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infância é repleta de situações que causam medo e apreensão nas cri- anças. Algumas delas são reais, como arrancar o primeiro dente- de-leite, ir ao médico ou andar de montanha-russa. Outras são apenas fruto da imag- inação e da fantasia, mas, nem por isso, menos assustadoras. Pesquisas feitas pela Universidade de São Paulo (USP) mostram que 50% das crianças brasileiras com idade entre quatro e seis anos têm dificuldade de dormir no escuro e 30% sofrem de pesadelos re c o rrentes. Na maioria das vezes, as causas dos distúrbios estão diretamente rela- cionadas com o medo de personagens fictícios, como fantasmas, monstros e outras lendas da noite. Segundo especialistas, é preciso tomar mais cuidado para lidar com este tipo de situação. O medo de personagens irreais pode ser extrema- mente prejudicial para a formação da personali- dade da criança e ter repercussões negativas até a idade adulta. “Dependendo do teor da maldade e de como as lendas são abordadas, as conseqüências futuras podem ser muito sérias, como baixa auto- estima, insegurança, paralisia diante de situações diversas, dependência e, até mesmo, violência”, explica a psicóloga infantil Juliana Fagundes. Julho/Dezembro de 2003 50 “Pega esse menino que tem medo de careta...” ANA PAOLA OLIVIERI, CAMILA QUINTELA, CLARISSE MANTUANO E PAULA DIAS As lendas da noite e o imaginário infantil Reza a lenda que quando uma mulher tem sete fi- lhas e o oitavo é um menino, este será um lobi- somem. O filho nasce normal, mas ao completar 13 anos a maldição começa. Na primeira sexta-feira após seu aniversário, ele sai à noite e dirige-se a uma encruzilhada, onde se transforma pela primeira vez em lobisomem. A partir daí, toda sexta-feira ele percorre ruas e estradas desertas acompanhado de um bando de cachorros e matan- do quem estiver no caminho. Antes de amanhecer, ele volta ao ponto de onde partiu e se transforma novamente em homem. Lobisomem Frank Frazetta

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infância é repleta de situações quecausam medo e apreensão nas cri-anças. Algumas delas são re a i s ,como arrancar o primeiro dente-de-leite, ir ao médico ou andar de

m o n t a n h a - russa. Outras são apenas fruto da imag-inação e da fantasia, mas, nem por isso, menosassustadoras. Pesquisas feitas pela Universidade deSão Paulo (USP) mostram que 50% das criançasbrasileiras com idade entre quatro e seis anos têmdificuldade de dormir no escuro e 30% sofrem de

pesadelos re c o rrentes. Na maioria das vezes, ascausas dos distúrbios estão diretamente re l a-cionadas com o medo de personagens fictícios,como fantasmas, monstros e outras lendas da noite.

Segundo especialistas, é preciso tomar maiscuidado para lidar com este tipo de situação. Omedo de personagens irreais pode ser extrema-mente prejudicial para a formação da personali-dade da criança e ter repercussões negativas até aidade adulta. “Dependendo do teor da maldade ede como as lendas são abordadas, as conseqüênciasfuturas podem ser muito sérias, como baixa auto-estima, insegurança, paralisia diante de situaçõesdiversas, dependência e, até mesmo, violência”,explica a psicóloga infantil Juliana Fagundes.

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“Pega esse meninoque tem medode careta...”

ANA PAOLA OLIVIERI, CAMILA QUINTELA, CLARISSE MANTUANO E PAULA DIAS

As lendas da noite e o imaginário infantil

Reza a lenda que quando uma mulher tem sete fi-lhas e o oitavo é um menino, este será um lobi-somem. O filho nasce normal, mas ao completar 13anos a maldição começa. Na primeira sexta-feiraapós seu aniversário, ele sai à noite e dirige-se auma encruzilhada, onde se transforma pelaprimeira vez em lobisomem. A partir daí, todasexta-feira ele percorre ruas e estradas desertasacompanhado de um bando de cachorros e matan-do quem estiver no caminho. Antes de amanhecer,ele volta ao ponto de onde partiu e se transformanovamente em homem.

Lobisomem

Frank Frazetta

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A psicóloga adverte que os paisprecisam estar sempre atentos àsreações de seus filhos para saberemo momento de intervir. De acordocom Juliana, sentir medo faz bempara a criança, porque estimula adefesa e evita situações de risco,mas há um limite que precisa serrespeitado para que não surjamseqüelas psíquicas. “O limite de-pende de cada criança, é umaquestão de bom senso dos pais.Quando surgirem problemas elesdevem reagir dando carinho, aten-ção e conversando bastante paraesclarecer as dúvidas. Mas o principal é estaremsempre presentes”, explica.

Juliana afirma que, apesar dos transtornos, excluiras lendas infantis da realidade familiar não é a me-lhor saída para resolver os conflitos psicológicos queestas podem causar. Segundo ela, entrar em contatocom histórias imaginárias enriquece a vivência dascrianças e facilita a compreensão dos valores da cul-tura humana, pois os conceitos são passados def o rma simbólica. A partir do contato com as lendasinfantis, as crianças começam, de forma incons-ciente, a elaborar seus próprios sentimentos e a iden-tificar as opções de comportamento existentes. Istoo c o rre porque elas são colocadas de frente com seusconflitos internos e precisam descobrir a melhorf o rma de reagir em cada situação.

O medo faz parte do processo e raramente pode serevitado, uma vez que as crianças ainda não con-

seguem separar a realidade da fan-tasia e, portanto, vivenciam re a l-mente as histórias que lhes são con-tadas. “A criança imagina, acre d i t ae vive a história de que o vampirovai mordê-la ou o Bicho-Papão vaisepará-la de sua mãe”, explicouJuliana. “Porém, é mostrando omedo que a criança expressa suaangústia em desempenhar umafunção. O medo mostra o limite doser humano, mostra que não somoscapazes de tudo e que tambémpodemos fracassar. Adquirir estaexperiência é importante para a cri-

ança”, acre s c e n t a .Já a pedagoga Maria Augusta Sá Barreto acre d i-

ta que incentivar as crianças a acreditar naslendas é um recurso utilizado por pais e edu-c a d o res para impor limites ao comport a m e n t oinfantil. De acordo com ela, os adultos re l a t a m

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A Mula-Sem-Cabeça, segundo a lenda, é umamulher que namorou um padre e foi amal-diçoada, transformando-se num monstro .Desde estão, toda madrugada de quinta parasexta-feira ela perc o rre povoados em busca dealguém para chupar os olhos, unhas e dedos.Quando sai, é possível ouvir seu galope, acom-panhado de longos relinchos e, às vezes, tam-bém seu choro. Caso alguém encontre com aMula, deve deitar de bruços no chão e esconderos dedos para não ser atacado.

Mula-Sem-Cabeça

“No momento em queos pais desfazem oconto de que é o

Papai Noel que trazos presentes de Natal,

a decepção tende aser muito grande”Maria Augusta Sá Barreto

A pedagoga Maria Augusta Sá Barreto desaprova aimposição de limites através do medo.

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histórias de seres fantásticos, dotados de forçass o b renaturais e incrível maldade, como meio dea l e rtar as crianças para eventuais situações deperigo ou, simplesmente, para fazer com quecumpram o que lhes foi ordenado. Maria Augustaa f i rma que a educação pela coerção traz efeitosnegativos sérios para o desenvolvimento das cri-anças: “As lendas fazem com que as crianças sesintam inseguras e apresentem medo de figurasnão reais, criadas pelo seu próprio imaginário.Muitas vezes, este mecanismo faz com que vivamem um mundo de fantasia. O único efeito positivoé para a família, que consegue uma forma de limi-tar a criança em suas atitudes”.

No artigo “Cuidado, senão o bicho te pega”, apsicóloga Denise Mendonça de Melo, mostraopinião semelhante. Ela afirma que educar umacriança através do castigo, da punição e da ameaçanão traz efeitos reais sobre seu comportamento.Segundo sua opinião, a crítica ou o medo impedema criança de agir errado apenas porque ela quer seramada e aprovada pelos pais, e não porque tenhavontade de agir certo. “Conter as atitudes de umacriança com os fundamentos do medo e da insegu-rança não contribui para um desenvolvimentopsíquico saudável, mas proporcionam a formaçãode uma personalidade fraca, fóbica e dependente,que orienta suas ações através do medo de supostaspunições advindas do mundo externo”.

Marlene Barbosa, de 20 anos, é um exemplo decomo este mecanismo de educação pode ser preju-dicial ao crescimento saudável das crianças. Elaconta que tinha tanto medo das lendas noturnasque sua bisavó lhe contava que se condicionou acertos hábitos, e os cumpre até hoje. Jamais dormiucom a porta do armário aberta, pois de lá saíamespíritos maus durante a noite. Também nuncadeixou roupas espalhadas pelo quarto – pois quan-do anoitecia, “os fantasmas usavam aqueles panospara passear” – ou deixou louça suja na pia, já queos espíritos vinham se alimentar daqueles restosdurante a noite. Ela conta que hoje percebe que ashistórias eram apenas um meio mais fácil usadopela bisavó para educá-la, mas que, mesmo assim,não consegue conter os hábitos adquiridos naquelaépoca.

Assim como na história de Marlene, as lendasusadas pelos pais para exercer controle sobre as cri-anças são, em geral, simples, oriundas do folclore eda superstição, e tratam de assuntos práticos, como

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É um homem mau que anda com um enorme saconas costas à procura de crianças malcriadas. Quandoencontra uma que esteja sozinha na rua, ele a colocadentro do saco e a leva para longe dos pais. Chegandoem sua casa, ele retira os olhos de sua vítima paracomê-los e depois joga o corpo na beira da estrada.

Velho do saco

Juliana Fagundes: “O medo pode trazer conseqüênciasfuturas muito sérias”.

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dormir, comer, não fazer bagunça e não falar comestranhos. Existem centenas de lendas diferentes,cada uma trazendo a especificidade da cultura dolocal onde é criada. No Nordeste brasileiro, porexemplo, é muito difundida a história do Papa-Figo, que tem por objetivo alertar as crianças parao perigo do contato com estranhos.Segundo a lenda, um homem víti-ma de uma doença que deformouseu corpo, se transformou nummonstro e, desde então, sofre dedores terríveis que só param quan-do ele come o fígado de uma cri-ança. Com isso, toda noite ele per-corre as ruas das cidades numaKombi branca em busca de cri-anças que estejam sozinhas. Paraatrair sua atenção, o Papa-Figodistribui doces, presentes, dinheiroe comida. Após extrair e comer ofígado, o monstro deixa ao lado docorpo da criança dinheiro sufi-ciente para pagar as despesas como enterro.

Há também a Cabra-Cabriola, um monstro quesolta fumaça pelos olhos, nariz e boca e gosta deatacar crianças levadas. Toda noite, ela entra nascasas pelos telhados para comer meninos malcria-dos e desobedientes. Ela tem um ótimo faro e sabeonde as crianças travessas estão. Portanto, em casade menino obediente, a Cabriola não chega nemperto. Ela é prima do Bicho-Papão – o monstro maistemido pelas crianças – que tem o corpo peludo, osolhos vermelhos e os dentes afiados e se escondedebaixo da cama ou dentro dos armários para tam-bém atacar crianças levadas.

Maria Augusta explica que os adultos podemaproveitar estes personagens para passar ensina-mentos para as crianças de uma forma mais lúdicae simbólica, porém, é necessário que mostrem queas histórias são fictícias e que não há o que temer.Ela acrescenta que há outras formas de incentivar a

imaginação e a criatividade dascrianças que não seja pela narrati-va de histórias irreais. “No momen-to em que os pais desfazem o contode que é o Papai Noel que traz ospresentes de Natal, ou a criançad e s c o b re por conta própria, adecepção tende a ser muito grande,podendo levar, inclusive, a umaperda de confiança naquilo que éfalado pelos pais”, afirma a peda-goga.

Entretanto, a psicóloga JulianaFagundes acredita que a descobertade que seres como o Bicho-Papão eo Papai Noel são fantasias é impor-tante para o amadurecimento da

criança: “Perdas e lutos fazem parte do processo decrescimento. Essa descoberta é um processo natural,mas é dolorosa. É a poção mágica ficando maisfraca e a realidade mais forte dentro de nós. É partedo descobrimento de que a mamãe e o papai nãosão perfeitos, que eles erram e que também podemser maus”.

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“Conter as atitudesde uma criança com

os fundamentos do medo e da

insegurança não contribui para umdesenvolvimento

psíquico saudável”Denise Mendonça de Melo

Lenda muito conhecida por causa das históriasde Monteiro Lobato. É uma bruxa velha e feia queameaça crianças desobedientes que não queremdormir à noite. É personagem, inclusive, de umaconhecida canção de ninar: “Nana neném, que aCuca vem pegar. Papai foi na roça, mamãe foitrabalhar”. Se a criança não dormir, a Cucaaparece e a leva embora. Desta forma, a criançanunca mais volta a encontrar seus pais.

Cuca