria experincia desses

sentimentos.

O exemplo de Bergson contm com isto uma crtica adicional para onde

sua crtica se dirige. Agrupados sob o mesmo conceito, Bergson mostra a

diferena interna entre variantes de um mesmo nome. No h escala capaz de dar

conta das nuances dessas variaes. O que nos permite contar e recortar uma

coleo de seres, vivncias ou outros entes em um agrupamento a suposio de

haver entre eles uma identidade. O papel da filosofia, segundo o filsofo deveria

ser o de protestar contra a substituio dos conceitos s coisas42. O ponto

crtico de Bergson, portanto, no pretende se voltar contra o conceito e a

linguagem cotidiana, e sim transposio de um quadro pragmtico para o

centro da especulao filosfica. Realizar esta equivocada transferncia, no

entanto, extremamente cmodo ao pensamento, pois ele se mantem dentro de

seu mbito familiar de orientao. A imobilizao do movente e da pluralidade

em funo de signos fixos e compartilhados seria, ento, o ponto de partida da

vida social, mas no servem filosofia. Bergson afirma:

41 un obscur dsir est devenu peu peu une passion profonde. Vous verrez que la faible intensit de ce dsir consistait dabord en ce quil vous semblait isol et comme tranger tout le reste de votre vie interne. Mais petit petit il a pntr un plus grand nombre dlments psychiques, les teignant pour ainsi dire de sa propre couleur ; et voici que votre point de vue sur lensemble des choses vous parat maintenant avoir chang. 42 BERGSON, 2009a, p. 95

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Como mais simples se ater s noes armazenadas na linguagem! Essas ideias foram formadas pela inteligncia na medida de suas exigncias. Elas correspondem a um recorte da realidade de acordo com as linhas que preciso seguir para agir sobre ela. O mais frequente, elas distribuem os objetos e os fatos de acordo com a vantagem que podemos tirar delas, jogando no mesmo compartimento intelectual tudo aquilo que interessa nossa necessidade (BERGSON, 2009a, p. 32)43.

Se o pensamento filosfico se erige com a pretenso de elaborar uma

reflexo sobre a realidade, ele deve afastar de si qualquer aproximao

fundamentada em interesses pragmticos. O mundo da prxis se serve das coisas

para algo. Se a experincia nos mostra oscilaes dentro de um mesmo

sentimento, o pensamento conceitual aplica a ele uma mera escala numrica de

menor ou maior grau.

As diferentes sensaes, pensamentos e percepes de nossas vivncias

formam uma pluralidade cujo desenrolar no algo que coincide

distanciadamente com o desenrolar temporal. O prprio tempo esse desenrolar,

a durao. O exemplo a seguir, retirado ainda de DI, mostra de que maneira uma

representao inadequada de tempo envolve um equvoco sobre a natureza da

interioridade44. Se nos concentrssemos durante um minuto no som produzido

por um relgio de pndulo, poderamos analisar este evento considerando as

batidas como sucesso idntica de sessenta segundos. Porm, essa imagem

apenas faz sentido caso pensemos neste intervalo como um alinhamento de

momentos justapostos. Projetando-os na linha espacializada do tempo, cada

segundo no seria mais do que uma unidade vazia e idntica s demais.

Do ponto de vista da conscincia, um minuto nunca um intervalo

idntico. Os segundos transcorridos no seguem a representao homognea,

mas coincidem com uma multiplicidade de sensaes e, ainda, a lembrana da

oscilao anterior. Os elementos da conscincia se fundem, se interpenetram e se

modificam a todo instante, so heterogneos e contnuos. Seu passado

indissocivel de seu presente e, dessa forma, dois estados internos nunca podem

43 Combien nest-il pas plus simple de sen tenir aux notions emmagasines dans le langage ! Ces ides ont t formes par lintelligence au fur et mesure de ses besoins. Elles correspondent un dcoupage de la ralit selon les lignes quil faut suivre pour agir commodment sur elle. Le plus souvent, elles distribuent les objets et les faits daprs lavantage que nous en pouvons tirer, jetant ple-mme dans le mme compartiment intellectuel tout ce qui intresse le mme besoin. 44 BERGSON, 2007, p. 171

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ser comparados: cada segundo acrescenta incessantemente algo de novo

totalidade do eu.

O trecho a seguir, do texto Bergson fazendo-se de Merleau-Ponty,

enfatiza a necessidade captada por Bergson de reformular critrios temporais em

comunho com a interioridade, ao invs de sua representao linear, indiferente e

homognea:

No compreendemos o tempo se o apertamos, como entre duas pinas, entre os marcos de referncia da medida, ou pelo contrrio, para dele termos ideia ser preciso deix-lo fazer-se livremente, acompanhar o nascimento contnuo que o torna sempre novo, e, justamente por isso, sempre o mesmo...O tempo , portanto eu, eu sou a durao que apreende, est em mim a durao que a si mesma apreende (MERLEAU-PONTY 1960, p. 278)45.

A criao, o termo discutido diretamente nesta tese, depende desta

liberao de um tempo como fazer-se livremente. J foi afirmado como a

produo do novo se segue como consequncia imediata da constatao de um

tempo que passa. Este, por sua vez, experimentado pela primeira vez na

interioridade. O tempo que passa e, ao passar, produz o novo na interioridade

constituir justamente a doutrina bergsoniana para o ato livre. Mais uma vez

tratar um tema consagrado pela tradio metafsica requer desfazer mal

entendidos que transformaram aquilo que se mostra diretamente como

mobilidade e experincia em conceitos estticos. preciso reencontrar a

liberdade em seu fluir temporal.

2.3. A liberdade enraizada

O livre arbtrio, no sentido usual do termo, implica a igual possibilidade de dois contrrios, e que no se pode, de acordo com o eu, formular ou mesmo conceber aqui a tese da igual possibilidade de dois contrrios sem se equivocar gravemente sobre a natureza do tempo46.

Henri Bergson

45 Nous napprochons pas le temps en le serrant, comme entre des pinces, entre les repres de la mesure, quil faut au contraire, pour en avoir ide, le laisser se faire librement, accompagner la naissance continuelle qui le fait toujours neuf et, en cela justement, toujours le mme...Le temps est donc moi, je suis la dur que je saisis, cest en moi la dure qui se saisit elle-mme. 46 Le livre arbitre, au sens habituel du terme, implique lgale possibilit des deux contraires, et quon ne peut pas, selon moi, formuler ou mme concevoir ici la thse de lgale possibilit des deux contraires sans se tromper gravement sur la nature du temps (BERGSON, 1972, p. 833).

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J foi mencionado como a durao bergsoniana atrela a si, alm da

constatao do tempo como passagem, o novo como seu desdobramento. Apesar

de ser um efeito do desdobramento do tempo, Bergson mostrar como o novo

apenas adquire existncia atravs de um ato de criao. Tal como afirma Frdric

Worms:

Toda a criao [portanto] o surgimento, pelo escoamento da durao ou por um esforo de nela mergulhar, do absolutamente novo..Se a criao contnua, ela encontra obstculos para se realizar, e se torna exigncia de criao, expresso empregada tanto a propsito da vida face matria, quanto a do artista face a seus materiais (WORMS, 2000, p. 18)47.

Existe, portanto, uma exigncia para a emergncia do novo, mas no um

modo nico como ocorre. H na obra de Bergson diversas maneiras de

acontecimento da criao. Cria-se uma obra de arte, um ato livre, um

pensamento, assim como no cosmos se criam formas de vida. No por acaso, a

novidade aparece logo na primeira incurso sobre a natureza do tempo. O estudo

que busca uma apresentao imediata da interioridade e a encontra na durao, o

descobre tambm se desdobrando na experincia da liberdade.

Se o tempo foi pensado comumente como espao, constituindo este o

parmetro para se compreender a realidade, a abordagem tradicional sobre o ato

livre o enquadrar da mesma forma. isto que Bergson encontra nas concepes

clssica de liberdade, que enxergam o ato livre em um modelo deliberativo. A

deliberao justifica uma escolha, torna-a coerente e aceitvel para si e para os

demais. Enquanto seres racionais, espera-se que a ao humana caiba em

argumentos e premissas consistentes que, somados, desembocam, como

consequncia natural, na deciso tomada. Caso nos lembremos dos modelos

clssicos de criao, no teremos dificuldade em enxergar semelhana entre a

deliberao e a criao do Deus artfice, enquadradas numa atividade

fabricadora.

47 Toute cration est donc le surgissement, par l'coulement mme de la dure ou par un effort pour s'y replonger, de l'absolument nouveau... si la cration est continue, elle rencontre des obstacles pour se raliser et devient exigence de cration , expression employe aussi bien propos de la vie face la matire (EC, chap. III) que de l'artiste face ses matriaux.

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Em seu sentido usual, a liberdade se representa como impasse

deliberativo: chega-se a um ponto O e, ali, erige-se aes possveis por

exemplo, X e Y -, direes excludentes de uma bifurcao. Como apenas se pode

tomar uma das vias, necessrio medir vantagens, visualizar antecedentes e

consequncias de cada opo. Feita a escolha, desfaz-se a miragem de possveis,

materializando aquela representada pela deciso.

O substancialismo vulgar quer a todo custo que a deliberao preceda e prepare a resoluo, como a resoluo precede, por exemplo, a execuo; e isto, porque, logicamente, deve-se hesitar antes de decidir, porque o ato livre deve ser possvel antes de ser real, porque a volio deve se assemelhar a uma fabricao no curso do qual o ato se constri por pedaos passando gradualmente de uma existncia virtual ou deliberada existncia atual ou resolvida. Mas uma experincia verdadeiramente contempornea da ao demonstra, ao contrrio, que delibera-se aps haver escolhido, mais do que antes da resoluo (JANKLVITCH 1999, p. 60)48.

O debate entre determinismo e defensores do livre-arbtrio, principais

teorias com as quais Bergson se ope, toma o esquema deliberativo como fato

inquestionvel, restringindo a disputa terica em esclarecer a fora determinante

no momento da escolha. Para os deterministas, a memria ou alguma outra

influncia constrangeria invariavelmente a deciso tomada. Para a tese oposta,

teramos uma interveno especulativa, cuja autonomia consistiria justamente em

quebrar a corrente de influncias para adicionar uma ao autnoma e

independente. No determinismo tomamos decises ilusrias, efeitos de causas,

contrastando com uma causa ex nihilo, inteiramente independente e autnoma na

escola oposta49.

O esquema tradicional para o livre arbtrio entende j parte de um tempo

artificializado e confundido com espao. H um desenvolvimento linear para a

deliberao, com ntida diviso em quatro momentos: concepo de aes

48 Le substantialisme vulgaire veut, toute force, que la dlibration prcde et prpare la rsolution, comme la rsolution prcde, par exemple, lexcution ; et cela, parce que logiquement on doit hsiter avant de dcider, parce que lacte doit tre possible avant dtre rel, parce que la volition doit ressembler une fabrication au cours de laquelle lacte se construit par morceaux en passant graduellement par lexistence virtuelle ou dliber lexistence actuelle ou rsolue. Mais une exprience vraiment contemporaine de laction dmontre, au contraire, quon dlibre aprs avoir rsolu bien plutt quavant rsoudre 49 A filosofia moral da tradio se apoia geralmente na causa ex nihilo. Seja em sua concepo religiosa ou ateia, a ao pautada por um princpio externo julga necessrio moldar as aes de acordo com o princpio da obrigao. O ato escolhido parte de um princpio transcendente e, portanto, inteiramente impessoal em relao quele que o pratica.

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possveis, reflexo, deciso por uma delas, e execuo da opo escolhida.

Bergson insiste para o fato de que tanto a filosofia quanto as cincias humanas se

enganam sobre a experincia da liberdade, pois ao fantasiarem a afirmao da

escolha como caminho especulativo, definem uma concepo apoiada no modelo

fabricador. A ao retirada de um fundo de possveis se assemelha ao trabalho de

um arteso, concebendo diante de si opes cristalizadas em possveis antes de

torn-las ato.

Retornar ao problema da liberdade como consequncia imediata de uma

concepo de tempo como durao tambm reafirmar a inviabilidade do

modelo fabricador para pensar a realidade. Existe uma inadequao no

tratamento da liberdade, partilhada mesmo por defensores do livre arbtrio.

A deliberao de uma escolha, para o modelo clssico, se depara com

possveis, tais como direes traadas de uma estrada. Afirma o filsofo: essas

direes se tornam, assim, coisas, verdadeiros caminhos no qual chegaria a

grande estrada da conscincia, e pelos quais me caberia me enveredar

indiferentemente 50. O livre arbtrio reduziria a ao simples escolha entre

opes cristalizadas, como se sua realizao se limitasse a tomar uma via. O

agente se julga indiferente prpria escolha, j que so regras da razo qu