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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Pela liberdade : a história do habeas corpus coletivo para mães

& crianças. -- São Paulo : Instituto Alana, 2019.

Vários autores.

Bibliografia.

ISBN 978-85-99848-17-3

1. Filhos de prisioneiras - Brasil 2. Habeas corpus - Brasil 3.

Habeas corpus coletivo 4. Habeas corpus - Leis e legislação -

Brasil 5. Habeas corpus - Jurisprudência - Brasil 6. Mulheres

prisioneiras.18-1648

19-23453 CDU-343.155(81)(094.9)

Índices para catálogo sistemático:

1. Brasil : Jurisprudência : Habeas-corpus :

Processo penal 343.155(81)(094.9)

2. Jurisprudência : Habeas-corpus : Brasil :

Processo penal 343.155(81)(094.9)

Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

pela liberdade

a história do habeas corpus coletivo para mães e crianças

realização

Instituto Alana e Coletivo de Advovacia em Direitos Humanos

textos

Alexandra Sánchez, Ana Carolina Oliveira Golvim Schwan, Ana Fernanda Ayres

Dellosso, André Ferreira, Bernard Larouzé, Bruna Angotti, Carolina Vieira, Dafne

Sampaio, Débora Nachmanowicz de Lima, Eloísa Machado de Almeida, Guilherme

Perissé, Guilherme Ziliani Carnelós, Gustavo de Castro Turbiani, Hilem Oliveira,

Isabella Henriques, Leonardo Biagioni de Lima, Luciana Simas, Luisa Musatti

Cytrynowicz, Maria do Carmo Leal, Maria Eduarda Dacomo Coelho Borges, Mateus

Oliveira Moro, Mayara Souza, Michael Mary Nolan, Miriam Ventura, Nathalie Fragoso,

Paula Sant'Anna Machado de Souza, Pedro Hartung, Pedro Rivellino Lourenzo, Thaís

Dantas, Thiago de Luna Cury, Vilma Diuana e Viviane Balbuglio.

coordenação editorial

Renata Assumpção

revisão

Fábio Vanzo, Renata Assumpção & Carla Egydio

projeto gráfico

Marianne Meni & Alex Gyurkovicz

produção gráfica

Marianne Meni & William Nunes

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“Poderíamos escolher ser uma nação

que oferece cuidado, compaixão e atenção

àqueles que estão trancados e excluídos

ou aos que são encaminhados para a prisão

antes mesmo de terem idade para votar.

Poderíamos desejar a eles as mesmas

oportunidades que desejamos para nossos filhos;

nós poderíamos tratá-los como um de "nós".

Poderíamos fazer isso. Ou podemos escolher

ser uma nação que humilha e culpa seus mais

vulneráveis, lhes dá uma marca de desonra

na mais tenra idade, e depois os relega a um

status permanente de cidadãos de segunda

classe pelo resto da vida.

Michelle Alexander, The New Jim Crow

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01.

02.

filhos & a lgemas nos braços :o en frentamento do encarceramento f emin ino & suas graves consequênc ias soc ia i s10

para a lém das grades20

03.

04.

part ic ipação soc ia l para uma jus t i ça mai s inc lus iva & democrát ica 30

acórdão102

03 .01 . in fânc ia &matern idade sem grades 38

03 .02 . saúde materna e in fant i l nas pr i sões : contr ibu ições para o habeas corpus co le t ivo 143 .641 48

03 .03 . o caos pr i s iona l e a a tuação da De fensor ia Púb l ica do Es tado de São Paulo na de fe sa de mães no cárcere 56

03 .04 . s e le t iv idade pena l , encarceramento em massa e a dec i são pe la pr i são domic i l iar de mães & gráv idas 68

03 .05 . pr i são domic i l iar para quem não tem casa : a s i tuação das mulheres migrantes em con f l i to com a l e i no Bras i l 76

03 .06 . o d ire i to a umamudança de o lhar 84

03 .07 . na lu ta por med idas imed ia tas , de méd io e longo prazo , pe lodesencarceramento 94

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o en frentamento do encarceramento f emin ino & suas graves consequênc ias soc ia i s

f i lhos & a lgemas nos braços :

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13 filhos & algemas nos braços

Em novembro de 2015, as integrantes do Coletivo de Advocacia em Di-reitos Humanos (Cadhu) distribuíram entre si a tarefa de refletir e construir um habeas corpus coletivo em favor de todas as mulheres encarceradas no Brasil. O movimento se iniciou antes mesmo da aprovação da Lei 13.257/2016, o Marco Le-gal da Primeira Infância, e se insere entre as ações da sociedade civil no enfrenta-mento da questão carcerária tal como ela se manifesta no Brasil, em sua tendência de crescimento, em sua seletividade racial, em sua precariedade e violência.

Em maio daquele ano, havia sido impetrada a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, em cuja apreciação cautelar o Supremo Tri-bunal Federal (STF) reconheceu a “inequívoca falência do sistema prisional bra-sileiro"; a superlotação generalizada; a incidência de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos e degradantes; a suscetibilidade ao adoecimento físico e mental; a privação de condições de autocuidado e de acesso a políticas públicas universais; a vocação seletiva. A ADPF 347 inaugurou um espaço de questionamento global do sistema prisional e endereçamento estrutural das distorções apontadas. Nos colocamos a empreitada aqui descrita para potencializar a ADPF 347, intensificar a percepção da violência inscrita no cárcere, colocar a forma como as mulheres a experimentam no centro do debate, circular as informações disponíveis sobre o en-carceramento feminino e seus impactos e, por fim, para insistir na admissibilidade e indispensabilidade de um remédio coletivo à violação.

Segundo os dados do Ministério da Justiça1, 42.355 mulheres estavam presas em junho de 2016 no Brasil, havendo 18.274 novas inclusões apenas no primeiro semestre daquele ano. Desconsiderando o fluxo de entrada e

1 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Levantamento nacional de informações penitenciárias: INFOPEN Atualização - Junho de 2016. Org. Thandara Santos. Brasília: Ministério da Justiça e da Segurança Pública, 2017. Disponível em: < http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento--nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf/view>. Acesso em: 06 fev. 2019. 2 Apresentado em 2017, com dados de 2014.

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saída, são seis mil mulheres a mais do que reportamos, quando da apresentação do pedido2, num sistema que registra uma taxa de ocupação média de 197,4%. A base de dados daquele ano registra também a existência de 563 mulheres en-tão gestantes – dados, aliás, consistentes com o informado em 2018 pelo Conse-lho Nacional de Justiça –, 357 em fase de aleitamento e 1803 crianças inseridas em estabelecimentos prisionais do país3.

No que diz respeito às mulheres grávidas, a síntese das condições a que são submetidas converte toda gestação vivida no cárcere em uma gestação de risco. Para além da falha em viabilizar um ambiente confortável, alimentação adequada e outros fatores condicionantes de um desenvolvimento gestacional saudável, ex-perimenta-se a privação de acompanhamento pré-natal regular, de acesso a exames laboratoriais e de imagem, de serviços que permitam o monitoramento do desenvol-vimento fetal, a identificação, o tratamento e a prevenção da transmissão de enfer-midades. Vale notar que essas privações são experimentadas num ambiente infecto, propício à transmissão de doenças e que registra, mesmo com a limitada capacidade de diagnóstico clínico, uma incidência de HIV 138 vezes maior que a observada na população geral e, de tuberculose, 49 vezes maior4.

Negligência, falta de infraestrutura e de pessoal para o amparo das gestan-tes em trabalho de parto caracterizam o capítulo seguinte da maternidade no cárcere. As equipes subdimensionadas das unidades de privação de liberdade falham do pronto socorro; as gestantes experimentam sujeição, solidão e alie-nação das decisões relacionadas ao parto. Como epítome da perversidade, está a reiteração dos partos desassistidos nas próprias unidades prisionais ou da sujeição ao uso de algemas5 e à escolta policial durante a internação hospitalar. Não há tampouco estrutura ou pessoal para atenção ao puerpério e o prazo mínimo de seis meses, estabelecido como garantia do convívio e aleitamento materno, é ora desrespeitado, ora convertido em prazo máximo.

Se há a possibilidade de ficar com as crianças, as mães são submetidas a um regime de ociosidade, isolamento e disciplina. Se não há ou quando se encerra o período dentro do qual essa convivência é permitida, é imposta uma separação abrupta e insuscetível de questionamentos. Em seguida, recorre-se à família da pessoa presa para assunção do cuidado das crianças. Caso não seja bem-sucedida

a tentativa de contato ou não haja familiares disponíveis, as crianças são institu-cionalizadas e, não raro, o desfecho da trajetória aqui brevemente recontada é a destituição do poder familiar e a permanente ruptura do vínculo materno-filial.

Se posta a partir da perspectiva das filhas e filhos dessas mulheres, esta é uma história de permanente risco à vida, à saúde e de comprometimento do desenvolvimento de indivíduos merecedores de proteção integral e absoluta prioridade. Cabe fazer constar que, ainda que a família tente manter, na medi-da do possível, os vínculos afetivo-familiares por meio de visitas, encontrará o obstáculo das revistas vexatórias. A revista íntima vexatória é uma realidade do cotidiano do sistema prisional, que insiste na prática e a impõe nos estabeleci-mentos de privação de liberdade brasileiros, inclusive às crianças. Pelos efeitos que produz, pelo agudo sofrimento psicológico infligido, pela participação de funcionários públicos e consentimento do Estado, a revista vexatória consti-tui tratamento cruel, desumano e degradante e, em assim sendo, é proibida no âmbito da Constituição Federal (art. 5º, III) e em tratados dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção contra a Tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes (art. 16, 1) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 5º, 1, 2 e 3).

Este quadro de violações, além de implicar a transgressão dos limites nor-mativos postos pela Constituição (art. 5o, III, XLVII, XLVIII, XLIX), pelo Esta-tuto da Criança e do Adolescente (artigo 8o), pela Lei de Execução Penal (arts. 82 e 83), é evidentemente discriminatório. O aumento expressivo do encarce-ramento feminino associado ao comércio de drogas, ao ponto de consistir em 62% das incidências penais pelas quais as mulheres se encontram privadas de liberdade, a rigorosa disciplina legal do tráfico, a vocação seletiva da segurança pública, a atribuição de penas ou medidas cautelares que negligenciam a con-dição de mulher, a precariedade das instalações prisionais e sua a desatenção às condições de exercício de direitos reprodutivos, impactam as mulheres de maneira desproporcional. Especialmente, as mulheres negras. Toda forma de exclusão, distinção ou restrição baseada no gênero, que tenha por propósito ou efeito constituir um obstáculo ao exercício de direitos por mulheres é discri-minação de gênero. Também por isso, a prisão destas mulheres é abominável.

Quando uma prisão cautelar é imposta a uma mulher gestante ou mãe, portanto, este é o conjunto de restrições imbricado na limitação da liberdade de locomoção. Este é o contexto no qual se desdobra o exercício da atividade persecutório-punitiva do Estado brasileiro. Este é o cenário no qual a cons-titucionalidade e a legalidade das ordens de prisão desafiadas no HC 143.641 deve ser avaliada. Trata-se de espaços superlotados, insalubres e desequipados, inaptos a prover cuidados de saúde materna às mulheres privadas de liberdade.

2 Apresentado em 2017, com dados de 2014.

3 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Levantamento nacional de informações penitenciárias: INFOPEN Atualização - Junho de 2016. Org. Thandara Santos. Brasília: Ministério da Justiça e da Segurança Pública, 2017. Disponível em: <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/infopen>. Acesso em: 06 fev. 2019.

4 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Levantamento nacional de informações penitenciárias: INFOPEN. Brasília: Ministério da Justiça e da Segurança Pública, 2016.

5 Só recentemente proibido, por meio da Lei nº 13.434/2017.

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Trata-se de exposição à doença e violência. Para as crianças, trata-se de risco à vida e obstáculo ao desenvolvimento saudável, pela sujeição a um ambiente inadequado, pela privação do acesso à saúde e ao convívio familiar.

Não pode a pessoa presa, em particular aquela submetida à prisão cautelar, ter direitos restringidos para além do previsto em dispositivos legais (artigo 3º, 40, 41, 45 da Lei de Execução Penal, artigo 38 do Código Penal). Não pode a pena, tampouco a cautela, restringir o exercício de direitos dos filhos e filhas das mulheres privadas de liberdade. Não há, no ordenamento jurídico brasilei-ro, hipótese de cabimento de privação degradante de liberdade. E, no entanto, o número de mulheres encarceradas provisoriamente permanecia em franco crescimento, ainda que gestantes, ainda que nutrizes, ainda que mães. Perma-necia crescendo, ainda que a prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória deva ser excepcional (CF art. 5º, LVII e LXVI) e sua decretação, precedida pela adequada consideração de circunstâncias pessoais e pelo afas-tamento motivado das alternativas previstas no rol de medidas cautelares. Per-manecia crescendo, ainda que as hipóteses de substituição de prisão preventiva por domiciliar tenham sido alargadas para contemplar as especificidades e vul-nerabilidades da maternidade do cárcere, nos termos do artigo 318, incisos IV e V, do Código de Processo Penal, por força do Marco Legal da Primeira Infância.

A propósito, a entrada em vigor do Marco consistiu num ponto de inflexão dessa caminhada. A habilitação de mais um mecanismo alternativo à privação de liberdade em ambiente carcerário levou-nos à escolha estratégica de prio-rizar, naquele momento, o pleito em favor das presas provisórias. O acompa-nhamento de sua aplicação escancarou, além disso, a dupla recusa do Poder Judiciário brasileiro. Primeiro, a recusa em considerar a situação do sistema penitenciário nacional e a consequente ilegalidade da prisão preventiva decre-tada a mulheres gestantes ou mães de crianças. Segundo, a recusa em dar eficá-cia aos dispositivos que a Constituição Federal e a legislação processual penal já haviam estabelecido.

Em 08 de maio de 2017, o CADHu pediu então ao STF a concessão da or-dem de habeas corpus em favor de todas as mulheres submetidas à prisão cau-telar, que fossem gestantes, puérperas ou mães com crianças de até 12 anos de idade e das próprias crianças. A natureza coletiva do habeas corpus impetrado endereçava a abrangência, generalização e o caráter sistêmico do problema. Em sua forma coletiva, o instrumento — preservando o traço simples, rápido e efetivo6 — ganha a amplitude necessária à cessação das lesões ao direito de

locomoção ora atacadas: o crescente encarceramento cautelar de gestantes, lactantes e mães com crianças de até 12 anos em estruturas prisionais infames. Reiteramos, se a ação violadora tem impacto coletivo, a individualização do re-médio obscurece as causas, enfraquece os pacientes e faz persistir a ilegalidade.

Às ressalvas postas pela não nomeação das pacientes, respondemos que a coletividade paciente é uma coletividade selecionada e constituída pelo Estado brasileiro e suas autoridades. Afinal, para cada mulher presa preventivamen-te, há uma ordem de prisão concedida por autoridade judiciária. A nomeação dos integrantes desta coletividade é responsabilidade do Estado e a ocultação destes dados não poderia se converter em ônus às pacientes e blindagem às autoridades coatoras.

Pedimos, primeiro, a revogação da prisão preventiva. Alternativamente, pedimos a substituição da prisão preventiva pela prisão em regime domiciliar. Junto às organizações e instituições que se somaram ao pleito, junto às pesqui-sadoras que instruíram nossa atuação com suas publicações, junto às pessoas que apoiaram o caso, vencemos.

Após aproximadamente dez meses da decisão, reconhecendo em cada mu-lher já desencarcerada razão suficiente para a formulação do pedido e para a concessão da ordem, ainda nos deparamos com a recusa em ceder à excepcio-nalidade da prisão provisória, percebida e assumida como razão de pedir do HC 143.641, nas decisões do Poder Judiciário diante de mães e gestantes. As razões que fundamentam a resistência, ainda que variadas, são regulares e im-pregnadas de vieses de gênero. Para superá-las, apostamos no persistente mo-nitoramento e na insistente contestação.

Por fim, cabe observar que o caso representa bem a atuação e a missão do CADHu. Litigar em direitos humanos, para além da formulação de demandas que interrompam violações, reparem as vítimas, previnam a reiteração, signi-fica circular dados e argumentos que provoquem a emergência dos temas no debate público e desfiem a cultura jurídica na qual essas violações surgem e se perpetuam. Queremos do Judiciário e dos demais órgãos e atores responsáveis pela gestão da liberdade dessas pessoas – e, no limite, da vida e da morte – que conheçam a realidade sobre a qual intervêm e ponderem o peso de suas canetas. Queremos que as mulheres encarceradas e seus defensores e defensoras vejam reverberar as razões que amparam a efetivação de seus direitos. Queremos con-tribuir para seja reconhecida como evidente a injustiça e a discriminação de gênero e de raça em que consiste esse estado de coisas.

6 Organização dos Estados Americanos (OEA). Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 25, 1. 22 de novembro de 1969.

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Nathalie Fragoso, doutoranda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e graduada em Direito pela mesma ins-tituição. Possui o Zertifikat in den Grundzügen des deutschen Rechts e cursa o LLM (Master of Laws) na Ludwig-Maximilians-Universität München. Coor-denadora da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama entre os anos de 2013-2014. Integrante do CADHu desde 2015. Assessora de advocacy do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.

Eloísa Machado de Almeida, doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP e Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Possui graduação em Direito pela PUC-SP. É professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Direito SP e coordenadora do Supremo em Pauta FGV Direito SP. Fundadora do CADHu, membro do Conselho do Instituto Pro Bono e do programa Prioridade Ab-soluta, do Instituto Alana. Ganhadora do prêmio Outstanding International Woman Lawyer Award 2018, da International Bar Association.

Bruna Angotti, doutoranda e mestre em Antropologia Social pela USP. Graduada em Direito pela USP e em Ciências Sociais pela PUC-SP. É pesquisa-dora do Núcleo de Antropologia do Direito (Nadir) e professora na graduação em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Co-coordenou a pesqui-sa Dar à Luz na Sombra: condições atuais e possibilidades futuras para o exercício de maternidade por mulheres em situação de prisão, realizada para a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Foi membro suplente do Comitê Nacional de Pre-venção e Combate à Tortura. Fundadora do CADHu.

Hilem Oliveira, advogada criminal, mestra em Ciências Humanas e So-ciais pela Universidade Federal do ABC (UFABC). Coordenadora Adjunta do Grupo de Diálogo Universidade Cárcere Comunidade (GDUCC) da Faculdade da Direito da USP. Advogada voluntária do Projeto Audiência de Custódia do Instituto Pro Bono.

André Ferreira, advogado criminal. Bacharel em Direito pela USP. Es-pecialista em Direito Penal pela FGV. Membro do CADHu e do Departamento Jurídico XI de Agosto da Faculdade de Direito da USP.

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02.

para alémdas grades

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23 para além das grades

“De quem é essa coxinha? De quem é? A mamãe morde”. A mamãe, no caso, é Palloma Carolina Gonçalves Coelho, 34 anos. A coxinha gostosa é de seu segundo filho, Otto, que completou 7 meses em dezembro de 2018. Sua história poderia ser como a de muitas outras mulheres brasileiras se, em 28 de dezembro de 2017, não tivesse sido presa. À época, Palloma estava grávida de 3 meses.

Nascida em Guarulhos, mas criada na Zona Leste de São Paulo, Palloma é a caçula de três filhos, perdeu o pai quando tinha 4 anos e começou a trabalhar aos 13. Foi atendente em papelaria, pelejou em oficina de costura, vendeu ímãs de geladeira na Rua 25 de Março, ganhou seu primeiro registro em carteira na C&A, foi bartender e secretária de firma de advocacia no Itaim Bibi. Em meio a isso tudo, teve seu primeiro filho, Giulio, aos 21 anos, fruto de uma relação que não durou muito, ou melhor, durou quase nada. E a vida seguia tranquila nas lutas diárias de uma mulher trabalhadora.

Até que, em 2010, quando estava trabalhando como recepcionista em um salão de beleza no Jardim Anália Franco, a vida de Palloma virou de ponta-ca-beça. É que as funcionárias recebiam o salário em dinheiro vivo num determi-nado dia do mês, tal informação saiu do estabelecimento, chegou a ouvidos mal intencionados e, no dia 20 de novembro daquele ano, aconteceu um assalto. O evento pode ser resumido da seguinte forma: conhecidos/familiares de Pallo-ma planejaram o assalto, ela ficou sabendo, não alertou os patrões, pois estava sendo ameaçada, e acabou sendo acusada pelo Ministério Público de mandante do crime. O processo todo foi tão mal conduzido e investigado que é difícil ima-ginar como foi para frente, mas o fato é que Palloma foi sentenciada a sete anos.

“Sempre trabalhei para ter as minhas coisas. Sempre batalhei. Meu único crime foi a omissão”, afirmou, chorando aos soluços, em longa conversa.

Entre o assalto em novembro de 2010 e a prisão em dezembro de 2017, mui-ta coisa aconteceu na vida de Palloma: deixou o filho mais velho para a mãe cui-dar, morou um tempo em Ilhabela, tentou a sorte no Rio de Janeiro, recorreu

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a diversas instâncias até chegar ao STF e, no dia do seu aniversário, em 2013, sofreu uma parada cardíaca ao saber que em uma das revisões sua sentença foi de sete para nove anos (em outra revisão, a pena voltou para sete anos). “Nes-ses anos todos perdi trabalhos, perdi documentos, não posso votar, não tenho direito a nada. Anulei minha vida”, disse, ainda soluçando. Mas a pior parte de seu pesadelo ainda estava por vir.

Palloma já sabia que estava grávida de Otto quando voltou a São Paulo para reencontrar o filho mais velho, Giulio. Até hoje ela não sabe como aconteceu e quem foi, mas o fato é que uma denúncia anônima pela internet a fez ser presa no final de dezembro de 2017, poucos dias antes da passagem de ano.

“Pensei que fosse morrer. O policial disse que eu ia ficar aquela noite na 24° DP e que lá me deixariam ir ao banheiro das investigadoras porque estava grávida e não iam me deixar usar o corró. E que fariam de tudo pra me levar para o Morumbi no dia seguinte porque lá dava pra tomar banho, tinha cama, comida. Fui levada sem ver meu marido, meu filho, minha mãe, sem meus re-médios. Agora me pergunta se, chegando lá, o carcereiro abriu a porta pr’eu usar o banheiro das investigadoras? Lá dentro tudo sujo, tudo cagado, mijado, com barata subindo do buraco que tem no chão. Eu gritava. E o carcereiro fa-lava: ‘você faz xixi onde quiser ou você acha que vou ficar abrindo e fechando cela pra você, bandida!’ Já começou a falta de respeito aí”.

No dia seguinte, o marido de Palloma levou os remédios para pressão e coração, e ela foi transferida para outra DP, a do Morumbi, onde ficou de 29 de dezembro a 4 de janeiro de 2018. “Então fui transferida pro Centro de Progressão Penitenciária (CPP) do Butantã e lá me davam leite azedo. Se não fossem as outras presas me da-rem leite em pó eu, grávida de três pra quatro meses, iria continuar tomando leite azedo. Não sei que história é essa dos presos custarem três mil reais pro Estado, porque o leite é azedo, a comida fede, a carne vem estragada, e tem um monte de percevejos, banheiro com bicho saindo dos buracos. E, quando você é grávida, você não fica presa com outras presas comuns. Você fica num prédio amarelo chama-do CR, Centro de Reabilitação. Fiquei presa com mulheres com tuberculose, sífilis, HIV, meninas grávidas que vieram da Cracolândia e gente louca. Antes tivesse fi-cado presa com as presas normais porque elas pelo menos dão comida, te ajudam”.

Medicamentos que grávidas costumam tomar, tal como sulfato ferroso, AAS e ácido fólico, não eram fornecidas na detenção e a própria família de

a pr i sãoe o nasc imento

Palloma se encarregou de levar. Ela também precisava tomar Propanolol, um anti-hipertensivo indicado para o tratamento e prevenção do infarto do mio-cárdio e arritmias cardíacas, e esse o sistema ofereceu, só que a um preço muito caro. “Eu tinha que tomar 20 miligramas de manhã e 20 à noite. Em vez de me darem dois comprimidos, de 10 miligramas cada, a enfermeira da unidade me prescreveu dois comprimidos de 40 miligramas pra manhã e outros dois pra noite; 160 miligramas ao total. Meu bebê ficou com taquicardia. Ele já estava com desenvolvimento abaixo da média por eu ser cardíaca e ter problemas de pressão e na tireoide. Comecei sentir muita dor no tórax”.

Foram cerca de dez dias tomando a dosagem errada, e quando Palloma foi se consultar com sua ginecologista, a médica ficou alarmada e disse que ela precisava ser internada imediatamente (falando nisso, a família precisou lutar judicialmente para que ela fosse atendida fora da detenção e, mesmo assim, ela era algemada para o transporte e ficava sem alimentação). “Ela até escreveu uma carta para o juiz falando do desenvolvimento, do sofrimento fetal, etc. Mi-nha cardiologista também escreveu. Fui internada numa quarta e uma semana depois, em 13 de abril, recebi o benefício da prisão domiciliar, mas me deram com uma condição: 30 dias após o parto eu teria que me apresentar com o bebê na unidade”. Quando o inferno parecia ter acabado...

Mas pelo menos Palloma agora estava em casa com o marido, a mãe, o filho mais velho, e podendo se cuidar na reta final da gravidez, graças aos diagnósticos das médicas e à ação da Defensoria Pública. “No final de abril, começo de maio, comecei a sentir que minha barriga estava murchando e no ultrassom foi cons-tatado que o líquido amniótico estava baixando. Se eu tivesse ficado presa meu filho teria morrido na minha barriga porque minha bolsa secou. Minha gineco-logista até disse que, segundo a experiência dela, isso aconteceu por causa do erro do Propanolol”. Palloma estava de 35 semanas, mas sua barriga parecia de 27 semanas, então decidiram por adiantar o nascimento de Otto em quase um mês.

“Otto estava previsto pra nascer 20 de junho, não 15 de maio, e por ser pre-maturo ainda ficou internado 17 dias numa UTI neonatal, entubado. E eu pen-sando o tempo todo que deveria voltar à prisão com aquele bebê tão frágil. Ima-gine o pesadelo que enfrentei”. Com ajuda da família e da Defensoria Pública, Palloma conseguiu protelar o retorno à prisão – afinal, sua sentença já era em regime semiaberto – para cuidar de Otto.

“Cadeia não é pra ser boa, concordo. Mas precisa reeducar e não castigar mais. No caso de grávidas, por exemplo. Tinha uma no meu quarto que enquan-to ela não desmaiou, eles não a levaram pra ganhar bebê. Teve outra, moradora de rua, que foi levada para um hospital em Osasco, mas não tinham vaga e a mandaram de volta praticamente com o bebê saindo. Ele nasceu depois com

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sífilis porque não teve tratamento. Fora que não mandam as roupas que são doadas pra Casa Mãe, e não repassam os leites que são doados. Tudo isso que estou falando eu vi, não me contaram. É tudo muito desumano”.

No início de fevereiro de 2018, enquanto Palloma estava em meio ao seu inferno, Jéssica Monteiro entrou no dela. Moradora de uma ocupação no Centro de São Paulo, a jovem de 24 anos estava grávida de quase nove meses, além de ter um fi-lho de três anos, quando policiais a prenderam em flagrante com 90g de maconha, sob acusação de tráfico de drogas. Logo que chegou ao Distrito Policial, começou a sentir contrações e, no dia seguinte, 11 de fevereiro, foi levada ao hospital, e as-sim nasceu Enrico. Dois dias depois, a Justiça de São Paulo a manteve presa com seu filho recém-nascido por considerá-la de “alta periculosidade”.

Imagens de Jéssica sentada, atrás das grades, em um colchão no chão com o pequeno Enrico no colo foram parar nos jornais e nas TVs. A repercussão mobilizou a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Bra-sil, que conseguiu um habeas corpus garantindo prisão domiciliar a Jéssica en-quanto espera o julgamento. Toda essa tragédia durou longos seis dias, e pode ter ajudado a sensibilizar o Supremo Tribunal Federal. Afinal, em 20 de fevereiro, poucos dias depois da soltura de Jéssica, a 2ª Turma do STF julgou habeas corpus coletivo impetrado pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu) para que mulhe-res presas provisoriamente e adolescentes internadas que estejam grávidas ou tenham filhos de até 12 anos tenham direito a prisão domiciliar (como, inclusi-ve, já estabelece o Marco Legal da Primeira Infância).

Então, pela primeira vez em sua história, o STF reconhece um habeas cor-pus coletivo. E ainda por cima atendeu o pedido quase integralmente (colocaram restrições em relação à natureza do crime). No voto de 34 páginas, o relator do processo, ministro Ricardo Lewandowski, se mostrou sensível “a duríssima – e fragorosamente inconstitucional – realidade em que vivem as mulheres presas, a qual já comportou partos em solitárias sem nenhuma assistência médica ou com a parturiente algemada ou, ainda, sem a comunicação e presença de familiares”. E o ministro segue em choque com todas as informações, os relatos e os números que lhe foram entregues, afinal “a isso soma-se a completa ausência de cuidado

O habeas corpus coletivo não se aplica ao caso de Palloma Carolina, pois a sen-tença que recebeu é definitiva. O pesadelo ainda não acabou, mas pelo menos ela está aguardando seu desfecho em liberdade e com forças para retomar a vida própria. E, melhor de tudo, com Otto nos braços. Só vai realmente acordar quando souber se precisará cumprir o restante da pena – algo em torno de 60 dias – encarcerada ou não. Deseja apenas estar quite com o sistema e pronto, ponto final. É nisso que pensa.

habeas corpus co le t ivo

aguardando a jus t i ça

pré-natal (acarretando a transmissão evitável de doenças graves aos filhos, como sífilis, por exemplo), a falta de escolta para levar as gestantes a consultas médicas, não sendo raros partos em celas, corredores ou nos pátios das prisões, sem con-tar os abusos no ambiente hospitalar, o isolamento, a ociosidade, o afastamento abrupto de mães e filhos, a manutenção das crianças em celas, dentre outras atro-cidades. Tudo isso de forma absolutamente incompatível com os avanços civiliza-tórios que se espera tenham se concretizado neste século 21”.

Em seu voto, Lewandowski afirma que tal decisão reforça “a importância de, num crescente cenário de uma maior igualdade de gênero, se conferir aten-ção especial à saúde reprodutiva das mulheres”. A estimativa é que a decisão possa beneficiar cerca de 4.500 mulheres (sendo 622 grávidas/lactantes), apro-ximadamente 10% do total de presas do Brasil, de acordo com dados do Institu-to Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

São Jéssicas, Valérias, Desirées, Jaquelinas, Cláudias, Beneditas, Marias, muitas Marias, que não sentirão na pele o que é ter sua pena transferida, pelo Estado, para o filho; que poderão cumprir sua pena de forma um pouco mais digna. Quer dizer, seria assim se na teoria a prática não fosse outra; afinal, inú-meros Tribunais de Justiça espalhados pelo Brasil continuam se recusando a seguir o Marco Legal da Primeira Infância e a decisão do STF.

“Diversos juízes têm reiteradamente negado a substituição da prisão pre-ventiva para prisão domiciliar alegando: a) ter sido o crime praticado com gra-ve ameaça ou violência; b) ser o tráfico um crime grave; c) ordem pública, etc. Tendo em vista essas negativas genéricas reiteradas, o ministro Lewandowski proferiu nova decisão informando que o fato de haver sentença condenatória não impedia a substituição [da prisão preventiva para prisão domiciliar], bem como o fato de a infração ser caracterizada como tráfico de drogas, não impedia por si só a liberdade entre outras ponderações”, explicou Leonardo Biagioni de Lima, da Defensoria Pública de São Paulo.

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“Por ter nascido prematuro, Otto tem o pulmão meio fragilizado, perde fô-lego quando chora. Fora isso está bem de saúde, é esperto, safadinho e come de tudo. Deus permitiu que entrasse num vale de sombras com um anjo dentro da minha barriga. Se não fosse meu filho estaria naquele inferno até hoje. Otto é minha vitória e não existe vitória sem luta, né. Mas quero voltar a sonhar gran-de”. Palloma não quer mais viver de migalhas, tal qual Jéssica e tantas outras mães que lutam pelo melhor para si e para os filhos, independentemente de erros ou injustiças, livres de grades.

Dafne Sampaio, cursou Ciências Sociais na USP e se formou em 1999. Logo depois começou a trabalhar como jornalista. Escreveu para veículos como as revistas Piauí, Trip, Monet, Carta Capital, Brasileiros e o jornal Folha de São Paulo; foi um dos fundadores do site Gafieiras; e coordenou a comunicação di-gital da Prefeitura de São Paulo na gestão Fernando Haddad.

Também é autor do stencil "você praça acho graça", além de outras inter-venções urbanas. Desde janeiro de 2018 cuida da comunicação do Centro Bra-sileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

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03.

para uma jus t i ça mai s inc lus iva & democrát ica

part ic ipação social

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33 participação social para uma justiça mais inclusiva e democrática

É inegável o fato de que o habeas corpus (HC) coletivo 143.641 que deu ensejo ao presente livro é talvez um dos casos mais importantes da atualidade que foram levados ao Supremo Tribunal Federal. Com ele, milhares de mulheres, adolescentes e crianças foram e serão beneficiadas pelo incontes-tável entendimento de que o cárcere não é lugar adequado para o exercício da maternidade e para a vivência plena e integral da infância.

Justamente ao contrário, as prisões femininas brasileiras apresentam sé-rias violações aos direitos destas mulheres, especialmente das negras e peri-féricas, e à integridade física, psíquica e moral de seus filhos, que por estarem em uma fase peculiar de desenvolvimento, especialmente durante a primeira infância, são ainda mais sensíveis às condições ambientais de insalubridade, prevalência de inúmeras doenças e das constantes violências institucionais, as quais deixam marcas e consequências no indivíduo e na sociedade para toda vida e por várias gerações.

Contudo, a importância desse HC coletivo não reside apenas na solução material apresentada por ele, de transformar prisão provisória em domiciliar, mas também no fato de que o acolhimento deste writ pela Corte Constitucional inaugurou no Brasil a adoção de um novo remédio constitucional coletivo, per-mitindo que uma violação ampla, massiva e sistemática do direito à liberdade por coação ilegal e o abuso de poder possam ser coibidos por um instrumento com grande abrangência e efetividade.

Assim, o HC coletivo 143.641 é um marco histórico para o Direito Brasileiro e para aqueles que almejam uma sociedade mais digna e justa para todos, inclu-sive para as mulheres, adolescentes e crianças.

Tal resultado, entretanto, só foi possível pela atuação da sociedade civil brasileira. Uma atuação que se iniciou no âmbito do Congresso Nacional, com o movimento pela aprovação da Lei 13.257 de 2016, o Marco Legal da Primeira

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Infância, em um esforço intersetorial amplo que possibilitou a alteração o artigo 318 do Código de Processo Penal, que incluiu a prisão domiciliar para mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos ou homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho. Além disso, desde a brilhan-te petição inicial apresentado pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Hu-manos (CADHu), até a atuação dos amici curiae, todo o processo no âmbito do Judiciário foi marcado pela presença e participação de atores de diversos espectros da sociedade, demonstrando a abrangência e repercussão do caso em análise.

Foi por meio do fundamental instrumento do amicus curiae, ou o amigo da corte, que os terceiros especiais da sociedade, ou no interesse dela, foram capa-zes de colaborar com o processo, enriquecendo o debate e fornecendo informa-ções relevantes para conformação da já célebre e inolvidável decisão proferida pela Segunda Turma da Suprema Corte brasileira.

As defensorias públicas do Ceará, Paraná, Amapá, Espírito Santo, Goiás, Ma-ranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Ro-raima, Rio Grande do Sul, Sergipe, São Paulo, Tocantins, Bahia, Distrito Federal, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, amparadas no acompanhamento próximo e diário da realidade de seus assistidos e abordagem estrutural das violações de caráter coletivo, apresentaram infindáveis casos de descumprimento da lógica da prisão preventiva como exceção no Processo Penal e do flagrante descumprimento do Marco Legal da Primeira Infância.

Ainda, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), o Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC), a Pastoral Carcerária e o Instituto de Defe-sa do Direito de Defesa (IDDD), legitimados por uma atuação consistente e um acompanhamento diário das políticas penitenciárias nacionais, foram respon-sáveis por iluminar as sombrias realidades do sistema prisional feminino bra-sileiro, ressaltando seu estado de coisas inconstitucional e as violações diárias em suas unidades.

Para trazer à Corte Constitucional os elementos relativos ao impacto da política de encarceramento de massa na saúde, a Associação Brasileira de Saú-de Coletiva (Abrasco), com fiéis dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), demonstrou as inúmeras violações ao direito à saúde de mães e filhos nos am-bientes prisionais, tanto no período gestacional, no próprio parto ou, ainda, após o nascimento, quando mães e crianças estão em uma das fases mais sensí-veis de suas vidas.

Por fim, coube a nós do Programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana, com base em diversas pesquisas sobre desenvolvimento infantil, neurociência e da avaliação das leis nacionais e internacionais de proteção aos direitos das

crianças, também pacientes do HC coletivo, solicitar o cumprimento da regra constitucional do Artigo 227 que garante absoluta prioridade aos direitos de crianças, inclusive o direito à saúde, ao desenvolvimento integral, à convivência familiar e comunitária, ao brincar livre dos ambientes degradantes do cárcere e de suas mazelas. Tal compreensão foi acolhida de forma categórica pela Se-gunda Turma, que citando a manifestação do Alana asseverou que as crianças

"sofrem injustamente as consequências da prisão, em flagrante contrariedade ao art. 227 da Constituição, cujo teor determina que se dê prioridade absoluta à concretização dos direitos destes."

Ainda, atendendo a um pedido feito por nós, os efeitos do HC Coletivo fo-ram estendidos de ofício às adolescentes grávidas ou mães no sistema socioe-ducativo e seus filhos, cujas condições da privação de liberdade vividas nas instituições juvenis, apesar de contemplar mecanismos mais efetivos de resso-cialização, são igualmente incompatíveis com o exercício do cuidado e o cres-cimento de uma criança.

Outro ponto de destaque da decisão foi também a extensão do benefício às mulheres mães de pessoas com deficiência, independente da idade, conforme observação expressa da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiên-cias (Decreto Legislativo 186/2008) e da Lei 13.146/2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Comprova-se, assim, que o HC Coletivo foi uma intersecção complexa de direitos fundamentais, temas e casos reais na sociedade brasileira, como a condição do sistema prisional brasileiro, de sua seletividade e perversidade, da mulher em privação de liberdade, de suas crianças, da pessoa com deficiência, complexidade esta que não seria totalmente observada se não houvesse a parti-cipação qualificada de agentes da própria sociedade civil.

Congratula-se, portanto, o Supremo Tribunal Federal, na figura do relator do caso o Ministro Ricardo Lewandowski por ter deferido com vigor a presen-ça dos amici curiae, validando a sua importância e contemplando suas contri-buições para informar sua decisão, algo fundamental para a consolidação de um Sistema de Justiça aberto e democrático, no qual a diversidade de vozes e entendimentos na sociedade possam ser considerados em conformidade com a Constituição Federal.

Permitir a participação da sociedade civil por meio de especialistas nos temas tratados em um processo judicial, especialmente naqueles com grande repercussão social, é efetivar o direito previsto na Constituição de 1988 à parti-cipação social nos espaços decisórios das instituições públicas, como o próprio Poder Judiciário, conferindo-lhe, inclusive, ainda mais legitimidade na elabo-ração de suas próprias decisões.

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36 37 participação social para uma justiça mais inclusiva e democráticapela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Que o HC coletivo 143.641 seja não só um marco, mas uma fonte de inspi-ração para decisões futuras na defesa ao direito à dignidade e liberdade e na promoção da participação social nos espaços da Justiça.

Os artigos a seguir apresentam textos inéditos dos amici curiae que partici-param no HC coletivo, celebrando sua histórica conquista, mas ressaltando seu necessário cumprimento por parte do próprio sistema de justiça, seus agentes e instituições.

Pedro Hartung , coordenador do Programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana, doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) com doutorado sanduíche na Harvard Law School e pesquisador do Child Advocacy Program na mesma instituição. É docente e membro do pai-nel técnico do Curso de Liderança Executiva em Primeira Infância do Center on the Developing Child da Harvard Graduate School of Education.

I sabe l la Henr iques , advogada e diretora executiva do Instituto Alana. Integrante do Conselho Consultivo da Ouvidoria da Defensoria Pública de São Paulo. Global Leader for Young Children pela World Forum Foundation. Líder Executiva em Primeira Infância pelo Center on the Developing Child da Harvard University.

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39 participação social para uma justiça mais inclusiva e democrática

03.01.infânc ia & matern idadesem grades

Prisões não foram pensadas para crianças e não é desejável que ne-nhuma criança passe um dia sequer no ambiente prisional ou longe de suas mães. A despeito disso, são muitas as crianças cotidianamente mantidas dentro de celas e presídios: quando o habeas corpus (HC) coletivo 143.641 foi impetrado, o Depar-tamento Penitenciário Nacional1 apontava ao menos 1.925 crianças nessa situação.

São crianças que por muito tempo permaneceram invisíveis, ou reduzidas a números que pouco pareciam significar2. Mas a verdade é que tais crianças não podem ser esquecidas ou ter sua infância negada. Essas crianças, como to-das as outras, devem ter os seus direitos respeitados. O direito de encontrar conforto no colo de sua mãe, o direito de correr até se cansar, o direito de poder ver o dia amanhecer sem grades.

É por isso que o programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana, atuou nesse caso. Para que as violações de direitos de meninas e meninos cessem e para que todas as crianças nessa condição de encarceramento sejam contem-pladas - independentemente de quem sejam suas mães, se mulheres detidas no sistema prisional ou adolescentes internadas no sistema socioeducativo.

Nosso posicionamento tem por base a ideia de que a criança deve ser tratada como absoluta prioridade da nação, a identificação de violações sistemáticas de direitos, e a necessidade de reconhecer que não é possível assegurar os direitos de crianças sem garantir os direitos de suas mães e que, portanto, a prisão domiciliar de gestantes e mães é fundamental para garantir os direitos de seus filhos e filhas.

1 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Levantamento nacional de informações penitenciárias: INFOPEN 2014. Brasília: Ministério da Justiça e da Segurança Pública, 2015. Disponível em: http://www.justica.gov.br/news/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mu-lheres.pdf. Acesso em 26 nov. 2018.

2 A invisibilidade desse grupo se reflete, inclusive, na precariedade dos dados disponíveis, que além de não serem totalmente atuali-zados não incluem os filhos de adolescentes internadas no sistema socioeducativo.

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40 41 participação social para uma justiça mais inclusiva e democráticapela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

cr iança é pr ior idade abso lu ta :um proje to de pa í s que co loca cr ianças em pr imeiro lugar

O Artigo 227 da Constituição Federal de 1988 inaugurou a doutrina da prote-ção integral da criança e do adolescente, reconhecendo-os como sujeitos de direitos e como pessoas em peculiar estágio de desenvolvimento, que devem ter seus direitos garantidos em primeiro lugar conjuntamente pela família, pela sociedade e pelo Estado. Assim, prevê-se:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao ado-

lescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à

educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade

e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de

negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Ainda, para viabilizar a garantia de absoluta prioridade, foi criado o Esta-tuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal nº 8.069, de 1990. Pelas diretrizes fixadas no artigo 4º do ECA:

Art. 4º. A garantia de prioridade compreende:

a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;

c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção

à infância e à juventude.

Alinhada à regra da absoluta prioridade, foi promulgada a Lei 13.257, de 2016, que estabelece o Marco Legal da Primeira Infância e garante a criação de programas, serviços e iniciativas voltados à promoção do desenvolvimento integral de crianças. Fixa também princípios e diretrizes para a formulação e implementação de políticas públicas para a primeira infância, em atenção à relevância dos primeiros seis anos de vida no desenvolvimento infantil e do ser humano.

Com sua promulgação, a garantia de prisão domiciliar foi estendida a novas hipóteses, pela alteração do artigo 318 do Código de Processo Penal, por meio da qual se estendeu a prisão domiciliar a casos de gestantes, mulheres com filho ou filha de até doze anos de idade incompletos, e homens, caso sejam o único responsável pelos cuidados de criança de até doze anos de idade incompletos.

A permanência da gestante ou da criança com a mãe no cárcere, bem como a se-paração destas, prejudica severamente o desenvolvimento infantil e viola uma infinidade de direitos.

Um dos principais fatores responsáveis por esse dano ao desenvolvimento infantil é o estresse tóxico, fruto de situações que envolvem um sofrimento grave, frequente, ou prolongado, no qual a crianças não têm o apoio adequado da mãe, pai ou cuidadores3. No caso de crianças com mães encarceradas, o estresse tóxico

Aqui, é importante ressaltar que a regra da prioridade absoluta dos direitos de crianças e adolescentes é limitadora e condicionante das ações de famílias, da sociedade e do poder público, o que evidencia a necessidade e obrigatorie-dade de cumprimento da garantia de prisão domiciliar.

O Artigo 227 da Constituição deve ser compreendido como uma norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata, ou então tal dispositivo, bem como o ECA, seriam meras e vazias cartas de intenções – o que desvirtua os objetivos pelos quais foram criadas. Assim, o não-reconhecimento dessa eficácia da re-gra da prioridade absoluta significaria admitir o descaso à temática da infância e adolescência – sendo uma acomodação que em nada se adequa ao ímpeto transformador que levou à criação do Artigo 227 e do ECA. Considerando que as previsões constitucional e legal da prioridade absoluta da criança e do ado-lescente asseguram a efetivação absolutamente prioritária de todos os direitos da criança em quaisquer circunstâncias, entende-se que não se sujeita à miti-gação, atenuação ou até mesmo ao sopesamento em casos de colisão com os direitos fundamentais de outros indivíduos ou outras coletividades.

Justamente por isso, é importante dizer que, com o julgamento do HC 143.641, o Poder Judiciário acertadamente não se manteve inerte diante da violação de direitos da infância, dado que tanto a separação de mães e crian-ças como a manutenção destas no cárcere implicam graves violações. Assim, a atuação judicial teve o condão de prevenir e erradicar a violação sistemática de direitos de crianças e mulheres em tal situação.

v io lação s i s temát ica da pr ior idade abso lu ta da in fânc ia : o cárcere como ambiente de v io lênc ia

3 CENTER ON THE DEVELOPING CHILD OF HARVARD UNIVERSITY. Excessive Stress Disrupts the Architecture of the Develo-ping Brain. 2014. p. 2. Disponível em: http://developingchild.harvard.edu/wp-content/uploads/2005/05/Stress_Disrupts_Archi-tecture_Developing_Brain-1.pdf. Acesso em 19 jan. 2018.

“”

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decorre do ambiente prisional que não permite condições adequadas e dignas à criança, tanto pelas condições e funcionamento estruturais de um presídio, como em decorrência da situação precária que a mulher encarcerada vivencia. Também nos casos de separação da mãe e consequente institucionalização infantil, o rom-pimento do vínculo gera estresse à criança e a falta de um laço emocional constan-te nas instituições de acolhimento também pode gerar significativos riscos para o seu desenvolvimento sadio. Estudos indicam que o estresse tóxico pode impactar negativamente a arquitetura cerebral e aumentar o risco de doenças físicas e men-tais relacionadas ao estresse4, levando ainda a efeitos danosos no aprendizado, no comportamento, e na saúde durante toda a vida5. Tal prejuízo ao desenvolvimento infantil é especialmente gravoso durante a primeira infância, período que vai até os seis anos de idade, dado que os picos de desenvolvimento das vias sensoriais, da visão, da audição, da linguagem e das funções cognitivas concentram-se especial-mente nos primeiros meses e mantêm-se elevadas até o sexto ano de vida6.

Tais impactos repercutem nos direitos à vida e à saúde. No caso de mulhe-res encarceradas, o pré-natal não é total e adequadamente assegurado e expe-riências de violência obstétrica são recorrentes7, o que, para além de violar di-reitos reprodutivos, é preocupante tendo em vista que o período gestacional e o momento do nascimento refletem no desenvolvimento infantil. A permanência de crianças no cárcere, ambiente insalubre, também prejudica a saúde infantil. Ainda, nos casos de separação entre criança e mãe, há impactos na saúde decor-rentes desse rompimento, especialmente em razão do já citado estresse tóxico.

A despeito da importância do aleitamento materno, recomendado pela Orga-nização Mundial da Saúde (OMS) de maneira exclusiva nos primeiros seis meses de vida, com a manutenção, simultânea à alimentação complementar, até os dois anos de idade, a separação de crianças e mães ocorre antes desse período8. Com a interrupção precoce e forçada da amamentação, prejudica-se o desenvolvimento

infantil como um todo, dado que a amamentação é capaz de reduzir a mortalida-de, evitar diarreia, infecções respiratórias, alergias, hipertensão, colesterol alto e diabetes, além de reduzir as chances de obesidade, favorecer o desenvolvimento cognitivo e facilitar a formação de vínculos afetivos9.

Ainda, a separação da criança e da mãe, tendo em vista a relevância desta na so-cialização infantil, viola o direito à educação. Já quando as crianças ficam com suas mães na prisão, o ambiente é inadequado para a garantia de tais direitos; inclusive, estudo revela que crianças nesse contexto têm seu desenvolvimento comprometi-do, nos aspectos cognitivo, motor, afetivo e social, sendo percebido atraso em de-senvolver a leitura, contagem de numerais, identificação de cores, dentre outros10.

Ainda, quando crianças são separadas de suas mães para viver fora do cár-cere, uma penalização lhes é imposta: há violação ao direito à convivência fami-liar, o que também prejudica seu desenvolvimento. Sendo a convivência familiar e comunitária fundamental para assegurar o desenvolvimento integral infantil, dado que, para a criança, é fundamental ter adultos de referência com os quais seja capaz de estabelecer vínculos afetivos11, a prisão domiciliar para mulheres gestantes e mães encarceradas, para que se mantenham junto de seus filhos, re-vela-se a solução que melhor atende o interesse das crianças envolvidas.

Quando crianças ficam no cárcere, estão impossibilitadas de exercer ple-namente o direito à liberdade, além de expostas às condições precárias do am-biente, o que afeta gravosamente seu desenvolvimento e sua integridade física, psíquica e moral.

Crianças, em hipótese alguma, podem ser colocadas em situações de risco ou vulnerabilidade. Visto que todas as formas de violência institucional contra crianças são evitáveis12, tem-se que, quando o Estado opta por manter crianças na prisão, ambiente no qual situações de violência, crueldade e opressão são fre-quentes, deixa de cumprir com seu dever de proteger a criança de tais riscos - conduta inaceitável e que se consubstancia em verdadeira violência institucional.

É inaceitável que o poder público se omita ao não dar vigência à expres-sa previsão legal do Marco Legal da Primeira Infância, que assegura o direi-to à prisão domiciliar. Nesse contexto, para solucionar a negligência sistêmica,

4 CENTER ON THE DEVELOPING CHILD OF HARVARD UNIVERSITY. Excessive Stress Disrupts the Architecture of the Deve-loping Brain. 2014. p. 2. Disponível em: http://developingchild.harvard.edu/wp-content/uploads/2005/05/Stress_Disrupts_Ar-chitectur _Developing_Brain-1.pdf. Acesso em 19 jan. 2018.

5 Ainda, estudo conduzido por Charles Nelson, professor da Universidade de Harvard especializado em desenvolvimento infantil, ao observar o desenvolvimento de crianças postas em programas de acolhimento na Romênia, constatou que os adolescentes que passaram os primeiros anos da vida institucionalizados, ainda que com comida e local de abrigo provisionados, apresentavam com maior frequência problemas cognitivos e comportamentais, além de terem menos massa cerebral branca e as regiões do cérebro responsáveis pela atenção, cognição em geral e processamento emocional afetadas, se comparadas com as crianças que passaram a infância em ambientes familiares. Childhood neglect erodes the brain. Disponível em: http://www.sciencemag.org/news/2015/01/childhood-neglect-erodes-brain. Acesso em 18 jan. 2018.

6 Primeira infância é prioridade absoluta. Disponível em: http://prioridadeabsoluta.org.br/wp-content/uploads/2017/11/cartilha_primeira-infacc82ncia.pdf. Acesso em 18 jan. 2018).

7 Nos termos da referida pesquisa, é considerado adequado o pré-natal que tem início antes da 16ª semana gestacional e no mínimo uma consulta no primeiro trimestre, duas no segundo e três no terceiro trimestre.

8 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Mulheres encarce-radas: diagnóstico nacional. Brasília: Ministério da Justiça e da Segurança Pública, 2008. Disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_civel/cadeias/doutrina/Mulheres%20Encarceradas.pdf.>. Acesso em 03 jan. 2018.

9 BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde da criança: nutrição infantil, aleitamento materno e alimentação complementar. Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2009. p. 13-18. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/saude_crianca_nutri-cao_aleitamento_alimentacao.pdf. Acesso em 04 jan. 2018.

10 SANTOS, Denise et al. Crescimento e Desenvolvimento de Crianças na Casa de Acolhimento no Contexto Prisional. 6º Congresso Ibero-Americano de Pesquisa Qualitativa em Saúde. Disponível em: proceedings.ciaiq.org/index.php/ciaiq2017/article/down-load/1203/1164. Acesso em 08 jan. 2018.

11 BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. BRASÍLIA, 2006.

12 Conforme Comentário Geral 13 do Comitê das Nações Unidas sobre Direitos das Crianças.

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44 45 participação social para uma justiça mais inclusiva e democráticapela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

A convivência familiar ocupa papel central na garantia dos direitos da criança, o que foi positivado de maneira ainda mais forte com as inovações legislativas trazidas pelo Marco Legal da Primeira Infância.

Resta evidente, portanto, que não é possível cuidar da criança sem cuidar de sua família, especialmente de sua mãe. Assim, entende-se que só será possível ga-rantir os direitos de crianças com absoluta prioridade garantindo o direito da mãe, não se tratando de sobreposição de direitos, mas sim da harmonização desses.

Nesse sentido, vale destacar que o fato de a mulher ser acusada de ter co-metido um crime não a incapacita para a maternidade; inclusive, a destituição do poder familiar motivada por condenação criminal pode ocorrer somente no caso de crime doloso, sujeito à pena de reclusão, contra o próprio filho ou filha, conforme prevê o ECA. Assim, em vez da presunção de incapacidade, a mulher e a família devem receber apoio para cuidar da criança. Por fim, se eventual-mente a mãe cometer falta, omissão ou abuso em relação à criança, ela é res-ponsabilizada e são aplicáveis medidas protetivas à criança.

Assim, tanto a gestação e a permanência das crianças no cárcere junto às mães, bem como a separação de filhos ou filhas de suas mães são violações aos direitos de crianças, dado que ambas as medidas comprometem o pleno de-senvolvimento infantil e acabam por violar a prioridade absoluta das crianças assegurada pelo Artigo 227 da Constituição Federal.

Fundamental ter em mente que nenhuma criança pode ser discriminada e que toda criança deva ter seu direito à convivência familiar assegurado. O ECA veda, inclusive, distinções ou discriminações por motivo de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente so-cial, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. Caso apenas uma parcela das mulheres tenha seus direitos garantidos, especialmente o direito à prisão domiciliar, estará sendo imposta verdadeira discriminação. É preciso proteger todas as crianças —

Sem dúvida, é necessário reconhecer o descompasso entre o que é legalmente as-segurado a crianças e a realidade que viola e com isso descumpre cotidianamente a regra da prioridade absoluta dos direitos de crianças e adolescentes, especial-mente no contexto de encarceramento.

Fundamental também destacar que o encarceramento brasileiro tem perfil e cor bem definidos: estamos falando de mulheres e crianças majoritariamente negras e pobres, que são sistematicamente violadas no Brasil e no mundo13.

O fato é que pessoas - especialmente crianças - não podem continuar a ter seus direitos negados. Nesse contexto, o Sistema de Justiça se revela um ator cha-ve, já que tem um potencial significativo de favorecer aplicação de tais direitos e a implementação do Marco Legal da Primeira Infância, tanto por meio de suas atuações como por meio de suas decisões.

Ao julgar pela universalização do direito a prisão domiciliar a mulheres e adolescentes gestantes e com filhos de até doze anos, o Supremo Tribunal Fede-ral agiu e tomou a importante decisão de sanar violações reiteradas de institui-ções contra crianças, adolescentes e mulheres. Além de resguardar o direito de adolescentes e mulheres em privação de liberdade, buscou-se garantir o respeito ao Artigo 227 da Constituição Federal e, com isso, a absoluta prioridade na prote-ção e promoção dos direitos de crianças.

Assim, o julgamento do HC 143.641 entra para a história brasileira. Tendo como protagonistas mulheres e seus filhos e filhas que, por diferentes razões e momentos, tiveram seus corpos presos e controlados. Contudo, por serem

harmonização de d ire i to s : não há como garant ir o s d ire i to s da cr iança sem as segurar os d ire i to s da mulher a importânc ia

da a tuação jud ic ia l :caminhos para as segurar os d ire i to s de cr ianças

13 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen Mulheres junho 2014. Brasília: Ministério da Justiça e da Segurança Pública, 2014. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/news/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/rela-torio-infopen-mulheres.pdf/view>. Acesso em 23.nov. 2018.

faz-se necessário reforçar a garantia do Marco Legal da Primeira Infância por meio do referido HC coletivo e assegurar a permanência de gestantes, crianças e mães juntas fora do cárcere.

e, portanto, a todas as adolescentes e mulheres gestantes e mães de crianças de até doze anos — sem distinção, permitindo sua convivência fora do cárcere.

Portanto, assegurar os direitos da adolescente e da mulher em conflito com a lei, inclusive o direito à prisão domiciliar, é pressuposto para a garantia de direitos das crianças, repetidamente violados.

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46 47 participação social para uma justiça mais inclusiva e democráticapela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

resistência continuam a sonhar e acreditar na garantia de seus direitos, especial-mente o direito à vivência plena da infância e da maternidade.

Agora, para que todas as crianças tenham seus direitos assegurados e para que a norma constitucional passe de fato a transformar a realidade, não há dúvida de que, além de um Sistema de Justiça sensível, amigável e acessível a crianças, precisamos ainda de uma sociedade engajada, comprometida e res-ponsável no cumprimento de seu dever constitucional. Crianças e adolescentes são responsabilidade compartilhada de todas e todos - famílias, poder público e sociedade. É preciso lembrar: os filhos dos outros e os filhos de ninguém são também nossa responsabilidade.

Mayara Si lva de Souza, advogada do programa Prioridade Ab-soluta do Instituto Alana. Graduada pela Universidade São Judas Tadeu. Pós-

-graduanda em Gestão de Políticas Públicas pelo Insper e em Legislativo e Democracia no Brasil pela Escola do Parlamento. Foi conselheira do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) de São Paulo.

Thais Nascimento Dantas , advogada do programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana e conselheira do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Graduada pela Faculdade de Direito da Univer-sidade de São Paulo. Bolsista do Master in Global Rule of Law & Constitutional Democracy, da Universidade de Genova.

Guilherme Périssé , advogado, integrante da equipe do Programa Prioridade Absoluta de 2015 a 2018. Ativista em direitos humanos e fundador do coletivo Advogados Ativistas.

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49 participação social para uma justiça mais inclusiva e democrática

03.02.saúde materna e in fant i l nas pr i sões :

contr ibu ições para o habeas corpus co le t ivo 143 .641

A população prisional brasileira cresce a passos largos1, mas as demandas de gênero continuam não sendo observadas pelos órgãos do sistema de saúde e de justiça, inclusive no tocante ao direito à maternidade. Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres encarceradas somam-se a demais direitos básicos que devem ser respeitados no aprisionamento feminino.

No habeas corpus (HC) coletivo nº 143.641, em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) buscou con-tribuir como amicus curiae, apresentando resultados da pesquisa pluridiscipli-nar “Nascer nas prisões”, coordenada pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O estudo foi o primeiro censo nacional sobre a saúde materna e infantil nas prisões e descreveu o perfil da população feminina encarcerada que vive com seus filhos em unidades prisionais das capitais e re-giões metropolitanas do Brasil, bem como as condições e as práticas relacionadas à atenção à gestação e ao parto durante o encarceramento2.

A possibilidade de utilização de resultados de estudo acadêmico pelo siste-ma de justiça consolida um saber empírico pautado na alteridade, voltado para a construção ou aprimoramento de ações públicas equitativas. Afinal, como en-sina Paulo Freire3, “a teoria sem a prática vira ‘verbalismo’, assim como a prá-tica sem teoria vira ativismo. No entanto, quando se une a prática com a teoria tem-se a práxis, a ação criadora e modificadora da realidade”.

A interlocução entre os campos da Saúde Pública e dos Direitos Humanos, com recorte de gênero, é fundamental para o diagnóstico da questão do direito à maternidade das mulheres privadas de liberdade. Trata-se de problema com-plexo, que exige soluções efetivas.

1 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen Mulheres. Brasília: Ministério da Justiça e da Segurança Pública, 2018.

2 A pesquisa foi realizada entre 2012 e 2014, financiada pelo Ministério da Saúde e em parceria com o Depen/MJ. Diante dos resultados observados, foram produzidos dois documentários (2017), disponíveis em <https://wwwFiocruz.youtube.com/watch?v=Jso597MV_hU> e <https://wwwFiocruz.youtube.com/watch?v=vmi6rM-K0U>.

3 FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 25

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Foram ouvidas as mulheres grávidas ou com filhos nas prisões das capitais brasilei-ras, além de profissionais de saúde, agentes de segurança penitenciária, gestores e profissionais do direito diretamente envolvidos. O perfil das mães lactantes priva-das de liberdade no Brasil é composto por jovens (72% das mulheres entrevistadas tinham entre 20 e 29 anos de idade), afrodescendentes (70% eram pardas e pretas) e com baixa escolaridade (53% não tinham o Ensino Fundamental completo ou nunca tinha ido à escola). Acrescente-se que 69% tiveram duas ou mais gestações anterio-res e 83% possuíam outros filhos, sendo que 20% já tinham quatro filhos ou mais4, o que traduz a alta vulnerabilidade dessas mulheres, acentuada pelo encarceramento.

Um terço delas era chefe da família e 56% das mães declararam-se solteiras. A maioria informou ser sua primeira detenção (57%) e 64% estava no presídio havia menos de um ano, confirmando prisões provisórias. Nesse sentido, mais de 90% das detentas já estavam grávidas quando foram presas. Todos que trabalham com a questão do aprisionamento feminino sabem que, infelizmente, as visitas de maridos ou companheiros às mulheres são escassas, ao contrário do que ocorre em relação aos homens. Portanto, é possível afirmar que, em regra, as mulheres não engravidam na prisão para obter a prisão domiciliar ou outros direitos.

Com relação à garantia de saúde materna e infantil, 93% das mulheres tiveram acesso a pré-natal, no entanto apenas 32% delas tiveram a atenção classificada como adequada. Além das insuficiências na atenção pré-natal, é baixo o suporte social/familiar recebido. O parto normalmente ocorre sem nenhum acompanhamento da família, em descumprimento ao art. 19-J da Lei nº 8.080/90. Nas unidades prisionais, mais de 60% das mulheres referiram ter sido atendidas em até 30 minutos após o início do trabalho de parto, porém 8% delas informou demora de mais de 5 horas. Outrossim:

as puérperas relataram ter sofrido maltrato ou violência durante a estadia nas materni-

dades pelos profissionais de saúde (16%) e pelos guardas ou agentes penitenciários (14%).

[...] O uso de algemas em algum momento da internação para o parto foi referido por 36%

das gestantes, sendo que 8% delas relatou ter ficado algemada mesmo durante o parto5.

d iagnós t i co da saúde materna e in fant i l encarcerada

A prevalência de sífilis foi de 9% e para infeção pelo HIV foi de 3%, taxas sete vezes mais altas do que as encontradas para as mulheres usuárias do Sis-tema Único de Saúde (SUS) que estavam fora da prisão. A incidência da sífilis congênita no momento de nascimento foi de 5,8%, 13 vezes mais alta que em mulheres fora da prisão. Assim, “as mulheres encarceradas mostraram uma prevalência mais alta de sífilis e de infecção pelo HIV durante a gravidez, pior qualidade de atendimento pré-natal e níveis mais elevados de vulnerabilida-de social, quando comparadas às mulheres não encarceradas”6. A alta infecção pelo HIV e sífilis nos recém-nascidos refletem um pré-natal malconduzido. As consequências podem repercutir para o restante da vida dessas mulheres e de seus filhos, gerando ainda maiores danos e prejuízos para essas famílias e toda a sociedade.

Nesse contexto, incluem-se, ainda, o risco da transmissão de tuberculose nas prisões, especialmente no Estado de Rio de Janeiro, onde as taxas de detec-ção são 30 vezes superiores as da população geral7.

O componente psicossocial da pesquisa “Nascer nas Prisões” demostrou a solidão dessas mulheres e as humilhações a que são submetidas durante a gestação e o parto8. Revelou o paradoxo que consiste na construção do vínculo mãe-filho em conexão com a imposição de separação e encaminhamento da criança para a família, findo o período permitido para sua permanência jun-to à mãe na prisão. Situação que se agrava, caracterizando verdadeiro dilema para mulheres e técnicos envolvidos no encaminhamento dos filhos, quando, não havendo familiares para receber a criança, esta é encaminhada para abri-gamento institucional ou família substituta.

O estudo apontou a incongruência que consiste no exercício da materni-dade num contexto de restrição de sua autonomia para cuidar do filho e de limitação de seus apoios socioafetivos, indicando a necessidade de afastar-se uma abordagem exclusivamente biomédica da saúde, contemplando a dimen-são psicossocial e os direitos sexuais e reprodutivos destas mulheres.

Ademais, o componente de arquitetura na referida pesquisa, realizado em Unidades Materno-Infantis, constatou a precariedade e a inadequação dos espaços de vida, em claro desacordo com a regulamentação vigente para ber-çários e creches, com impactos negativos sobre mães e crianças. Destacou a

“”

4 LEAL, M. C. et al. Nascer na prisão: gestação e parto atrás das grades no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 7, 2016. Ciência & Saúde Coletiva, 21(7):2071-2079, 2016.

5 LEAL, M. C. et al. Nascer na prisão: gestação e parto atrás das grades no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 7, 2016. Ciência & Saúde Coletiva, 21(7):2071-2079, 2016, p. 2065.

6 DOMINGUES, R. M. S. M. et al. Prevalence of syphilis and HIV infection during pregnancy in incarcerated women and the inci-dence of congenital syphilis in births in prison in Brazil. Cadernos de Saúde Pública, v. 33, n. 11, p. e00183616, 2017, p. 15.

7 SÁNCHEZ, A.; LAROUZÉ, B. Controle da tuberculose nas prisões, da pesquisa à ação: a experiência do Rio de Janeiro, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 21, n. 7, 2016, p. 2072.

8 DIUANA, V.; CORRÊA, M. & VENTURA, M. Mulheres nas prisões brasileiras: tensões entre a ordem disciplinar punitiva e as prescrições da maternidade. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2017.

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52 53 participação social para uma justiça mais inclusiva e democráticapela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

necessidade de ambientes que preservem a intimidade na relação mãe/filho, espaços de recreação e convivência que favoreçam o desenvolvimento da crian-ça, sua interação e inserção familiar, além da discrição dos itens de segurança, de modo a permitir às mães e às crianças uma vivência menos marcada pelo ambiente carcerário. Diante da inadequação dos ambientes prisionais visitados, a aplicação da prisão domiciliar representa uma garantia e segurança aos direi-tos maternos e infantis.

Diante das evidências científicas produzidas, não se pode negar que há patente violação ao Princípio da Intranscendência da Pena, previsto tanto no plano na-cional (artigo 5º, inciso XLV, da Constituição Federal), quanto internacional (ar-tigo 5º, item 3, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Os filhos são atingidos por piores condições da atenção à gestação e ao parto das mães encar-ceradas em comparação às não encarceradas, o que evidencia um tratamento de-sigual com imposição de consequências da pena para além da pessoa condenada.

Tratando-se de um grande número de presas provisórias, é igualmente vi-lipendiado o Princípio da Presunção de Inocência (artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal; e artigo 8º, item 2, da Convenção Americana sobre Di-reitos Humanos), na medida em que se produz uma verdadeira sanção àquelas mulheres que sequer foram condenadas por crime algum.

O acesso aos cuidados de saúde de grupos discriminados socialmente é um aspecto central das recomendações internacionais sobre direitos humanos das mulheres, das crianças e sobre direitos reprodutivos, admitidas como elemen-tos estratégicos e necessários para o efetivo cumprimento do direito à saúde no âmbito do SUS. O Brasil tem avanços significativos, contudo persistem iniqui-dades em saúde que devem ser superadas em curto prazo especialmente para grupos vulneráveis como as gestantes e mães privadas de liberdade.

As Regras de Bangkok, aprovadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2010, estabelecem o consenso ético jurídico internacional sobre o tratamento de mulheres presas e as medidas não privativas de liberdade, reafirmando-se os direitos humanos relativos à maternidade, à família, à saúde da mulher, inclusive sexual e reprodutiva, e de seus filhos nos presídios. Estas regras representam uma resposta à inadequação de políticas criminais às condições femininas, com a reafir-mação das responsabilidades dos países na implementação urgente nesse campo de leis e políticas de proteção e promoção dos direitos fundamentais.

A situação brasileira revela fragilidades no que concerne à redução das de-

ampl iando o debate

sigualdades e ao fortalecimento da cidadania dessas mulheres e suas famílias. As sanções legais, aplicadas de forma seletiva nos processos criminais, não têm favorecido a reconstrução de projetos de vida, a reinserção social, a redução das desigualdades, ou mesmo a preservação da saúde de mulheres e crianças, como previsto na Constituição e Lei Nacional de Execução Penal (LEP). O en-carceramento, que atinge particularmente uma população desfavorecida, re-presenta um processo adicional de exclusão, discriminação e estigmatização de segmentos pobres, com repercussões negativas em longo prazo e muitas vezes irreversíveis, para essas mulheres, seus filhos e toda a coletividade.

Considerando-se o princípio basilar in dubio pro reu, a mulher e seus filhos não podem ser prejudicados por presunções abstratas ou qualquer forma de omis-são estatal. Quando se analisa demandas de grávidas e de crianças recém-nasci-das em unidades prisionais, percebe-se que necessidades específicas, por vezes, exigem respostas imediatas e diretas, com o objetivo de prevenir todo e qualquer dano previsível e evitável à vida e integridade física dos sujeitos envolvidos. Deve-

-se privilegiar medidas de proteção, especialmente porque o tempo previsto pelo procedimento judicial implica em alterações urgentes no contexto analisado.

Mulheres e crianças nas prisões possuem os mesmos direitos relativos à saú-de em comparação com as demais que estejam fora do ambiente prisional. Des-se modo, devem ser garantidos o direito da gestante ao pré-natal de qualidade, à atenção humanizada durante a gravidez, parto e puerpério, bem como o direito da criança ao nascimento seguro, crescimento e desenvolvimento saudáveis são as-segurados. No mesmo sentido, o direito ao conhecimento e a vinculação à mater-nidade, onde receberá assistência no âmbito do SUS, além do direito ao acompa-nhante durante o parto e puerpério. Igualmente, no caso de internação hospitalar, o direito à permanência em tempo integral da mãe com seu filho, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente, alterado pelo Marco da Primeira Infância.

A maioria das instituições penitenciárias, ainda que possua formalmente espaço denominado como creche, não está adequada às necessidades femini-nas e infantis. Em geral, o acesso à saúde possui sérias limitações; as mulheres em situação carcerária têm sua vulnerabilidade aumentada em razão de obs-truções ao acesso a serviços de saúde e sociais, além das degradantes condições ambientais carcerárias. Essa situação é estendida aos seus filhos, reproduzindo um círculo vicioso de persistentes violações.

A prisão preventiva, de modo geral, deve ser excepcional e, no caso das mulheres grávidas e/ou com filhos, a aplicação de medidas desencarceradoras atende à melhor proteção destes segmentos, como ressaltado pelas Regras de Bangkok. A hermenêutica dos direitos humanos exige a aplicação da norma mais benéfica às pessoas que sofrem violações, justificando a adoção de me-

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54 55 participação social para uma justiça mais inclusiva e democráticapela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

didas gerais que incorporem a perspectiva de gênero independentemente da situação criminal. Ratifica-se que o encarceramento gera danos graves à saú-de e à vida das mulheres e também aos seus filhos. A aplicação de medidas desencarceradoras previstas em lei minimiza os males e sofrimentos evitáveis, permitindo condições mais propícias para o desenvolvimento dessas crianças e inserção social de suas mães.

As ponderações relativas à saúde pública são primordiais no debate acerca do direito à maternidade de mulheres privadas de liberdade, especialmente no âm-bito empírico do HC coletivo nº143.641, no qual se reafirma o diálogo entre pes-quisadores e o sistema de justiça. A divulgação dos dados científicos fortalece o regime democrático e cumpre compromisso ético com gerações presentes e futuras, inclusive porque destaca a condição das crianças que nascem nas prisões brasileiras ou que permanecem em casa sem o amparo materno, em meio a inú-meras situações de violência e crueldade.

A não aplicação abrangente da decisão proferida no âmbito do STF, com re-lação à garantia do direito à prisão domiciliar dessas mães, pode implicar em gra-ves danos à saúde de gestantes, mães e seus filhos. Em contrapartida, o direito a medidas desencarceradoras condiz com um olhar específico para a questão de saúde materna e infantil, devendo ser efetivado por meio de ações integradas e políticas intersetoriais.

cons iderações f ina i s

Luciana Simas, doutora em Bioética, Ética Aplica e Saúde Coletiva (PP-GBIOS) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com intercâmbio na Universidade da Flórida — Levin College of Law. Advogada, mestre em Di-reito e Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora Visitante na Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz.

Maria do Carmo Leal, pesquisadora titular da Fiocruz, foi Vice-Pre-sidente de Ensino, Informação e Comunicação da instituição e Diretora da Es-cola Nacional de Saúde Pública. Líder do Grupo de Pesquisa Epidemiologia e avaliação de programas sobre a saúde infantil.

Alexandra Sánchez, pesquisadora do Departamento de Endemias/ENSP/Fiocruz. Foi responsável pelo Programa de Controle da Tuberculose (SEAP/RJ) e coordenadora técnica do Projeto Fundo Global. Líder do Grupo de Pesquisa Saúde nas Prisões (ENSP/Fiocruz).

Bernard Larouzé, directeur de Recherche Emerite, epidemiologista, membro da unidade de pesquisa UMR 1136 INSERM-Sorbonne Université; e do Grupo de Pesquisa Saúde nas Prisões ENSP/Fiocruz.

Vilma Diuana, doutora em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva/UERJ, com tese sobre Mulheres, Gênero e Encarceramento. Mestre em Saúde Pública. Foi responsável pelas ações de informação, educação e comunicação do Programa de Controle da Tuberculose (SEAP/RJ).

Miriam Ventura, professora Adjunta do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC) Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ); e das pós-

-graduações em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (PPGBIOS) e Saúde Coletiva/UFRJ. Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Direitos Hu-manos e Saúde (LIDHS/UFRJ).

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57 participação social para uma justiça mais inclusiva e democrática

”“03.03.

o caos pr i s iona l e a a tuação da De fensor ia Púb l ica do Es tado de São Paulo na de fe sa de mães no cárcere

Vivemos a era do hiperencarceramento. No país, diariamente, cen-tenas de pessoas são jogadas nas masmorras do sistema carcerário, em prisões superlotadas, sem estrutura física adequada, muitas vezes com severo raciona-mento de água e expostos a todo tipo de enfermidades (muitas delas tratáveis em ambiente comum, mas que levam à morte aqueles que estão encarcerados1).

O estado de São Paulo não é exceção à regra nacional, pelo contrário: te-mos o maior contingente de população carcerária do país. Segundo dados da própria Secretaria de Administração Penitenciária, são aproximadamente 240 mil pessoas presas em 170 unidades prisionais, o que corresponde a cerca de 1/3 das pessoas presas no país, apesar de termos cerca de 1/5 da população na-cional. Ou seja, na 3ª maior população carcerária do mundo, o nosso estado é, desproporcionalmente, o maior encarcerador.

Um local que, por si só, provoca dor e sofrimento, com as condições atuais, as quais se agravam com a superlotação, torna-se impossibilitado de abrigar qualquer ser vivo, menos ainda um ser humano. A estocagem de pessoas nesse sistema viola, portanto, a vedação de penas cruéis e degradantes.

O próprio STF, no voto do Ministro Marco Aurélio, no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, reconheceu a superlo-tação como “mãe” dos demais problemas, repetindo relatório de CPI de 2009.

É possível julgar o grau de civilização

de uma sociedade visitando suas prisões.

“Crime e Castigo”, Fiódor Dostoiévski

1 COSTA, Flavio, BIANCHI, Paula. “Massacre silencioso”: doenças tratáveis matam mais que violência nas prisóes brasileiras. Uol Notícias. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/14/massacre-silencioso-mortes-por--doencas-trataveis-superam-mortes-violentas-nas-prisoes-brasileiras.htm>. Acesso em: nov. 2018.

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Com o déficit prisional ultrapassando a casa das 206 mil vagas, salta aos olhos o pro-

blema da superlotação, que pode ser a origem de todos os males. No Relatório Final

da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, formalizado em

2009, concluiu-se que “a superlotação é talvez a mãe de todos os demais problemas

do sistema carcerário. Celas superlotadas ocasionam insalubridade, doenças, mo-

tins, rebeliões, mortes, degradação da pessoa humana. A CPI encontrou homens

amontoados como lixo humano em celas cheias, se revezando para dormir, ou dor-

mindo em cima do vaso sanitário.

Um sistema que somente em seus objetivos formais mantém o ideal resso-cializador – que, a priori, já é uma falácia, como denuncia a criminologia críti-ca – fica totalmente incapacitado de evitar a reincidência na forma como está. Vale lembrar que, apesar de a população prisional aumentar exponencialmente, o mesmo não se vê com a estrutura física e de pessoal do sistema carcerário, assim, um estabelecimento que estava minimamente aparelhado para receber certo número de presos, precisa lidar com, não raras vezes, uma população três, quatro ou cinco vezes maior do que se planejou.

A superlotação não reflete na violação de direitos apenas dos que estão presos. A própria sociedade, ao ter que lidar com os reflexos do sucateamento do sistema carcerário, que, repita-se, já não traria grandes vantagens sociais se fosse como previsto em lei, sofre as consequências desse hiperencarceramento (que se reflete na superlotação dos estabelecimentos), com, para ficar com o exemplo mais corriqueiro, o fortalecimento das organizações criminosas.

Diante deste cenário, bom ter em mente o nefasto e atual estágio de supe-rencarceramento feminino nesta República, que cresceu de 567,4% entre 2000 e 2014. Entre 2007 e 2014, apenas no estado de São Paulo, o crescimento per-centual de mulheres encarceradas foi de 127%, contra um aumento de 48% no número de homens encarcerados2. Não por outro motivo, o estado de São Paulo, em 2014, respondia por 39% do total de mulheres encarceradas no país3. Além disso, no estado de São Paulo, 60% das mulheres cumprem pena em unidades superlotadas, exatamente a mesma realidade do Brasil4.

Face tal situação bárbara, o reconhecimento das particularidades e dificulda-des específicas das demandas de mulheres mães e gestantes presas no estado de

São Paulo deu origem à política “Mães em Cárcere”5, criada oficialmente em 2014, pela Deliberação 291 do Conselho Superior da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, após um processo de construção coletiva e democrática entre a De-fensoria Pública e entidades da sociedade civil de defesa dos direitos das pessoas presas. Trata-se de uma política específica para gestantes e mães com filhos com até 18 anos incompletos ou com mais de 18 anos que possuam deficiência física, intelectual ou qualquer circunstância de maior vulnerabilidade.

Uma das primeiras ações realizadas pelo Convive – órgão responsável pela articulação da referida política institucional –, visando superar a dificuldade de acesso à justiça dessas mulheres, foi a elaboração de formulários para identifi-cação de mães encarceradas, a aplicação deles no momento da inclusão das mu-lheres nas unidades prisionais e a obtenção da documentação comprovatória da maternidade, de forma a facilitar a atuação dos defensores e defensoras públicas, seja na busca pela liberdade dessas mães presas, seja na garantia de seus direitos na área de família ou, ainda, com a atuação na seara da infância e juventude, bus-cando resguardar a manutenção dos vínculos familiares com seus filhos e filhas. Junto do Convive articulam e executam tal política o Núcleo Especializado de Situação Carcerária, o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres e o Núcleo Especializado de Infância e Juventude.

No combate ao ilegal cerceamento dos direitos das mulheres nessas con-dições, tendo em vista a previsão do artigo 318 do Código de Processo Penal, que permite ao juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de seis anos de idade ou com deficiência (inciso III), gestante (inciso IV) ou mulher com fi-lho de até doze anos de idade incompletos (inciso V), notava-se que, em grande parte dos casos, os magistrados não concediam a ordem para revogar a prisão preventiva ou substituí-la pela prisão domiciliar em razão da maternidade.

Segundo pesquisa desenvolvida pelo Instituto Terra, Trabalho e Cida-dania (ITTC) em seu relatório “Mulheres Sem Prisão”6, em apenas 18,3% dos casos a prisão preventiva é aplicada com fundamento na inadequação das de-mais medidas cautelares. A negativa de liberdade ou mesmo da substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar fundavam-se, na maioria das vezes, em argumentos genéricos, como a ordem pública e/ou a gravidade em abstra-to do crime, sequer analisando a situação concreta da mulher encarcerada,

2 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen Mulheres - junho 2014. Brasília: Ministério da Justiça e da Segurança Pública, 2014. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf>. Acesso em: 25. nov. 2017.

3 Idem.

4 Idem

5 Convive- Mães em Cárcere. Disponível em: <https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Default.aspx?idPagina=5935>. Acesso em: nov. 2018

6 INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA - ITTC. Relatório Mulheres Sem Prisão. São Paulo: ITTC, 2017, p. 10. Disponí-vel em: <http://ittc.org.br/mulheresemprisao/>. Acesso em: nov. 2019.

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resultando em decisões arbitrárias, ilegais e até mesmo inconstitucionais, na me-dida em que contrariam o §6º do art. 282 do Código de Processo Penal, assim como a presunção de inocência do artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal.

A partir desse cenário, o CADHu impetrou habeas corpus coletivo no Supremo Tribunal Federal, em favor de todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional, que ostentassem a condição de gestantes, de puér-peras ou de mães com crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade.

É lugar comum que a massificação e complexificação da sociedade tem le-vado à necessidade de adaptação do processo judicial para permitir uma ade-quada resposta jurisdicional aos que buscam o Poder Judiciário a fim de garantir os direitos de determinados grupos “minoritários”. Nessa toada, Mauro Capel-leti e Bryan Carth7 detectam três ondas renovatórias da Era Instrumentalista do Direito Processual, no sentido de assegurar o acesso à Justiça. A segunda onda, especificamente, representa a consagração das formas coletivas de se promover a tutela jurisdicional, como no caso do habeas corpus coletivo nº 143.641. Como bem destacado pelo CADHu, neste habeas corpus coletivo, “se tem impacto co-letivo a ação violadora, a individualização do remédio obscurece as causas, en-fraquece os pacientes e faz persistir a ilegalidade” (HC n. 143.641, STF). Ou seja, existem situações que não poderão ser resolvidas de maneira individualizadas e exigirão uma avaliação global da situação para possibilitar a adequada aplicação da lei e da Constituição.

No mesmo sentido, o habeas corpus coletivo nº 118.536 foi impetrado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em favor das pessoas presas nos pavilhões de medida preventiva de segurança pessoal e disciplinar da Peniten-ciária Tacyan Menezes de Lucena em Martinópolis/SP, para que elas pudessem ter direito ao banho de sol e; admitido recentemente pelo Ministro Relator Dias Toffoli, que destacou a necessidade de repensarmos a utilização das ações judiciais para a tutela coletiva.

Voltando o foco ao HC coletivo 143.641, ponderamos que diversas entida-des defensoras de direitos humanos pediram sua admissão como assistentes, custos vulnerabilis ou amicus curiae, como foi o caso da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Ao requerer sua habilitação na qualidade de amicus curiae, nos termos do artigo 138 do Código de Processo Civil, a Defensoria Pública argumentou, pri-meiramente, que a decisão a ser proferida pelo Supremo Tribunal Federal afe-taria pacientes encarceradas em todo o país, sendo a grande maioria assistidas

pela Defensoria Pública, na medida em que se tratam de mulheres majoritaria-mente pobres e de baixa escolaridade8 e na maior parte das vezes acusadas de tráfico de drogas, causa para o confinamento de 64% das mulheres em situação de privação liberdade9. Apenas no Estado de São Paulo, entre 2006 e 2012, o número de mulheres encarceradas por tráfico de drogas aumentou 500%10.

Além disso, na medida em que a Defensoria Pública, por meio do artigo 134 da Constituição Federal, tem o dever constitucional de zelar pelas coletividades mais vulneráveis socioeconomicamente, tem interesse em atuar na promoção de uma cultura jurídica e judiciária cada vez mais democrática, incentivando a utilização de mecanismos que vão ao encontro de uma perspectiva de processo democrático e participativo, como é o caso do amicus curiae.

Visando esses objetivos, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por meio do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos Da Mulher (Nudem), Núcleo Especializado da Infância e Juventude (Neij) e Núcleo Espe-cializado de Situação Carcerária (Nesc), manifestou-se naquele processo elen-cando três pontos essenciais em relação ao debate em questão:

(i) a peculiar condição de gestante/mãe experimentada pelas mulheres em situação

de vulnerabilidade;

(ii) a existência de um direito subjetivo à conversão da prisão preventiva em prisão

domiciliar das mulheres gestantes ou mães de filhos/as de até 12 anos de idade;

(iii) as violações sofridas pelos recém-nascidos e crianças de até 12 anos de idade.

No que tange à questão da maternidade no cárcere, demonstrou-se que a si-tuação de especial vulnerabilidade e exclusão das pacientes se dá, pois, apesar de a maternidade ser construída como um papel socialmente esperado de extrema importância na vida de uma mulher, historicamente a sociedade e o poder público atuaram para “filtrar” quais mulheres são “dignas” de exercer a maternidade, im-pondo padrões e critérios, inclusive morais, para que possa ser exercida. A mulher que não se enquadra no ideal socialmente construído enfrenta maiores obstáculos para exercer a maternidade. Essa versão da “maternidade ideal” que paira sobre imaginário social torna-se um parâmetro inalcançável para muitas mulheres, prin-cipalmente as mulheres pobres, negras e encarceradas.

7 CAPPELLETI, Mauro e CARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução e revisão: Ellen Gracie Northfleet. Sérgio Antônio Fabris, 1998.

8 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Levantamento Nacio-nal de Informações Penitenciárias - Infopen Mulheres. 2 ed. Brasília: Ministério da Justiça e da Segurança Pública, 2017, p. 43.

9 IDEM, p. 54

10 INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA - ITTC. Infográfico mulheres e tráfico de drogas: uma sentença tripla - espa-nhol. Disponível em: <http://ittc.org.br/infografico-mulheres-e-trafico-de-drogas-uma-sentenca-tripla-espanhol/>. Acesso em: nov. 2018.

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À margem da sociedade e ao relento do Estado, esse perfil de mulheres está fortemente presente no sistema carcerário brasileiro. O levantamento do Infopen Mulheres (Junho/2014) demonstra que 50% das mulheres presas tem entre 18 e 29 anos de idade; 67% são negras, enquanto na população brasileira o índice é de 51%, segundo IBGE; 62% não completaram sequer o ensino funda-mental e 72% não completaram o ensino médio.

A idealização da maternidade e o papel social de cuidado e proteção dos filhos é desafiado pela mulher no cárcere. Em um primeiro momento, vive-se o que se denomina por “hipermaternidade”, pois, via de regra, após o nasci-mento da criança no cárcere, a mulher, durante um período que pode perdurar dos 6 aos 12 primeiros meses de vida da criança, se dedica 24 horas por dia à maternagem, abdicando-se de quaisquer outras interações ou atividades. No entanto, é praxe nas unidades prisionais paulistas que, após 6 meses de nasci-mento e amamentação, as crianças são afastadas das mães e encaminhadas para os cuidados de familiares da mulher custodiada ou de serviços de acolhimento institucional, resultando em um processo extremamente violento de separação total de seus filhos/as.

Temos que encarar a questão pela perspectiva dos recém-nascidos e crian-ças de até 12 anos de idade que, assim como suas mães, também sofrem diversas violações a seus direitos, tendo o direito à proteção integral de que são titulares completamente negado.

A Constituição Federal operou verdadeira mudança paradigmática na tu-tela dos direitos das crianças e adolescentes, consagrando a chamada Doutrina da Proteção Integral11, que reconhece essas pessoas em desenvolvimento como verdadeiros sujeitos de direitos, destinatários de proteção integral e prioridade absoluta. No mesmo sentido, preveem os arts. 3º e 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente ser dever poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida e à saúde para todas as crianças e ado-lescentes, sem discriminação de qualquer espécie.

Além disso, tanto a criança quanto sua mãe são titulares do direito à con-vivência familiar e comunitária, o qual apenas é satisfeito na medida em que o Poder Público proporcione suporte e condições materiais/psicológicas às mu-lheres em situação de vulnerabilidade, garantido a gestação segura e o pleno desenvolvimento das crianças – o que, com efeito, não pode ser concebido no ambiente do cárcere.

Muitos estudiosos são unânimes em afirmar que a separação da criança e do adolescente do convívio com a família, seguida de institucionalização, pode provocar severos danos no seu desenvolvimento, gerando para ela também uma penalização. Winnicott, por exemplo, destaca que, especialmente nos primeiros anos de vida, quando há uma maior relação de dependência da criança, se tal am-biente não for satisfatório, pode essa criança não atingir sua plenitude pessoal12.

Nesse contexto, ao serem reiteradamente negados, de maneira imprópria e infundada, os pedidos de conversão da prisão preventiva em prisão domiciliar de mulheres gestantes, puérperas e lactantes, ainda que colateralmente, provo-ca-se um verdadeiro movimento de institucionalização em massa de crianças, senão chancela-se a adoção de crianças, unicamente em virtude de impedi-mento temporário da família natural.

Conforme último relatório publicado pelo Convive, a partir de dados cole-tados ao longo do ano de 2016, foram identificadas pelo menos 35 crianças filhas de mulheres em situação de cárcere que, em virtude da prisão da genitora, fo-ram adotadas. Ademais, foram acompanhados pela Defensoria Pública Paulista ao menos 230 casos de crianças e/ou adolescentes em situação de acolhimento institucional em virtude da prisão de sua genitora (ou de seus genitores)13.

Percebe-se, portanto, que se trata de um quadro extremamente delicado, envolvendo mães e crianças que têm os mais elementares de seus direitos des-respeitados, sendo uma parcela da população extremamente vulnerável e com-pletamente invisibilizada perante o sistema de justiça brasileiro, escancarando uma das mais profundas desigualdades existentes na realidade do país, qual seja, as desproporcionais oportunidades de acesso à justiça.

Inconteste que essa realidade é enfrentada também pelas adolescentes gestantes e mães internadas provisoriamente, que ainda tem acrescida a vul-nerabilidade de também ser pessoa em fase de desenvolvimento, assim como seu/a filho/a, e que, portanto, deveriam receber respostas socioeducativas e não exclusivamente punitivas. Estas, na maioria dos habeas corpus impetrados pelos Defensores Públicos da Infância e Juventude, têm tido o direito negado, muitas vezes pela gravidade em abstrato do ato infracional e pelo fundamento do pseudo melhor interesse, sem o enfrentamento da problemática aqui trazida, bem como do princípio da legalidade, que impede que adolescentes tenham tratamento mais gravoso que adultas nas mesmas circunstâncias, na forma do art. 35, I da lei nº 12.594/12, item 54 das Regras Mínimas de Riad e anexo da

11 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)

12 WINNICOTT, Donald. Privação e delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

13 Convive- Mães em Cárcere. Disponível em: <https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Default.aspx?idPagina=5935>. Acesso em: nov. 2018

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resolução nº 119 do Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adoles-centes (Conanda).

Nesse contexto, é essencial pontuar o importante papel, tanto simbólico quanto efetivo, do habeas corpus coletivo no sentido de ampliar o acesso à jus-tiça de grande parte das mães presas preventivamente no país. Isso, porque sabe-se que essas mulheres são majoritariamente assistidas por defensorias públicas, as quais, apesar de seus esforços na libertação dessas mães, invaria-velmente tinham seus pedidos negados pelos tribunais, e, anteriormente a esse problema, existia (e continua existindo, apesar de minimizado) dificuldade de acesso dessas pessoas aos seus direitos.

Conforme levantado na petição inicial do CADHu, em consulta feita por meio da ferramenta de busca do Superior Tribunal de Justiça (STJ), constatou-se que a substituição da prisão preventiva pela domiciliar para mulheres gestantes ou com filhos pequenos foi negada em aproximadamente metade dos casos. Os argumen-tos para tanto vão de considerações sobre as condições pessoais da mulher, apura-da a partir da gravidade do delito supostamente praticado à alegação de necessida-de de prova da inadequação do ambiente carcerário no caso concreto.

Percebe-se, então, que mesmo nos casos em que se superava a dificuldade de acesso ao Judiciário para essas mães e seus filhos, isso nem sempre equiva-lia ao acesso efetivo à justiça. O habeas corpus coletivo contribui, assim, para evitar futuras decisões arbitrárias e uniformizar o entendimento dos tribunais quanto à prisão preventiva de mães e gestantes, na busca por mitigar o estado de coisas inconstitucional acima mencionado.

Na medida em que já há uma enorme distância entre o “dever ser”, pre-sente no discurso jurídico e nos textos legais, e o “ser”, representado na reali-dade social concreta, o papel do Poder Judiciário seria exatamente a constan-te tentativa de diminuir esse espaço, de modo a facilitar os meios de acesso à justiça e, ao mesmo tempo, concretizar os direitos e garantias previstos no ordenamento brasileiro.

Nesse sentido, Boaventura Santos, em seu livro Para uma revolução demo-crática da Justiça, ao indagar sobre como uma política forte de direito e de jus-tiça pode enfrentar as diferentes dimensões da injustiça social, afirma que

o potencial emancipatório de utilização do direito e da justiça só se confirma se os

tribunais se virem como parte na coalizão política que leve a democracia a sério acima

dos mercados e da posição possessiva e individualista do direito14.

Boaventura fala em “uma política de adensamento da cidadania” pela via demo-crática e pelo acesso ao direito e à justiça, a qual deve-se focar nas injustiças socioeconômicas, raciais, de gênero, ético-culturais e históricas. Propõe, assim, uma revolução democrática da justiça, que caracteriza como uma tarefa muito exigente,

tão exigente quanto esta ideia simples e afinal tão revolucionária: sem direitos de cida-

dania efetivos a democracia é uma ditadura mal disfarçada.

Sem dúvidas, a concessão da ordem no habeas corpus coletivo para deter-minar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar de todas as mulheres e adolescente presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes tratou-se de um importante passo na concretização do acesso à justiça de mi-lhares de mães e gestantes presas preventivamente em todo o país. Além dis-so, despertou grande mobilização de instituições, como a própria Defensoria Pública, e entidades civis que também atuam na defesa de direitos humanos. Por fim, é certo que a ação também ajudou a dar destaque para o tema da ma-ternidade encarcerada na sociedade, jogando um pouco de luz nas mulheres e crianças propositalmente esquecidas no cárcere brasileiro, assim como deu publicidade às mazelas dos cárceres brasileiros em geral, nos quais a tortura e os tratamentos cruéis, desumanos e degradantes são políticas de Estado.

Contudo, o caminho ainda é longo para a efetivação dos direitos em ques-tão de milhares de pessoas e, portanto, há também o que lamentar, pois, apenas em São Paulo, segundo informações prestadas pela Secretaria de Administra-ção Penitenciária em agosto de 2018, embora 1.229 mulheres tenham deixado o cárcere por força da ordem de habeas corpus, havia, no entanto, 1.325 mulheres ainda presas que fazem jus à conversão da prisão preventiva em domiciliar. O Tribunal de Justiça do estado informou ainda não ter estabelecido um controle das prisões determinadas após a decisão do HC 143.641, dada a natureza difusa da apreciação desses casos em audiência de custódia em desrespeito ao deter-minado na decisão do histórico HC coletivo 143.641.

Por fim, lamentamos que a Câmara dos Deputados tenha aprovado, no dia 28 de novembro, projeto de lei que altera o Código de Processo Penal e restrin-ge a concessão de prisão domiciliar a grávidas e a mães. A alteração impede que as mulheres não podem ter cometido crime com violência ou grave ameaça à pessoa, assim como que o crime cometido pela mulher não pode ter sido contra o filho ou dependentes.

14 SANTOS, Boaventura de Souza, Para uma revolução democrática da Justiça. São Paulo: 2011.

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Ana Carolina Oliveira Golvim Schwan, brasileira, graduada em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Defensora Pública do Estado. Atu-almente, coordenadora do Núcleo Especializado da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Leonardo Biagioni de Lima, brasileiro, graduado em Direito pela Faculdade Franca. Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade Da-másio de Jesus. Atual coordenador auxiliar do Núcleo Especializado de Situa-ção Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Mateus Oliveira Moro, brasileiro, graduado em Direito pela pela Fa-culdade de Direito da Universidade Católica de Santos. Especialista em Direito Civil pela Faculdade Autônoma de Direito. Mestre em Adolescente em Conflito com a Lei pela Universidade Bandeirante Brasil. Atual coordenador auxiliar do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

Maria Eduarda Dacomo Coelho Borges, brasileira, graduanda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Estagiária do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Es-tado de São Paulo.

Paula Sant'Anna Machado de Souza, Defensora Pública do Es-tado de São Paulo, Coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e De-fesa dos Direitos das Mulheres, pós-graduada na Faculdade Damasio de Jesus.

Thiago de Luna Cury, brasileiro, graduado em direito pela Universi-dade Estadual Paulista (Unesp). Especialista em ciências penais pela Universi-dade Anhanguera. Especialista em direito penal e criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Defensor Público do Estado de São Paulo. Atual coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.

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69 participação social para uma justiça mais inclusiva e democrática

03.04.sele t iv idade pena l , encarceramento em massa e a dec i são pe la pr i são domic i l iar de mães & gráv idas

A Constituição do Brasil completou, há pouco, 30 anos de exis-tência, e é conhecida por ser voltada à realização de direitos e garantias democráticas. No entanto, seu perfil humanitário e social vem se descarac-terizando ao longo desse trintênio. Direitos arduamente conquistados so-frem com abalos e golpes, muitas vezes pelo próprio Judiciário1, afastando a efetivação de direitos fundamentais, principalmente para certa parcela da população que é alvo preferencial do sistema de justiça criminal.

Esse aspecto é denunciado, diariamente, por advogados e juristas, jornalistas e ativistas políticos e no âmbito penal, o habeas corpus é, ainda hoje, instrumento que permite, de forma mais eficiente, interromper a violação diuturna de direitos.

Não obstante as inúmeras tentativas de restringir instrumentos proces-suais defensivos e de estreitar as possibilidades de recursos2, é de suma im-portância a consolidação do habeas corpus na proteção dos cidadãos dentro do regime democrático, resguardando-os dos abusos e ilegalidades cometi-dos por agentes do Estado. Nesse contexto, o habeas corpus coletivo ganha ainda maior relevância.

Dados recentes3 sobre o encarceramento no Brasil mostram o preocupante crescimento da população carcerária – a quarta maior do mundo – de 204% em 15 anos, resultando em uma alarmante superlotação, em que há, pratica-mente, o dobro de presos do que vagas disponíveis4. Consequentemente, são

1 Como o tema da presunção de inocência, por exemplo, com a atual permissão da execução antecipada da pena, chancelada pelo Supremo Tribunal Federal, que aguarda julgamento nas ADC 43, 44 e 54.

2 A chamada “jurisprudência defensiva”, consistente na criação de “pretextos para impedir a chegada e o conhecimento dos recursos que lhe são dirigidos (...) deixando de solucionar questões fundamentais para esconder-se no escapismo do ‘não conheço’” foi ex-posta pelo Ministro Humberto Gomes de Barros no artigo “Superior Tribunal de Justiça versus segurança jurídica: a crise dos 20 anos”. Revista do Advogado, ano XXIX, maio de 2009, p. 60.

3 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Levantamento nacional de informações penitenciárias: INFOPEN Atualização - Junho de 2016. Org. Thandara Santos. Brasília: Ministério da Justiça e da Segurança Pública, 2017. Disponível em: < http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-na-cional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf/view>. Acesso em: 19 nov. 2018.

4 Existem 726.712 pessoas presas em um sistema que conta com somente 368.049 vagas.

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constantes e graves as violações de direitos fundamentais que esses cidadãos sofrem, não tendo o mínimo de condições dignas para a sobrevivência.

Isso porque ainda persiste uma cultura punitivista que aposta na pena de prisão como forma de solucionar os problemas mais complexos da sociedade.

Pesquisa recente mostra que 6.368 pessoas morreram nas cadeias do país entre 2014 e 2017, uma média de 4 cidadãos por dia: assassinados5, que cometeram suicídio ou que morreram por problemas de saúde (quase sem-pre decorrentes do insalubre ambiente prisional).6

Diante de tal situação, o Supremo Tribunal Federal reconheceu na ADPF 347 que o sistema carcerário encontra-se em um “estado de coisas inconstitucional”, sendo necessária uma atuação estatal para mitigação do quadro. A terrível realidade se torna ainda mais grave se lembrarmos de que mais de um terço da população prisional é constituída de presos provisórios.

É preciso admitir, ademais, que o sistema penal, precipuamente o bra-sileiro, atua com clara seletividade classista, afetando a um sem-número de vidas de homens e mulheres pobres, negros e sem estudo: essa realidade é confirmada pelos dados do Infopen de junho de 2016, onde 64% da popula-ção prisional é composta de pessoas negras (sendo 53% da população total) e 90% não possui sequer o Ensino Médio. E não há horizonte de melhora desses números já que o sistema endossa tal desigualdade: 73% das prisões ocorrem devido a incidências penais de crimes contra o patrimônio e de crimes previstos na Lei de Drogas – sendo que apenas os tipos penais de roubo, furto e tráfico de drogas representam 65% do total de prisões: crimes relacionados à pauperização, desigualdade e restrição da mobilidade social, em definitiva condição estrutural do sistema de justiça criminal.

Esboçado esse cenário, que também é dominado pelo moralismo de par-te do Judiciário e onde a atuação do advogado é, por vezes, criticada como procrastinadora do processo, culmina como gigante e histórica vitória o co-nhecimento e deferimento do habeas corpus coletivo nº 143.641 perante o Supremo Tribunal Federal.

Muito se noticiou sobre ter sido o primeiro a ser admitido nos ter-mos propostos, sendo certo que, após a celebrada concessão da ordem que

determinou a conversão da prisão preventiva em domiciliar das pacientes grávidas e mães de crianças pequenas, pendem de julgamento outros tantos writs8 impetrados sob inspiração do instrumento que vingou na 2ª Turma do Tribunal. Como o HC nº 158.835, conhecido, sob a nobre fundamentação de que o habeas corpus

necessita ser repensado, justamente porque nossa Constituição prevê que a lei não

excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5º,

inciso XXXV), sobretudo dos mais vulneráveis, cujo tratamento coletivo desem-

penhará a relevantíssima função de promoção efetiva de acesso à justiça9.

Uma das razões de ser dessa afirmação é que os instrumentos processuais devem conseguir responder efetivamente à violação de direitos protegidos10.

O ministro Dias Toffoli não poderia estar mais correto: essa é uma das maneiras de garantir tratamento mais isonômico na prestação jurisdicional. Aliás, o julgamento do HC nº 143.641 foi um daqueles momentos que um advogado espera viver: ministros que, de fato, se detiveram nas razões da impetração e a discutiram, tendo como norte a garantia de direitos funda-mentais e constitucionais, principalmente de grupos tão vulneráveis, como são as mães e crianças carentes presas em contexto de ausência de salva-guarda de seus direitos.

Não obstante seja essa a função primordial das cortes judiciais, é sabido que o dia-a-dia forense é repleto de decisões “prontas” (baseadas em modelos, com pouca ou nenhuma alteração para o caso concreto) e com fundamentação insuficiente que confirmam ilegalidades e aprofundam a desigualdade de trata-mento de réus acusados de tráfico de drogas, furto e roubo daqueles acusados de descaminho, crimes contra o sistema financeiro e corrupção.

No entanto, o paradigmático julgamento do habeas corpus nº 143.641 não foi o primogênito nessa categoria, já que a tentativa de cessar as ilegalida-des que se estendem por uma coletividade ocorre há certo tempo. Entretan-to, somente com o novo posicionamento da Corte Suprema houve definitiva evolução no tratamento do tema. Senão vejamos que, em 2013, a combatente Defensoria Pública do Estado de São Paulo impetrou habeas corpus coletivo em favor da “coletividade de pessoas presas em regime inadequado no CDP de

5 Só no início de 2017, rebeliões no sistema penitenciário brasileiro mataram, ao menos, 126 pessoas.

6 O O GLOBO. Cadeia de omissões, de 24 de junho de 2018. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/2018/06/24/3046-ca-deia-de-omissoes>. Acesso em: 19. nov. 2018.

7 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Levantamento nacional de informações penitenciárias: INFOPEN Atualização - Junho de 2016. Org. Thandara Santos. Brasília: Ministério da Justiça e da Segurança Pública, 2017. Disponível em: < http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-na-cional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf/view>. Acesso em: 19 nov. 2018.

8 HC nº 158.835-DF, HC nº 118.536-SP, HC nº 156.583-RS e outros.

9 Voto do Ministro Dias Toffoli, DJe 28/06/2018.

10 MARINONI, Luiz Guilherme. O direito à tutela jurisdicional efetiva na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais. Jus Navi-gandi. Teresina, ano 8, n. 378, 20 jul. 2004. Disponível em: <http://egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/15441-15442-1-PB.pdf>. Acesso em: 19. nov. 2018.

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Osasco” (HC nº 119.753-SP), mas para o Ministro Luiz Fux (e também para os julgadores no TJSP e STJ), a fundamentação para negar seguimento foi a de que não se poderia admitir o instrumento em favor de pessoas indetermina-das, por se inviabilizar a apreciação de constrangimento (com fulcro no art. 654, §1º, alínea “a” do Código de Processo Penal). Curioso notar que a Defen-soria Pública havia indicado que a razão pela qual se impetrava writ coletivo era para que não restasse prejudicado no caso de transferência dos presos que constassem na inicial. Afinal, a situação é mutável diariamente, mas a co-letividade é razoavelmente homogênea e facilmente determinável, uma vez que havia requisitos específicos. A questão de direito, ao fundo, era comum a todos e as especificidades subjetivas já haviam sido superadas, quando ad-quiriram o direito à progressão. Ou seja, a mesma circunstância que permi-tiu a concessão da ordem às pacientes indicadas no habeas corpus coletivo nº 143.641 – indeterminadas, mas determináveis, em caráter impessoal e de constante alteração.

Não obstante, apenas dois dias depois do memorável julgamento que tomou lugar na 2ª Turma do STF, o ministro Alexandre de Moraes negou se-guimento a uma impetração coletiva11 com fundamento na reprovável juris-prudência que tinha como base a falta de indicação específica e individual de cada constrangimento ilegal.

Por outro lado e felizmente, tendo em vista a grave supressão dos direitos ali denunciada, superou-se tal questão no HC nº 143.641 por meio de admirável exercício de uma justiça que seja mais célere, eficiente e democrática, consig-nando que a sociedade contemporânea gera lesões coletivas a direitos, de sor-te que é conveniente a correção, também, em formato coletivo. Não é demais completar o necessário reconhecimento de que os instrumentos coletivos per-mitem vocalizar aos social e economicamente vulneráveis – maioria das pri-sões –, que podem sequer reconhecer o constrangimento que sofrem, ou, então, não ter como denunciá-lo.

Dessa maneira, o habeas corpus coletivo desponta no Judiciário (na falta de correções administrativas e executivas) como possível remédio a tamanhas ilegalidades dentro de um sistema carcerário caótico e tão violador de garan-tias. Assim, o instrumento coletivo se torna excelente resposta para limitar a violência da prisão, de maneira eficaz e unificadora – uma concreta medida desencarceradora em massa12.

A expansão do uso do habeas corpus coletivo parece, então, felizmente, inaugurar uma nova fase no período democrático, que, não obstante, ainda en-frenta inúmeros entraves por todo o sistema. Inclusive, com posicionamentos contrários aos emanados pela Suprema Corte, já que a concessão da ordem no HC nº 143.641 não garantiu a conversão automática e nem tão facilitada das prisões preventivas em domiciliar de mães e gestantes.

Decisões baseadas na hipótese de “excepcionais casos”13 e com fundamen-tos morais e pouco jurídicos – ou excessivamente abstratos, como a justificativa na “garantia da ordem pública” – negam a prisão domiciliar para certas mulhe-res e reforçam a desigualdade do sistema de justiça criminal, vez que o tráfi-co de drogas é fortemente reprimido de maneira seletiva e hipócrita (mesmo quando diante de pequena quantidade e alegação de uso) na população pobre

– 62% do encarceramento feminino –, mas permitem que a classe média mante-nha-se imune ao apelo moral, por meio da criminalização secundária14.

Assim, caminhando para as últimas considerações, o paradigmático conhecimento do habeas corpus coletivo pelo Supremo Tribunal Federal é vitorioso, também, por permitir certa economia processual e de esforços de defensores e advogados. E reforçando o entendimento evidenciado ao longo dessas páginas, será ferramenta indispensável para tornar a prestação jurisdicional mais célere e efetiva, provocando o controle de graves ilegali-dades cometidas pelo sistema, primordialmente, decorrente do explosivo crescimento da população carcerária nos últimos anos e dos horrores que com isso se perpetuam.

Constituições modernas caminham para o alargamento, ainda que retórico, de prerrogativas individuais, mas as normas ensejam efetiva expansão penal e punitiva, gerando o resultado esperado: o abarrotamento de prisões, a violação da dignidade, da vida e da liberdade daqueles que já terão o menor e menos eficaz acesso à justiça – não pela falta de atuação de defensores públicos15 (para a maioria dos presos) e advogados, mas pela dominante indiferença do Judiciá-rio defronte à população carente massacrada pelo sistema penal.

Aqui cabe a infeliz constatação de que as chances de provimento de re-cursos de defesa e concessões de ordem de habeas corpus no Tribunal de

11 STF, HC nº 153.237-DF, rel. min. Alexandre de Moraes, j. 22/02/18, DJe 26/02/18.

12 Outras medidas foram sugeridas em material produzido pelo IBCCRIM. 16 medidas contra o encarceramento em Massa. Disponí-vel em: <https://www.ibccrim.org.br/docs/2017/16MEDIDAS_Caderno.pdf>. Acesso em: 19. nov. 2018.

13 Conforme consta do voto do Ministro Relator no HC nº 143.641.

14 A criminalização primária é “o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas”. A criminalização secundária, por sua vez, “é ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando as agências policiais detectam uma pessoa que supõe-se tenha praticado certo ato criminalizado primariamente, a investigam, e admite um processo (...); no processo, discute-se publicamente se o acusado praticou aquela ação e, em caso afirmativo, autoriza-se a imposição de uma pena”. BATISTA, Nilo. et. al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume - Teoria Geral do Direito Penal. 4a Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. p. 43.

15 Defensorias Públicas sofrem com déficit de defensores em boa parte do país. Sobre esse assunto, estudo apontou que 95,4% das comarcas ou não possuíam ou estavam com defensores insuficientes. Cf. MOURA, Tathiana Whately et al. Mapa da Defensoria Pública no Brasil. ANADEP: Ipea, 2013, p. 42-43.

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Débora Nachmanowicz de Lima, advogada criminal e mem-bro da Comissão de Amicus Curiae do Instituto Brasileiro de Ciências Crimi-nais (IBCCRIM), tendo atuado na formulação do parecer apresentado no HC nº 143.641 e sustentado oralmente no julgamento, em nome dos amici curiae IBCCRIM, ITTC e Pastoral Carcerária.

Justiça de São Paulo são verdadeira loteria, pois variam entre 16% e 81% a depender da câmara criminal para onde ocorra a distribuição16.

Assim, por não bastarem políticas públicas e debates legislativos para reduzir as gritantes desigualdades, o caminho se pavimentou com o uso de diversos instrumentos jurídicos – ações de controle abstrato de constitucio-nalidade e, agora, com o habeas corpus coletivo – como maneira eficaz de diminuí-las. Se diante de ilegalidades que atingem a inumeráveis cidadãos, também as medidas corretivas devem ter efeitos coletivos.

16 Pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) com apoio do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp) que analisou os julgamentos de processos criminais em trâmite do Tribunal de Justiça de São Paulo, no ano de 2014. NUNES, Marcelo G., TRECENTI, Julio A. Z. Reformas de decisão nas câmaras de direito criminal em São Paulo. 23. jul. 2015. Disponível em: <www.conjur.com.br/dl/estudo-camaras-criminais-tj-sp.pdf>. Acesso em: 19 nov. 2018.

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77 participação social para uma justiça mais inclusiva e democrática

03.05.prisão domic i l iar para quem não tem casa :

a s i tuação das mulheres migrantes em con f l i to com a l e i no Bras i l

O Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) é uma organização da sociedade civil fundada em 1997 cuja visão é a erradicação da desigualdade de gê-nero, garantia de direitos e combate ao encarceramento. O ITTC tem como missão a promoção do acesso à justiça, garantia dos direitos das pessoas presas e produção de conhecimento, por meio de atuação constante e sistemática nos seguintes eixos de ação: atendimento direto, diálogo público e educação para a cidadania.

Desde 2001 o Instituto atua na garantia de direitos das mulheres mi-grantes envolvidas com o sistema de justiça criminal brasileiro, por meio do Projeto Estrangeiras (P.E)1. Tendo como base de seu trabalho o mapeamen-to e a resolução das demandas dessas mulheres, o Projeto Estrangeiras se encontra organizado em três frentes: atendimento direto, educação para a cidadania e diálogo público. A partir destas frentes, o ITTC busca monitorar e promover o acesso a direitos e políticas públicas, buscando a redução do encarceramento de mulheres.

No decorrer dessa trajetória, mais de 2500 mulheres migrantes foram acompa-nhadas e puderam acessar informações processuais, preservar seus vínculos fami-liares, acessar medidas alternativas à prisão, direitos da execução penal e regulari-zação migratória no país. A ampliação do acesso a direitos gerou, nos últimos anos, o crescimento dessa população em cumprimento de pena fora das prisões, o que motivou a expansão do projeto por meio da criação do Projeto Migrantes Egressas, em março de 2017. Os atendimentos diretos realizados na sede do Instituto e via diferentes meios de comunicação passaram a ser sistematizados com o objetivo de identificar as demandas mais recorrentes neste novo cenário, bem como mapear os encaminhamentos efetuados e atores acionados para solucioná-las.

1 O estar estrangeira em privação de liberdade ou egressa no sistema prisional paulistano corresponde à ideia de ser tratada como uma estranha, isto é, a partir de discriminações (em razão da cor, língua, costumes, etc.) e sem reconhecimento legal e jurídico da situa-ção que se encontra no Brasil. Até recentemente, a lei brasileira não considerava pessoas não brasileiras em conflito com a lei como migrantes, embora com a aprovação da nova Lei de Migrações (Lei 13.445/2017), nos termos do artigo 30, I, h pessoas migrantes em conflito com a lei passam a ter reconhecimento jurídico e direitos específicos garantidos em lei.

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A experiência de atendimento direto do ITTC a mulheres migrantes em conflito com a lei e atuação em âmbito de diálogo público institucional de-monstra a centralidade do gênero, da maternidade e da preservação dos víncu-los familiares nos casos de mulheres migrantes acusadas de transporte transna-cional de drogas no Brasil, o que as torna destinatárias de medidas alternativas à prisão, principalmente no que se refere à decisão de substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar conforme a ordem do HC 143.641.

Segundo dados do Infopen 2016, o Brasil aprisiona cerca de 2.606 pessoas não brasileiras, sendo que aproximadamente 529 (cerca de 20,2%) são mulheres. Dentre elas, 61% eram provenientes de países americanos, 22% de países africa-nos, 6,9% asiáticos e 9% de europeus. Os continentes e dados apresentados pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen Mulheres) de 2018 relataram que 63% das mulheres não brasileiras presas estavam custodia-das no estado de São Paulo, correspondendo a um total de 335 mulheres.

São Paulo é o município do Brasil que mais aprisiona mulheres não brasi-leiras diante dos fluxos das atividades ilícitas relacionados a drogas, o que tem se dado especialmente em razão da proximidade com o Aeroporto Internacio-nal de Guarulhos. Nos anos 2000, estima-se que havia cerca de 40 mulheres migrantes presas em São Paulo, enquanto em 2006 este número cresceu para 300 mulheres2. É possível apontar como principal fator para esse aumento do aprisionamento de mulheres migrantes o endurecimento da criminalização das condutas relacionadas a drogas, um movimento que se espalhou no Brasil e no mundo.

As situações mais comuns acompanhadas pelo ITTC são de mulheres mi-grantes que foram presas no aeroporto internacional de Guarulhos, com peque-nas quantidades de drogas e sem antecedentes penais, tanto no Brasil quanto em seu país de origem. O fator transnacional da conduta de que são acusadas faz com que costumeiramente respondam a um processo criminal perante a justiça federal, de modo que sua defesa é realizada, em geral, pela Defensoria

Pública da União (DPU), especialmente as Defensorias localizadas na cidade de Guarulhos e de São Paulo3.

A pesquisadora Corina Giacomello4 define que o grupo conhecido como “mulas” de drogas é caracterizado por um grupo heterogêneo de mulheres, com diferentes origens culturais e socioeconômicas, assim como de diferentes na-cionalidades. A trajetória das mulheres acompanhadas pelo ITTC dentro da prisão e fora em geral está relacionada à definição de Giacomello no que tange a esse grupo, criminalizado pelo transporte transnacional de drogas, mas que usualmente não possuem antecedentes penais e são responsáveis pelo sustento de seus núcleos familiares em seus países maternos.

O ITTC atua diretamente com mulheres migrantes realizando atendimen-to semanal nas duas unidades penitenciárias que concentram mulheres não brasileiras presas na cidade de São Paulo, a Penitenciária Feminina da Capital (PFC) e o Centro de Progressão Penitenciária do Butantã (CPP-Butantã), que abrangem os regimes fechado e semiaberto, respectivamente. Com o passar dos anos de atuação, o Instituto também acompanhou diferentes situações mulhe-res migrantes que foram presas gestantes ou junto a crianças menores de 12 anos, assim como de mulheres que foram presas no Brasil, mas eram mães de crianças menores de 12 anos que se encontram em seus países maternos.

A prioridade do ITTC em seu trabalho direto com mulheres migrantes ges-tantes ou que tenham filhos implica na busca de ações e mediações possíveis entre familiares e diferentes órgãos e instituições - especialmente poder judiciário, con-sulados e embaixadas, defensorias públicas - a fim de que estas mulheres possam exercer a maternidade e manter o vínculo com seus filhos e suas filhas em liberda-de, independentemente de viverem no Brasil ou nos países maternos.

Em sua tese de doutorado, a defensora pública federal Ana Luísa Zago de Mo-raes5 narra que, em uma das visitas realizadas da Defensoria Pública da União à Penitenciária Feminina da Capital, uma mulher romena que se encontrava com o filho na unidade foi atendida e, então, a defensora federal realizou um pedido de conversão da prisão preventiva em albergue domiciliar. Para isso, apresentou ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) uma declaração de acolhimento pelo Centro Social Nossa Senhora Aparecida, casa que oferece moradia provisória

breve contexto sobre a cr imina l i zação de mulheres migrantes no Bras i l e no e s tado de São Paulo e da ap l i cação da pr i são domic i l iar subs t i tu t iva da pr i são prevent iva

2 INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA.De Estrangeiras a Migrantes: Os 15 Anos deLuta do Projeto Estrangeiras. São Paulo: ITTC, 2016.

3 À título exemplificativo, dentre os anos 1999 e 2013, estima-se que a DPU atuou em cerca de 76% dos casos de pessoas processadas por tráfico transnacional de drogas na Justiça Federal de Guarulhos, a qual é competente no processamento das prisões em fla-grantes no Aeroporto Internacional de Guarulhos. HARTMANN, Érica De Oliveira, BORGES, Guilherme Roman, ARAÚJO, José Alberto De. Tráfico Internacional De Entorpecentes: O Fluxo no Maior Aeroporto Internacional do Brasil – Aeroporto De Guaru-lhos. Belo Horizonte, 2016, p. 22.

4 GIACOMELLO, Corina. Género, Drogas y Prisión: Experiencias de Mujeres Privadas de su Liberdad en Mexico. Tirant Lo Blanch, México, D.F., 2013, p. 6.

5 MORAES, Ana Luisa Zago. Crimigração: A Relação entre Política Migratória e Política Criminal no Brasil. Porto Alegre: 2016, p. 445.

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para mulheres refugiadas ou egressas do sistema prisional. O desembargador res-ponsável acolheu o pedido, o qual, de acordo com a autora foi a primeira decisão de aplicação da prisão domiciliar substitutiva a beneficiar uma mulher migrante sem domicílio fixo logo após o início de vigência da Lei das Medidas Cautelares, de modo que mãe e filho passaram a viver em prisão domiciliar no referido abrigo.

O exemplo mencionado acima reflete a viabilidade direta de aplicação da pri-são domiciliar substitutiva para mulheres migrantes, já que, diante da inexistência de domicílio fixo, torna-se necessária a busca por espaços alternativos que pos-sam abrigá-las, especialmente por meio da rede socioassistencial do município.

Atualmente, a colaboração estreita entre a Defensoria Pública da União e o Instituto Terra Trabalho e Cidadania tem se materializado na anexação aos pedidos de conversão da prisão preventiva em domiciliar de um compromisso do Instituto na localização de um centro de acolhida, de modo a garantir que mãe e filho(a) possam permanecer juntos durante o tempo de prisão cautelar domiciliar. Isso se justifica em razão da escusa das redes socioassistenciais em garantir a reserva de vaga para pessoas que estejam custodiadas pelo Estado, o que demanda que a busca seja pessoal e direta pelas pessoas.

Por fim, ressalta-se que desde 2014, o ITTC acompanhou alguns casos de mulheres migrantes de diferentes nacionalidades que tiveram concedida pri-são domiciliar e passaram a viver com seus filhos e filhas em espaços públicos de acolhimento, o que viabilizou a preservação do vínculo familiar.

O trabalho semanal do ITTC no acompanhamento de mulheres migrantes em conflito com a lei permite também apresentar reflexões no que concerne à apli-cação de medidas desencarceradoras, especialmente no caso de mulheres mães de crianças menores de 12 anos, no âmbito do HC coletivo. Nesse sentido, a análise ampla do ITTC, posterior à concessão da ordem do referido habeas cor-pus, identifica três principais argumentos que inibiem o acesso dessas mulhe-res a medidas desencarceradoras, especialmente a prisão domiciliar substituti-va. São eles: I) localização geográfica de filhos, filhas e pessoas sob seu cuidado fora do Brasil e mesmo que estas pessoas estejam no Brasil, II) a ausência de residência fixa no território brasileiro, III) as características do crime.

Em relação ao primeiro argumento, segundo o levantamento realizado pelo Instituto, magistrados e magistradas costumam declarar que o distanciamento

geográfico entre a mulher, presa no Brasil, e seus filhos, localizados no país materno, é um impeditivo direto à aplicação tanto do Marco Legal da Primei-ra Infância quanto da decisão habeas corpus coletivo, já que segundo o Poder Judiciário o acesso a medidas alternativas ao encarceramento poderia implicar ou em uma suposta fuga da mulher a seu país materno ou o traslado da criança ao Brasil.

Por outro lado, em contraponto a esse argumento, segundo a pesquisado-ra Bruna Brumachar6, o uso intensivo de meios de comunicação pelas mu-lheres migrantes também é uma potencial garantia do acompanhamento e exercício da maternidade ainda que à distância, já que a comunicação viabiliza a troca de bens simbólicos, afetivos e também materiais característicos a materni-dade. Dentro do ambiente prisional, o contato de mulheres migrantes com seus filhos e suas filhas depende do envio de cartas pelo correio regular e do trabalho semanal exercido pelo Projeto Estrangeiras7. Contudo, a experiência de trabalho do ITTC demonstra que, quando mulheres migrantes acessam medidas alterna-tivas à prisão, elas garantem a intensificação desse contato e podem dirimir a vulnerabilidade à qual suas famílias são expostas diante de sua ausência.

O segundo argumento presente nas decisões dos magistrados e das ma-gistradas está atrelado à ausência de residência fixa pelas mulheres migrantes. Nesse sentido, as mulheres migrantes em conflito com a lei na cidade de São Paulo, em sua maioria, foram detidas quando buscavam sair ou entrar no Brasil, não possuindo, assim, vínculos com o país.

Não possuir residência fixa no país é condição intrínseca às trajetórias que trouxeram estas mulheres ao Brasil, de forma que obstaculizar o acesso da mu-lher migrante às medidas alternativas, e especialmente da prisão domiciliar, em razão da ausência de residência fixa no Brasil consiste em discriminação e uma violação direta de seus direitos, especialmente frente às legislações recentes e à decisão do habeas corpus coletivo, que não trazem menção expressa. A rede socioassistencial do município é imprescindível para que essas mulheres aces-sem medidas desencarceradoras, o que revela a importância de articulação da rede de atendimento junto aos tribunais, tanto estaduais como federais. Nesse sentido, ressalta-se que São Paulo é um dos municípios brasileiros que conta com serviços públicos especializados à população migrante, incluindo serviço

6 BUMACHAR, Bruna. Por Meus Filhos: Uso das Tecnologias de Comunicação Entre Estrangeiras Presas em São Paulo. In: COGO, Denise; EI HAIJI, Mohammed; HUERTA, Amparo. Diásporas, Migrações, Tecnologias Da Comunicação e Identidades Transna-cionais. Bellaterra: Institut De La Comunicación, Barcelona: Universitat Autònoma de Barcelona, 2012.

7 O ITTC realiza atendimento direto às mulheres migrantes em situação de prisão a partir de um Protocolo de Intenções formalizado com a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo.

mulheres migrantes e ap l i cação da dec i são do Habeas Corpus Co le t ivo n º 143 .641 pe lo Supremo Tr ibunal Federa l

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específico de acolhimento para mulheres migrantes e seus filhos, o Centro de Acolhida Especial para Mulheres Imigrantes (Caemi).

Por fim, o terceiro argumento utilizado relaciona-se às características des-critas pelo Judiciário no que concerne ao transporte transnacional de drogas como viagem internacional de alto risco, e que o fato de as mulheres deixarem seus filhos sob cuidados de terceiros, seria incompatível com o direito à prisão domiciliar. Contudo, nos casos em que as mulheres conheciam o objetivo da viagem, ela era motivada justamente por problemas econômicos e sociais que intensificavam situações de vulnerabilidade social. Nesse sentido, a perspec-tiva predominante nos tribunais brasileiros em relação ao crime de tráfico de drogas cria um empecilho para a efetivação das garantias que militam em favor das mulheres em geral, sejam migrantes ou nacionais.

Pelo exposto, o ITTC é instituição de direitos humanos que se posiciona pelo desencarceramento de mulheres e pela visualização das mulheres migran-tes em conflito com a lei como igualmente destinatárias de medidas alternati-vas ao encarceramento, especialmente as medidas que se relacionam ao exer-cício da maternidade e manutenção de vínculos familiares, como as descritas no Marco Legal de Atenção à Primeira Infância e na decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no habeas corpus coletivo 143.641.

Carol ina Vieira da Costa , bacharel em Direito e graduanda em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Atuou como colabo-radora de pesquisa no projeto “Dar à Luz na Sombra: condições atuais e possi-bilidades futuras para o exercício de maternidade por mulheres em situação de prisão”, coordenada pelas pesquisadoras Bruna Angotti e Ana Gabriela Mendes Braga e realizada para a Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL/MJ) junto ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Trabalhou como diretora de Acesso à Justiça, na Secretaria de Políticas para as Mulheres, da Prefeitura de São Paulo. Atualmente é assistente de projetos ju-nior no Projeto Estrangeiras, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC).

Michael Mary Nolan, advogada e presidenta do Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC), coordenadora da Congregação das Irmãs de San-ta Cruz, assessora das Pastorais Sociais e assessora jurídica do Conselho Indi-genista Missionário (CIMI) e da Equipe de Articulação e Assessoria às Comu-nidades Negras (EAACONE). Em 2004 recebeu doutorado honorário de Saint Mary's College, em Notre Dame, Indiana, por seu trabalho em direitos humanos.

Viviane Balbugl io , advogada graduada em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC), já trabalhou com temas rela-cionados à justiça criminal, gênero, migração e povos tradicionais. Atualmente é assistente do Projeto Migrantes Egressas do Instituto Terra, Trabalho e Ci-dadania (ITTC) e assessora jurídica do serviço de Assessoramento, Defesa e Garantia de Direitos do Instituto das Irmãs da Santa Cruz (ADDIISC).

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85 participação social para uma justiça mais inclusiva e democrática

03.06.o dire i to a uma mudança de o lhar

No início do ano em que a Constituição cidadã completou trinta anos, o Su-premo Tribunal Federal conheceu e concedeu a ordem do habeas corpus cole-tivo nº 143.641/SP, para determinar a substituição da prisão preventiva pela do-miciliar de “todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, nos termos do art. 2º do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pes-soas com Deficiências (Decreto Legislativo 186/2008 e lei 13.146/2015)”. Exceção feita aos crimes praticados por elas contra descendentes mediante violência ou grave ameaça e de situações “excepcionalíssimas”, conforme fundamentação judicial em cada caso.

Como se nota, a Corte Suprema, privilegiando a livre convicção do ma-gistrado, reservou um espaço para o julgamento de casos concretos e de aferir se estão ou não adequados ao que se tem por “excepcionalíssimo”. Embora o emprego do superlativo não deixe dúvidas do caráter restrito da não aplicação da prisão domiciliar, a ausência de balizas concretas a definir os critérios de exceção por muitas vezes levou ao alargamento da categoria excepcional, re-sultando na desconstrução do assentado no habeas corpus.

Mas que tipo de situações excepcionais – afora as já apontadas na decisão do STF de violência ou grave ameaça contra os próprios filhos – poderiam ser verificadas? Quais direitos fundamentais seriam protegidos com a manutenção no cárcere de gestantes ou puérperas em situação excepcional? Há compati-bilidade entre a fundamentação do acórdão do STF no HC 143.641 e as nossas normas constitucionais e ordinárias?

Sem pretender exaurir todas as celeumas que podem advir de perguntas como essas, as linhas que seguem jogam luz sobre algumas reflexões impor-tantes quanto a esses direitos tão bem reconhecidos pelo STF no writ e, em especial, o papel do direito de defesa.

Desde 1988, a Constituição Federal diz que os direitos das crianças devem ser assegurados com a mais “absoluta prioridade” (art. 227).

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86 87 participação social para uma justiça mais inclusiva e democráticapela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

A previsão constitucional serviu de fundamento à elaboração de inúmeras po-líticas públicas e instrumentos normativos a respeito do assunto. Dentre eles, des-tacam-se o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) e, mais recen-temente, o Marco Legal da Primeira Infância, que deu origem à Lei nº 13.257/16.

A mais substancial previsão dessa nova lei consiste na possibilidade de con-cessão de prisão domiciliar às presas provisórias gestantes ou com filhos de até doze anos incompletos (Art. 318, V, CPP).

A concretização de leis a priorizar a proteção à criança decorre, sobre-tudo, do reconhecimento empírico e científico de que a infância consiste no período mais vital e estratégico ao pleno desenvolvimento do ser humano – tanto na questão física, quanto em relação às habilidades cognitivas, aptidões, bases culturais e sociais.

Ainda, a proteção à criança passa necessariamente por proteger o próprio convívio familiar, pois deste advêm os estímulos e as oportunidades essenciais ao desenvolvimento supra mencionado.

Dessas irretorquíveis premissas, extrai-se a necessidade de proteção à figu-ra materna. Afinal, não há como negar a ligação visceral entre o infante e a mãe, sobretudo na primeira infância, em que o desenvolvimento físico depende da gestação e amamentação.

A Lei nº 13.257/16 ganha contornos de ainda maior relevância diante do sistema prisional brasileiro, cuja atual situação já levou o Supremo Tribunal Federal e diversos órgãos internacionais de proteção aos Direitos Humanos a reconhecer seu “Estado de Coisas Inconstitucional”.

Sem margem de dúvidas, a realidade demonstra que nosso sistema prisio-nal é absolutamente incapaz de abrigar gestantes, lactantes ou mães de crian-ças na primeira infância.

Nesse sentido, segundo dados extraídos do Infopen, há apenas 37 gineco-logistas para toda a população prisional feminina e apenas 37% das unidades prisionais dispõem de módulos de saúde1.

No que diz respeito à estrutura para abrigar as crianças, os dados revelam que:

(i) apenas 34% das unidades femininas e 6% das unidades mistas dispõem de cela/

dormitório adequado para gestantes;

(ii) apenas 32% das unidades femininas e 3% das unidades mistas dispõem de berçários;

(iii) apenas 5% das unidades femininas dispõem de creches.

É incontestável, portanto, que nenhuma mulher submetida ao sistema pri-sional brasileiro conta com tratamento de saúde mínimo e adequado. Quem dirá, então, gestantes, lactantes e mães com filhos de até 12 (doze) anos que demandam tratamento especial e prioritário, por exigência constitucional.

Nesse aspecto, a previsão normativa de proteção à primeira infância guar-da estrita vinculação com os propósitos sobre os quais se funda o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (Iddd). Não se pode negar que, sob a perspectiva constitucional, a garantia e o incremento de efetividade do direito de defesa em sua dimensão ampla passa, necessariamente, à garantia de condições dignas àqueles que estão submetidos ao sistema carcerário, notadamente de mulheres detidas em condições especiais de vulnerabilidade.

No entanto, a vinculação do tema aos propósitos do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (Iddd) não se dá apenas no plano teórico, mas sobretudo no plano prático.

Isso porque, embora a Lei nº 13.257/16 represente induvidoso avanço do ponto de vista normativo, a aplicação de suas previsões na realidade concreta de mães e gestantes encarceradas, desde o seu nascedouro, sempre se deu com a seletividade que é peculiar ao nosso sistema de justiça criminal.

Com efeito, pouquíssimas eram as mulheres em relação às quais as previ-sões contidas na Lei nº 13.257/16 eram observadas. Na prática, em que pese o caráter imperativo e erga omnes da norma, o direito à proteção familiar era sis-tematicamente negado, em geral, às mulheres de estratos sociais menos favore-cidos, para as quais o acesso à justiça e a garantia do direito de defesa sempre foram absolutamente restritos.

Múltiplos eram os argumentos invocados para suplantar a imperatividade das disposições legais, permitindo-se a manutenção do encarceramento de mu-lheres gestantes, lactantes ou com filhos de até doze anos.

Em geral, as negativas fundavam-se na alegada discricionariedade do juízo na avaliação do caso concreto, na medida em que a lei diz que “poderá o juiz” substituir a prisão por domiciliar, circunstância que permitiria a seletividade com que – e para quem – a alteração legal seria observada.

Assim, inúmeras foram as decisões que, calcadas nessa alegada discriciona-riedade, afirmavam inexistir prova da imprescindibilidade da presença mater-na aos cuidados da criança.

Isto é, chegou-se ao absurdo de se impor à mãe o ônus de comprovar a “imprescindibilidade” de sua presença aos cuidados da criança, como se essa já não tivesse sido a própria premissa que norteou o legislador ao editar a Lei nº 13.257/16. Haveria, então, algum convívio materno “dispensável”? E em caso positivo, caberia ao juiz criminal decidir sobre isso?1 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Levantamento na-

cional de informações penitenciárias: INFOPEN 2014. Brasília: Ministério da Justiça e da Segurança Pública, 2015.

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88 89 participação social para uma justiça mais inclusiva e democráticapela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Ainda que a resposta seja positiva, fato é que o correto seria inverter o ônus dessa prova, cabendo a quem se encarrega da persecução criminal demonstrar a prescindibilidade do convívio materno, mas nunca à mãe provar que é, efetivamen-te, mãe. Já que se há uma previsão na qual não se pode errar é de que toda mãe é ne-cessária ao desenvolvimento do filho. A prova, portanto, haveria de se concentrar em ser determinada mulher nociva à criança (e não apenas neutra ou dispensável).

Nesse panorama, insere-se a atuação do Instituto de Defesa do Direito de De-fesa no âmbito do habeas corpus coletivo nº 143.641 na qualidade de amicus curiae.

O remédio heroico impetrado pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Hu-manos (CADHu) tinha como objeto a revogação das prisões preventivas decre-tadas contra todas as mulheres presas cautelarmente que ostentassem a con-dição de gestantes, puérperas ou mães de crianças de até 12 anos incompletos.

Visava, em suma, a dar aplicabilidade plena à Lei nº 13.257/16, garantin-do que todas as mulheres – sem exceção – tivessem garantido seu direito à proteção familiar.

É importante destacar, neste ponto, que a própria lógica que permeia um ha-beas corpus coletivo já guarda estrita relevância com o direito de defesa, porquan-to os efeitos da concessão de sua ordem difundem-se a um número indetermina-do de pessoas, dentre as quais aquelas que não têm acesso pleno à Justiça e, por consequência, à possibilidade de exercer seu direito de defesa de maneira ampla.

Em relação ao habeas corpus nº 143.641, a situação não era diferente: a concessão da ordem alcançaria milhares de mulheres submetidas às condições degradantes do sistema penitenciário, muitas das quais sequer tinham acesso a atendimento de advogado para postular ao Poder Judiciário a tutela e efetivi-dade de seu direito constitucional de proteção da família.

O esforço compartilhado das inúmeras instituições que ingressaram no feito permitiu que o Supremo Tribunal Federal, aos 20 de fevereiro de 2018, proferisse decisão histórica a respeito da questão.

Na oportunidade, nossa Corte Constitucional fez valer o Marco Legal da Primeira Infância e concedeu a ordem do habeas corpus, determinando “a subs-tituição da prisão preventiva pela domiciliar – sem prejuízo da aplicação conco-mitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP – de todas as mu-lheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, nos termos do art. 2º do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiências”, com exceção de circunstâncias excepcionalíssimas, como apontado no início deste artigo.

A decisão da Corte Suprema representa uma quebra de paradigma sob o ponto de vista do direito de defesa, sobretudo porque seus efeitos refletem di-retamente naqueles a quem este princípio fundamental é diuturnamente nega-

do não apenas pela sociedade, mas igualmente pelo Poder Judiciário, em suas outras instâncias.

Todavia, em que pese a histórica decisão e a clareza de seus fundamentos, a realidade demonstra que muitos magistrados continuam reticentes em lhe con-ferir aplicabilidade prática, em especial diante da porta aberta para “situações excepcionalíssimas”, o que confere perpetuidade à já mencionada seletividade do nosso sistema de justiça criminal.

Nesse contexto, a busca pela aplicação concreta da decisão da Corte Suprema e dos direitos dessas mulheres e crianças não se faz sem um direito de defesa real, efetivo e garantido. Já não é de hoje que o acesso à Justiça para fazer valer direitos fundamentais é pauta das mais caras ao Estado Democrático de Direito.

Não por outro motivo, o ministro Lewandowski, em seu voto no habeas corpus ora em análise, apontou a responsabilidade do Poder Judiciário quanto às dificuldades do acesso à justiça:

Considero fundamental, ademais, que o Supremo Tribunal Federal assuma a responsa-

bilidade que tem com relação aos mais de 100 milhões de processos em tramitação no

Poder Judiciário, a cargo de pouco mais de 16 mil juízes, e às dificuldades estruturais

de acesso à Justiça, passando a adotar e fortalecer remédios de natureza abrangente,

sempre que os direitos em perigo disserem respeito às coletividades socialmente mais

vulneráveis. Assim, contribuirá não apenas para atribuir maior isonomia às partes

envolvidas nos litígios, mas também para permitir que lesões a direitos potenciais ou

atuais sejam sanadas mais celeremente (pág. 29).

Lado outro, porém, é o do cotidiano das decisões que indeferem os pedidos de substituição da prisão preventiva por domiciliar de tais mulheres gestantes ou puérperas.

No ponto, as fragilidades do sistema judiciário que impedem a efetivação dos direitos fundamentais de tais mulheres e crianças verificam-se em negati-vas mal fundamentadas e preconceituosas, em suma lastreadas em hipóteses já previstas e rechaçadas pela Corte Suprema no julgamento referido. Tratam-se de decisões proferidas com argumentos de:

(i) razões de ordem probatória; (ii) natureza do crime; (iii) questões jurídico-penais, como a reincidência, e jurídico-processuais,

como a presença de requisitos para prisão preventiva – em geral, gravi-dade abstrata do delito e ausência de domicílio certo.

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90 91 participação social para uma justiça mais inclusiva e democráticapela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

As razões de ordem probatória merecem maiores considerações. As deci-sões costumam impor o ônus da prova à própria gestante ou puérpera e obs-taculizam o exercício do direito de defesa. Com isso, os magistrados que se-guem essa linha de pensamento deliberadamente ignoram que as mulheres geralmente submetidas a esse tipo de processo são hipossuficientes, sem ins-trução ou condições de contratar defensor. Elas são envolvidas em processos que caminham de forma rasa e burocrática, desaguando em decisões que ferem o princípio da dignidade da pessoa humana. Isso a ponto de, como dito, virem magistrados ao abuso de exigir dessas mulheres que comprovem ser impres-cindíveis ao desenvolvimento do filho.

No ponto, em que pese a Corte Suprema tenha assentado que “para apurar a situação de guardiã dos seus filhos da mulher presa, dever-se-á dar credibilida-de à palavra da mãe”, sucessivas decisões denegatórias de liberdade foram pro-feridas sob o argumento de que o pedido não fora instruído com documentos comprobatórios a respeito de tal circunstância.

A perpetuação da seletividade penal por via do argumento referido é clara, porquanto a grande maioria das mulheres destinatárias da ordem de habeas corpus concedida são, insistimos, de baixa renda, não contando com qualquer apoio jurídico que lhes permita reunir qualquer tipo de documentação (espe-cialmente porque estão presas), que, por muitas vezes poderia ser obtida pelo próprio Poder Judiciário ao tempo de um clique de computador.

Replicam-se, ainda, decisões denegatórias de liberdade sob o já rechaçado fundamento de (i) existência de outros familiares que cuidam ou podem cuidar dos filhos, (ii) ausência de provas da dependência dos filhos à mãe; (iii) ausên-cia de provas quanto à inexistência de outro parente que possa cuidar dos filhos.

A bem da verdade, tratam-se de fundamentações representativas de meros subterfúgios retóricos que visam à manutenção do status quo, em que direitos e garantias de cunho constitucional, dentre as quais encontra-se o direito de defesa, são sumariamente ignorados.

A esse cenário, soma-se a inércia do Poder Judiciário na análise dos pedidos, ao passo em que os efeitos da omissão equivalem aos das decisões denegatórias.

Por fim, mas não menos absurda, parece a consideração de que, após a condenação em segunda instância, as mesmas mulheres que antes tinham o direito à domiciliar deixam de possuí-lo, por não mais se encontrarem em prisão preventiva.

Para além do fato de que referido entendimento baseia-se em fundamen-to bastante frágil – um julgado a favor da execução provisória da pena após a condenação em segunda instância (HC 126.292 STF) – a realidade é que o agumento ignora o interesse da criança. Afinal, não há razão para se crer que o

convívio familiar deixa de ser imprescindível à criança apenas em razão de tal cricunstância.

Em síntese, casos de descumprimento da decisão do Supremo Tribunal Fe-deral no habeas corpus nº 143.641 não são episódicos. Há flagrante reticência do Poder Judiciário em conferir a mulheres gestantes e puérperas o direito à substituição do cárcere por domiciliar. Diante disso, o exercício do direito de defesa dessas mulheres ganha especial relevo, pois representa o acesso à Justi-ça e o instrumento para efetividade dos direitos fundamentais reconhecidos no habeas corpus mencionado.

Pode parecer chover no molhado. Pode parecer que a nossa Constituição cidadã, aos trinta anos, é ainda tão menina e tantas vezes ignorada que não há espaço para garantir direitos. Mas o direito de defesa, enquanto a voz jurídica dessas mulheres e crianças, felizmente encontrou ouvidos no seio do Supremo Tribunal Federal.

Agora, o caminho do Instituto de Defesa do Direito de Defesa é continuar a insistir e sensibilizar magistrados para que saiam do quadrado abafado e este-rilizado de seus gabinetes e vejam sentados à sua frente uma mulher, gestante, lactante ou mãe de filho de até 12 anos; não uma sigla composta por um número de artigo de lei e uma história igual às de muitas outras.

Se a história se repete desmedidamente, a solução mais óbvia não é repetir a fórmula que já se provou para lá de ineficiente.

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92 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Gui lherme Zi l iani Carnelós , bacharel em Direito pela Pon-tifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Ex-auxiliar de ensino na disciplina de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da PUC-SP. Diretor e coordenador de Litigância Estratégica do Ins-tituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Associado fundador do Innocen-ce Project Brasil.

Ana Fernanda Ayres Del losso , advogada, formada pela PUC-SP, pós-graduada em Direito Penal Econômico e em Compliance pela FGV, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCRIM), membro do IDDD, onde integra o Grupo de Litigância Estratégica e atua em diversos pro-jetos. Autora de artigos e publicações em periódicos e obras coletivas relacio-nados à área do direito penal.

Gustavo de Castro Turbiani , graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela FGV. Integrante da Comissão de Litigância Estratégica do IDDD , membro do Insti-tuto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

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95 participação social para uma justiça mais inclusiva e democrática

03.07.na lu ta por med idas imed ia tas , de méd io e longo prazo , pe lo desencarceramento

Até recentemente, falar do aprisionamento de mulheres era reivindicar o reconhecimento da gravidade do fenômeno do encarceramento em massa, das violações à vida e à integridade física e psíquica destas mulheres, além da enormidade das taxas de aumento do número de prisões que acometeram, de forma mais intensa, o público feminino. Falava-se muito da invisibilidade do tema frente a um aumento exorbitante no encarceramento feminino, mais es-pecificamente, entre 2000 e 2016, de 656%1. Junto a esse processo, eclodiram denúncias de tortura e violações de direitos, além de iniciativas dos poderes legislativo, judiciário e executivo visando a reformas no sistema. Porém, hoje entendemos que a invisibilidade não é mais o ponto crucial: já se tem um reco-nhecimento público deste duro processo em andamento.

Como exemplo, no ano de 2017, a Pastoral Carcerária acompanhou e, então, denunciou, suicídios em série de mulheres presas na Penitenciária Feminina de Santana, unidade prisional na capital paulista. Dessa denúncia, seguiram reportagens em diversos veículos de informação. O curioso é que essa realida-de já parecia presente no Infopen Mulheres 2016 - censo do Governo Federal que trata especificamente da população prisional de mulheres. Ainda que conte com inúmeras falhas quanto à produção de dados, o documento informava de forma explícita, quase anunciando as mortes por vir: “as chances de uma mu-lher se suicidar são até 20 vezes maiores entre a população prisional, quando comparada à população brasileira total”.

A visibilidade, mesmo latente, pouco implicou em ações estruturadas para garantia da vida dessas mulheres. Falta, portanto, converter a visibilida-de conquistada em uma atuação efetiva rumo à garantia de seus direitos, em outras palavras, transformar a sensibilidade e os olhares atentos em medidas

1 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen Mulheres.Brasília: Ministério da Justiça e da Segurança Pública, 2017,

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96 97 participação social para uma justiça mais inclusiva e democráticapela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

concretas para o desencarceramento. Nesse último período, dois instrumen-tos voltados a esse público tomaram o palco do debate: o indulto e a prisão domiciliar, ambos fruto da luta de entidades e movimentos sociais que visam a garantia dos direitos das mulheres presas.

Foi com o reconhecimento de que as mulheres eram pouco abarcadas pe-los decretos anuais de indulto, e fruto da mobilização capitaneada pelo Grupo de Estudos e Trabalho (GET) Mulheres Encarceradas2, que a Presidência da República editou, nos anos de 2017 e 2018, decretos de indulto voltados espe-cificamente às mulheres presas. O indulto, importante instrumento de política criminal, significa a extinção da punibilidade e, portanto, o fim do cumprimen-to da pena. Esperava-se, com a medida a soltura de milhares de mulheres, mas o que se viu, contudo, foram resultados bastante abaixo do esperado. Seja pela falta de atuação das Defensorias Públicas e das Secretarias de Administração Penitenciária na identificação das beneficiárias ou pela inserção indevida, por parte do Poder Judiciário, de critérios mais restritivos para a concessão da me-dida do que os previstos no Decreto, apenas 3,5% do total de mulheres origi-nalmente previstas pelo Governo Federal como potencial beneficiárias foram contempladas, conforme apurou pesquisa da Pastoral Carcerária.3

O discurso de proteção às mães, gestantes e crianças, bem como a esperan-ça de um instrumento abrangente, foram bastante propagandeados. No entanto, pouco fizeram as instituições responsáveis para fazer valer, de fato, a extinção da punibilidade a essas milhares de mulheres. Na pesquisa realizada pela Pas-toral Carcerária, observou-se que “a um Decreto abrangente é necessário que se somem esforços articulados de diversos agentes para a efetivação do direito ao indulto. A identificação das beneficiárias não pode operar como atribuição que escorrega das mãos de uma instituição para outra”.

Não basta reconhecer a brutalidade do exercício da maternidade dentro de uma unidade prisional, se o projeto político que mantém dezenas de milhares de mulheres aprisionadas continuar intacto. A percepção da inefetividade do indul-to aponta, além da necessidade de articulação dos trabalhos de diversos atores, para a urgência de atrelar a preocupação com a vida e a maternidade a um reco-nhecimento da prisão enquanto instituição estruturalmente violadora de direitos.

Especificamente sobre prisão domiciliar, o paralelo com o indulto serve de im-portante lição. A aprovação do Marco Legal da Primeira Infância, em 2016, não

foi capaz de gerar a movimentação necessária para garantir às mulheres presas provisoriamente a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar. Nesse sentido, fundamental a atuação do Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu), com a impetração do habeas corpus coletivo nº 143.641/SP, trazendo a questão da prisão domiciliar ao centro do debate. No entanto, a atuação dos diver-sos atores - do Executivo Federal e dos Estaduais, e do Judiciário -, assim como ocorreu com o indulto, não tomou o corpo necessário a fazer chegar a decisão para a totalidade das mulheres aprisionadas em cada cela escura espalhada pelo país. A atuação das diversas entidades em torno desta matéria surge, então, para somar esforços à pressão necessária para fazer valer o direito à prisão domiciliar.

Nesse período, diversos agentes pastorais que visitam semanalmente a unidade prisional de sua cidade trouxeram relatos da movimentação local em torno da obtenção da prisão domiciliar. Em geral, os juízes não tinham, nos processos das mulheres encarceradas, a informação da existência de fi-lhos e, por isso, as equipes da Pastoral se encarregaram da missão de levar essas notícias e pressionar pela atuação do Judiciário e da Defensoria Pú-blica. Também, mostrou-se central a disposição dos familiares no acompa-nhamento dos casos: é comum que a persistência familiar no contato com o magistrado ou defensor público seja o elemento crucial para que a demanda não se mantenha engavetada.

A compreensão de que essas mulheres, muitas delas mães solo, deveriam estar junto de seus filhos, foi um dos elementos que motivou a concessão do HC coletivo. Todavia, tal entendimento não parece ter sido suficiente para atestar que mantê-las em casa, sem poder trabalhar, levar os filhos ao colégio, fazer mercado, ir à farmácia, etc., é impossibilitá-las de viver a vida de forma digna e, inclusive, de cuidar dos filhos.

De famílias pobres, a maior parte dessas mulheres necessita de sua própria renda para garantir o sustento da casa, de modo que as restrições quase totais de deslocamento se mostram um tanto ilusórias. Nesse sentido, protege-se a maternidade para atingir a prisão domiciliar, mas não se dá condições para que a mulher possa experienciar, com condições mínimas, a vida fora dos muros e o cuidado dos filhos.

Em visitas a presídios pelo país, encontramo-nos com mulheres que ha-viam sido presas novamente, depois de terrem obtido a prisão domiciliar, pois deixaram a residência para realizar atividades cotidianas como procurar em-prego ou levar o filho ao médico. A ocorrência, lida como descumprimento da prisão domiciliar, havia levado ao retorno à unidade prisional. Tal fato nos co-loca a necessidade de traçar parâmetros para o cumprimento dessa prisão que sejam adequados às mulheres alvo do sistema prisional, nos mantendo sempre

2 Para conhecer mais do GET: Instituto Terra, Trabalho e Cidadania. 20 anos de luta: Get mulheres encarceradas. Disponível em: <http://ittc.org.br/20-anos-de-luta-get-mulheres-encarceradas/>. Acesso em nov. 2018.

3 PASTORAL CARCERÁRIA. Em defesa do desencarceramento de mulheres: pesquisa sobre o impacto concreto do indulto do dia das mães de 2017. Disponível em: <http://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2018/08/relatorio_indulto_dia_das_maes_2017.pdf>. Acesso em: nov. 2018.

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98 99 participação social para uma justiça mais inclusiva e democráticapela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

atentos à forma como decisões tomadas a nível nacional impactam em locali-dades tão diversas.

Em que pese a importância da concessão do HC coletivo, tal fato não pode ser lido descolado do contexto geral do encarceramento em massa no Brasil. Inclusive porque muitas das mulheres em cumprimento de domiciliar, já na mira do sistema de justiça, serão condenadas ao final do processo, e terão de sobreviver à desgraça do sistema prisional. Como dispôs o relatório “Luta anti-prisional no mundo contemporâneo: um estudo sobre experiências em outras nações de redução da população carcerária”:

Audiência de custódia, regime das medidas e prisões cautelares, lei de drogas, indulto,

militarismo, crimes de menor potencial ofensivo, “alternativas penais”, entre outras

questões estratégicas, conformam uma enfiada de elaborações, defesas e tentativas

parciais de humanizar a estrondosa máquina de moer pessoas (negras, majoritaria-

mente) que é o sistema penal brasileiro. Na disputa entre as frações (institucionais)

do problema, perde-se a política em seu conjunto sistêmico e, pior, cega-se para as

dinâmicas vivas das relações sociais desde as quais se edificam e são reproduzidos os

consensos sociais permissores da barbárie punitiva em expansão.

Isso não significa, em momento algum, tirar a relevância de instrumentos que permitem respiros frente à brutalidade dessa “estrondosa máquina de moer pessoas”. Mas nos instiga a ir além e nunca deixar o debate restrito a uma ou outra medida, que por mais benéfica que seja, não tem o condão de desmontar, sozinha, este processo de aprisionamento massivo em condições tão degradan-tes. Coloca-nos, também, a necessidade de nos mantermos atentos, para não deixarmos que a mobilização articulada em torno de instrumentos como o in-dulto e a prisão domiciliar se esvaziem para dentro do maquinário que sustenta o sistema prisional, como é tendência ocorrer em locais que não apontaram para a construção de um projeto responsável de desencarceramento:

O desafio de pensar e, sobretudo, colocar em movimento uma real oposição ao que

se convencionou classificar de “encarceramento em massa”, se em algum momento

passou – e certamente passa – pelo entendimento das engrenagens desse complexo

engenho de, sob vestimentas jurídicas, sequestrar, torturar e etiquetar pessoas (as que

sobrevivem), já há algum tempo reclama a vigília constante contra a tendência, sempre

mais forte, de incorporação dos próprios movimentos de oposição no interior das dinâ-

micas de reprodução do dispositivo penal.

A aposta da Pastoral é no desencarceramento em massa para acabar com a escravidão moderna. Entendemos que os jogos de poder reatualizam a ló-gica institucional alimentando o sistema, de modo que, em seus gabinetes, magistrados e operadores do direito editam papéis frios que pouco, por res-ponsabilidade dos mesmos que escrevem, efetivam-se na realidade cotidiana das mulheres encarceradas. As medidas há tempos reivindicadas precisam ter impactos significativos na vida das pessoas e na baixa das taxas de encar-ceramento, como explica o já citado relatório Luta Antiprisonal no Mundo Contemporâneo: "a explicação é evidente: não houve de fato uma decisão po-lítica nos termos de um compromisso real e de execução programada para a redução da população carcerária". O silêncio daqueles que, com a caneta, torturam e prendem, violando sistematicamente os direitos fundamentais, junto à “militarização da gestão dos conflitos sociais e o ódio semeado con-tra os alvos históricos da justiça criminal já apontavam para uma profunda decomposição do projeto de justiça social que inspirou muitos dos nossos constituintes em 1988.”4

Não se trata, como já dito, de desprezar medidas parciais, mas sim de reco-nhecer sua ineficácia caso não atreladas a um programa maior de fim do projeto político de encarceramento. O sistema prisional nasce na lógica da reforma5 e acreditar que ela seja possível, e não que a reforma é também a própria lógica organizadora, é a utopia. O encerramento do futuro que a cadeia provoca, seja na morte, no estigma ou na impossibilidade de apagar as marcas da prisão, pa-rece não ser digno de incômodo ou atenção. O judiciário e o Estado, pela inércia, reforçam a cada momento sua "reiterada opção pela barbárie"6.

Nesse movimento, a Pastoral compõe e apoia iniciativas, principalmen-te as populares, cujo cerne está na redução massiva da população prisional. Compostas principalmente de familiares e egressos, recentemente foram lançadas Frentes Estaduais pelo Desencarceramento em diversos estados pelo Brasil. Com um trecho do manifesto da Frente Pelo Desencarceramen-to em São Paulo, terminamos o texto na perspectiva da crítica propositiva, apostando na mobilização entre os movimentos e as organizações que lidam com a questão prisional:

4 PASTORAL CARCERÁRIA. Nota Da Pastoral Carcerária Nacional Sobre a Conjuntura Eleitoral: Semear a Esperança e Combater o Ódio!. Disponível em: <http://carceraria.org.br/igreja-em-saida/nota-da-pastoral-carceraria-nacional-sobre-a-conjuntura-eleito-ral-semear-a-esperanca-e-combater-o-odio>. Acesso em: nov. 2018

5 FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 42 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

6 PASTORAL CARCERÁRIA. Nota Da Pastoral Carcerária: Não é crise, é projeto. Disponível em: <http://carceraria.org.br/arquivos/nota-da-pastoral-carceraria-nao-e-crise-e-projeto>. Acesso em: nov. 2018

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101 filhos & algemas nos braços100 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Pedro Rivel l ino Lourenzo, voluntário da Pastoral Carcerá-ria de São Paulo e membro da Amparar (Associação de Familiares e Amigos de Presos/as).

Luisa Musatt i Cytrynowicz, integrante do Grupo de Trabalho Para a Questão da Mulher Presa e da equipe jurídica da Pastoral Carcerária Nacional.

O cenário catastrófico do sistema prisional nos dias de hoje, portanto, não deve ser

entendido como uma falha do Sistema de Justiça que negligenciou os presídios e a

população carcerária, mas sim como um mecanismo que cumpre muito bem seu papel.

Diante disso, encaramos ser fundamental a mobilização de diversos setores da socieda-

de – entidades, instituições e movimentos sociais – na luta por medidas imediatas, de

médio e longo prazo, pelo desencarceramento7.”“

7 FRENTE ESTADUAL PELO DESENCARCERAMENTO DE SÃO PAULO. Manifesto da Frente Estadual pelo Desencarceramento de São Paulo. Disponível em: <https://www.facebook.com/notes/frente-estadual-pelo-desencarceramento-sp/manifesto-da-fren-te-estadual-pelo-desencarceramento-de-s%C3%A3o-paulo/2158957441098837/>. Acesso em: nov. 2018.

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04.

acórdão

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acórdão 105

relator Min. Ricardo Lewandowskipacte.(s) Todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema peniten-ciário nacional, que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães comcrianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade, e das próprias criançasimpte.(s) Defensoria Pública Da Uniãoadv.(a/s) Defensor Público-Geral Federalassist.(s) Todos os membros do Coletivo de Advogados em Direitos Humanos Cadhuassist.(s) Eloisa Machado De Almeidaassist.(s) Hilem Estefania Cosme De Oliveiraassist.(s) Nathalie Fragoso E Silva Ferroassist.(s) Andre Ferreiraassist.(s) Bruna Soares Angotti Batista De Andradecoator(a/s)(es) Juízes E Juízas Das Varas Criminais Estaduaiscoator(a/s)(es) Tribunais dos Estados e do Distrito Federal e Territórioscoator(a/s)(es) Juízes e Juízas Federais com Competência Criminalcoator(a/s)(es) Tribunais Regionais Federaiscoator(a/s)(es) Superior Tribunal de Justiçaam. curiae. Defensoria Publica do Estado do Cearáadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado do Cearáam. curiae. Defensoria Publica do Estado do Parana

habeas

corpus

143 .641

são pau lo

20.02.18.segundaturma.

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acórdão106 107 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

adv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado do Paranáam. curiae. Defensoria Pública do Estado do Amapáadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado do Amapáam. curiae. Defensoria Pública do Estado do Espírito Santoadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado do Espírito Santoam. curiae. Defensoria Publica do Estado de Goiasadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado de Goiásam. curiae. Defensoria Pública do Estado do Maranhãoadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado do Maranhãoam. curiae. Defensoria Publica do Estado do Paraadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado do Paráam. curiae. Defensoria Publica do Estado da Paraibaadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado da Paraíbaam. curiae. Defensoria Pública do Estado de Pernambucoadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado de Pernambucoam. curiae. Defensoria Pública do Estado do Piauíadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado do Piauíam. curiae.Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norteadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado do Rio Grande do Norteam. curiae. Defensoria Pública do Estado de Rondôniaadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado de Rondôniaam. curiae. Defensoria Pública do Estado de Roraimaadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado de Roraimaam. curiae. Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Suladv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado do Rio Grande do Sulam. curiae. Defensoria Pública do Estado de Sergipe adv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado de Sergipeam. curiae. Defensoria Pública do Estado de São Pauloadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado de São Pauloam. curiae. Defensoria Publica do Estado do Tocantinsadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado do Tocantinsam. curiae. Defensoria Pública do Estado da Bahiaadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado da Bahiaam. curiae. Defensoria Pública do Distrito Federal adv.(a/s) Defensor Público-Geral do Distrito Federalam. curiae. Defensoria Pública do Estado de Minas Geraisadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado de Minas Geraisam. curiae.Defensoria Publica do Estado do Rio de Janeiroadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado do Rio de Janeiro

am. curiae. Defensoria Pública do Estado de Mato Grossoadv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado de Mato Grossoam. curiae. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais — Ibccrimam. curiae. Instituto Terra Trabalho e Cidadania — Ittcam. curiae. Pastoral Carceráriaadv.(a/s) Mauricio Stegemann Dieter e Outro(A/S)am. curiae. Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Suladv.(a/s) Defensor Público-Geral do Estado de Mato Grosso do Sulam. curiae. Instituto Alanaadv.(a/s) Guilherme Ravaglia Teixeira Perisse Duarte e Outro(A/S)am. curiae. Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)adv.(a/s) Marcia Bueno Scatolin e Outro(A/S)am. curiae. Instituto de Defesa do Direito de Defesa — Márcio Thomaz Bastos (Iddd)adv.(a/s) Gustavo De Castro Turbiani E Outro(A/S)

Habeas Corpus Coletivo. Admissibilidade. Doutrina brasileira do Ha-beas corpus. Máxima Efetividade do Writ. Mães e gestantes presas. Relações Sociais massificadas e burocratizadas. Grupos Sociais Vulneráveis. Acesso à Justiça. Facilitação. Emprego de Remédios Processuais Adequados. Legitimi-dade Ativa. Aplicação Analógica da Lei 13.300/2016. Mulheres Grávidas ou com Crianças sob sua Guarda. Prisões Preventivas cumpridas em condições degra-dantes. Inadmissibilidade. Privação de cuidados médicos pré-Natal e pós-parto. Falta de berçários e creches. Adpf 347 mc/df. Sistema Prisional Brasileiro. Es-tado de Coisas Inconstitucional. Cultura do Encarceramento. Necessidade de Superação. Detenções Cautelares Decretadas de Forma Abusiva e Irrazoável. Incapacidade do Estado de Assegurar Direitos Fundamentais às Encarceradas. Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas. Regras de Bangkok. Estatuto da Primeira Infância. Aplicação à Espécie. Ordem Concedida. Extensão de Ofício.

ementa .

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acórdão108 109 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

I Existência de relações sociais massificadas e burocratizadas, cujos proble-mas estão a exigir soluções a partir de remédios processuais coletivos, es-pecialmente para coibir ou prevenir lesões a direitos de grupos vulneráveis.

II Conhecimento do writ coletivo homenageia nossa tradição jurídica de conferir a maior amplitude possível ao remédio heroico, conhecida como doutrina brasileira do habeas corpus.

III Entendimento que se amolda ao disposto no art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal — cpp, o qual outorga aos juízes e tribunais competência para expedir, de ofício, ordem de habeas corpus, quando no curso de processo, verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal.

IV Compreensão que se harmoniza também com o previsto no art. 580 do cpp que faculta a extensão da ordem a todos que se encontram na mesma situação processual. V — Tramitação de mais de 100 milhões de processos no Poder Judiciário, a cargo de pouco mais de 16 mil juízes, a qual exige que o STF prestigie remédios processuais de natureza coleti-va para emprestar amáxima eficácia ao mandamento constitucional da razoável duração do processo e ao princípio universal da efetividade da prestação jurisdicional

VI A legitimidade ativa do habeas corpus coletivo, a princípio, deve ser re-servada àqueles listados no art. 12 da Lei 13.300/2016, por analogia ao que dispõe a legislação referente ao mandado de injunção coletivo.

VII Comprovação nos autos de existência de situação estrutural em que mulheres grávidas e mães de crianças (entendido o vocábulo aqui em seu sentido legal, como a pessoa de até doze anos de idade incompletos, nos termos do art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente — Eca) estão, de fato, cumprindo prisão preventiva em situação degradante, privadas de cuidados médicos pré-natais e pós-parto, inexistindo, outrossim ber-çários e creches para seus filhos.

VIII “Cultura do encarceramento” que se evidencia pela exagerada e irrazoá-vel imposição de prisões provisórias a mulheres pobres e vulneráveis, em decorrência de excessos na interpretação e aplicação da lei penal, bem as-sim da processual penal, mesmo diante da existência de outras soluções, de caráter humanitário, abrigadas no ordenamento jurídico vigente.

IX Quadro fático especialmente inquietante que se revela pela incapacidade de o Estado brasileiro garantir cuidados mínimos relativos à maternidade, até mesmo às mulheres que não estão em situação prisional, como compro-va o “caso Alyne Pimentel”, julgado pelo Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher das Nações Unidas.

X Tanto o Objetivo de Desenvolvimento do Milênio nº 5 (melhorar a saúde materna) quanto o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 5 (al-cançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas), ambos da Organização das Nações Unidades, ao tutelarem a saúde repro-dutiva das pessoas do gênero feminino, corroboram o pleito formulado na impetração.

X Incidência de amplo regramento internacional relativo a Direitos Hu-manos, em especial das Regras de Bangkok, segundo as quais deve ser priorizada solução judicial que facilite a utilização de alternativas penais ao encarceramento, principalmente para as hipóteses em que ainda não haja decisão condenatória transitada em julgado.

XI Cuidados com a mulher presa que se direcionam não só a ela, mas igual-mente aos seus filhos, os quais sofrem injustamente as consequências da prisão, em flagrante contrariedade ao art. 227 da Constituição, cujo teor determina que se dê prioridade absoluta à concretização dos direi-tos destes.

XII Quadro descrito nos autos que exige o estrito cumprimento do Esta-tuto da Primeira Infância, em especial da nova redação por ele conferida ao art. 318, IV e V, do Código de Processo Penal.

XIII Acolhimento do writ que se impõe de modo a superar tanto a arbitra-riedade judicial quanto a sistemática exclusão de direitos de grupos hi-possuficientes, típica de sistemas jurídicos que não dispõem de soluções coletivas para problemas estruturais.

XIV Ordem concedida para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar — sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP — de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, nos termos do art. 2º do Eca e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiências (Decreto Legislativo 186/2008 e Lei 13.146/2015), relacionadas neste pro-cesso pelo DEPEN e outras autoridades estaduais, enquanto perdurar tal condição, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante vio-lência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, as quais deverão ser devidamente fundamentadas pe-los juízes que denegarem o benefício.

XV Extensão da ordem de ofício a todas as demais mulheres presas, ges-tantes, puérperas ou mães de crianças e de pessoas com deficiência, bem assim às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas em idêntica si-tuação no território nacional, observadas as restrições acima.

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acórdão110 111 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Senhor Mi-nistro Edson Fachin, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taqui-gráficas, preliminarmente, por votação unânime, entender cabível a impetração coletiva e, por maioria, conhecer do pedido de habeas corpus, vencidos os Minis-tros Dias Toffoli e Edson Fachin, que dele conheciam em parte. Prosseguindo no julgamento, por maioria, conceder a ordem para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar — sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP — de todas as mulheres pre-sas, gestantes, puérperas, ou mães de crianças e deficientes sob sua guarda, nos termos do art. 2º do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com De-ficiências (Decreto Legislativo 186/2008 e Lei 13.146/2015), relacionadas nesse processo pelo DEPEN e outras autoridades estaduais, enquanto perdurar tal condição, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcio-nalíssimas, as quais deverão ser devidamente fundamentadas pelos juízes que denegarem o benefício. Estender a ordem, de ofício, às demais mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e de pessoas com deficiência, bem as-sim às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional, observadas as restrições previstas acima. Quando adetida for tecnicamente reincidente, o juiz deverá proceder em atenção às circunstâncias do caso concreto, mas sempre tendo por norte os princípios e as regras acima enunciadas, observando, ademais, a diretriz de excepcionalidade da prisão. Se o juiz entender que a prisão domiciliar se mostra inviável ou inadequada em determinadas situações, poderá substituí-la por medidas alternativas arroladas no já mencionado art. 319 do CPP. Para apurar a situação de guardiã dos filhos

da mulher presa, dever-se-á dar credibilidade à palavra da mãe. Faculta-se ao juiz, sem prejuízo de cumprir, desde logo, a presente determinação, requisitar a elaboração de laudo social para eventual reanálise do benefício. Caso se cons-tate a suspensão ou destituição do poder familiar por outros motivos que não a prisão, a presente ordem não se aplicará. A fim de se dar cumprimento imediato a esta decisão, deverão ser comunicados os Presidentes dos Tribunais Estaduais e Federais, inclusive da Justiça Militar Estadual e Federal, para que prestem in-formações e, no prazo máximo de 60 dias a contar de sua publicação, implemen-tem de modo integral as determinações estabelecidas no presente julgamento, à luz dos parâmetros ora enunciados. Com vistas a conferir maior agilidade, e sem prejuízo da medida determinada acima, também deverá ser oficiado ao DE-PEN para que comunique aos estabelecimentos prisionais a decisão, cabendo a estes, independentemente de outra provocação, informar aos respectivos juízos a condição de gestante ou mãe das presas preventivas sob sua custódia. Deverá ser oficiado, igualmente, ao Conselho Nacional de Justiça — CNJ, para que, no âmbito de atuação do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sis-tema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas, avalie o cabimento de intervenção nos termos preconizados no art. 1º, § 1º, II, da Lei 12.106/2009, sem prejuízo de outras medidas de reinserção social para as be-neficiárias desta decisão. O CNJ poderá ainda, no contexto do Projeto Saúde Prisional, atuar junto às esferas competentes para que o protocolo de entrada no ambiente prisional seja precedido de exame apto a verificar a situação de ges-tante da mulher. Tal diretriz está de acordo com o Eixo 2 do referido programa, que prioriza a saúde das mulheres privadas de liberdade. Os juízes responsáveis pela realização das audiências de custódia, bem como aqueles perante os quais se processam ações penais em que há mulheres presas preventivamente, deve-rão proceder à análise do cabimento da prisão, à luz das diretrizes ora firmadas, de ofício. Embora a provocação por meio de advogado não seja vedada para o cumprimento desta decisão, ela é dispensável, pois o que se almeja é, justamente, suprir falhas estruturais de acesso à Justiça da população presa. Cabe ao Judi-ciário adotar postura ativa ao dar pleno cumprimento a esta ordem judicial. Nas hipóteses de descumprimento da presente decisão, a ferramenta a ser utilizada é o recurso, e não a reclamação, como já explicitado na ADPF 347. Tudo nos ter-mos do voto do Relator, vencido o Ministro Edson Fachin.

Brasília, 20 de fevereiro de 2018.

Ricardo Lewandowski relator

acórdão .

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acórdão 113

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Eloísa Machado de Almeida, Bruna Soares Angotti, André Ferreira, Natha-

lie Fragoso e Hilem Oliveira, membros do Coletivo de Advogados em Direitos Humanos, impetraram habeas corpus coletivo, com pedido de medida liminar, em favor de todas as mulheres presas preventivamente que ostentem a condi-ção de gestantes, de puérperas ou de mães de crianças sob sua responsabilidade, bem como em nome das próprias crianças.

Afirmaram que a prisão preventiva, ao confinar mulheres grávidas em es-tabelecimentos prisionais precários, subtraindo-lhes o acesso a programas de saúde pré-natal, assistência regular na gestação e no pós- parto, e ainda pri-vando as crianças de condições adequadas ao seu desenvolvimento, constitui tratamento desumano, cruel e degradante, que infringe os postulados consti-tucionais relacionados à individualização da pena, à vedação de penas cruéis e, ainda, ao respeito à integridade física e moral da presa.

Asseveraram que a política criminal responsável pelo expressivo encarce-ramento feminino é discriminatória e seletiva, impactando de forma despro-porcional as mulheres pobres e suas famílias.

re la tór io .

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acórdão114 115 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Enfatizaram o cabimento de habeas corpus coletivo na defesa da liberdade de locomoção de determinados grupos de pessoas, com fulcro na garantia de acesso à Justiça, e considerado o caráter sistemático de práticas que resultam em violação maciça de direitos. Nesse sentido, invocaram o art. 25, I, da Con-venção Americana de Direitos Humanos, que garante o direito a um instrumen-to processual simples, rápido e efetivo, apto a tutelar direitos fundamentais le-sionados ou ameaçados.

Salientaram o caráter sistemático das violações, no âmbito da prisão cautelar a que estão sujeitas gestantes e mães de crianças, em razão de falhas estruturais de acesso à Justiça, consubstanciadas em obstáculos econômicos, sociais e culturais.

Aduziram que a competência para julgamento do feito é do Supremo Tri-bunal Federal, tanto pela abrangência do pedido quanto pelo fato de o Superior Tribunal de Justiça figurar entre as autoridades coatoras.

Ressaltaram que os estabelecimentos prisionais não são preparados de forma adequada para atender à mulher presa, especialmente a gestante e a que é mãe.

Relataram que, com a entrada em vigor da Lei 13.257/2016, a qual alterou o Código de Processo Penal para possibilitar a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar para gestantes e mães de crianças, o Poder Judiciário vem sendo provocado a decidir sobre a substituição daquela prisão por esta outra, nos casos especificados pela Lei, porém, em aproximadamente metade dos ca-sos, o pedido foi indeferido.

Informaram que as razões para o indeferimento estariam relacionados à gravidade do delito supostamente praticado pelas detidas e também à necessi-dade de prova da inadequação do ambiente carcerário no caso concreto.

Aduziram que esses argumentos não têm consistência, uma vez que a gra-vidade do crime não pode ser, por si só, motivo para manutenção da prisão, e que, além disso, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro.

Disseram que se faz necessário reconhecer a condição especial da mulher no cárcere, sobretudo da mulher pobre que, privada de acesso à Justiça, vê-se também destituída do direito à substituição da prisão preventiva pela domiciliar.

Insistiram em que essa soma de privações acaba por gerar um quadro de excessivo encarceramento preventivo de mulheres pobres, as quais, sendo ges-tantes ou mães de criança, fariam jus à substituição prevista em lei.

Asseveraram que a limitação do alcance da atenção pré-natal, que já rendeu ao Brasil uma condenação pelo Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (caso Alyne da Silva Pimentel versus Brasil), atinge, no sistema prisional, níveis dramáticos, ferindo direitos não só da mu-lher, mas também de seus dependentes, ademais de impactar o quadro geral de

saúde pública, bem como infringir o direito à proteção integral da criança e o preceito que lhe confere prioridade absoluta.

Citaram casos graves de violações dos direitos das gestantes e de seus fi-lhos, e realçaram que esses males poderiam ser evitados, porque muitas das pessoas presas preventivamente no Brasil são, ao final, absolvidas, ou têm a pena privativa de liberdade substituída por penas alternativas.

Acrescentaram que, segundo dados oficiais, faltam berçários e centros ma-terno-infantis e que, em razão disso, as crianças se ressentem da falta de condi-ções propícias para seu desenvolvimento, o que não só afeta sua capacidade de aprendizagem e de socialização, como também vulnera gravemente seus direi-tos constitucionais, convencionais e legais.

Arguiram que, embora a Lei de Execução Penal (LEP) determine como obrigatória, nos estabelecimentos penais, a presença de instalações para aten-dimento a gestantes e crianças, essas disposições legais vêm sendo sistematica-mente desrespeitadas.

Argumentaram que, embora a substituição da prisão preventiva pela domi-ciliar não seja direito subjetivo da gestante e da mãe, elas têm outros direitos que estão sendo desrespeitados, não se podendo penalizá-las pela falta de es-trutura estatal adequada para fazê-los valer.

Nesses casos, disseram, é o direito de punir, e não o direito à vida, à integri-dade e à liberdade individual, que deve ser mitigado, como se decidiu quando a Suprema Corte declarou ser inadmissível que presos cumpram pena em regi-me mais gravoso do que aquele ao qual foram condenados, ou em contêineres, aduzindo que, em tais casos, a ordem de habeas corpus foi estendida aos presos na mesma situação.

Destacaram também a vulnerabilidade socioeconômica das mulheres pre-sas preventivamente no Brasil.

Requereram, por fim, a concessão da ordem para revogação da prisão pre-ventiva decretada contra todas as gestantes puérperas e mães de crianças, ou sua substituição pela prisão domiciliar.

A Defensoria Pública do Estado do Ceará pleiteou seu ingresso como custos vulnerabilis ou, subsidiariamente, como amicus curiae (documento eletrônico 7).

Enfatizou ser órgão interveniente na execução penal para a defesa das pes-soas presas, que formam um grupo extremamente vulnerável, e que sua atua-ção como guardiã dos vulneráveis tem por fundamento o art. 134 da Constitui-ção e o art. 4º, XI, da Lei Complementar 80/1994.

Afirmou que, caso assim não se entenda, deve ser aceita para atuar como amicus curiae, na medida em que o presente habeas corpus é coletivo.

No mérito, postulou a aplicação do princípio da intranscendência, segundo

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acórdão116 117 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

o qual a pena não pode passar da pessoa do condenado, e do princípio da prima-zia dos direitos da criança, asseverando que tais postulados têm sido ofendidos sistematicamente pela manutenção de prisão preventiva de mulheres e de suas crianças em ambiente inadequado e superlotado.

Insistiu em que a leitura correta da Lei 13.257/2016 é a de que não há neces-sidade de satisfazer-se outras condições, salvo as expressas na própria lei, para a substituição da prisão preventiva pela domiciliar.

Na sequência, a Procuradoria-Geral da República opinou pelo não conhe-cimento do writ, sob alegação de que é manifestamente incabível o habeas cor-pus coletivo, ante a impossibilidade de concessão de ordem genérica, sem indi-vidualização do seu beneficiário e de expedição de salvo-conduto a um número indeterminado de pessoas (documento eletrônico 12).

Ressaltou, ainda, que não cabe ao Supremo Tribunal o julgamento do feito, haja vista não terem sido indicados atos coatores específicos imputáveis ao Su-perior Tribunal de Justiça.

Ato contínuo, houve nova manifestação da Defensoria Pública do Estado do Ceará juntando documentos que permitem identificar, no que tange às pre-sas do Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa, aquelas que são mães de crianças e que estão presas provisoriamente em unidade su-perlotada (documento eletrônico 13).

Persistiu assentando que deve ser superado o prisma individualista do habeas corpus por meio de uma leitura constitucional e sistêmica, de modo a admitir-se a identificação das beneficiárias da ordem durante a tramitação ou ao final do writ, ou mesmo na oportunidade da execução da ordem, tendo em consideração a transitoriedade da condição de presas preventivas e a fim de garantir tratamento isonômico a estas.

O acolhimento do HC, tal como impetrado, ponderou, ensejará economia de recursos e maior celeridade para o julgamento de feitos criminais e ampliará o espectro de abrangência de tal instrumento, permitindo evitar a multiplica-ção de processos semelhantes.

Citou exemplos de writs que tramitaram no Supremo Tribunal Federal nos quais não houve a identificação dos pacientes, e que nem por isso tiveram seu andamento interrompido ou suspenso (Habeas Corpus 118.536 MC/SP e o Ha-beas Corpus 119.753/SP), bem como aqueles em que a ordem foi estendida a outras pessoas sofrendo o mesmo tipo de coação ilegal.

Asseverou ser inequívoca a competência do Supremo Tribunal Federal para o julgamento do feito, diante da existência de inúmeros acórdãos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça em que aquela Corte exigiu o cumprimento de requisitos outros, além dos constantes do art. 318 do Código de Processo

Penal, para a substituição de preventiva por domiciliar. Listou como exemplifi-cativos dessa postura do Superior Tribunal de Justiça os Habeas Corpus 352.467, 399.760, 397.498, em que figuram como pacientes presas preventivas devida-mente identificadas.

Ressaltou que, no Supremo Tribunal Federal, também estaria se firmando a tese segundo a qual a mera de inocorrência dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal seria suficiente para deferimento da substituição.

Acrescentou que o acolhimento deste habeas corpus coletivo constituiria uma possibilidade para se repensar e dar aplicabilidade ao espírito democrá-tico dessa alteração legislativa, a qual concretiza diretrizes constitucionais de proteção à infância.

Reiterou, de resto, seus pleitos anteriores, sobretudo quanto à admissão de sua participação como custos vulnerabilis.

Na sequência, peticionou a Defensoria Pública do Estado do Paraná, reque-rendo sua habilitação nos autos como custos vulnerabilis ou, subsidiariamente, como amicus curiae (documento eletrônico 19).

Invocou a aplicação de dispositivos constitucionais e convencionais que justificariam o acolhimento dos pleitos deste habeas corpus, requerendo a con-cessão da ordem, bem assim a intimação do Defensor Público-Geral Federal de maneira a provocar a sua atuação como guardião das pessoas vulneráveis.

Posteriormente, determinei a expedição de ofício ao Departamento Peniten-ciário Nacional (DEPEN) para que: (i) indicasse, dentre a população de mulheres presas preventivamente, quais se encontram em gestação ou são mães de crian-ças e (ii) informasse, com relação às unidades prisionais onde estiverem custo-diadas, quais dispõem de escolta para garantia de cuidados pré-natais, assistência médica adequada, inclusive pré-natal e pós-parto, berçários e creches, e quais delas estão funcionando com número de presas superior à sua capacidade.

Deferi, na mesma oportunidade, a intimação do Defensor Público- Geral Federal, para que esclarecesse sobre seu interesse em atuar neste feito (docu-mento eletrônico 21).

A Defensoria Pública da União ingressou no feito, ponderando ser essen-cial sua participação, seja pelos reflexos da decisão nos direitos de um grupo vulnerável, seja por sua expertise nos temas objeto do presente habeas corpus (documento eletrônico 29).

Quanto às questões de fundo, sustentou, primeiramente, a possibilidade de impetração de habeas corpus coletivo, invocando para tanto o histórico da doutrina brasileira do habeas corpus, a existência do mandado de segurança e do mandado de injunção coletivos e a legitimação da Defensoria Pública para a propositura deste último, tudo a demonstrar (i) a caminhada das ações

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acórdão118 119 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

constitucionais em direção às soluções coletivas e (ii) o reconhecimento da representatividade da Defensoria Pública.

Acrescentou que, embora seja indiscutível que várias situações tutelá-veis por habeas corpus dependam de análises individuais pormenorizadas, outras há em que os conflitos podem ser resolvidos coletivamente. Citou como exemplo o caso do Habeas Corpus 118.536, em cujo bojo a Procura-doria-Geral da República ofertou parecer pelo conhecimento do writ e pela concessão da ordem.

Ademais, defendeu o direito que assiste às mães de crianças sob sua res-ponsabilidade e às gestantes de não se verem recolhidas à prisão preventiva, ressaltando ser comum a situação da mulher presa cautelarmente que é, ao fi-nal, condenada à pena restritiva de direito, o que não reverte os danos sofridos pela mãe e pela criança.

Enfatizou que são vários os precedentes do Supremo Tribunal Federal em prol da tese constante da inicial, requerendo sua admissão para atuar no feito, para ao final, pleitear, no mérito, a concessão da ordem.

O Departamento Penitenciário do Estado do Paraná apresentou os dados de mulheres presas na Penitenciária Feminina daquele Estado, cumprindo a decisão anterior de minha lavra (documento eletrônico 31).

A seguir, afirmei o cabimento do habeas corpus coletivo mas estabeleci al-gumas premissas para seu conhecimento, mormente no que tange à legitimação ativa, que entendi, por analogia à legislação referente ao mandado de injunção coletivo, ser da Defensoria Pública da União, por tratar-se de ação cujos efeitos podem ter abrangência nacional (documento eletrônico 32).

O DEPEN apresentou parte das informações que lhe foram requisitadas por mim em 27 de junho de 2017 (documento eletrônico 36).

A Procuradoria-Geral da República reiterou sua manifestação anterior no sentido de não conhecimento do habeas corpus (documento eletrônico 37).

As Defensorias Públicas de São Paulo, Bahia, Distrito Federal, Espírito San-to, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Tocantins requereram a respectiva habilitação na qualidade de amici curiae (documento eletrônico 42).

Já a Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso requereu sua admissão no processo como custos vulnerabilis ou, subsidiariamente, como assistente (documento eletrônico 44). Pleiteou, ainda, o acolhimento dos pedidos iniciais.

Na sequência, por analogia ao art. 80 do Código de Processo Penal, deter-minei o desmembramento do feito quanto aos Estados do Amapá, Ceará, Espí-rito Santo, Goiás, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, Rio Grande do Sul, Sergipe, São Paulo e Tocantins,

tendo em conta que estes ainda não haviam prestado as informações requisita-das (documento eletrônico 53).

O desmembramento deu origem ao Habeas Corpus 149.521/2017. Na mes-ma oportunidade, acolhi a argumentação das Defensorias Públicas Estaduais para atribuir-lhes a condição de amici curiae nestes autos.

A Procuradoria-Geral da República apresentou parecer final, em que insis-tiu no descabimento do habeas corpus coletivo, por cuidar-se de direitos de co-letividades indeterminadas e indetermináveis, com reflexos inclusive futuros, bem como pela imprescindibilidade de exame da eventual situação de cons-trangimento no caso concreto (documento eletrônico 73)

Argumentou que o habeas corpus serve à proteção direta e imediata do di-reito individual à liberdade de locomoção, não podendo ser concedido de for-ma genérica, sob pena de converter-se em súmula vinculante ou instrumento de política pública criminal.

Asseverou, mais, que não foi apontado ato concreto da corte ad quem, e que o Superior Tribunal de Justiça não pode ser considerado autoridade coatora ape-nas pelo fato de haver negado, no passado, o benefício a algumas mulheres, haja vista que este tem apreciado cada pedido de forma individualizada, inclusive com o deferimento de inúmeros pedidos de cumprimento de prisão preventiva em regime domiciliar com fundamento no Estatuto da Primeira Infância.

Aduziu que a maternidade não pode ser uma garantia contra a prisão, por-que o art. 318 do Código de Processo Penal não estabelece direito subjetivo au-tomático, asseverando que o objetivo da norma é tutelar direitos da criança, e não da mãe, cuja liberdade pode até representar um risco para esta.

Ao final, o Instituto Alana requereu sua admissão como amicus curiae, en-fatizando a importância deste habeas corpus coletivo para assegurar os direitos dos menores, especialmente para dar concreção à norma que confere priorida-de absoluta aos direitos de crianças e adolescentes, na medida em que o art. 227 da Constituição ser compreendido como norma de eficácia plena e aplicabili-dade imediata.

Requereu, assim, a procedência do pedido inicial, bem como a “a concessão, de ofício, de habeas corpus às adolescentes que estão em situação análoga, ou seja, gestantes ou mães internadas provisoriamente, para colocá-las em liber-dade, uma vez que as violações impostas aos direitos das crianças são essencial-mente as mesmas”.

O Instituto de Defesa do Direito de Defesa – Márcio Thomaz Bastos (IDDD) requereu sua admissão como amicus curiae, a qual deferi. No mérito, manifestou-se pela concessão da ordem.

É o relatório.

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acórdão120 121 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator) Bem examinados os autos, ressalto, de início, que os argumentos que en-

volvem a preliminar de não conhecimento de habeas corpus coletivo têm sido objeto de reflexão nesta Casa e na própria Procuradoria-Geral da República. E estes, bem sopesados, levam-me a concluir, com a devida vênia dos que enten-dem diversamente, pelo cabimento do habeas corpus coletivo.

Com efeito, segundo constatei no Recurso Extraordinário 612.043- PR, os distintos grupos sociais, atualmente, vêm se digladiando, em defesa de seus di-reitos e interesses, cada vez mais, com organizações burocráticas estatais e não estatais (Cf. FISS, O. Um Novo Processo Civil: Estudos Norte-Americanos sobre Jurisdição, Constituição e Sociedade. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004). Dentro desse quadro, a ação coletiva emerge como sendo talvez a única solução viável para garantir o efetivo acesso destes à Justiça, em especial dos grupos mais vulneráveis do ponto de vista social e econômico.

De forma coerente com essa realidade, o Supremo Tribunal Federal tem admitido, com crescente generosidade, os mais diversos institutos que logram lidar mais adequadamente com situações em que os direitos e interesses de determinadas coletividades estão sob risco de sofrer lesões graves. A título de exemplo, vem permitindo a ampla utilização da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), assim como do Mandado de Injunção coletivo. Este último, convém lembrar, foi aceito corajosamente por esta Corte já em 1994, muito antes, portanto, de sua expressa previsão legal, valendo lembrar o Mandado de Injunção 20-4 DF, de relatoria do Ministro Celso de Mello, em que este afirmou:

A orientação jurisprudencial adotada pelo Supremo Tribunal Federal prestigia (...) a

doutrina que considera irrelevante, para efeito de justificar a admissibilidade de ação

injuncional coletiva, a circunstância de inexistir previsão constitucional a respeito (...).

Com maior razão, penso eu, deve-se autorizar o emprego do presente writ coletivo, dado o fato de que se trata de um instrumento que se presta a salvaguar-dar um dos bens mais preciosos do homem, que é a liberdade. Com isso, ademais, estar-se-á honrando a venerável tradição jurídica pátria, consubstanciada na doutrina brasileira do habeas corpus, a qual confere a maior amplitude possível ao remédio heroico, e que encontrou em Ruy Barbosa quiçá o seu maior defensor. Segundo essa doutrina, se existe um direito fundamental violado, há de existir no ordenamento jurídico um remédio processual à altura da lesão.

A toda a evidência, quando o bem jurídico ofendido é o direto de ir e vir, quer pessoal, quer de um grupo pessoas determinado, o instrumento proces-sual para resgatá-lo é o habeas corpus individual ou coletivo.

E que, na sociedade contemporânea, burocratizada e massificada, as lesões a direitos, cada vez mais, assumem um caráter coletivo, sendo conveniente, in-clusive por razões de política judiciária, disponibilizar-se um remédio expedito e efetivo para a proteção dos segmentos por elas atingidos, usualmente despro-vidos de mecanismos de defesa céleres e adequados.

Como o processo de formação das demandas é complexo, já que com-posto por diversas fases — nomear, culpar e pleitear, na ilustrativa lição da doutrina norte-americana (Cf. FELSTINER, W. L. F.; ABEL, R. L.; SARAT, A. The Emergence and Transformation of Disputes: Naming, Blaming, Claiming. Law & Society Review, v. 15, n. 3/4, 1980), é razoável supor que muitos direi-tos deixarão de ser pleiteados porque os grupos mais vulneráveis — dentre os quais estão os das pessoas presas — não saberão reconhecê-las nem tam-pouco vocalizá-los.

Foi com semelhante dilema que se deparou a Suprema Corte argentina no famoso “caso Verbitsky”. Naquele país, assim como no Brasil, inexiste previsão constitucional expressa de habeas corpus coletivo, mas essa omissão legislativa não impediu o conhecimento desse tipo de writ pela Corte da nação vizinha. No julgamento em questão, o habeas corpus coletivo foi considerado, pela maioria dos membros do Supremo Tribunal, como sendo o remédio mais compatível com a natureza dos direitos a serem tutelados, os quais, tal como na presente hipótese, diziam respeito ao direito de pessoas presas em condições insalubres.

É importante destacar que a Suprema Corte argentina recorreu não ape-nas aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e do acesso universal à Justiça, como também ao direito convencional, sobretudo às Regras

voto .

“ ”

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acórdão122 123 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos, de maneira a funda-mentar a decisão a que chegou, na qual determinou tanto aos tribunais que lhe são hierarquicamente inferiores quanto aos Poderes Executivo e Legislativo a tomada de medidas para sanar a situação de inconstitucionalidade e inconven-cionalidade a que estavam sujeitos os presos.

Vale ressaltar que, para além de tradições jurídicas similares, temos com a República Argentina também um direito convencional comum, circunstância que deve fazer, a meu juízo, com que o STF chegue a conclusões análogas àque-la Corte de Justiça, de modo a excogitar remédios processuais aptos a combater as ofensas maciças às normas constitucionais e convencionais relativas aos di-reitos das pessoas, sobretudo aquelas que se encontram sob custódia do Estado.

No Brasil, ao par da já citada doutrina brasileira do habeas corpus, que in-tegra a épica história do instituto em questão, e mostra o quanto ele pode ser maleável diante de lesões a direitos fundamentais, existem ainda dispositivos legais que encorajam a superação do posicionamento que defende o não cabi-mento do writ na forma coletiva.

Nessa linha, destaco o art. 654, § 2º, do Código de Processo Penal, que pre-coniza a competência de juízes e os tribunais para expedir, de ofício, ordem de habeas corpus, quando, no curso de processo, verificarem que alguém sofreu ou está na iminência de sofrer coação ilegal. A faculdade de concessão, ainda que de ofício, do writ, revela o quanto o remédio heroico é flexível e estruturado de modo a combater, de forma célere e eficaz, as ameaças e lesões a direitos rela-cionados ao status libertatis.

Indispensável destacar, ainda, que a ordem pode ser estendida a todos que se encontram na mesma situação de pacientes beneficiados com o writ, nos ter-mos do art. 580 do Código de Processo Penal.

A impetração coletiva vem sendo conhecida e provida em outras instân-cias do Poder Judiciário, tal como ocorreu no Habeas Corpus 1080118354-9, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, e nos Habeas Corpus 207.720/SP e 142.513/ES, ambos do Superior Tribunal de Justiça. Neste último, a extensão da ordem a todos os que estavam na mesma situação do paciente transformou o habeas corpus individual em legítimo instrumento processual coletivo, por meio do qual se determinou a substituição da prisão em contêiner pela domiciliar.

A existência de outras ferramentas disponíveis para suscitar a defesa co-letiva de direitos, notadamente, a ADPF, não deve ser óbice ao conhecimento deste habeas corpus. O rol de legitimados dos instrumentos não é o mesmo, sendo consideravelmente mais restrito nesse tipo de ação de cunho objetivo. Além disso, o acesso à Justiça em nosso País, sobretudo das mulheres presas e pobres (talvez um dos grupos mais oprimidos do Brasil), por ser notoriamente

deficiente, não pode prescindir da atuação dos diversos segmentos da socieda-de civil em sua defesa.

Nesse diapasão, ressalto dados da pesquisa “Panorama de Acesso à Justiça no Brasil, 2004 a 2009” (Brasília: Conselho Nacional de Justiça, Jul. 2011), os quais demonstram que, abaixo de determinado nível de escolaridade e renda, o acesso à Justiça praticamente não se concretiza.

Tal pesquisa, dentre outras revelações, ressalta o quanto esse acesso, como direito de segunda geração ou dimensão, tem encontrado dificuldades para se realizar no Brasil, esbarrando, sobretudo, no desalento, ou seja, nas dificulda-des relacionadas a custo, distância e desconhecimento que impedem as pessoas mais vulneráveis de alcançar o efetivo acesso à Justiça.

Assim, penso que se deve extrair do habeas corpus o máximo de suas po-tencialidades, nos termos dos princípios ligados ao acesso à Justiça previstos na Constituição de 1988 e, em particular, no art. 25 do Pacto de São José da Costa Rica.

Não vinga, data venia, a alegação da Procuradoria-Geral da República no sentido de que as pacientes são indeterminadas e indetermináveis. Tal asser-tiva ficou superada com a apresentação, pelo DEPEN e por outras autoridades estaduais, de listas contendo nomes e dados das mulheres presas preventiva-mente, que estão em gestação ou são mães de crianças sob sua guarda. O fato de que a ordem, acaso concedida, venha a ser estendida a todas aquelas que se encontram em idêntica situação, não traz nenhum acento de excepcionalidade ao desfecho do julgamento do presente habeas corpus, eis que tal providência constitui uma das consequências normais do instrumento.

Em face dessa listagem, ainda que provisória, de mulheres presas, subme-tidas a um sistemático descaso pelo Estado responsável por sua custódia, não se está mais diante de um grupo de pessoas indeterminadas e indetermináveis como assentou a PGR, mas em face de uma situação em que é possível discernir direitos individuais homogêneos — para empregar um conceito hoje positivado no art. 81, parágrafo único, III, do Código de Defesa do Consumidor — perfei-tamente identificáveis e “cujo objeto é divisível e cindível”, para empregar a conhecida definição de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery.

Considero fundamental, ademais, que o Supremo Tribunal Federal assuma a responsabilidade que tem com relação aos mais de 100 milhões de processos em tramitação no Poder Judiciário, a cargo de pouco mais de 16 mil juízes, e às dificuldades estruturais de acesso à Justiça, passando a adotar e fortalecer remédios de natureza abrangente, sempre que os direitos em perigo disserem respeito às coletividades socialmente mais vulneráveis. Assim, contribuirá não apenas para atribuir maior isonomia às partes envolvidas nos litígios, mas também para permitir que lesões a direitos potenciais ou atuais sejam sanadas

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acórdão124 125 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

mais celeremente. Ademais, contribuirá decisivamente para descongestionar o enorme acervo de processos sob responsabilidade dos juízes brasileiros.

Por essas razões, somadas ao reconhecimento, pela Corte, na ADPF 347 MC/DF, de que nosso sistema prisional encontra-se em um estado de coisas inconstitucional, e ainda diante da existência de inúmeros julgados de todas as instâncias judiciais nas quais foram dadas interpretações dissonantes sobre o alcance da redação do art. 318, IV e V, do Código de Processo Penal (v.g., ve-ja-se, no Superior Tribunal de Justiça: HC 414674, HC 39444, HC 403301, HC 381022), não há como deixar de reconhecer, segundo penso, a competência do Supremo Tribunal Federal para o julgamento deste writ, sobretudo tendo em conta a relevância constitucional da matéria.

Reconhecidos, assim, o cabimento do habeas corpus coletivo e a competên-cia desta Corte para julgá-lo, cumpre assentar certos parâmetros no tocante à legitimidade ativa para ingressar com a ação em comento, como, aliás, é a regra em se tratando de ações de natureza coletiva.

Com efeito, apesar de ser digna de encômios a iniciativa do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos e dos impetrantes Eloísa Machado de Almei-da, Bruna Soares Angotti, André Ferreira, Nathalie Fragoso e Hilem Oliveira, que trouxeram à apreciação desta Suprema Corte os fatos narrados na inicial, parece-me que a legitimidade ativa deve ser reservada aos atores listados no art. 12 da Lei 13.300/2016, por analogia ao que dispõe a legislação referente ao mandado de injunção coletivo.

No caso sob exame, portanto, incidiria o referido dispositivo legal, de ma-neira a reconhecer-se a legitimidade ativa a Defensoria Pública da União, por tratar-se de ação de abrangência nacional, admitindo-se os impetrantes como amici curiae. Dessa forma, e sem demérito nenhum aos demais impetrantes, os quais realizaram um proficiente trabalho, garante- se que os interesses da cole-tividade estejam devidamente representados.

Pois bem, superada a questão do conhecimento do habeas corpus coletivo, passo à analise do mérito da impetração.

Aqui, é preciso avaliar, primeiramente, se há, de fato, uma deficiência de caráter estrutural no sistema prisional que faz com que mulheres grávidas e mães de crianças, bem como as próprias crianças (entendido o vocábulo aqui em seu sentido legal, como a pessoa de até doze anos de idade incompletos, nos termos do art. 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente — ECA), estejam experimentando a situação retratada na exordial. Ou seja, se as mulheres estão efetivamente sujeitas a situações degradantes na prisão, em especial privadas de cuidados médicos pré-natal e pós-parto, bem como se as crianças estão se ressentindo da falta de berçários e creches.

Nesse aspecto, a resposta é lamentavelmente afirmativa, tal como deflui do julgamento da ADPF 347 MC/DF, na qual os fatos relatados no presente habeas corpus – retratando gravíssima deficiência estrutural, especificamente em rela-ção à situação da mulher presa – foi expressamente abordada.

Por oportuno, transcrevo trechos mais relevantes daquele julgado, nesse aspecto, que extraio do voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, e que devem ser necessariamente levados em consideração para análise do caso sub judice:

A ausência de medidas legislativas, administrativas e orçamentárias eficazes represen-

ta falha estrutural a gerar tanto a violação sistemática dos direitos, quanto a perpetua-

ção e o agravamento da situação. A inércia, como dito, não é de uma única autoridade

pública – do Legislativo ou do Executivo de uma particular unidade federativa –, e sim

do funcionamento deficiente do Estado como um todo. Os poderes, órgãos e entidades

federais e estaduais, em conjunto, vêm se mantendo incapazes e manifestando verda-

deira falta de vontade em buscar superar ou reduzir o quadro objetivo de inconstitu-

cionalidade. Faltam sensibilidade legislativa e motivação política do Executivo.

É possível apontar a responsabilidade do Judiciário no que

41% desses presos, aproximadamente, estão sob custódia provisória. Pesquisas de-

monstram que, julgados, a maioria alcança a absolvição ou a condenação a penas alter-

nativas, surgindo, assim, o equívoco da chamada ‘cultura do encarceramento’.

[...]

Com relação aos problemas causados pela chamada ‘cultura do encarceramento’,

do número de prisões provisórias decorrente de possíveis excessos na forma de inter-

pretar-se e aplicar-se a legislação penal e processual, cabe ao Tribunal exercer função

típica de racionalizar a concretização da ordem jurídico-penal de modo a minimizar o

quadro, em vez de agravá-lo, como vem ocorrendo.

A forte violação de direitos fundamentais, alcançando a transgressão à dignidade

da pessoa humana e ao próprio mínimo existencial justifica a atuação mais assertiva

do Tribunal. Trata-se de entendimento pacificado, como revelado no julgamento do

aludido Recurso Extraordinário nº 592.581/RS, da relatoria do ministro Ricardo Le-

wandowski, no qual assentada a viabilidade de o Poder Judiciário obrigar a União e

estados a realizarem obras em presídios para garantir a integridade física dos presos,

independentemente de dotação orçamentária. Inequivocamente, a realização efetiva

desse direito é elemento de legitimidade do Poder Público em geral.

Há mais: apenas o Supremo revela-se capaz, ante a situação descrita, de su-perar os bloqueios políticos e institucionais que vêm impedindo o avanço de so-luções, o que significa cumprir ao Tribunal o papel de retirar os demais Poderes da inércia, catalisar os debates e novas políticas públicas, coordenar as ações e monitorar os resultados (grifei).

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acórdão126 127 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Há, como foi reconhecido no voto, referendado por todos os ministros da Corte, uma falha estrutural que agrava a “cultura do encarceramento”, vigen-te entre nós, a qual se revela pela imposição exagerada de prisões provisórias a mulheres pobres e vulneráveis. Tal decorre, como já aventado por diversos analistas dessa problemática seja por um proceder mecânico, automatizado, de certos magistrados, assoberbados pelo excesso de trabalho, seja por uma inter-pretação acrítica, matizada por um ultrapassado viés punitivista da legislação penal e processual penal, cujo resultado leva a situações que ferem a dignidade humana de gestantes e mães submetidas a uma situação carcerária degradante, com evidentes prejuízos para as respectivas crianças.

As evidências do que se afirmou na prefacial são várias.Inicialmente, cabe observar que, segundo o Levantamento Nacional de In-

formações Penitenciárias — INFOPEN Mulheres (Brasília:Departamento Penitenciário Nacional – Ministério da Justiça, Junho/2017),

“a população absoluta de mulheres encarceradas no sistema penitenciário cres-ceu 567% entre os anos 2000 e 2014”, incremento muito superior ao da popula-ção masculina, que ainda assim aumentou exagerados 220% no mesmo período, a demonstrar a tendência geral de aumento do encarceramento no Brasil (IN-FOPEN Mulheres, p. 10).

Especificamente no tocante à prisão provisória, “enquanto 52% das unida-des masculinas são destinadas ao recolhimento de presos provisórios, apenas 27% das unidades femininas têm esta finalidade”, apesar de 30,1% da população prisional feminina ser provisória (INFOPEN Mulheres, p. 18-20).

Mais graves, porém, são os dados sobre infraestrutura relativa à maternida-de no interior dos estabelecimentos prisionais, sobre os quais cabe apontar que:

I nos estabelecimentos femininos, apenas 34% dispõem de cela ou dor-mitório adequado para gestantes, apenas 32% dispõem de berçário ou centro de referência materno infantil e apenas 5% dispõem de creche (INFOPEN Mulheres, p. 18-19);

II nos estabelecimentos mistos, apenas 6% das unidades dispõem de espa-ço específico para a custódia de gestantes, apenas 3% dispõem de berçá-rio ou centro de referência materno infantil e nenhum dispõe de creche (INFOPEN Mulheres, p. 18-19).

Esses números são ainda mais preocupantes se considerarmos que 89% das mulheres presas têm entre 18 e 45 anos (INFOPEN Mulheres, p. 22), ou seja, em idade em que há grande probabilidade de serem gestantes ou mães de

crianças. Infelizmente, o INFOPEN Mulheres não informa quantas apresen-tam, efetivamente, tal condição.

Outro dado de fundamental interesse diz respeito ao fato de que 68% das mulheres estão presas por crimes relacionados ao tráfico de entorpecentes, deli-tos que, na grande maioria dos casos, não envolvem violência nem grave ameaça a pessoas, e cuja repressão recai, não raro, sobre a parcela mais vulnerável da po-pulação, em especial sobre os pequenos traficantes, quase sempre mulheres, vul-garmente denominadas de “mulas do tráfico” (SOARES, B. M. e ILGENFRITZ, I. Prisioneiras: vida e violência atrás das grades. Rio de Janeiro: Garamond, 2002). Nesses casos, quase sempre, como revelam os estudos especializados, a prisão preventiva se mostra desnecessária, já que a prisão domiciliar prevista no art. 318 pode, com a devida fiscalização, impedir a reiteração criminosa.

Conforme constou da inicial,

O encarceramento provisório de mulheres no Brasil, com suas nefastas consequências,

nada tem, assim, de excepcional. Selecionadas a este modo para o cárcere brasileiro,

elas possuem baixa escolaridade, originam-se de extratos sociais economicamente

desfavorecidos e, antes da prisão, desempenhavam atividades de trabalho no mercado

informal (INFOPEN Mulheres — Junho de 2014).

O retrato que ora se vai delineando em tudo coincide com os documentos produ-

zidos no âmbito do sistema universal de direitos humanos sobre o tema (Vide, em es-

pecial, o texto destinado a orientar os trabalhos da Força-Tarefa do Sistema ONU sobre

o Crime Organizado e o Tráfico De Drogas, como Ameaças à Segurança e Estabilidade.

UN Women. A gender perspective on the impact of drug use, the drug trade, and drug

control regimes, 2014): o envolvimento das mulheres no uso e tráfico de drogas reflete

seu déficit de oportunidades econômicas e status político.

Quando se engajam em atividades ilícitas são relegadas às mesmas posições vul-

neráveis que pavimentaram o caminho deste engajamento. Quando alvos da persecu-

ção penal, deparam-se com um sistema judiciário que desacredita seus testemunhos

e com a atribuição de penas ou medidas cautelares que negligenciam suas condições

particulares como mulheres (UN Women, 2014, p. 34-35).

Todas essas informações são especialmente inquietantes se levarmos em conta que o Brasil não tem sido capaz de garantir cuidados relativos à mater-nidade nem mesmo às mulheres que não estão em situação prisional. Nesse sentido, relembre-se o “caso Alyne Pimentel”, que representou a “primeira de-núncia sobre mortalidade materna acolhida pelo Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (...) incumbido de monito-rar o cumprimento pelos Estados-parte da Convenção relativa aos Direitos das

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acórdão128 129 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Mulheres, adotada pelas Nações Unidas em 1979”, tratando-se da “única ‘con-denação’ do Estado brasileiro proveniente de um órgão do Sistema Universal de Direitos Humanos” (ALBUQUERQUE, Aline S. de Oliveira; BARROS, Julia Schirmer. Caso Alyne Pimentel: uma análise à luz da abordagem baseada em di-reitos humanos. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, Fortaleza, n. 12, jul. 2016, p. 11)

Foram sete as recomendações feitas ao Brasil naquele pronunciamento, sendo seis delas de caráter geral. Dessas, cinco delas disseram respeito a políti-cas públicas de saúde, conforme segue:

I “assegurar o direito da mulher à maternidade saudável e o acesso de to-das as mulheres a serviços adequados de emergência obstétrica;

II “realizar treinamento adequado de profissionais de saúde, especial-mente sobre direito à saúde reprodutiva das mulheres;”

III “reduzir as mortes maternas evitáveis, por meio da implementação do Pacto Nacional para a Redução da Mortalidade Materna e da instituição de comitês de mortalidade materna;”

IV “assegurar o acesso a remédios efetivos nos casos de violação dos direi-tos reprodutivos das mulheres e prover treinamento adequado para os profissionais do Poder Judiciário e operadores do direito;”

V “assegurar que os serviços privados de saúde sigam padrões nacionais e internacionais sobre saúde reprodutiva” (CEDAW/C/BRA/CO/6).

Uma última referia-se à responsabilização de pessoas envolvidas com a problemática, nos seguintes termos: vi. “assegurar que sanções sejam impostas para profissionais de saúde que violem os direitos reprodutivos das mulheres”.

Convém ressaltar que o cuidado com a saúde maternal é considerado como uma das prioridades que deve ser observada pelos distintos países no que con-cerne ao seu compromisso com a promoção de desenvolvimento, conforme consta do Objetivo de Desenvolvimento do Milênio — ODM nº 5 (melhorar a saúde materna) e do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável — ODS nº 5 (al-cançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas), am-bos documentos subscritos no âmbito da Organização das Nações Unidas.

Aliás, a reiteração da ênfase conferida pela ONU sobre o tema foi reforça-da nos ODSs justamente porque, durante o tempo em que vigeram os ODMs (2000-2015), foi possível constatar “a falta de avanço em algumas áreas, par-ticularmente aquelas relacionadas com saúde materna, neonatal e infantil e saúde reprodutiva” (MACHADO FILHO, H. União Europeia, Brasil e os de-safios da agenda do desenvolvimento sustentável. In: Dos objetivos do milênio

aos objetivos do desenvolvimento sustentável: lições aprendidas e desafios. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2016, p. 88).

Ao tutelarem a saúde reprodutiva da mulher, tais objetivos corroboram o pleito inicial, reforçando a importância de, num crescente cenário de uma maior igualdade de gênero, se conferir atenção especial à saúde reprodutiva das mulheres.

O Brasil, ademais, na medida em que dá concretude a tais compromissos, honra o lugar de destaque que ocupou nos últimos grandes eventos interna-cionais voltados à promoção do desenvolvimento social, notadamente no con-gresso Rio + 20, bem como os compromissos assumidos ao subscrever os supra mencionados Objetivos Globais, que se voltam especialmente à tutela das mu-lheres e crianças em situação de maior vulnerabilidade.

Na verdade, nada mais estará fazendo do que dar concreção ao que a Cons-tituição, em sua redação original, já determinava:

I. “art. 5°, II — ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desu-mano ou degradante;

II. “art. 5º, XLI — a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

III. “art. 5º, XLV — nenhuma pena passará da pessoa do condenado (...);IV. “art. 5º, L — às presidiárias serão asseguradas condições para que

possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação;V. “art. 5º, XLVIII — a pena será cumprida em estabelecimentos distin-

tos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;VI. “art. 5º, XLIX — é assegurado aos presos o respeito à integridade física

e moral;”.

Além disso, respeitará a Lei 11.942/2009, que promoveu mudanças na Lei de Execução Penal, que prevê:

I. “acompanhamento médico à mulher, principalmente no pré-natal e no pós-parto, extensivo ao recém-nascido.”

II. “os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade.” e

III. “a penitenciária de mulheres será dotada de seção para gestante e partu-riente e de creche para abrigar crianças maiores de 6 (seis) meses e menores de 7 (sete) anos, com a finalidade de assistir a criança desamparada cuja res-ponsável estiver presa”, inclusive à presa provisória (art. 42 da LEP).

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Não obstante, nem a Constituição, nem a citada Lei, passados tantos anos da respectiva edição, vem sendo respeitadas pelas autoridades responsáveis pelo sistema prisional, conforme registra o próprio DEPEN nas informações que constam do já referido INFOPEN Mulheres – 2014.

O cuidadoso trabalho de pesquisa de Eloísa Machado de Almeida, Bruna Soa-res Angotti, André Ferreira, Nathalie Fragoso e Hilem Oliveira, constante da inicial, revela, inclusive por meio de exemplos, a duríssima — e fragorosamente inconsti-tucional — realidade em que vivem as mulheres presas, a qual já comportou partos em solitárias sem nenhuma assistência médica ou com a parturiente algemada ou, ainda, sem a comunicação e presença de familiares. A isso soma-se a completa au-sência de cuidado pré-natal (acarretando a transmissão evitável de doenças graves aos filhos, como sífilis, por exemplo), a falta de escolta para levar as gestantes a consultas médicas, não sendo raros partos em celas, corredores ou nos pátios das prisões, sem contar os abusos no ambiente hospitalar, o isolamento, a ociosidade, o afastamento abrupto de mães e filhos, a manutenção das crianças em celas, dentre outras atrocidades. Tudo isso de forma absolutamente incompatível com os avan-ços civilizatórios que se espera tenham se concretizado neste século XXI.

Vale transcrever, nesse sentido, mais um trecho da contundente exordial:

Para além da incapacidade de oferecer um ambiente confortável, alimentação ade-

quada e viabilizar outros fatores condicionantes de um desenvolvimento gestacional

saudável, estudos dedicados à investigação das condições de maternidade no cárcere

constataram ainda que as mulheres experimentam – e denunciam – gestações ora mal,

ora completamente desassistidas.

Tome-se, por exemplo, o impacto desta privação no tocante à sífilis, enfermidade

à qual as mulheres privadas de liberdade estão especialmente vulneráveis, conforme

os dados do INFOPEN já mencionados (Consta do levantamento que, das 1.204 mu-

lheres com agravos transmissíveis, 35% são portadoras de sífilis. Cf. do Levantamento

Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen – junho de 2014.) A bactéria cau-

sadora da doença é capaz de atravessar a barreira placentária. Em consequência, fica

a criança vulnerável à sífilis congênita, cuja incidência tem aumentado nos últimos

anos (4,7 para cada 1.000 nascidos vivos em 2013, segundo o Ministério da Saúde); in-

crementa-se o risco de abortamentos precoces, tardios, trabalhos de parto prematuros

e do óbito da criança (O índice de mortalidade infantil por sífilis congênita no Brasil

cresceu de 2,2 a cada 100.000 nascidos vivos em 2004 para 5,5 em 2013). As crianças

sobreviventes ainda podem desenvolver malformações cerebrais, alterações ósseas,

cegueira e lábio leporino.

Os partos de mulheres sob custódia do Estado, realizados nas celas ou nos pátios

prisionais, são expressão máxima da indiferença do sistema prisional aos direitos

reprodutivos de mulheres presas. Parto, afinal, não é acidente ou evento incerto. En-

tretanto, o sistema de justiça criminal, em aparente estado de negação, desconsidera

as condições do cárcere na determinação de prisões preventivas a gestantes, bem

como as necessidades inescapáveis destas. O sistema prisional, por sua vez, falha

persistentemente no reconhecimento, planejamento e no encaminhamento tempes-

tivo de suas demandas. O Estado, portanto, cria e incrementa o perigo, a potenciali-

dade de dano, a previsibilidade de perdas às mulheres e seus filhos. Não são menores

os desafios enfrentados após o nascimento das crianças.

O período de garantia do aleitamento não é uniforme nas diferentes unidades fe-

derativas. Em tese, após o parto e como garantia do convívio e do aleitamento materno,

o recém- nascido permanece junto à mãe por um período mínimo de seis meses. Esse

padrão não é, no entanto, obedecido em todos os estabelecimentos prisionais. Em al-

gumas unidades, o prazo mínimo de seis meses é desrespeitado, noutras converte-se

em parâmetro máximo.

Quanto à saída da criança do cárcere, seu elemento mais problemático é o caráter

abrupto, o descompromisso com um período de adaptação e a desconsideração de seus

impactos sobre a saúde psicológica das mulheres encarceradas. Após um período de

convívio com suas crianças, durante o qual permanecem isoladas dos demais espaços

de convivência das unidades de privação de liberdade, dedicando-se exclusivamente

ao cuidado dos recém-nascidos, mães e filhos são bruscamente apartados. BRAGA e

ANGOTTI denominam hiper-hipo-maternidade este constructo da disciplina prisio-

nal, caracterizado por uma intensa e regulada convivência, seguida de uma brusca e

cruel separação. Importante ainda mencionar que, caso não seja bem-sucedida a ten-

tativa de contato com a família ou não haja familiares dispostos a assumir o cuidado

da criança durante o período de privação de liberdade da mãe, as crianças são encami-

nhadas a um abrigo. Não raro, são adotadas e as mães são destituídas de poder familiar

sem que tenham tido oportunidade de se manifestar e defender-se amplamente diante

do Juizado da Infância e Juventude (Conectas. ‘Penitenciárias são feitas por homens

para homens’. Disponível em:http://carceraria.org.br/wpcontent/uploads/2012/09/

relatorio-mulherese-presas_versaofinal1.pdf ).

Outro persistente obstáculo, incidente nos casos das crianças que ficam com pa-

rentes e poderiam prestar visitas às mães, mantendo assim, ainda que precariamen-

te, os vínculos afetivo-familiares, consiste na sujeição das crianças e seus guardiões à

prática da revista íntima vexatória” (Petição inicial, notas de rodapé incorporadas ao

corpo do texto, p. 18-26).

Em 2015, o Ministério da Justiça e o IPEA promoveram uma pesquisa so-bre a maternidade na prisão em seis Estados da Federação (Dar a luz na som-bra: condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por

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acórdão132 133 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

mulheres em situação de prisão. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos, IPEA, 2015). A realidade que descrevem é, em geral, de indiferença estatal para com a maternidade no cárcere. Especificamente no Es-tado de São Paulo, chama a atenção o fato de que a Secretaria de Administração Penitenciária não autorizou o ingresso das pesquisadoras nas novas unidades que seriam “projetadas especialmente para atendimento das necessidades das mulheres” (p. 64) e, mesmo em unidades cuja visita foi autorizada, como no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, a pesquisa foi severamente res-tringida, o que levou as pesquisadoras a indagar: “se nós, professoras universi-tárias (com o aval do Ministério da Justiça e autorização do Secretario de Ad-ministração Penitenciária) estávamos recebendo aquele tratamento por parte do pessoal penitenciário, imagina as pessoas presas e suas famílias?” (p. 66).

Constatou-se ainda a precariedade do acesso à Justiça das mulheres presas, separação precoce de mães e filhos, internação das crianças mesmo quando há família extensa disponível, concluindo-se que:

Uma das saídas desse (falso) paradoxo, entre institucionalizar a criança ou separá-la da

mãe, seria a prisão domiciliar, essa opção choca com a cultura do encarceramento e a

priorização do ‘combate ao crime’ presente nos discursos e práticas do sistema de justiça.

O aumento do encarceramento feminino, e logo do número de gestantes, puérperas e

mães encarceradas demonstra que o sistema de justiça criminal vem ignorando recomen-

dações de organizações internacionais contra o uso de prisão para essas mulheres.

Concluímos que uma melhor possibilidade de exercício de maternidade ocorrerá

sempre fora da prisão e, se a legislação for cumprida, tanto em relação à excepciona-

lidade da prisão preventiva como no tangente à aplicação da prisão domiciliar, grande

parte dos problemas que afetam a mulher no ambiente prisional estarão resolvidos.

Recentemente o Conselho Nacional de Justiça noticiou em seu sítio ele-trônico na Internet dados sobre a “Saúde materno-infantil nas prisões”, que corroboram os dramáticos relatos citados acima:

A vulnerabilidade social do grupo das mulheres presas, especialmente as mães que ti-

veram filhos na cadeia, também foi constatada pelo fato de 30% delas chefiarem suas

famílias – 23% delas tinham famílias chefiadas pelas próprias mães. Praticamente me-

tade delas (48%) não tinha concluído o ensino fundamental, ou seja, uma em cada duas

mulheres presas entrevistadas estudou sete anos ou menos.

De acordo com os resultados do estudo, a vulnerabilidade social delas foi agrava-

da durante a experiência da parição. Embora a maioria delas (60%) tenha sido aten-

dida em até meia hora após o início do trabalho de parto, apenas 10% das famílias das

presas foram avisadas. Uma em cada três mulheres foi levada ao hospital em viatura

policial. A estadia na maternidade também foi problemática, uma vez que 36% das

mulheres ouvidas relataram que foram algemadas em algum momento da internação.

Maus-tratos ou violência – verbal e psicológica – foram praticadas por profissionais da

saúde em 16% dos casos e por agentes penitenciários em 14% dos relatos.

Sete mulheres das 241 ouvidas (8% do total) alegaram ter

sido algemadas enquanto davam à luz. Apenas 3% das mulheres entrevistadas tinham

acompanhantes na sala de operação e as visitas pós-nascimento foram autorizadas em

somente 11% dos casos. De acordo com os relatos colhidos durante a pesquisa, a inti-

midade das mulheres parturientes foi respeitada por 10,5% dos profissionais de saúde

e por 11,3% dos agentes prisionais.

Para analisar a experiência pré-parto e o atendimento prestado às gestan-

tes, foi considerada recomendação do Ministério da Saúde, segundo a qual o

pré-natal adequado tem de ser iniciado antes da 16ª semana da gestação. A dis-

tribuição das consultas é trimestral: uma no primeiro trimestre, duas no segun-

do e três, no terceiro. Apenas 32% das mulheres ouvidas tiveram um aten-dimento pré-natal adequado.” (Disponível em: http://www.cnj.jus.br/index.

php?option=com_content&view=article&id=85402:jovem-negra-e-mae-solteira-a-

-dramatica-situacao-de-quem-da-a-luz-na-prisao&catid=813:cnj&Itemid=4640, aces-

so em 12 de novembro de 2017, grifei).

As narrativas acima evidenciam que há um descumprimento sistemático de regras constitucionais, convencionais e legais referentes aos direitos das presas e de seus filhos. Por isso, não restam dúvidas de que “cabe ao Tribunal exercer função típica de racionalizar a concretização da ordem jurídico-penal de modo a minimizar o quadro” de violações a direitos humanos que vem se evidenciando, na linha do que já se decidiu na ADPF 347, bem assim em respei-to aos compromissos assumidos pelo Brasil no plano global relativos à proteção dos direitos humanos e às recomendações que foram feitas ao País

A atuação do Tribunal, nesse ponto, é plenamente condizente com os tex-tos normativos que integram o patrimônio mundial de salvaguarda dos indi-víduos colocados sob a custódia do Estado, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, a Convenção Americana de Direitos Humanos, os Princípios e Boas Práticas para a Proteção de Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas, a Convenção das Nações Unidas contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desu-manos ou Degradantes e as Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros (Regras de Mandela).

””

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acórdão134 135 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Essa posição é consentânea, ainda, com o entendimento do Supremo Tri-bunal Federal em temas correlatos, como o revelado na Repercussão

Geral de número 423, por meio do julgamento do RE 641.320/RS, de rela-toria do Ministro Gilmar Mendes, no qual o Plenário desta Casa assentou que a falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do conde-nado em regime prisional mais gravoso. A tese ficou assim redigida:

I A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso;

II Os juízes da execução penal poderão avaliar os estabelecimentos desti-nados aos regimes semiaberto e aberto, para qualificação como adequa-dos a tais regimes. São aceitáveis estabelecimentos que não se qualifi-quem como ‘colônia agrícola, industrial’ (regime semiaberto) ou ‘casa de albergado ou estabelecimento adequado’ (regime aberto) (art. 33, § 1º, alíneas ‘b’ e ‘c’);

III Havendo déficit de vagas, deverá determinar-se: (i) a saída antecipada de sentenciado no regime com falta de vagas; (ii) a liberdade eletronicamente monitorada ao sentenciado que sai ante-

cipadamente ou é posto em prisão domiciliar por falta de vagas; (iii) o cumprimento de penas restritivas de direito e/ou estudo ao

sentenciado que progride ao regime aberto.

Até que sejam estruturadas as medidas alternativas propostas, poderá ser deferida a prisão domiciliar ao sentenciado”.

Cumpre invocar, mais, as Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infra-toras, também conhecidas como Regras de Bangkok, que, durante minha presi-dência no Conselho Nacional de Justiça, fiz questão de ver traduzidas e publi-cadas na Série “Tratados Internacionais de Direitos Humanos”, com o intuito de promover maior vinculação à pauta de combate à desigualdade e violência de gênero (Regras de Bangkok: Regras das Nações Unidas para o Tratamen-to de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras/ Conselho Nacional de Justiça, Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas So-cioeducativas, Conselho Nacional de Justiça – 1. Ed – Brasília: Conselho Nacio-nal de Justiça, 2016).

Na apresentação das referidas Regras, tive a oportunidade de afirmar que:

Historicamente, a ótica masculina tem sido tomada como regra para o contexto prisio-

nal, com prevalência de serviços e políticas penais direcionados para homens, deixan-

do em segundo plano as diversidades que compreendem a realidade prisional feminina,

que se relacionam com sua raça e etnia, idade, deficiência, orientação sexual, identida-

de de gênero, nacionalidade, situação de gestação e maternidade, entre tantas outras

nuanças. Há grande deficiência de dados e indicadores sobre o perfil de mulheres em

privação de liberdade nos bancos de dados oficiais governamentais, o que contribui

para a invisibilidade das necessidades dessas pessoas.

O principal marco normativo internacional a abordar essa problemática são as

chamadas Regras de Bangkok − Regras das Nações Unidas para o tratamento de mu-

lheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras. Essas

Regras propõem olhar diferenciado para as especificidades de gênero no encarcera-

mento feminino, tanto no campo da execução penal, como também na priorização de

medidas não privativas de liberdade, ou seja, que evitem a entrada de mulheres no

sistema carcerário.

Apesar de o Governo Brasileiro ter participado ativamente das negociações para a elaboração das Regras de Bangkok e a sua aprovação na Assembleia Geral das Nações Unidas, até o momento elas não foram plasmadas em políticas públi-cas consistentes, em nosso país, sinalizando, ainda, o quanto carece de fomento a implementação e a internalização eficaz pelo Brasil das normas de direito inter-nacional dos direitos humanos.

E cumprir esta regra é um compromisso internacional assumido pelo Brasil.Embora se reconheça a necessidade de impulsionar a criação de políticas pú-blicas de alternativas à aplicação de penas de prisão às mulheres, é estratégico abordar o problema primeiramente sob o viés da redução do encarceramento feminino provisório. De acordo com as Regras de Bangkok, deve ser priorizada solução judicial que facilite a utilização de alternativas penais ao encarceramen-to, principalmente para as hipóteses em que ainda não haja decisão condenatória transitada em julgado” (grifei).

Algumas regras específicas merecem especial destaque neste julgamento, estando abaixo transcritas:

6.23.1. Nos estabelecimentos penitenciários para mulheres devem existir instalações especiais para o tratamento das reclusas grávidas, das que te-nham acabado de dar à luz e das convalescentes. Desde que seja possível, devem ser tomadas medidas para que o parto tenha lugar num hospital civil. Se a criança nascer num estabelecimento penitenciário, tal fato não deve constar do respectivo registro de nascimento.

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acórdão136 137 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

6.23.2. Quando for permitido às mães reclusas conservar os filhos consi-go, devem ser tomadas medidas para organizar um berçário dotado de pessoal qualificado, onde as crianças possam permanecer quando não estejam ao cuidado das mães.

6.b.10. Serão oferecidos às presas serviços de atendimento médico vol-tados especificamente para mulheres, no mínimo equivalentes àqueles disponíveis na comunidade.

7.c.24. Instrumentos de contenção jamais deverão ser usados em mulhe-res em trabalho de parto, durante o parto e nem no período imediata-mente posterior.

56. As autoridades competentes reconhecerão o risco específico de abu-so que enfrentam as mulheres em prisão cautelar e adotarão medidas adequadas, de caráter normativo e prático, para garantir sua segurança nessa situação.

57. As provisões das Regras de Tóquio deverão orientar o desenvolvimen-to e a implementação de respostas adequadas às mulheres infratoras. De-verão ser desenvolvidas, dentro do sistema jurídico do Estado membro, opções específicas para mulheres de medidas despenalizadoras e alter-nativas à prisão e à prisão cautelar, considerando o histórico de vitimiza-ção de diversas mulheres infratoras e suas responsabilidades de cuidado.

58. Considerando as provisões da regra 2.3 das Regras de Tóquio, mulhe-res infratoras não deverão ser separadas de suas famílias e comunidades sem que se considere devidamente a sua história e laços familiares. For-mas alternativas de lidar com mulheres infratoras, tais como medidas despenalizadoras e alternativas à prisão, inclusive à prisão cautelar, de-verão ser empregadas sempre que apropriado e possível.

59. Em geral, serão utilizadas medidas protetivas não privativas de liberdade, como albergues administrados por órgãos independentes, organizações não governamentais ou outros serviços comunitários, para assegurar proteção às mulheres que necessitem. Serão aplicadas medidas temporárias de privação da liberdade para proteger uma mulher unicamente quando seja necessário e expressamente solicitado pela mulher interessada, sempre sob controle judicial ou de outras autoridades competentes. Tais medidas de proteção não deverão persistir contra a vontade da mulher interessada”.

A jurisprudência desta Suprema Corte tem sido firme na observância do amplo cabedal normativo ora citado, como pode ser visto no HC 147.322-MC/SP, HC 142.279/CE, HC 130.152-MC/SP, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, HC 134.979/DF, HC 134.130/DF, HC 133.179/DF e HC 129.001/SP, de

relatoria do Ministro Roberto Barroso, HC 133.532/DF, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, HC 134.734-MC/SP, de relatoria do Ministro Celso de Mello, dentre muitos outros.

Os cuidados que devem ser dispensados à mulher presa direcionam- se também aos seus filhos, que sofrem injustamente as consequências da prisão da mãe, em flagrante contrariedade ao art. 227 da Constituição, o qual estabelece a prioridade absoluta na consecução dos direitos destes:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adoles-

cente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à

educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade

e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de

negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Aqui, não é demais relembrar, por oportuno, que o nosso texto magno esta-belece, taxativamente, em seu art. 5º, XLV, que “nenhuma pena passará da pes-soa do condenado”, sendo escusado anotar que, no caso das mulheres presas, a privação de liberdade e suas nefastas consequências estão sendo estendidas às crianças que portam no ventre e àquelas que geraram.

São evidentes e óbvios os impactos perniciosos da prisão da mulher, e da posterior separação de seus filhos, no bem-estar físico e psíquico das crian-ças. Recentemente a Revista Época publicou reportagem sobre o tema, que bem ilustra o tipo de dano a que estão sujeitas as crianças:

O estrondo do portão de ferro que se fecha marca o fim de mais um dia. Na cela, com

não mais de 10 metros quadrados, apertam-se objetos cobertos por mantas, uma cama

protegida por um mosquiteiro e um guarda-roupa aberto com roupas de bebê dobra-

das. Adesivos infantis decoram a parede e mantas em tons pastel ocultam as grades de

ferro. Ali, na ala da amamentação na Penitenciária Feminina de Pirajuí, em São Paulo,

dormem Rebeca, de 7 meses, e sua mãe, Jaquelina Marques, de 23 anos. A menina só vê o mundo exterior – árvores, carros, cachorros, homens — ao ser levada para consultas pediátricas. Normalmente, passa o tempo todo com a mãe, ocupante tem-

porária de uma das 12 celas no pavilhão.

[...]

Os sintomas da separação se manifestaram nas crianças. Midiã, quando saiu da

cadeia com poucos meses, não aceitava mais ser amamentada. O irmão dela, Adryan, estava aprendendo a falar quando a mãe foi presa pela segunda vez. Simplesmen-te parou no meio do caminho. Com 3 anos, ele se expressa mais com acenos de cabeça do que com palavras.

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acórdão138 139 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Na primeira visita à mãe, colocou o braço no rosto para tapar os olhos — e nada o

fez mudar de ideia. ‘Não me deu um abraço. Fui tentar pegar e ele bateu em mim. Não

quis ficar comigo de jeito nenhum’, diz Jaquelina. Agora em regime semiaberto, ela

visita a família no interior, a cerca de duas horas de Pirajuí, durante a ‘saidinha’ nos

feriados. Aos poucos, reaproximou-se dos filhos. Em uma dessas saídas, ao terminar a

visita à família, despediu-se do filho. O menino correu atrás dela — queria ir junto. ‘Ele

ficou chorando tanto que deu dó. Fiquei com a cabeça atordoada de deixar ele daquele

jeito’, diz.

[...]

Em 30 de novembro, o Seminário Nacional sobre Crianças e Adolescentes com Fa-

miliares Encarcerados inaugurou uma articulação nacional, a fim de promover apoio a

esse grupo. A articulação, que reúne ONGs, associações, movimentos e redes, fez con-

tato com 200 crianças e adolescentes nessa situação. Apenas 36 aceitaram participar.

Detectou-se um quadro previsível e trágico. A prisão de familiares (geralmente mãe ou pai) acarreta fragilidade econômica e social. As crianças muitas vezes precisam assumir tarefas domésticas e ganhar dinheiro. Seis apresentaram de-pressão (Presos ao nascer, Revista Época, 18 de dezembro de 2017, grifei).

Em sua manifestação como amicus curiae, o Instituto Alana, cujo ingresso nessa condição autorizei, apontou as incontáveis violações a que estão sujeitas as crianças que nascem no cárcere, a demonstrar que as violações a seus direi-tos começam antes mesmo do nascimento:

É fundamental ter em mente que o período gestacional e o momento do nascimento

refletem no desenvolvimento infantil: ‘O embrião ou feto reage não só às condições

físicas da mãe, aos seus movimentos psíquicos e emocionais, como também aos estí-

mulos do ambiente externo que a afetam. O cuidado com o bem-estar emocional da

mãe repercute no ser que ela está gestando. (...) Quando a mulher grávida recebe apoio

emocional e material do parceiro e de outros que lhe são próximos durante todo o pro-

cesso, seus sentimentos de bem- estar comunicam-se ao embrião e ao feto, favorecendo

o desenvolvimento saudável do bebê’ (SANTOS, Marcos Davi dos et al. Formação em

pré-natal, puerpério e amamentação: práticas ampliadas. São Paulo: Fundação Maria

Cecilia Souto Vidigal, 2014, p. 19).

Assim, é importante considerar a relevância da atenção pré-natal e do cuidado

com o parto, para além do acompanhamento pediátrico, e entender que violações aos

direitos da mulher gestante, parturiente e mãe violam também os direitos de crianças.

É preciso destacar também que, nos casos de separação entre a criança e a mãe, há im-

pactos na saúde decorrentes desse rompimento, os quais se agravam em casos de ins-

titucionalização [...] Um dos principais fatores responsáveis por esse dano é o estresse

tóxico, fruto de situações que envolvem um sofrimento grave, frequente, ou prolonga-

do, no qual a crianças não têm o apoio adequado da mãe, pai ou cuidadores. No caso

de crianças com mães encarceradas, o estresse tóxico decorre do ambiente prisional,

que não é capaz de acolher a criança, e da situação precária que a mulher encarcerada

vivencia. Também nos casos de separação da mãe e consequente institucionalização, o

rompimento do vínculo gera estresse à criança (documento eletrônico 148, p. 18/19).

Professores da Universidade de Harvard demonstraram que a privação, na infância, de suporte psicológico e das experiências comuns às pessoas, produz danos ao desenvolvimento da criança (NELSON, Charles A., FOX, Nathan A. e ZEANAH, Charles H. Romania’s Abandoned Children: Deprivation, Brain Deve-lopment, and the Struggle for Recovery. Cambridge: Harvard Univ. Press, 2014).

Conforme explicam, existe uma “experiência compartilhada” pela qual to-dos os seres humanos devem passar. E tal experiência é de suma importância para o desenvolvimento sensorial e emocional. Sem ela, os órgãos, assim como o sistema nervoso, podem, sobretudo em épocas críticas do desenvolvimento infantil, sofrer danos permanentes. A consistência do afeto que recebem é da máxima relevância para a formação de pessoas saudáveis e capazes de estabe-lecer relações sociais profundas.

Trazendo tais reflexões para o caso concreto, não restam dúvidas de que a segregação, seja nos presídios, seja em entidades de acolhimento institucional, terá grande probabilidade de causar dano irreversível e permanente às crianças filhas de mães presas.

Nos cárceres, habitualmente estão limitadas em suas experiências de vida, confinadas que estão à situação prisional. Nos abrigos, sofrerão com a inconsis-tência do afeto, que, numa entidade de acolhimento, normalmente, restringe-se ao atendimento das necessidades físicas imediatas das crianças.

Finalmente, a entrega abrupta delas à família extensa, como regra, em seus primeiros meses de vida, privando-as subitamente da mãe, que até então foi uma de suas únicas referências afetivas, é igualmente traumática. Ademais, pri-va-as do aleitamento materno numa fase em que este é enfaticamente recomen-dado pelos especialistas.

Por tudo isso, é certo que o Estado brasileiro vem falhando enormemente no tocante às determinações constitucionais que dizem respeito à prioridade absoluta dos direitos das crianças, prejudicando, assim, seu desenvolvimento pleno, sob todos os aspectos, sejam eles físicos ou psicológicos.

Pesquisas empíricas realizadas no Brasil vêm corroborando o que se con-signou acima. Uma delas, realizada na casa de acolhimento Nova Semente, extensão do complexo Penitenciário situado na cidade de Salvador — BA,

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acórdão140 141 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

revelou que “com relação ao desenvolvimento infantil e seus aspectos cogni-tivo, motor, afetivo e social, todas as crianças apresentavam seu desenvolvi-mento comprometido, o que foi revelado no atraso em desenvolver a leitura, contagem de numerais, identificação de cores, além do atraso social” (SAN-TOS, Denise et al. Crescimento e Desenvolvimento de Crianças na Casa de Acolhimento no Contexto Prisional. 6º Congresso Ibero-Americano de Pesqui-sa Qualitativa em Saúde).

As privações narradas, além das inaceitáveis consequências pessoais que provocam, prejudicam a sociedade como um todo. Não se ignora, aliás, que, para se desenvolver plenamente, é preciso, antes de tudo, priorizar o bem-estar de suas crianças. Neste sentido, James Heckman, prêmio Nobel de Economia, ressalta que os menores que nascem em ambientes desvantajosos apresentam maiores riscos de não se desenvolverem adequadamente, além de enfrentarem mais problemas do que outras pessoas ao longo das respectivas vidas, sendo grande a possibilidade de virem a cometer crimes (HECKMAN, J. Giving Kids a Fair Chance. Cambridge: The MIT Press, 2013). Para ele, as principais habi-lidades cognitivas e sócio-emocionais dependem do ambiente que encontram na primeira infância.

Essa é a razão pela qual, acrescenta, políticas públicas voltadas à correção precoce desses problemas podem redundar em melhores oportunidades para as pessoas e no incremento de sua qualidade de vida. Disso resultará, finaliza, uma economia mais robusta e uma sociedade mais saudável.

Em suma, quer sob o ponto de vista da proteção dos direitos humanos, quer sob uma ótica estritamente utilitarista, nada justifica manter a situação atual de privação a que estão sujeitas as mulheres presas e suas crianças, as quais, convém ressaltar, não perderam a cidadania, em razão da deplorável situação em que se encontram.

É importante sublinhar, também, que o legislador tem se revelado sensível a essa triste realidade. Não por acaso, recentemente foi editado o Estatuto da Primeira Infância (Lei 13.257/2016), que modificou alguns aspectos do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual tem implicações da maior relevância para o julgamento do presente writ. A redação atual dos dispositivos que interessam é a seguinte:

Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nas-cimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.

Art. 8º É assegurado a todas as mulheres o acesso aos programas e às po-líticas de saúde da mulher e de planejamento reprodutivo e, às gestantes, nutrição adequada, atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puer-pério e atendimento pré-natal, perinatal e pós-natal integral no âmbito do Sistema Único de Saúde.

§ 1º O atendimento pré-natal será realizado por profissionais da atenção primária.

§ 2º Os profissionais de saúde de referência da gestante garantirão sua vinculação, no último trimestre da gestação, ao estabelecimento em que será realizado o parto, garantido o direito de opção da mulher.

§ 3º Os serviços de saúde onde o parto for realizado assegurarão às mulhe-res e aos seus filhos recém-nascidos alta hospitalar responsável e con-trarreferência na atenção primária, bem como o acesso a outros serviços e a grupos de apoio à amamentação.

§ 4º Incumbe ao poder público proporcionar assistência psicológica à ges-tante e à mãe, no período pré e pós-natal, inclusive como forma de pre-venir ou minorar as consequências do estado puerperal.

§ 5º A assistência referida no § 4º deste artigo deverá ser prestada tam-bém a gestantes e mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção, bem como a gestantes e mães que se encontrem em situação de privação de liberdade.

§ 6º A gestante e a parturiente têm direito a 1 (um) acompanhante de sua preferência durante o período do pré- natal, do trabalho de parto e do pós-parto imediato.

§ 7º A gestante deverá receber orientação sobre aleitamento materno, ali-mentação complementar saudável e crescimento e desenvolvimento in-fantil, bem como sobre formas de favorecer a criação de vínculos afetivos e de estimular o desenvolvimento integral da criança.

§ 8º A gestante tem direito a acompanhamento saudável durante toda a gestação e a parto natural cuidadoso, estabelecendo-se a aplicação de cesariana e outras intervenções cirúrgicas por motivos médicos.

§ 9º A atenção primária à saúde fará a busca ativa da gestante que não ini-ciar ou que abandonar as consultas de pré- natal, bem como da puérpera que não comparecer às consultas pós-parto.

§ 10º Incumbe ao poder público garantir, à gestante e à mulher com filho na primeira infância que se encontrem sob custódia em unidade de privação de liberdade, ambiência que atenda às normas sanitárias e assistenciais do Sis-tema Único de Saúde para o acolhimento do filho, em articulação com o sis-tema de ensino competente, visando ao desenvolvimento integral da criança.

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acórdão142 143 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Art. 9º O poder público, as instituições e os empregadores propiciarão condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães submetidas a medida privativa de liberdade.

§ 1º Os profissionais das unidades primárias de saúde desenvolverão ações sistemáticas, individuais ou coletivas, visando ao planejamento, à im-plementação e à avaliação de ações de promoção, proteção e apoio ao aleitamento materno e à alimentação complementar saudável, de forma contínua.

§ 2º Os serviços de unidades de terapia intensiva neonatal deverão dispor de banco de leite humano ou unidade de coleta de leite humano”.

O Estatuto da Primeira Infância regulou, igualmente, no âmbito da legis-lação interna, aspectos práticos relacionados à prisão preventiva da gestante e da mãe encarcerada, ao modificar o art. 318 do Código de Processo Penal, que assim ficou redigido:

Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quan-do o agente for: (...)

IV gestante;V mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos;”.

Diante desse teor normativo, pergunta-se: quais devem ser os parâmetros para a substituição de que trata a lei?

A resposta, segundo as autoras e as amici curiae, está em que o “poderá”, constante do caput do artigo deve ser lido como “deverá”, para evitar que a discricionariedade do magistrado seja, na prática, usada de forma a reforçar a cultura do encarceramento.

Já para a Procuradoria-Geral da República, a resposta deve formulada caso a caso, sempre à luz da particularidade do feito em análise. Essa abordagem, contudo, parece ignorar as falhas estruturais de acesso à Justiça que existem no País.

Diante dessas soluções díspares, e para evitar tanto a arbitrariedade judicial quanto a sistemática supressão de direitos, típica de sistemas jurídicos que não dispõem de soluções coletivas para problemas estruturais, a melhor saída, a meu ver, no feito sob exame, consiste em conceder a ordem, estabelecendo parâmetros a serem observados, sem maiores dificuldades, pelos juízes, quando se depararem com a possibilidade de substituir a prisão preventiva pela domiciliar.

Em face de todo o exposto, concedo a ordem para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar — sem prejuízo da aplicação concomitan-te das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP — de todas as mulheres

presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, nos termos do art. 2º do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiências (Decreto Legislativo 186/2008 e Lei 13.146/2015), relacionadas neste proces-so pelo DEPEN e outras autoridades estaduais, enquanto perdurar tal condi-ção, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepciona-líssimas, as quais deverão ser devidamente fundamentadas pelos juízes que denegarem o benefício.

Estendo a ordem, de ofício, às demais mulheres presas, gestantes, puér-peras ou mães de crianças e de pessoas com deficiência, bem assim às adoles-centes sujeitas a medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional, observadas as restrições previstas no parágrafo acima.

Quando a detida for tecnicamente reincidente, o juiz deverá proceder em atenção às circunstâncias do caso concreto, mas sempre tendo por norte os princípios e as regras acima enunciadas, observando, ademais, a diretriz de ex-cepcionalidade da prisão.

Se o juiz entender que a prisão domiciliar se mostra inviável ou inadequa-da em determinadas situações, poderá substituí-la por medidas alternativas ar-roladas no já mencionado art. 319 do CPP.

Para apurar a situação de guardiã dos filhos da mulher presa, dever- se-á dar credibilidade à palavra da mãe. Faculta-se ao juiz, sem prejuízo de cumprir, desde logo, a presente determinação, requisitar a elaboração de laudo social para eventual reanálise do benefício. Caso se constate a suspensão ou destitui-ção do poder familiar por outros motivos que não a prisão, a presente ordem não se aplicará.

A fim de se dar cumprimento imediato a esta decisão, deverão ser comunica-dos os Presidentes dos Tribunais Estaduais e Federais, inclusive da Justiça Militar Estadual e Federal, para que prestem informações e, no prazo máximo de 60 dias a contar de sua publicação, implementem de modo integral as determinações esta-belecidas no presente julgamento, à luz dos parâmetros ora enunciados.

Com vistas a conferir maior agilidade, e sem prejuízo da medida determi-nada acima, também deverá ser oficiado ao DEPEN para que comunique aos estabelecimentos prisionais a decisão, cabendo a estes, independentemente de outra provocação, informar aos respectivos juízos a condição de gestante ou mãe das presas preventivas sob sua custódia.

Deverá ser oficiado, igualmente, ao Conselho Nacional de Justiça — CNJ, para que, no âmbito de atuação do Departamento de Monitoramento e Fiscali-zação do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioedu-cativas, avalie o cabimento de intervenção nos termos preconizados no art. 1º, §

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acórdão144 145 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

1º, II, da Lei 12.106/2009, sem prejuízo de outras medidas de reinserção social para as beneficiárias desta decisão.

O CNJ poderá ainda, no contexto do Projeto Saúde Prisional, lançado du-rante o período em que exerci a presidência do referido órgão, atuar junto às esferas competentes para que o protocolo de entrada no ambiente prisional seja precedido de exame apto a verificar a situação de gestante da mulher. Tal diretriz está de acordo com o Eixo 2 do referido programa, que prioriza a saúde das mulheres privadas de liberdade.

Os juízes responsáveis pela realização das audiências de custódia, bem como aqueles perante os quais se processam ações penais em que há mulheres presas preventivamente, deverão proceder à análise do cabimento da prisão, à luz das diretrizes ora firmadas, de ofício.

Embora a provocação por meio de advogado não seja vedada para o cum-primento desta decisão, ela é dispensável, pois o que se almeja é, justamente, suprir falhas estruturais de acesso à Justiça da população presa. Cabe ao Ju-diciário adotar postura ativa ao dar pleno cumprimento a esta ordem judicial.

Nas hipóteses de descumprimento da presente decisão, a ferramenta a ser utilizada é o recurso, e não a reclamação, como já explicitado na ADPF 347.

É como voto.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator) Senhor Presidente, muito obrigado! Inicio por parabenizar a eloquência, o de-

nodo dos advogados, advogadas e defensores públicos que se sucederam na tribuna.O tema é momentoso, evidentemente. Eu tenho a convicção, a certeza de

que as organizações internacionais e as entidades nacionais de proteção dos direitos humanos estão de olhos voltados agora para a Suprema Corte do Brasil; não só essas pessoas jurídicas, mas também todos aqueles que se preocupam com a defesa dos direitos e garantias fundamentais da cidadania.

Eu creio que nós estamos diante de um momento histórico que, inclusi-ve, exige que prestigiemos esse vetusto, multissecular instrumento de proteção dos direitos fundamentais que é o habeas corpus, que tem, ao longo da história e de sua utilização no Brasil, recebido o prestígio que certamente merece.

Eu queria, Senhores Ministros, minhas senhoras e meus senhores, dizer inicialmente que, há questão de semanas, o eminente Ministro Gilmar Mendes, o Ministro Dias Toffoli e eu, na semana passada, nós de forma pioneira resolve-mos homologar — no meu caso, porque se tratava de uma ADPF, e, no caso de Suas Excelências, porque se tratava de processos de natureza subjetiva, embora com repercussão geral, dois REs

- os acordos entre bancos e poupadores no que diz respeito aos planos eco-nômicos, para colocar um fim a ações que já tramitam há cerca de 25 ou, quiçá, 30 anos em nosso País sem solução. E, nesses casos, segundo algumas estimati-vas, atingimos o universo de cerca de dois milhões de pessoas. Com certeza, um número mais sólido, nós cuidamos de 650.000 processos/ações que estavam em trâmite. Ou seja, nós, os três Ministros aqui presentes, de forma, ao meu ver, pioneira — e por que não dizer corajosa — prestigiamos um instrumento

antec ipação do vo to .

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acórdão146 147 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

que, originalmente, não tem — pelo menos, os REs — uma abrangência coletiva. Prestigiamos uma solução abrangente para uma situação que se vinha arras-tando há mais de duas décadas. E tratava-se, Senhores Ministros, de direitos meramente patrimoniais. Agora, estamos diante da proteção, talvez, de um dos mais sagrados direitos, depois da vida e da saúde, que é o direito à liberdade. E mais: a proteção da mãe, sobretudo daquela que amamenta, e de — tenho aqui um número aproximado, mas não vou ousar discriminá-lo em suas minúcias, para não errar -, seguramente, mais de dois mil pequenos brasileirinhos, que estão atrás das grades, com suas mães, sofrendo indevidamente — contra o que dispõe a Constituição e contra o que dispõe o Direito positivo brasileiro — as agruras do cárcere.

Penso, Senhores Ministros, que é chegada a hora de exercermos um pouco de coragem e darmos, realmente, uma abrangência maior nesse histórico ins-trumento de proteção dos direitos fundamentais, que é o habeas corpus.

O Senhor Ministro Dias ToffoliSenhor Presidente, inicialmente, louvo o voto trazido pelo eminente Mi-

nistro Ricardo Lewandowski a respeito deste tema. Cumprimento também todos os que compareceram à Tribuna pelas belíssimas manifestações orais.

O Poder Judiciário pós-Constituição de 1988 não é mais aquele que, como disse Werneck, em sua clássica obra Corpo e Alma da Magistratura Brasilei-ra, se encontrava dentro da estufa do autoritarismo, que só julgava casos indi-viduais específicos a ele trazidos, com repercussões exclusivas às partes. Por meio do processo constituinte de 87/88 e, posteriormente, de seu fortalecimen-to como instituição, o Poder Judiciário passou a ter aquele papel – sobre o qual já falei e escrevi — para o qual ele foi pensado, criado e institucionalizado com a proclamação da República. O Supremo, em particular, passou a ter o papel de grande árbitro da nação brasileira, dos conflitos federativos e entre os Poderes. Em uma Constituição que trouxe uma série de inovações e garantias indivi-duais e coletivas, sociais, econômicas, culturais, o papel do Poder Judiciário – e do Supremo Tribunal Federal em particular — é enorme.

No caso do habeas corpus coletivo, anoto isto em meu voto escrito,que farei juntar — não vou lê-lo aqui, até pela objetividade, já que Sua Ex-

celência o Ministro Ricardo Lewandowski gentilmente nos disponibilizou o voto anteriormente, para aprofundarmos o debate —, já houve decisões em que se rejeitaram, no passado, o habeas corpus coletivo. Contudo, estamos aqui exatamente diante de uma situação de evolução das instituições brasileiras e do Poder Judiciário em que não podemos negar a necessidade do HC coletivo. Esta Suprema Corte recusar o conhecimento do HC coletivo, penso que seria um momento seu não muito feliz.

antec ipação ao vo to .

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acórdão148 149 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Entretanto, temos de nos pautar na técnica, e o fundamento não pode ser só a evolução do Direito. E muito bem fundamentou seu voto o eminente Mi-nistro Relator.

Para fins de fundamentação de meu voto, vou fazer referência, para conhe-cer do pedido — e depois vou conhecer dele em parte e vou fundamentar tec-nicamente -, ao art. 5º da Constituição, incisos LXVIII, LXIX e LXX. E o faço pelo seguinte: o inciso LXIX do artigo 5º diz que:

LXIX — conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líqui-do e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.

No dispositivo do art. LXX, estabelece a Constituição:

LXX — o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:a) partido político com representação no Congresso Nacional;b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente cons-

tituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos inte-resses de seus membros ou associados.

Ora o mandado de segurança é cabível quando não cabe o habeas corpus, e o habeas corpus está previsto no inciso LXVIII. Vide:

LXVIII — conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de loco-moção, por ilegalidade ou abuso de poder;

Se o mandado de segurança é cabível quando não cabe o habeas corpus e cabe o mandado de segurança coletivo, disso eu tiro a conclusão de que a Cons-tituição prevê a possibilidade do habeas corpus coletivo.

Então, eu fundamento, nessa leitura da Constituição, a possibilidade do cabimento do habeas corpus coletivo e conheço do habeas corpus, mas em par-te, Senhor Presidente e eminente Relator. Por quê? Também indo à técnica: O habeas corpus precisa ter um impetrante, pode ser qualquer cidadão, qualquer pessoa, Defensoria Pública, instituições de defesa dos direitos humanos; e es-tão presentes os legitimados que, inclusive, foram à tribuna. Há de se ter ato coator. Os atos coatores estariam diluídos, de acordo com a inicial da impetra-ção, em todas as instâncias do Poder Judiciário. Mas nós não podemos aqui, tec-nicamente, conhecer diretamente da impetração em relação à juízo de primeira

instância e a tribunais locais ou regionais.Portanto, o conhecimento é em parte, visto que é em relação àquele sobre

o qual, tecnicamente, temos jurisdição para analisar eventual ilegalidade ou coação, que é o Superior Tribunal de Justiça. Adianto, desde logo, que isso não impede que, de ofício, tendo sido trazido o tema ao Supremo Tribunal Federal, implemente-se a impetração em relação aos demais Juízos. Isso já o fiz mono-craticamente, já o fiz aqui no Colegiado.

Apenas para manter coerência com os posicionamentos que eu já tive, en-tendo, num primeiro momento, com esses fundamentos e com outros que apro-fundarei no voto escrito, cabível o habeas corpus coletivo. No caso específico, conheço em parte em relação a atos referidos em relação ao Superior Tribunal de Justiça. E enfrentaria o tema, caso dele conheçamos ou, se dele não conhe-çamos, de ofício, sem avançar no voto de mérito do eminente Relator, mas ape-nas para explicitar minha forma técnica de apreciação.

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acórdão150 151 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

O Senhor Ministro Dias ToffoliCuida-se de habeas corpus coletivo, com pedido de liminar, impetrado em

favor de todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciá-rio nacional que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães com crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade, bem como das próprias crianças.

O writ foi distribuído ao Ministro Ricardo Lewandowski, que, em decisão de 27/6/17, bem relatou o teor da controvérsia:

Eloísa Machado de Almeida e Outros, membros do Coletivo de Advogados em Direitos

Humanos, impetraram habeas corpus coletivo com pedido de medida liminar em favor

de todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional

que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães de crianças sob sua

responsabilidade, bem como em nome das próprias crianças.

Afirmaram que a prisão preventiva, ao confinar mulheres grávidas em estabeleci-

mentos prisionais precários, subtraindo- lhes o acesso a programas de saúde pré-na-

tais, assistência regular no parte e pós-parto, e ainda privando as crianças de condições

adequadas a seu desenvolvimento, constitui tratamento desumano, cruel e degradante,

que infringe os postulados constitucionais relacionados à individualização da pena, à

vedação de penas cruéis, e ao respeito à integridade física e moral da presa.

Asseveraram que a política criminal responsável pelo expressivo encarceramento

feminino é discriminatória e seletiva, e tem impactado de forma desproporcional as

mulheres pobres e suas famílias.

Enfatizaram o cabimento de habeas corpus coletivo na defesa da liberdade de lo-

comoção das coletividades, com fulcro na garantia de acesso à Justiça e à luz do caráter

sistemático de algumas práticas que resultam em violação de direitos da coletividade.

Nesse sentido, invocam o artigo 25, I, da Convenção Americana de Direitos Humanos,

que garante o direito a um instrumento processual simples, rápido, efetivo e apto a

tutelar o direito fundamental lesionado ou ameaçado.

Salientaram o caráter estrutural das violações, no âmbito da prisão cautelar, a que

estão sujeitas gestantes e mães de crianças, em razão de falhas estruturais de acesso à

Justiça, consubstanciadas em obstáculos econômicos, sociais e culturais.

Aduziram que a competência para julgamento do feito é do Supremo Tribunal

Federal, tanto pela abrangência do feito quanto pelo fato de que o Superior Tribunal

de Justiça figura entre as autoridades coatoras.

Ressaltaram que os estabelecimentos prisionais não são estruturados de forma a

atender à mulher presa, especialmente a gestante e a que é mãe.

Insistiram em que, com a entrada em vigor da Lei 13.257/2016, que alterou o Có-

digo de Processo Penal para possibilitar a substituição de prisão preventiva por prisão

domiciliar para gestantes e mães de crianças, o Poder Judiciário vem sendo provocado

a decidir sobre a substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar nos casos

especificados pela Lei, mas que em aproximadamente metade dos casos o pedido foi

indeferido. Relataram que os argumentos para o indeferimento estariam relacionados

à gravidade do delito supostamente praticado e à necessidade de prova da inadequação

do ambiente carcerário no caso concreto. Afirmaram que essa argumentação não tem

consistência, uma vez que a gravidade do crime não pode ser, por si só, motivo para

manutenção da prisão, e que, além disso, este Supremo Tribunal Federal já reconheceu

o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro.

Enfatizaram pretender a proteção da condição especial da mulher no cárcere, so-

bretudo da mulher pobre que, privada de acesso à justiça, vê-se também destituída do

direito à substituição da prisão preventiva pela domiciliar. Assim, relatam que essa

soma de privações acaba por gerar um quadro de excessivo e irrazoável encarceramen-

to preventivo de mulheres pobres que, sendo gestantes ou mães de criança, fariam jus

à substituição prevista em lei.

Asseveraram que a limitação do alcance da atenção pré- natal, que já rendeu ao

Brasil uma condenação pelo Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discrimi-

nação contra a Mulher (caso Alyne da Silva Pimental versus Brasil), atinge, no sistema

prisional, níveis dramáticos, feriando direitos não só da mulher mas também de seus

dependentes, impactando o quadro geral de saúde pública e infringindo o direito à

proteção integral e à prioridade absoluta da criança.

Citaram casos graves de violação dos direitos das gestantes, sobretudo no parto,

sujeitando-as a abusos neste momento em que estão fragilizadas. As violações, segun-

do narram, prosseguem na fase de aleitamento e também depois, quando os filhos são

separados das mães de forma abrupta.

voto .

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acórdão152 153 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Realçaram que todos esses males poderiam ser evitados, porque muitas das pes-

soas presas preventivamente no Brasil são, ao final, absolvidas, ou têm a pena privativa

de liberdade substituída por penas alternativas.

Aduziram que, segundo dados oficiais, faltam berçários e centros materno-infan-

tis, e, em razão disso, as crianças se ressentem da falta de condições propícias para seu

desenvolvimento, o que afeta sua capacidade de aprendizagem e socialização e vulnera

gravemente seus direitos constitucionais, convencionais e legais.

Arguiram que, embora a Lei de Execução Penal (LEP) determine como sendo obri-

gatória a presença de instalações, nos estabelecimentos penais, para atendimento a ges-

tantes e crianças, as disposições legais vem sendo sistematicamente desrespeitadas.

Argumentaram que, embora a substituição da prisão preventiva pela domiciliar

não seja direito subjetivo da gestante e da mãe, elas têm direitos que estão sendo des-

respeitados, e não se pode penalizar o indivíduo pela falta de estrutura estatal. Nesses

casos, dizem, é o direito de punir, e não o direito à vida, à integridade e à liberdade in-

dividual, que deve ser mitigado, como se decidiu quando se declarou ser inadmissível

que presos cumpram pena em regime mais gravoso do que aquele a que foram conde-

nados, ou em contêineres, e que, em tais casos, a ordem de habeas corpus foi estendida

aos presos na mesma situação.

Destacaram a vulnerabilidade socioeconômica das mulheres presas preventiva-

mente no Brasil.

Requereram a concessão da ordem para revogação da prisão preventiva decretada

contra todas as gestantes e mães de crianças, ou sua substituição pela prisão domiciliar.

A Defensoria Pública do Estado do Ceará pleiteou seu ingresso como custos vulne-

rabilis (guardiã dos vulneráveis) ou, subsidiariamente, como amicus curiae.

Enfatizou ser órgão interveniente na execução penal para a defesa das pessoas

presas, que foram um grupo extremamente vulnerável.

Disse que sua atuação como guardiã dos vulneráveis tem por fundamento o artigo

134 da Constituição e o artigo 4º, XI, da Lei Complementar 80/1994.

Afirmou que, caso assim não se entenda, deve ser aceita para atuar como amicus

curiae, na medida em que o presente habeas corpus é coletivo.

No mérito, ressaltou a incidência do princípio da intranscendência, segundo o qual

a pena não pode passar da pessoa do condenado, e do princípio da primazia dos direitos

da criança, e asseverou que tais princípios têm sido ofendidos pela manutenção de prisão

preventiva de mulheres e de suas crianças em ambiente inadequado e superlotado.

Insistiu em que a leitura correta da Lei 13.257/2016 é de que não há necessidade

de se satisfazer outras condições, salvo as expressas na própria lei, para a substituição

da prisão preventiva pela domiciliar.

Na sequência, a Procuradoria-Geral da República opinou pelo não conhecimento

do writ, sob alegação de que é manifestamente incabível o habeas corpus coletivo, ante a

impossibilidade de concessão de “habeas corpus genérico, sem individualização do seu

beneficiário” e de expedição de “salvo- conduto a um número indeterminado de pessoas”.

Ressaltou ainda que não cabe a este Supremo Tribunal o julgamento do feito, haja

vista que não terem sido indicados atos coatores específicos que seriam imputáveis ao

Superior Tribunal de Justiça.

Afirmou, por fim, que o não cabimento do presente habeas corpus coletivo se deve

ainda ao fato de que a análise do cabimento da prisão domiciliar em cada caso concreto.

Ato contínuo, houve nova manifestação da Defensoria Pública do Estado do Ceará,

juntando documentos que permitem identificar, no que tange às presas do Instituto

Penal Feminino Desa. Auri Moura Costa, aquelas que são mães de crianças e que estão

presas provisoriamente em unidade superlotada.

Insistiu em que deve ser superado o prisma individualista do habeas corpus por

meio de uma leitura constitucional e sistêmica, admitindo-se a identificação das bene-

ficiárias da ordem durante a tramitação ou ao final, quando de sua execução, em razão

da transitoriedade da condição de presas preventivas e a fim de se garantir tratamento

isonômico a estas, além de propiciar-se economia de recursos e maior celeridade para

o julgamento de feitos criminais, na medida em que tal instrumento permite evitar a

multiplicação de processos semelhantes.

Citou exemplos de habeas corpus, tramitando neste Supremo Tribunal Federal,

em que não houve a identificação dos pacientes, e que nem por isso tiveram seu an-

damento interrompido ou suspenso (Habeas Corpus 118536 MC/SP – SP e o Habeas

Corpus 119753/SP), bem como aqueles em que ordem foi estendida a outras pessoas

sofrendo o mesmo tipo de coação ilegal.

Asseverou ser inequívoca a competência deste Supremo Tribunal Federal para

o julgamento do feito, em razão da existência de inúmeros acórdãos proferidos pelo

Superior Tribunal de Justiça em que essa Corte exigiu o cumprimento de requisitos

outros, além dos constantes do art. 318 do Código de Processo Penal, para a substitui-

ção de preventiva por domiciliar. Listou como exemplificativos desta tendência do Su-

perior Tribunal de Justiça os habeas corpus 352.467, 399.760, 397.498, em que figuram

como pacientes, respectivamente, Ilze Lopes Campos, Pamela Ferreira Quintanilha e

Daniela Florentino da Silva.

Ressaltou que neste Supremo Tribunal Federal também estaria se firmando a exi-

gência de inocorrência dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal para

deferimento da substituição – entendimento que seria incompatível com os dispositi-

vos da Lei 13.257/2016. Acrescentou que o presente habeas corpus coletivo seria uma

ferramenta para repensar e dar aplicabilidade ampla ao espírito democrático dessa

alteração legislativa, a qual concretiza diretrizes constitucionais de proteção à infância.

Reiterou, no mais, seus pleitos anteriores, sobretudo quanto à admissão de sua

participação como custos vulnerabilis.

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acórdão154 155 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Na sequência, peticionou a Defensoria Pública do Estado do Paraná (documento

eletrônico 19), requerendo sua habilitação nos autos como custos vulnerabilis ou, sub-

sidiariamente, como amicus curiae.

Invocou, no mérito, a aplicação de dispositivos constitucionais e convencionais

que justificariam o acolhimento dos pleitos deste habeas corpus.

Requereu a concessão da ordem e a intimação do Defensor Público Geral Federal,

para provocar sua atuação na condição de guardião dos vulneráveis.

Nessa mesma decisão, o Relator determinou as seguintes diligências:

(...)

Tendo em conta a possibilidade de aplicação analógica de dispositivos do proces-

so civil ao processo penal, por força do art. 3º do Código de Processo Penal, admito o

ingresso no feito, na condição de assistente, das Defensorias Públicas dos Estados do

Ceará e do Paraná (art. 121 do Código de Processo Civil). Anote-se.

Embora não se possa descartar de plano a existência, em nosso ordenamento, do

habeas corpus coletivo – discussão que será travada com maior profundidade no Recurso

Extraordinário 855.810, de relatoria do Ministro Dias Toffoli – , entendo imprescindível,

até mesmo para firmar a competência deste Supremo Tribunal Federal, identificar as mu-

lheres que estão na situação narrada pelos autores. Assim, por ora, determino a expedição

de ofício ao Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) para que:

1) indique, dentre a população de mulheres presas

preventivamente, quais estão gestantes ou são mães de crianças;

2) com relação às unidades prisionais onde estiverem custodiadas, informe quais

dispõem de escolta para garantia de cuidados pré-natais, assistência médica adequada,

inclusive pré-natal e pós-parto, berçários e creches, e quais delas estão funcionando

com número de presas superior à sua capacidade.

O prazo para resposta do ofício é de 60 dias, devendo indicar de forma precisa o

nome da presa, bem assim, a identificação da unidade prisional onde está custodiada.

Defiro, por fim, a intimação do Defensor Público Geral Federal, para que esclareça

sobre seu interesse em atuar neste feito.

Após, tornem conclusos os autos.

Em 17/10/17, o Relator, por analogia ao art. 80 do Código de Processo Penal, determinou o desmembramento do feito em relação aos Estados do Amapá, do Ceará, do Espírito Santo, de Goiás, do Maranhão, do Pará, da Paraíba, de Per-nambuco, do Piauí, do Rio Grande do Norte, de Rondônia, de Roraima, do Rio Grande do Sul, de Sergipe, de São Paulo e de Tocantins, os quais não apresenta-ram as informações requisitadas.

Sua Excelência determinou, ainda, a formação de autos apartados e sua redistribuição por dependência a este habeas.

Instado a se manifestar, o Ministério Público Federal, em parecer da lavra da Subprocuradora-Geral da República Drª Cláudia Sampaio Marques, opi-nou pelo não conhecimento do writ.

E a síntese do caso, que passo a analisar a partir das premissas postas no brilhante voto apresentado pelo ilustre Relator, que bem nos lembrou não ser de hoje a inquietação da Corte a respeito do habeas corpus coletivo, que não está positivado no nosso ordenamento pátrio. E há, de fato, decisões registradas em nossa jurisprudência que não têm admitido, com base nesse fundamento, o habeas no formato coletivo. Cito, por exemplo, o HC nº 133.267/SP-AgR, Tribu-nal Pleno, de minha relatoria, DJe de 2/6/16; HC nº 135.169/BA, Relator o Mi-nistro Gilmar Mendes, DJe de 24/8/16; HC nº 119.753/SP, Relator o Ministro Luiz Fux, DJe de 21/3/17.

Porém, está evidente, nos dias atuais, que o modelo clássico, em que ape-nas o titular do direito, por seu representante legal, pode demandar em juízo, tem deixado a desejar no tocante à efetiva proteção jurisdicional dos direitos subjetivos individuais, sobretudo, quando se tem, como lembrou o Relator em seu voto,

mais 100 milhões de processos em tramitação no Poder Judiciário, a cargo de pouco

mais de 16 mil juízes, e às dificuldades estruturais de acesso à Justiça, passando a ado-

tar e fortalecer remédios de natureza abrangente, sempre que os direitos em perigo

disserem respeito às coletividades socialmente mais vulneráveis.

À frente de complexas relações sociais em uma crescente sociedade como a nossa, é comum, como lembra Daniel Sarmento1,

que um mesmo ato ou evento danoso repercuta na esfera jurídica de grande número

de pessoas, originando múltiplas violações de direito similares. Não é de se surpreen-

der, portanto, que dentre as iniciativas estatais direcionadas a gerir da melhor maneira

as necessidades da sociedade contemporânea encontrem-se esforços orientados a dar

‘respostas supra individuais a desafios massificados.

À luz dessa preocupação o Conselho Nacional de Justiça deu o primeiro passo quando, em 2010, aprovou o Plano de Gestão para o Funcionamento de

1 O Cabimento do Habeas Corpus Coletivo na Ordem Constitucional Brasileira. http://www.ttb.adv.br/artigos/parecer-hc-coletivo.pdf.

”“

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acórdão156 157 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Varas Criminais e de Execução Penal, que estimula a solução coletiva das de-mandas de massa2.

Não se nega que o habeas corpus pressuponha a existência de uma autori-dade coatora (coator), de uma pessoa que sofre a coação ou coerção (paciente), e de uma pessoa que impetra a ordem (impetrante).

Por isso é que a petição de habeas corpus conterá:

i) o nome de quem sofre ou está ameaçado de sofrer violência ou coação e o de quem exerce a violência, coação ou ameaça;

ii) a declaração da espécie de constrangimento, ou, em caso de simples ameaça de coação, as razões em que se funda o temor; e

iii) a assinatura do impetrante, ou de alguém a seu rogo, quando não sou-ber ou não puder escrever, e a designação das respectivas residências.

Assim é o que dispõe o art. 654, § 1º, do Código de Processo Penal, reprodu-zido nos incisos do art. 190 do Regimento Interno desta Suprema Corte.

Aliás, como já decidiu o Ministro Celso de Mello,

o Supremo Tribunal Federal, ao examinar, em sede de “habeas corpus”, a questão

do paciente anônimo, tem proclamado a inadmissibilidade de utilização do “writ”

constitucional, que se torna, por isso mesmo, insuscetível de conhecimento, como acentuado em julgamento proferido pelo próprio Plenário desta Corte (HC 133.267-

-AgR/SP, Rel. Min. Dias Toffoli), de que extraio fragmento constante do voto de

seu eminente Relator:

‘Reitero, ademais, que a Corte já se pronunciou pela inadmissibilidade do ‘ha-beas corpus’ coletivo, em favor de pessoas indeterminadas, visto que se inviabiliza

‘não só a apreciação do constrangimento, mas também para fins de expedição de salvo-

-conduto em seu favor’ (…)’ (grifei).

Cabe enfatizar que essa diretriz tem prevalecido na prática jurisdicio-nal desta Corte Suprema, cujas inúmeras decisões têm sempre acentuado a incognoscibilidade da ação de ‘habeas corpus’ quando ajuizada, como sucede na espécie, em favor de ‘terceiros não identificados’ (HC 81.348/RJ, Rel. Min. EL-LEN GRACIE – HC 101.136-AgR-ED/RJ, Rel. Min. LUIZ FUX – HC 119.753/SP, Rel. Min. LUIZ FUX – HC 122.921/DF, Rel. Min. DIAS TOFFOLI – HC 125.655/DF, Rel. Min. TEORI ZAVASCKI – HC 130.154/DF, Rel. Min. TEORI ZAVASCKI – HC 135.169/BA, Rel. Min. GILMAR MENDES, v.g.).

Essa orientação, por sua vez, que tem sido igualmente observada pelo E. Superior Tribunal de Justiça (RHC 46.988/BA, Rel. Min. Felix Fischer

– RHC 51.301/BA, Rel. Min. Ribeiro Dantas, v.g.), reflete-se em autoriza-do magistério doutrinário (Guilherme de Souza Nucci, ‘Código de Pro-cesso Penal Comentado’, p. 1.318, item n. 47, 14ª ed., 2015, Forense; Bento de Faria, ‘Código de Processo Penal’, vol. II/381, item n. II, 2ª ed., 1960, Record; Eduardo Espínola Filho, ‘Código de Processo Penal Brasilei-ro Anotado’, vol. VII/270, item. 1.370, 2000, Bookseller; Pedro Henrique Demercian e Jorge Assaf Maluly, ‘Curso de Processo Penal’, p. 648/649, item n. 17.4.1, 8ª ed., 2012, Forense; Alexis Couto De Brito, Humberto Barrionuevo Fabretti e Marco Antônio Ferreira Lima, ‘Processo Penal Brasileiro’, p. 450, item n. 6, 2012, Atlas, v.g.), valendo reproduzir, em face de sua absoluta pertinência, a lição de Gustavo Henrique Badaró (‘Processo Penal’, p. 955/956, item n. 16.4.3.1, 4ª ed., 2016, RT):

Obviamente, o paciente tem que ser uma pessoa, isto é, um ser humano cuja liberdade de

locomoção esteja violada ou ameaçada. Também deve se tratar de pessoa ou pessoas individualizadas, não se admitindo a medida em favor de pessoas indeterminadas (p. ex.: sócios de uma agremiação ou moradores de alguma casa).’ (grifei)

Sendo assim, em face das razões expostas, e tendo em vista, notadamente, a jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal na matéria ora em exame, inclusive a de seu Egrégio Plenário, não conheço da presente ação de

‘habeas corpus’, restando prejudicada, em consequência, a análise do pedido de medida liminar’ (HC nº 143.704/PR, DJe de 12/5/17).

Penso, todavia, que este remédio constitucional, que tutela um direito fun-damental tão caro para sociedade brasileira — a liberdade -, necessita ser re-pensado, justamente porque nossa Constituição prevê que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5º, inciso XXXV), sobretudo dos mais vulneráveis, cujo tratamento coletivo desempe-nharia a relevantíssima função de promoção efetiva de acesso à justiça.

Como ressaltou o Ministro Ricardo Lewandowski em seu denso voto,

dados da pesquisa "Panorama de Acesso à Justiça no Brasil, 2004 a 2009" (Brasília:

Conselho Nacional de Justiça, Jul. 2011), (...) demonstram que, abaixo de determinado

nível de escolaridade e renda, o acesso à Justiça praticamente não se concretiza.

Tal pesquisa, dentre outras revelações, ressalta o quanto esse acesso, como direi-

to de segunda geração ou dimensão, tem encontrado dificuldades para se realizar no 2 Conselho Nacional de Justiça. Plano de gestão para o funcionamento de Varas Criminais e de Execução Penal, 2010, p. 14.

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acórdão158 159 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Brasil, esbarrando, sobretudo, no desalento, ou seja, nas dificuldades relacionadas a

custo, distância e desconhecimento que impedem as pessoas mais vulneráveis de al-

cançar o efetivo acesso à Justiça.

Assim, penso que se deve extrair do habeas corpus o máximo de suas potencialida-

des, nos termos dos princípios ligados ao acesso à Justiça previstos na Constituição de

1988 e, em particular, no art. 25 do Pacto de São José da Costa Rica.

Compartilho das mesmas preocupações do ilustre Relator e penso, a par-tir da interpretação do Código de Processo Penal à luz da Constituição, haver campo para admitirmos o habeas corpus coletivo quando em jogo interesses individuais homogêneos, já positivados, como destacado, no art. 81, parágrafo único, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor. In verbis:

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser

exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

(…)

III. interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes

de origem comum.

É certo, ademais, que este Supremo já reconheceu que direitos individuais homogêneos constituem uma subespécie de direitos coletivos, os quais perten-cem a grupos, categorias ou classes de pessoas determináveis, ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. In verbis:

Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem comum (art. 81, III,

da Lei n 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos

coletivos. 4.1. Quer se afirme interesses coletivos ou particularmente interesses homo-

gêneos, stricto sensu, ambos estão cingidos a uma mesma base jurídica, sendo coletivos,

explicitamente dizendo, porque são relativos a grupos, categorias ou classes de pes-

soas, que conquanto digam respeito às pessoas isoladamente, não se classificam como

direitos individuais para o fim de ser vedada a sua defesa em ação civil pública, porque

sua concepção finalística destina-se à proteção desses grupos, categorias ou classe de

pessoas” (RE nº 163.231/SP, Tribunal Pleno, Relator o Ministro Maurício Corrêa, DJ

de 29/6/01).

E como anota Hugo Nigro Mazzilli,

[tanto] os interesses individuais homogêneos como os difusos originam-se de circuns-

tâncias de fato comuns; entretanto, são indeterminais os titulares de interesses difusos,

e o objeto de seu interesse é indivisível; já nos interesses individuais homogêneos, os

titulares são determinados ou determináveis, e o objeto da pretensão é divisível (A De-

fesa dos Interesses Difusos em Juízo. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 57).

Portanto, sem prejuízo de continuar minhas reflexões sobre o tema, co-nheço deste habeas corpus coletivo para se discutir direitos individuais homo-gêneos, sobretudo por se tratar de grupo de pessoas determinadas ou determi-náveis, o que viabilizará não só a apreciação do constrangimento ilegal, como também a expedição de salvo-conduto.

É certo, ademais, que a utilização desse remédio constitucional na forma coletiva, com as balizas próprias propostas pelo Relator, inquestionavelmente desborda em tratamento mais isonômico na entrega da prestação jurisdicional.

Não se deve perder de vista que a Constituição previu o mandado de segu-rança coletivo para direitos outros (CF, art. 5º, LXX) não amparados pelo habeas corpus. Logo, com maior razão a figura coletiva cabe ser instrumentalizada por essa ação constitucional, já que ela protege o direito indisponível à liberdade.

Como anota o Ministro Ayres Britto em voto que proferiu com maestria,

é para o mais forte amparo à liberdade de locomoção que a nossa Lei Maior: a) faz o

habeas corpus anteceder, topograficamente, a todas as ações por ela também direta-

mente cunhadas (mandado de segurança individual e coletivo, mandado de injunção,

habeas data e ação popular, normadas, respectivamente, nos incisos LXIX, LXX, LXXI,

LXXII e LXXIII do mesmo art. 5º); b) somente admite o manejo do mandado de segu-

rança se a proteção a ‘direito líquido e certo’ não comportar aviamento por ele, habeas

corpus (nem por impetração do habeas data, seqüencialmente); c) deixa de exigir que

o responsável por qualquer dos pressupostos de ilegalidade ou de abuso do poder seja

‘autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Pú-

blico’ (requisitos exigidos, agora sim, para o cabimento do mandado de segurança)2.

Não podia ser diferente, no corpo de uma Constituição que faz a mais avançada demo-

cracia coincidir com o mais depurado humanismo. Afinal, habeas corpus é, literalmen-

te, ter a posse desse bem personalíssimo que é o próprio corpo. Significa requerer ao

Poder Judiciário um salvo-conduto que outra coisa não é senão uma expressa ordem

para que o requerente preserve, ou, então, recupere a sua autonomia de vontade para

fazer do seu corpo um instrumento de geográficas idas e vindas. Ou de espontânea

imobilidade, que já corresponde ao direito de nem ir, nem vir, mas simplesmente ficar.

Autonomia de vontade, enfim, protegida contra ‘ilegalidade ou abuso de poder’ — par-

ta de quem partir —, e que somente é de cessar por motivo de ‘flagrante delito ou por

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acórdão160 161 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de

transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei (inciso LXI do art. 5º

da Constituição)” (HC nº 91.041/PE, Primeira Turma, DJe de 17/8/07).

Nessa direção há, aliás, precedente de lavra do eminente Ministro Mar-co Aurélio admitindo o manejo do habeas corpus como instrumento próprio para se combater ato tido como ilegal a alcançar a liberdade de ir e vir, seja no campo individual ou coletivo. Vide:

HABEAS CORPUS – ADEQUAÇÃO. O habeas corpus é instrumento próprio a atacar

ato tido como ilegal, a alcançar a liberdade de ir e vir, pouco importando haja sido for-

malizado no campo individual ou coletivo. PENA – RESTRITIVA DA LIBERDADE –

RESTRITIVA DE DIREITO – MULTA – SUBSTITUIÇÃO. A problemática referente à

imposição, no caso de incidência do artigo 155, § 2º, do Código Penal, da pena de multa

resolve-se no campo do justo ou injusto, não alcançando o da legalidade ou ilegalidade

(HC nº 122.827/MG, Primeira Turma, DJe de 4/5/17 – grifos nossos).

Acompanho, portanto, o Relator quanto ao cabimento do habeas corpus co-letivo, inclusive em relação aos legitimados, conforme propôs Sua Excelência em seu voto (legitimados do Mandado de Injunção Coletivo3).

Todavia, proponho o conhecimento parcial da ação, já que a Corte não de-tém legitimidade constitucional para processar e julgar o writ impetrado contra ato omissivo ou comissivo de juízes de primeiro grau ou de tribunais de segundo grau, os quais foram apontados expressamente como autoridades coatoras na inicial.

Não há, porém, impedimento para que a ordem seja concedida de ofício nesse aspecto.

Quanto ao tema de fundo — que abriga pedido de concessão da ordem de habeas corpus para substituir a prisão preventiva de mulheres submetidas à prisão cautelar, no sistema penitenciário nacional que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães com crianças menores de 12 (doze) anos de

idade sob sua responsabilidade —, em atenção aos incisos V e VI do art. 318 do Código de Processo Penal, incluído pela Lei nº 13.257/16, de 8 de março de 2016, registro que o parágrafo único do dispositivo em questão exige a presença de prova idônea para justificar a medida. In verbis:

Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabe-

lecidos neste artigo.

Penso, portanto, com a vênia de estilo, que dar credibilidade, pura e simplesmente, à palavra da mãe presa para apurar a situação de guardiã de seus filhos não se mostra suficiente.

Não há dúvidas de que essa alteração promovida no art. 318 do Código de Processo Penal, levada à cabo pelo Poder Legislativo, se mostra consentânea com a proteção à maternidade e à primeira infância (Lei nº 13.257/16), com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) e com a Constituição Federal, que, juntas, desbordam em uma série de princípios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas para a primeira infância, em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desen-volvimento do ser humano.

Como bem lembrou o Relator em seu voto,

não restam dúvidas de que a segregação, seja nos presídios, seja em entidades de aco-

lhimento institucional, terá grande probabilidade de causar dano irreversível e perma-

nente às crianças filhas de mães presas.

Nos cárceres, habitualmente estão limitadas em suas experiências de vida, con-

finadas que estão à situação prisional. Nos abrigos, sofrerão com a inconsistência do

afeto, que, numa entidade de acolhimento, normalmente, restringe-se ao atendimento

das necessidades físicas imediatas das crianças.

Finalmente, a entrega abrupta delas à família extensa, como regra, em seus pri-

meiros meses de vida, privando-as subitamente da mãe, que até então foi uma de suas

únicas referências afetivas, é igualmente traumática. Ademais, priva-as do aleitamento

materno numa fase em que este é enfaticamente recomendado pelos especialistas.

Por tudo isso, é certo que o Estado brasileiro vem falhando enormemente no to-

cante às determinações constitucionais que dizem respeito à prioridade absoluta dos

direitos das crianças, prejudicando, assim, seu desenvolvimento pleno, sob todos os

aspectos, sejam eles físicos ou psicológicos.

A título de obiter dictum, já tive a oportunidade de tecer considerações a respeito da matéria, (v.g. HC nº 132.462/RJ-AgR-ED, Segunda Turma, de

3 Art. 12. O mandado de injunção coletivo pode ser promovido:

I pelo Ministério Público, quando a tutela requerida for especialmente relevante para a defesa da ordem jurídica, do regime democrá-tico ou dos interesses sociais ou individuais indisponíveis;

II por partido político com representação no Congresso Nacional, para assegurar o exercício de direitos, liberdades e prerrogativas de seus integrantes ou relacionados com a finalidade partidária;

III por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos 1 (um) ano, para assegurar o exercício de direitos, liberdades e prerrogativas em favor da totalidade ou de parte de seus membros ou associados, na forma de seus estatutos e desde que pertinentes a suas finalidades, dispensada, para tanto, autorização especial;

IV pela Defensoria Pública, quando a tutela requerida for especialmente relevante para a promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos individuais e coletivos dos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal.

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acórdão162 163 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

minha relatoria, DJe de 6/6/16). Mas a Corte já reconheceu, na voz do Minis-tro Gilmar Mendes, que as normas processuais penais em questão devem ser aplicadas de forma restrita e diligente, verificando-se as peculiaridades de cada caso (HC nº 142.279/CE, Segunda Turma, DJe de 18/8/17).

Destaco, a propósito, excerto do bem lançado voto proferido pelo no Mi-nistro Gilmar Mendes no julgado em questão:

Passo a examinar a possibilidade de concessão de prisão domiciliar à paciente, com

fundamento no art. 318, inciso V, do CPP.

Segundo os autos (eDOC 2, p. 5-6), a paciente possui 2 filhos menores (uma crian-

ça de 4 anos e outra de 9 anos, nesta data).

Ao apreciar o pedido de liminar, asseverei ser cediço que, enquanto estiver sob a

custódia do Estado (provisória ou decorrente de condenação definitiva), são garanti-

dos ao preso diversos direitos que devem ser respeitados pelas autoridades públicas.

No âmbito constitucional, desde o artigo 1º, já se enfatiza a dignidade da pessoa

humana como fundamento da República (art. 1º, inciso III, da CF/1988).

No rol dos Direitos e Garantias Fundamentais (Título II), mais especificamente

nos capítulos dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos e dos Direitos Sociais (Ca-

pítulos I e II), estão o direito à proteção da maternidade e da infância e o direito das

mulheres reclusas de permanência com seus filhos durante a fase de amamentação:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, ga-

rantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade

do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos

seguintes:

(…) L — às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer

com seus filhos durante o período de amamentação.

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a mo-

radia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à mater-

nidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição’.

Ainda, no âmbito constitucional, no Título VIII — Da Ordem Social, no Capítulo

VII (Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso), temos a previsão de

especial proteção à família pelo Estado, in verbis:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança,

ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à

alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,

ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-

-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,

crueldade e opressão’.

Na esfera infraconstitucional, a Lei 11.942, de 28 de maio de 2009, deu nova reda-

ção aos artigos 14, 83 e 89 da Lei 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal),

para assegurar às mães presas e aos recém-nascidos condições mínimas de assistência.

Transcrevo os referidos dispositivos:

‘Art. 14. (...) § 3º. Será assegurado acompanhamento médico à mulher, princi-

palmente no pré-natal e no pós- parto, extensivo ao recém-nascido.

Art. 83. (…) § 2º. Os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dota-

dos de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive ama-

mentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade.

Art. 89. Além dos requisitos referidos no art. 88, a penitenciária de mulheres

será dotada de seção para gestante e parturiente e de creche para abrigar crianças

maiores de 6 (seis) meses e menores de 7 (sete) anos, com a finalidade de assistir

a criança desamparada cuja responsável estiver presa.

Parágrafo único. São requisitos básicos da seção e da creche referidas neste artigo:

I. atendimento por pessoal qualificado, de acordo com as diretrizes adotadas pela

legislação educacional e em unidades autônomas;

II. horário de funcionamento que garanta a melhor assistência à criança e à sua

responsável’.

Esses direitos, naquilo que for compatível, podem ser outorgados também ao preso

provisório, tendo em vista as peculiaridades que cada situação exige (artigo 42 da LEP).

Por sua vez, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) assegura à gestante o

atendimento pré e perinatal, bem como o acompanhamento no período pós-natal, garan-

tindo, ainda, o direito à amamentação, inclusive no caso de mães privadas de liberdade:

Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, me-

diante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o

desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.

Art. 8º É assegurado à gestante, através do Sistema Único de Saúde, o atendi-

mento pré e perinatal.

§ 1º. A gestante será encaminhada aos diferentes níveis de atendimento, segun-

do critérios médicos específicos, obedecendo-se aos princípios de regionalização

e hierarquização do Sistema.

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acórdão164 165 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

§ 2º. A parturiente será atendida preferencialmente pelo mesmo médico que a

acompanhou na fase pré-natal.

§ 3º. Incumbe ao poder público propiciar apoio alimentar à gestante e à nutriz

que dele necessitem.

§ 4º. Incumbe ao poder público proporcionar assistência psicológica à gestante

e à mãe, no período pré e pós-natal, inclusive como forma de prevenir ou minorar

as consequências do estado puerperal.

§ 5º. A assistência referida no § 4º deste artigo deverá ser também prestada a

gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção.

Art. 9º O poder público, as instituições e os empregadores propiciarão condi-

ções adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães submetidas

a medida privativa de liberdade.

Art. 10. Os hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde de gestantes,

públicos e particulares, são obrigados a:

I. manter registro das atividades desenvolvidas, através de prontuários indivi-

duais, pelo prazo de dezoito anos;

II. identificar o recém-nascido mediante o registro

de sua impressão plantar e digital e da impressão digital da mãe, sem prejuízo de

outras formas normatizadas pela autoridade administrativa competente;

III. proceder a exames visando ao diagnóstico e terapêutica de anormalidades

no metabolismo do recém- nascido, bem como prestar orientação aos pais;

IV. fornecer declaração de nascimento onde constem necessariamente as inter-

corrências do parto e do desenvolvimento do neonato;

V. manter alojamento conjunto, possibilitando ao neonato a permanência junto

à mãe’.

E, mais recentemente, o Marco Legal da Primeira Infância (Lei 13.257/2016), que

entrou em vigor em março de 2016, alterou a redação do artigo 318 do CPP, a fim de

tornar ainda mais amplas as hipóteses de concessão de prisão domiciliar:

Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o

agente for: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

I. maior de 80 (oitenta) anos; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

II. extremamente debilitado por motivo de doença grave; (Incluído pela Lei nº

12.403, de 2011).

III. imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de

idade ou com deficiência; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

IV. gestante ; (Redação dada pela Lei nº 13.257, de 2016)

V. mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos;

(Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016)

VI. homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos. (Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016)

Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisi-

tos estabelecidos neste artigo’. (Grifei)

Reconheço que o diploma acima citado deve ser aplicado de forma restrita e dili-

gente, verificando-se as peculiaridades de cada caso.

Não obstante as circunstâncias em que foi praticado o delito, a concessão da pri-

são domiciliar encontra amparo legal na proteção à maternidade e à infância, como

também na dignidade da pessoa humana, porquanto prioriza-se o bem- estar do menor.

Em seu livro ‘Prisão e Liberdade’, de acordo com a Lei 12.403/2011 (Editora Revis-

ta dos Tribunais, 3. ed., p. 114), o desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de

São Paulo, Guilherme de Souza Nucci, relata:

‘A mens legis diz com a necessidade de resguardar, em tal situação, não o agente

criminoso, mas sim a pessoa que se encontra em situação de vulnerabilidade

legitimadora de maiores cuidados, quais as crianças e deficientes, de modo

coerente, inclusive, com a maior proteção a eles deferida pelo ordenamento

jurídico nacional, constitucional e infraconstitucional, e internacional. Por-

tanto, o raciocínio que se deve fazer, neste caso, deve partir da consideração

do que é melhor para o vulnerável o filho recém-nascido e não do que é mais

aprazível para a paciente’.

Registro, também, que, por diversas vezes, a Segunda Turma do STF tem concedi-

do habeas corpus para substituir a prisão preventiva de pacientes gestantes e lactantes

por prisão domiciliar (HC 134.104/SP, de minha relatoria, DJe 19.8.2016; HC 134.069/

DF, de minha relatoria, DJe 1º.8.2016; HC 133.177/SP, de minha relatoria, DJe 1º.8.2016;

HC 131.760/SP, de minha relatoria, DJe 13.5.2016; HC 130.152/SP, de minha relatoria,

DJe 1º.2.2016; e HC 128.381/SP, de minha relatoria, DJe 1º.7.2015).

Destaco, ainda, que, nos termos das Regras de Bangkok, de dezembro de 2010, a

adoção de medidas não privativas de liberdade deve ter preferência, no caso de grávi-

das e mulheres com filhos dependentes.

Transcrevo o dispositivo das Regras de Bangkok:

2. Mulheres grávidas e com filhos dependentes | Regra 64Penas não privativas de liberdade serão preferíveis às mulheres grávidas e com

filhos dependentes, quando for possível e apropriado, sendo a pena de prisão ape-

nas considerada quando o crime for grave ou violento ou a mulher representar

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acórdão166 167 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

ameaça contínua, sempre velando pelo melhor interesse do filho ou filhos e asse-

gurando as diligências adequadas para seu cuidado’.

A necessidade de observância das Regras de Bangkok, acrescente-se, foi aponta-

da pelo Ministro Ricardo Lewandowski, no julgamento do HC 126.107/SP, e tem sido

constantemente invocada pelo Ministro Celso de Mello em seus pronunciamentos

orais na Segunda Turma.

Sobre o tema, menciono também as seguintes decisões monocráticas de membros

da Primeira Turma do STF: Ministro Barroso no HC 134.979/DF, DJe 1º.8.2016; HC

134.130/DF, DJe 30.5.2016; HC 133.179/DF, DJe 5.4.2016 e Rcl 25.560/PA, DJe

2.5.2017. E do Ministro Marco Aurélio no HC 133.532/DF, DJe 12.5.2016. Da Se-

gunda Turma, também cito: HC 139.889 MC/SP, Rel. Ministro Ricardo Lewandowski,

decisão de 14.6.2017.

Por fim, observo que o crime supostamente praticado pela paciente não envolve

violência ou grave ameaça à pessoa.

(...)

Ante o exposto, tendo em vista a ausência de interposição de agravo regimental

contra a decisão monocrática do STJ, não conheço do presente habeas corpus.

No entanto, acolhendo a manifestação da PGR e com base no art. 318, inciso V, do

CPP (mulher com filho de até 12 anos incompletos), concedo, de ofício, a ordem, em

parte, para, confirmando a liminar deferida, determinar que a paciente seja coloca-

da em prisão domiciliar, com monitoramento eletrônico, e, ainda, com a obrigação de

comparecimento periódico em juízo para informar e justificar suas atividades, sem

prejuízo da adoção de outras medidas cautelares dispostas no CPP.

Além disso, deverá a paciente: a) solicitar previamente autorização judicial sem-

pre que pretender ausentar-se de sua residência (artigo 317 do CPP); b) atender aos

chamamentos judiciais; c) noticiar eventual transferência; e d) para fins de apuração

da melhor situação para a criança (ECA doutrina da proteção integral à criança e ao

adolescente), submeter-se, periodicamente, juntamente com sua família, a estudos psí-

quico-sociais.

A prisão em domicílio, sob pena de se desacreditar, por completo, o sistema penal

repressivo, não pode ser banalizada, precisa ser acompanhada com eficiência. Registro

que o Juízo de primeiro grau ficará responsável pela fiscalização do cumprimento das

medidas e condições impostas, devendo advertir a paciente de que eventual desobe-

diência implicará o restabelecimento da prisão preventiva (grifos do autor).

Dito isso, para não se subverter a exegese da Lei nº 13.257/16, que visa tu-telar os interesses e o bem estar do menor, resguardados pela própria Consti-tuição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, entendo cabível

a substituição da prisão preventiva por domiciliar na forma da lei processual penal a todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternati-vas previstas no art. 319 do CPP, desde que precedida, à luz de cada caso, do preenchimento dos requisitos enunciados pelo Relator em seu voto, os quais subscrevo integralmente.

Portanto, no tocante à preliminar de conhecimento do habeas corpus cole-tivo, admito a impetração.

Quanto ao pano de fundo, em relação ao Superior Tribunal de Justiça, apontado como autoridade coatora, concedo a ordem.

Considerando a ilegitimidade constitucional da Corte para processar e julgar o writ impetrado contra ato de juiz de primeiro grau e de tribunal de segundo grau (CF, art. 102, inciso I, alíneas d e i), não conheço da impetração. Concedo, porém, a ordem de ofício, na extensão do voto do Relator.

É como voto.

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acórdão168 169 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

O Senhor Ministro Gilmar Mendes Essa questão, nós já até discutimos aqui, alguma feita, sobre a possibilidade

desse cabimento do habeas corpus de caráter coletivo. Sabemos que houve o avanço da Constituição de 1988, seguindo as pegadas daquela ampliação ocor-rida a partir da Constituição de 1934, com a ampliação dos instrumentos de defesa dos direitos. Como todos nós nos recordamos, tínhamos inicialmente apenas o habeas corpus, que, sob a Constituição de 1891, oferecia um âmbito de proteção bastante abrangente. A fórmula básica permitia compreender o ha-beas corpus como um instrumento de defesa em relação a toda e qualquer lesão perpetrada pelo poder público a direito subjetivo. Esse debate foi bastante in-tenso e, como nós sabemos, daí resultou a construção feita pelo Supremo Tri-bunal Federal a propósito da chamada doutrina brasileira do habeas corpus, que fez uma conformação talvez um pouco mais restritiva daquele conceito literal bastante amplo, mas ainda manteve a utilização do habeas corpus para além da mera situação da liberdade de locomoção. Traduzindo em miúdos, dizia-se que toda vez que subjacente a qualquer outro direito, seja lá liberdade religiosa, ou liberdade de manifestação de pensamento, estiver a liberdade de locomoção, caberá sim o uso do habeas corpus.

Há até um caso, salvo engano, Ministro Celso, em que se discutiutalvez, num desses casos, acho que mencionado numa obra de Rui, um ha-

beas corpus, acho que com esse teor coletivo, na ideia de permitir manifestação ou na ideia de uma proteção geral.

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado.

O Senhor Ministro Gilmar MendesPortanto, aqui nós teríamos claramente um modelo de habeas corpus nesse

perfil — não chamávamos assim à época, mas com esse alcance. Na realidade, o direito postulado substancialmente era o direito à liberdade de reunião.

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado.

O Senhor Ministro Gilmar MendesSim, nesse contexto.Depois, tivemos a reforma constitucional de 1926 — e aqui se introduz, de

forma consciente, texto que modifica substancialmente a redação original e se faz uma redução significativa do âmbito de proteção do habeas corpus.

Já, naquela assentada, no processo constituinte, discutiu-se a necessida-de, então, de se criar um outro instrumento, um instrumento que suprisse, que colmatasse a lacuna que o sistema de proteção passaria agora a ter. E se falou, inclusive, na ideia de um mandado de garantia ou equivalente. Isso explica de certa forma o desenvolvimento que tivemos.

E certamente, quando fazemos estudos de Direito Comparado, sempre nos perguntamos: Por que o recurso de amparo tem esse âmbito de proteção muito mais amplo? Ou: Por que a Verfassungsbeschwerde alemã tem um âmbito de proteção também multivalente, enquanto nós fomos trabalhando com as ações separadas? O mandado de segurança, então, veio em 34. De certa forma, para resgatar virtualidades do texto anterior, naquela construção feita pelo Supre-mo Tribunal Federal.

Passaram-se todos esses anos, a Constituição de 88 dá outros passos e, ao lado do habeas corpus, do mandado de segurança, cria o habeas data, o man-dado de injunção e o mandado de segurança coletivo com algumas definições.

E tivemos, aqui — e temos evoluído nesse sentido -, um debate interessante sobre o mando de injunção, um instrumento que fomos construindo devagar, até para entender do que se tratava, com todas aquelas evoluções. Mas o Supre-mo, em termos processuais, reconheceu, e, não muito distante, já na evolução, na sua prática, que era cabível sim o mandado de injunção coletivo, tal como já se admitia em relação ao mandado de segurança coletivo.

E, hoje, na nossa prática — e isso se traduziu na nossa prática -, percebemos, depois daquela viragem na jurisprudência, que não havia falar no mandado de in-junção que não tivesse um mínimo de conteúdo para além do caso concreto. Vimos, no caso do direito de greve dos servidores públicos, porque, ou reconhecíamos essa

voto sem pre l iminar.

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acórdão170 171 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

abrangência ou teríamos que repetir mandados de injunção quando, na verdade, o comando era um só para que se fizesse uma dada lei ou para que se suprisse a au-sência da lei com uma regulação que se aplicava a todos os casos.

O Senhor Ministro Dias ToffoliNós fomos inundados por mandados de injunção a respeito da aposenta-

doria especial.

O Senhor Ministro Gilmar MendesSim, e levantamos, então, inclusive...

O Senhor Ministro Dias ToffoliFizemos uma súmula para atender ...

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator) Ministro Gilmar, Vossa Excelência circunstancialmente não estava em Ple-

nário, mas citei um voto paradigmático, pioneiro, do Ministro Celso, que antes da positivação do mandado de injunção coletivo, Sua Excelência já afirmava esse caráter, esse instrumento heroico, esse remédio heroico constitucional que é o mandado de injunção.

O Senhor Ministro Gilmar MendesSim. Estou dizendo, a própria construção se fez jurisprudencialmente, por-

que não faz sentido reconhecer o próprio mandado de segurança coletivo e não o fazer em relação ao mandado de injunção. Até, porque, aqui, com maior ra-zão, a proteção não se dá de maneira efetiva, raramente vai se dar, para aquele impetrante. De fato, busca-se regular uma situação de forma completa, como acabamos por fazer no direito de greve, determinando que ficasse em vigor as normas vigentes já para os empregados normais, submetidos ao regime da CLT. Portanto, aquela regulação era completa.

Isso foi muito curioso, porque, depois, o Ministro Teori, de saudosa me-mória, ao trabalhar o projeto do mandado de injunção, aqui, também um outro fenômeno muito curioso, porque o mandado de injunção — e isso já foi aponta-do até como petição de princípio —, ele veio, mas não tinha regulação. E claro, precisava-se de alguma lei. O Supremo teve que fazer um construto, e o que fê-lo dizendo se aplicava, em princípio, o mandado de segurança.

E se nós olharmos, em termos de ação processual no Brasil, o nosso pro-cesso constitucional, todo ele é muito curioso, porque, de alguma forma, ele remonta a fórmula do habeas corpus e, depois, do mandado de segurança.

É até curioso, a primeira lei que tratou da representação interventiva, na verdade, manda aplicar a Lei do Mandado de Segurança, porque essa foi a base do nosso desenvolvimento, um tanto até quanto chocante, quando se fala assim:

"Poxa! Mas o que que tem a representação interventiva com o mandado segu-rança?". Mas foi a base desse nosso desenvolvimento.

No mandado de injunção, nós tivemos esse fenômeno, tivemos que cons-truir inclusive a legislação processual e passamos aplicar, então, a Lei do Man-dado de Segurança, a velha Lei nº 1.533. E assim se fez, mas se reconheceu a dimensão coletiva. Hoje, talvez, até pudéssemos dar de barato isso. Por quê? Porque sabemos que o mandado de injunção tem essa força.

Então, o Ministro Teori percebeu que era necessário, a partir daqueles nos-sos debates, que esse ideário fosse traduzido na legislação e disse que o próprio Supremo poderá atribuir eficácia erga omnes à decisão tomada em mandado de injunção. Isso agora está positivado, até porque não faz sentido, dando uma resposta regulatória ampla, fragmentar-se isso em múltiplas ações. Então, é in-teressante ver toda essa construção para entender essa evolução que se faz.

É curioso que esse predecessor de todos esses institutos — no nosso caso é o habeas corpus — ficou um tanto quanto retardatário nesse debate. Daí os meus efusivos cumprimentos a Vossa Excelência pela iniciativa.

Eu já havia brincado, em algumas sessões aqui, Ministro Lewandowski, diante dessa questão que foi apontada com tanto brilho pelas belíssimas sus-tentações que se fizeram nesta tarde, nesta Turma, que algum dia nós teríamos uma situação — e em um tom jocoso, mas com um senso de realismo caricatu-ral —, que daqui a pouco, diante da superlotação dos presídios, por exemplo, vamos ter alguém impetrando um habeas corpus, dizendo: "Olha a situação de uma ala do presídio em Bangu", ou seja lá o que for. E diríamos: "Como que isso está provado?". As fotos, os vídeos que vemos na televisão mostram um pouco isso, aquele amontoado de pessoas. Eu brincava, então, dizendo que o sujeito ainda diria: "Olha, eu sou um desses impetrantes, olha eu aqui". Quer dizer, de fato, é essa a situação que realmente aparece. Claro que ela não se materializou dessa forma, mas tivemos a ADPF agora citada que discutiu o chamado fato in-constitucional. Então, parece-me que esse debate é extremamente importante. E Vossa Excelência traz um caso bastante singularizado, porquanto realmente essa é uma dificuldade — e já discutida aqui pelo Ministro Toffoli — para que possamos fazer a identificação mais precisa das situações.

Esse caso é emblemático e conta um pouco a história inclusive da nossa prática também legislativa. Produzimos vários divórcios. Eu participei da fei-tura da lei, no contexto do Pacto Republicano, que resultou no novo artigo 319 do CPP, como resposta aos excessos nas prisões provisórias. Mas o que vemos

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acórdão172 173 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

todos os dias aqui — e Vossa Excelência reagiu a isso, trabalhando intensamente na ideia das audiências de custódia — é um excesso de prisão provisória, e não a aplicação do artigo 319. Esse é um grave problema, por razões as mais diversas, sobretudo, talvez, por razões de índole cultural. Há dificuldades também de ín-dole prática, a falta de tornozeleira; em suma, vários problemas. E, aí, há falhas graves, porque se pensa na legislação, mas não na sua execução. Estabelece-se um divórcio. E os órgãos que pudessem, no nosso âmbito — Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público -, atuar de maneira mais enfática nessa mudança de cultura, talvez fiquem um tanto quanto deficitários ou mesmo omissos, pois esse é um trabalho de construção de uma nova cultura. É preciso levar ao juiz essa nova mensagem.

De certa forma, isso ocorreu também com uma lei, não velha, mas um tanto mais antiga, que é a chamada Lei de Drogas.

Todos nós, que acompanhamos um pouco a reforma, sabemos que ela veio com o espírito de maior abertura, senão descriminalização, atenuação e tudo mais. Levamos, inclusive, questões ao Plenário. Ministro Dias Toffoli foi Re-lator de uma questão importantíssima a propósito desse tema. É curioso, nós podemos fazer essa pesquisa, talvez, de maneira mais profunda e empírica, mas sabemos hoje que, como no evangelho, querendo fazer o bem, parece que o le-gislador acabou, Ministro Fachin, fazendo o mau, porque, tentando reduzir as prisões nesse ambiente, das questões da droga, flexibilizando o sistema, porém, parece que produziu — e sabemos, pelo número de casos que temos aqui — pri-sões em série, inclusive, nesses casos que estão sendo aqui apontados: pequeno porte, porte de pequenas quantidades de droga. Portanto, a legislação é feita, mas é como se ela fosse colocada, aí, na atmosfera, sem que tivesse que ser apli-cada. E isso gera todo esse divórcio e toda essa distorção.

E, agora, de certa forma, ocorre isto com essa lei, que permite, de alguma forma, divisar, como Vossa Excelência mostrou, as várias situações. O elenco está no dispositivo legal especificado. É claro que a própria interpretação sistemática poderá elidir situações em que não caibam a concessão do regime domiciliar.

Temos, aqui, um divórcio, um segundo divórcio, poderíamos dizer; primei-ro, entre a legislação e a sua execução; e, aqui, entre aquilo que nós fazemos no Supremo Tribunal Federal, e aquilo que se faz nas primeiras instâncias, primei-ras e segundas instâncias, e até no Superior Tribunal de Justiça.

Esses dias, eu até — para criar um ambiente talvez mais descontraído —, eu assistia a uma matéria, chamaram-me atenção para uma matéria no Fantástico, e eu vi a decisão tomada num desses casos aqui relatados pelo Superior Tribunal de Justiça. Então, vi no seu formalismo, a Presidente do STJ — a nossa querida Minis-tro Laurita, que é muito afeita ao Direito Penal e Processual Penal, assim a conheci,

já na Procuradoria-Geral da República —, mas nesse cacoete também dos indefe-rimentos, ela disse: "Não está provado que, ou não está demonstrado de maneira efetiva, que haja necessidade da presença da mãe em relação a essa criança". Mas trata-se de uma criança de dois meses! Portanto, veja que chegamos a fazer nos colocar em uma bolha, e ficamos assim: "Poxa! Já que a gente tem que indeferir, al-gum argumento a gente dá", não é? E vamos nos distanciando, então, da realidade. E isso tem acontecido, também, nas primeiras instâncias, quando, como vimos, aí, nos relatos, as crianças acabam nascendo nos camburões, levados para o presídio. Portanto, uma situação bastante constrangedora, diante da lei.

E, para o juiz, talvez, em caso que tais, pelo menos em equívocos, não ha-veria alternativa: Ou aplica a lei, ou teria que dizer "a lei é inconstitucional" e fundamentar; e daí, viriam recursos até o Supremo Tribunal Federal. Contudo, não é disso que se trata. Simplesmente, indefere-se, talvez até, porque estejam lendo aquele "pode", que, na verdade, como nós sabemos, em técnica legislativa, o "pode" é "deve"!

Entretanto, isto se colocou e essa prática se tornou uma prática corrente: Esse divórcio entre as decisões que nós tomamos aqui. Todos nós temos deze-nas de liminares, e já há muitas decisões tomadas na Turma; é um assunto pací-fico. Inclusive, acredito que, também na Primeira Turma, há inúmeros casos a propósito desse tema. Então, nós produzimos esse divórcio.

Aqui se incitou o caso de Adriana Ancelmo. Também era objeto de refe-rência nessa matéria de que eu falei no Fantástico, até à guisa de um certo con-traponto. Veja: Uma pessoa com esse status conseguiu no Supremo Tribunal Federal; e essa outra, pobre mulher, não consegue nenhuma decisão, embora tenha levado droga para o marido, na quantia de oito gramas de maconha. Eu até já brinquei com meus amigos jornalistas — os Senhores sabem que tenho muitos deles como amigos, e eles batem muito no Supremo Tribunal Federal. Eu até já conversei com importantes colunistas. Uma delas — importante -, cer-ta feita, em um debate na Folha dizia assim: "Vocês só decidem casos de ricos". E eu disse: "Não, a gente decide casos de ricos e pobres; em geral, não prestam atenção a isso, nem aos advogados" — os defensores públicos que estão aqui sabem disso. Disse: "Mas por que eu não sei?" Eu falei: "Porque quem gosta de rico é jornalista". É uma brincadeira, talvez uma hipérbole, mas isso conta uma história: Habeas Corpus de pobre não dá "Ibope". São mais de vinte, de trinta casos aqui, e Vossa Excelência acabou de conceder. Mas isso, em geral, não vai para o "Jornal Nacional". Então, essa é uma realidade, e, por isso — vou falando em termos históricos -, o Tribunal fica ainda aqui hoje, voltando à obra de Ba-leeiro, como um tribunal parcialmente desconhecido. Todo esse trabalho que se faz diuturnamente aqui desaparece.

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acórdão174 175 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Portanto, parece-me que nós temos um caso que necessita de uma coletivi-zação, diante desse divórcio que se estabeleceu, que é até compreensível — ou explicável, pelo menos. Diante da avalanche da criminalidade, é natural que os juízes, os desembargadores, aqueles que estão mais perto da realidade, talvez, en-tendam que têm que aplicar a legislação com um viés de endurecimento. Essa é a impressão que se passa. E acabam por esquecer aquilo que está na lei e, no caso também, como se discutiu, em um tratado internacional, inclusive, com força, como reconhecemos, de supralegalidade. Logo, esse é um dado importante.

Agora, como solver essa questão do ponto de vista do processo constitu-cional? Eu tenho dito: Nós temos que ser bastante compreensivos no que diz respeito à construção que fizemos — e vimos fazendo — em relação ao habeas corpus. Por quê? Porque é essa garantia básica que deu a origem a todo esse ma-nancial do processo constitucional, inclusive, às ações diretas, se nós olharmos que a própria representação interventiva, de certa forma, tem essa raiz no pro-cesso constitucional do mandado de segurança que decorreu do habeas corpus.

E, por outro lado, a própria legislação, mesmo em tempos bastante obscu-ros, sempre admitiu o habeas corpus de ofício. Há um dado que também parece olvidado — é claro que nós podemos discutir isso de maneira bastante ampliada ou de maneira bastante diferenciada -, mas me parece — Ministro Celso depois poderá fazer correção — que o debate sobre a natureza do habeas corpus, entre nós, aparenta confirmar que estamos diante, na realidade, de uma actio popula-ris. Esse parece ser o entendimento mais amplo da doutrina. Ora, então, nesse passo, se se trata de uma ação popular, per definition, é um processo objetivo.

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado.

O Senhor Ministro Gilmar MendesUma ação penal popular. Este é um ponto importante para uma abordagem.

Claro que vamos ter que trabalhar a questão do ato coator. E aí me parece que, já tendo um ou dois processos submetidos ao Superior Tribunal de Justiça, po-demos indicar isso como um elemento. E aí, claro, podemos fazer o encaminha-mento adequado e, eventualmente, aproveitar a reflexão trazida pelo Ministro Toffoli. Mas essa questão está posta. Está, de certa forma, bem encaminhada.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator) Ministro Gilmar, Vossa Excelência me permitiu, agora, uma reflexão, que

faço em voz alta. De certa maneira, Vossa Excelência está propondo — e, para mim, com o máximo de acerto — que sigamos a trilha aberta também, com uma construção sistemática, no que diz respeito aos REs com repercussão geral. O

que nós fazemos? Colhemos um determinado caso e damos a ele repercussão geral. Portanto, não importa muito se são um, dois, três, quatro, cinco casos. A verdade é que o STJ, repetitivamente, tem denegado esses casos, quase que sistematicamente.

O Senhor Ministro Gilmar MendesÉ verdade. É isso também. É esse o dado.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator) Nós estamos diante de um comportamento que se repete e que pode ser, de

certa maneira, tomado como paradigmático, por nós aqui nessa Suprema Corte.

O Senhor Ministro Gilmar MendesÉ exatamente isso. É exatamente isso. Porque, veja, de um lado, esse viés,

vamos chamar assim, de uma ação popular penal, que é este habeas corpus, nes-sa característica, nessa natureza que nós assim definimos e reconhecemos. Por outro lado, nenhuma dúvida de que o STJ tem posição bastante refratária, con-trária, inclusive, às posições que nós temos aqui defendido. Portanto, também aqui nós resolvemos o problema, do ponto de vista da relação processual.

O Senhor Ministro Dias ToffoliE há pacientes identificáveis.

O Senhor Ministro Gilmar MendesSim, e há pacientes identificáveis, de que Vossa Excelência mesmo cuidou.De modo que, depois podemos fazer um encaminhamento quanto ao

mérito, vou-me manifestar, na linha do seu voto, pelo conhecimento do habeas corpus.

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acórdão176 177 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

O Senhor Ministro Dias Toffoli Senhor Presidente, eu não quis interromper o brilhante voto do Minis-

tro Gilmar Mendes, mas Sua Excelência fez louvável referência à iniciativa do então Presidente do Conselho Nacional de Justiça e do Supremo, Minis-tro Ricardo Lewandowski, de criação das audiências de custódia. Eu não poderia deixar de, nesta oportunidade, citar que, no ano passado, no mês de outubro, por designação da Presidente Cármen Lúcia, eu fui a Genebra, no Alto Comissariado dos Direitos Humanos da ONU, exatamente para relatar a experiência brasileira. E eu mesmo, Ministro Lewandowski, eminentes Colegas, todos os presentes, fiquei impressionado com os números. Fiquei impressionadíssimo com os números. Resgatei agora há pouco os números da palestra que lá fiz. Eu realizei uma palestra em outubro. Levantei núme-ros que vão de 24 de fevereiro de 2015 a junho de 2017; ou seja, dois anos e três meses da aplicação das audiências de custódia, que nós sabemos que ainda não estão presentes, por circunstâncias exatamente de implementa-ção, em todo o território nacional, mas já estão em grande parte dele. Nesse período de dois anos e três meses, Ministro Gilmar, foram registradas 259 mil audiências de custódia, ou seja, 259 mil flagrantes em que o preso ou os presos foram conduzidos à autoridade judiciária. Em 45% dos casos, o custodiado se livrou solto. Isso significa, em números, 116 mil casos. É im-pressionante! Isso tudo são habeas corpus que viriam ao Poder Judiciário e, eventualmente, até esta Suprema Corte. E estamos assistindo a este au-mento enorme até por um trabalho muito bem feito da Defensoria — uma instituição extremamente importante, que foi criada em alguns estados há muito tempo, mas que foi constitucionalizada na Constituição de 88, e que

vem desenvolvendo um trabalho, para a população mais desvalida do nosso País, de uma maneira muito relevante.

Então, 116 mil pessoas foram colocadas em liberdade, de imediato, em 2 anos e 3 meses das audiências de custódia.

Entretanto, os dados vão além! Dessas 116 mil, que foram colocados em liberdade, em 12 mil casos, o juiz determinou a investigação de eventual tortura ou violência no ato de prisão por parte dos agentes de Estado que a fizeram.

São dados extremamente relevantes. Eu não quis interromper o eminente Ministro Gilmar Mendes no momento de seu voto, mas penso que há que se fa-zer esse registro. É uma atuação coletiva, sem dúvida nenhuma, administrativa, de gestão e que previne a judicialização.

observação .

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acórdão178 179 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

O Senhor Ministro Edson Fachin (Presidente) Nós, com o voto que vou proferir — e serei breve -, cumpriremos então a pres-

tação da preliminar, acerca do conhecimento. Creio que não houve sequer con-trovérsia sobre a legitimação ativa e, portanto, sobre este ponto, creio que as cir-cunstâncias já se encaminham na direção apontada pelo voto do eminente Relator.

No tocante ao conhecimento, também tenho sustentado, na linha do que traduziu o eminente Ministro Dias Toffoli, o não cabimento da impetração per saltum. É bem verdade que, como demonstraram os votos de Sua Excelência, o Ministro Ricardo Lewandowski — com seu brilho de sempre —, já na preli-minar, trouxe a colação argumentos sólidos, bem como os votos do Ministro Gilmar Mendes e do nosso Decano Ministro Celso de Mello, há, portanto, uma elasticidade hermenêutica constitucionalmente sustentável para a compreen-são dessa coletivização do habeas corpus. Nada obstante, isso não me parece superar o argumento da impetração per saltum.

Por isso, sem adentrar no tema da concessão ou não de ofício, visto que isso, como disse o Ministro Dias Toffoli, concerne ao mérito, e obviamente primeiro, como sói ocorrer, e não poderia ser diferente, iremos haurir o voto do eminente Ministro-Relator — e Sua Excelência também não adentrou, apenas evidenciou que o não conhecimento em parte poderia ser superado pela concessão de ofí-cio -, estou me cingindo ao não conhecimento, por este argumento que, segun-do depreendi, foi utilizado por Sua Excelência.

O Senhor Ministro Dias Toffoli:Eu dividiria meu voto em duas partes: Uma preliminar de cabimento, ou

não, do habeas corpus coletivo — e eu acompanho o cabimento. No caso con-creto, uma vez cabível o HC coletivo, dele conheço em parte no que concerne ao Superior Tribunal de Justiça.

Penso ser importante. Não sei se Vossa Excelência está votando no sentido do cabimento do HC.

O Senhor Ministro Edson Fachin (Presidente) Eu estou acompanhando Vossa Excelência.

O Senhor Ministro Dias Toffoli:Eu penso que, num dia e numa tarde como esta, seria importante desta-

carmos que foi unânime — unânime — a decisão da Turma, no que concerne ao cabimento do HC coletivo. E, depois, num segundo passo, diante do caso específico, proclamar-se-iam os votos sobre a abrangência. A meu ver, a decisão seria mais fidedigna a todo o debate ocorrido.

Ou seja, por unanimidade, entendeu-se que é cabível impetração coletiva. No caso específico, a dimensão seria proclamada separadamente.

Eu dividiria, se me permite Vossa Excelência, e desculpe a impertinência de sugerir, diante do momento histórico de estarmos analisando o cabimento do HC coletivo, que essa parte fosse destacada da abrangência do conhecimento.

O Senhor Ministro Edson Fachin (Presidente) Indago o eminente Relator.

voto sempre l iminar.

e sc larec imento .

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acórdão180 181 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator) Eu não tenho nenhuma restrição a essa intervenção muito oportuna do emi-

nente Ministro Toffoli. Também depreendi das discussões e dos votos de cada um dos eminentes Ministros que houve uma unanimidade, no sentido de que é pos-sível a impetração de um HC coletivo. Vossas Excelências, Ministro Dias Toffoli e Ministro Edson Fachin, ficaram vencidos, em parte, no que diz respeito à abran-gência desse HC coletivo aqui impetrado, neste momento. Vossas Excelências, ao que pude entender, estão cingindo o conhecimento apenas àqueles atos relaciona-dos ao Superior Tribunal de Justiça, a essa autoridade coatora.

O Senhor Ministro Dias ToffoliEu sugiro, do ponto de vista da proclamação — se Vossa Excelência, Presi-

dente, o eminente Relator e os demais Colegas estiverem de acordo —, procla-mar-se o seguinte: a Turma, por unanimidade, entendeu cabível a impetração de habeas corpus coletivo; num segundo passo, ainda em preliminar, por maioria de votos, conheceu do pedido; ficaram vencidos, na abrangência do conhecimento, o Ministro Dias Toffoli e o Ministro Presidente.

O Senhor Ministro Edson Fachin (Presidente)Eu estou de acordo com Vossa Excelência, se não houver objeção. Faço

minhas as palavras muito bem enunciadas por Vossa Excelência. E concluo, a despeito do voto que estou a pronunciar nesta direção, pontuando, nada obs-tante o cabimento do habeas corpus coletivo, que, considerando a relevância do tema aqui trazido, também não nos afastemos do necessário equilíbrio — que vem no voto do eminente Ministro-Relator — entre aquilo que se designa de uma omissão cega, que é imperdoável, e, de outra ponta, na radicalidade, de um protagonismo excessivo que leve o Poder Judiciário a ser um formulador de políticas públicas.

Esse equilíbrio traz também algumas ponderações sobre a incidênciada Lei nº 13.300, e, portanto, dessa compreensão que estamos, em face de

direitos coletivos homogêneos, para verificar — inclusive, Vossa Excelência teve o cuidado de coletar informações — que há situações de fato realmente diferenciadas. Por exemplo, no Movimento Processual 31 dos autos, há uma informação do Departamento Penitenciário do Estado do Paraná referindo-se a um conjunto de condições — e aqui não faço nenhum juízo de realidade, apenas estou me referindo a uma informação documental — da presença de atendi-mento pré-natal e de um conjunto de circunstâncias que, pelo menos, do ponto de vista documental, estão informadas.

Por outro lado, isso corresponde a dizer que um juízo normativodiante de situações de fato diferenciadas pode não levar necessariamente a

conclusões homogêneas. E é isso que também me leva a ponderar para trazer à colação, sem embargo de não estarmos acolhendo o parecer do Ministério Pú-blico Federal, é judiciosa a observação no sentido de identificar num universo

conf irmaçãode vo to .

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acórdão182 183 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

conhecido, ou, pelo menos, cognoscível, dos destinatários da eventual medida que venha a ser aqui deferida. Até porque a impetração, tal como formulada originalmente, ao final da primeira página — se não me falha a memória, na última ou na penúltima linha -, refere-se às mães e às crianças, o que é um ve-tor, em relação às crianças — inclusive, em alguns documentos internacionais, foram referidos da tribuna -, decisivo, pelo menos, no meu modo de ver, visto que o inc. V do artigo 318 do Código de Processo Penal se refere à gestante. E, portanto, um estado especial que, obviamente, tem como destinatário aqueles que a própria petição inicial fez referência.

E, nessa dimensão, também lembro, apenas à guisa de ponderação, que, na fundamentação da ADPF 347, esse tema restou ferido: O sofrimento das gestan-tes e das mães com seus filhos, ausência de cuidados mínimos, de condições de higiene, lá também estava posto. E, obviamente, pode ser demasiado lembrar, mas, naquela ADPF, até este momento, apreciamos a medida cautelar.

Portanto, há conjunto de ponderações, sem embargo de acolher o cabimen-to, e com o voto que profiro nesta direção, esse acolhimento resta unânime, co-nheço em parte, com a dimensão dada pelo eminente Ministro Dias Toffoli no sentido de evitar a impetração per saltum. E, com essas ponderações que faço para deixar essa porta aberta num juízo evolutivo deste Supremo Tribunal Fe-deral, que também, ao mesmo tempo que acolhe esse reclamo que vem do Bra-sil real para o Brasil formal das salas dos tribunais, encontre eco e, ao mesmo tempo, encontre o equilíbrio entre, conforme disse, uma cegueira omissiva ou um protagonismo hipertrofiado.

Com essa dimensão, acompanho o voto do eminente Ministro Dias Toffoli, nessa parte, mas também votando pelo cabimento, tal como Sua Exce-lência indicou.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator) Eu vou procurar respeitar o nosso horário, a sessão finda às 18 horas,

com uma certa flexibilidade. Eu vou reduzir ao máximo os meus argumentos, até porque Vossas Excelências já receberam o voto, e eu quero ver se posso me cingir apenas às partes mais substantivas, até porque o Ministro Gilmar Mendes, que é um conhecido cultor do alemão, os nossos juristas, mas também a sabedoria popular alemã — eu sei que Vossa Excelência também é um cultor do alemão, Ministro Fachin.

O Senhor Ministro Edson Fachin (Presidente) Ein bißen.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator) Ein bißen.Lá se diz: Tatsachen sprechen — os fatos falam por si sós.Então, nós estamos diante de fatos absolutamente insofismáveis. A degra-

dação do sistema prisional brasileiro é uma realidade inafastável. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu isso na ADPF 347 por unanimidade, salvo en-gano de minha parte. E há também, na verdade, é um verdadeiro brocardo jurídico, talvez um princípio universal de Direito mais do que uma norma agasalhada pelo nosso Direito Processual Positivo, segundo o qual fatos notó-rios independem de provas.

Portanto, estamos diante de fatos notórios, talvez, há uma ou outra exceção num Estado avançadíssimo, como é esse Estado do qual Vossa Excelência pro-vém, o Paraná, é possível que ocasionalmente uma ou outra gestante, uma ou

esc larec imento .

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acórdão184 185 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

outra mãe, uma ou outra criança esteja melhor atendida, mas a grande realida-de nacional — e eu conheço de corpo presente, porque estive em praticamente todas as unidades prisionais mais importantes desse País -, eu sei que a situação é degradante e sujeita o Brasil a críticas, a meu ver, merecidas do ponto de vista dos organismos internacionais de proteção dos direitos humanos. O Senhor Ministro Edson Fachin (Presidente)

Vossa Excelência apenas me permite um aparte de natureza procedimental?

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Sim, claro.

O Senhor Ministro Edson Fachin (Presidente)Gostaria de propor aos eminentes Ministros que pudéssemos concluir esse

julgamento hoje. E, também, quiçá em homenagem aos advogados presentes, na sessão do Tribunal Eleitoral de hoje, o Ministro Gilmar Mendes encerrou a sua Presidência, e eu, como suplente, não fui convocado, talvez possamos nos estender um pouco mais para atender pelo menos parte da pauta, depois con-sultarei Vossa Excelência. Peço desculpas pela intromissão.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Eu agradeço e procurarei ser o mais breve possível. Inclusive, na parte dis-

positiva, estou aberto, em função de toda essa argumentação que agora foi ex-posta, a eventualmente transigir em certos aspectos para me amoldar à vontade do Colegiado, que é sempre soberana. Mas já verifiquei, até para gáudio meu, que o Ministro Toffoli, sem embargo de conhecer parcialmente deste HC, esta-ria disposto, se for o caso, se essa for a inclinação do Colegiado, a conceder a or-dem de ofício, como aliás a legislação ordinária permite e conforme temos feito ordinariamente quando situações de determinados possíveis beneficiários se assemelham, são análogas àquele caso julgado concretamente com relação a determinado paciente.

O Senhor Ministro Dias Toffoli Senhor Presidente, inicialmente, mais uma vez, renovo os cumprimentos

ao aprofundado, inovador, brilhante, voto trazido pelo eminente Relator Minis-tro Ricardo Lewandowski.

Quanto à abrangência da decisão, tivemos a oportunidade de conversar, um pouco antes da sessão, e há algumas dúvidas colocadas. Desse modo, faço o registro que estou a acompanhar o eminente Relator, concedendo a ordem em relação ao Superior Tribunal de Justiça e concedendo a ordem de ofício em relação às demais instâncias do Poder Judiciário, na medida em que eu conheci da impetração em menor abrangência.

Quanto à parte dispositiva, penso que deveríamos ser um pouco mais, diga-mos, objetivos, sem pensarmos em algumas travas, que Sua Excelência, de manei-ra diligente, prevendo um eventual não cumprimento ou uma eventual dificulda-de no estabelecimento da decisão, Sua Excelência trouxe aqui na sua conclusão. Penso que poderíamos ser mais objetivos, até porque somos o ápice da pirâmide e temos de ter em conta que as nossas decisões, como sói acontecer, devem ser se-guidas pelas instâncias ordinárias. Então, permito-me sugerir a parte dispositiva para Sua Excelência: "Em face de todo o exposto, concedo a ordem para deter-minar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar — sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no artigo 319 do CPP — de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crian-ças sob sua guarda e relacionadas neste processo pelo DEPEN e outras auto-ridades estaduais, enquanto perdurar tal condição, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, as quais deverão

voto .

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acórdão186 187 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

ser devidamente fundamentadas pelo juízes que denegarem o benefício".Eu ficaria aqui neste posicionamento, ou seja, a denegação deve ser fun-

damentada.Nós temos uma situação que, pelo dispositivo legal, é uma situação objetiva.

Como julgador, não posso pressupor uma série de outras condicionantes, por-que o art. 318 diz:

Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for:

(...)

IV. gestante;

V. mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos;

VI. homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos

de idade incompletos."

Ou seja, em relação à mulher, não há essa condicionante de ser o único res-ponsável. Essa foi a opção do legislador. Então, em relação à mulher não há essa necessidade de ser a única responsável pelo cuidado do filho de até doze anos de idade incompletos. Mas, evidentemente, existem situações excepciona-líssimas. Existem situações, inclusive, de mulheres que usam dos filhos menores de 12 anos para, de alguma maneira, escamotear o cometimento de crimes. Existem situações extremamente graves. São essas situações excepcionalíssimas que, penso, o Ministro Relator, de maneira muito ade-quada, colocou aqui em sua parte dispositiva. Eu não sei se Sua Excelência manteve a questão da comunicação à Corte.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Como Vossa Excelência parece-me ter objeção com relação a isso — e

com base em fundados argumentos —, abriria mão dessa comunicação, sem nenhum problema.

O Senhor Ministro Dias Toffoli Porque, senão, seríamos de imediato a instância revisora. Então, ficaria

aqui nessa parte.Vossa Excelência também estende "a ordem, de ofício, às demais mulheres

presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças, bem assim às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional (...)"? Ou seja, é uma extensão de uma maneira objetiva a atingir mulheres que, embora não estejam aqui descritas neste relatório do DEPEN, são também be-neficiadas não pela decisão, mas pela lei.

De fato, essa decisão, essa extensão que Vossa Excelência está a propor nada mais é do que dizer à Magistratura que cumpra a lei.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Exatamente. Ministro Toffoli, Vossa Excelência me permite? Ocorreu-me

que, talvez, fosse útil esclarecer a todos aqueles que nos assistem que não esta-mos colocando em liberdade estas mulheres, infelizes mulheres. Elas vão con-tinuar na prisão, só que domiciliar. Vão estar sujeitas a medidas alternativas à prisão. Elas estarão, ainda, sob a custódia do Estado.

O Senhor Ministro Dias Toffoli E, antes disso, conforme foi dito e lembrado da tribuna — e Vossa Excelên-

cia, evidentemente, também reportou o tempo todo -, estamos falando de pri-são provisória, ou seja, quando não há culpa formada. Depois, Vossa Excelência estabelece aqui a questão da reincidência; ou seja, realmente, quando há culpa formada, é como se fosse uma explicitação.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator) A mulher reincidente, mas presa preventivamente; analisar-se-á no caso

concreto.

O Senhor Ministro Dias Toffoli O juiz vai analisar o caso concreto. É uma precaução que penso ser bem-

-vinda: "Se o juiz entender que a prisão domiciliar se mostra inviável ou inade-quada em determinadas situações, poderá substituí-la por medidas alternativas arroladas no já mencionado artigo 319 do CPP". Algo que vai ao encontro des-sas situações excepcionalíssimas, mas talvez não tão excepcionalíssimas, para manter na custódia de regime de encarceramento, substituindo pelo art. 319, mas não pela domiciliar: "Para apurar a situação de guardiã dos seus filhos da mulher presa, dever-se-á dar credibilidade à palavra da mãe". Este sempre é um ponto difícil, é uma situação difícil.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Vossa Excelência me permite? É que não queremos, Ministro Toffoli, permitir

novamente aqui a discricionariedade do juiz: "A senhora não é guardiã e tal". No primeiro momento, temos que dar credibilidade, assim como fazemos nos crimes sexuais: A palavra da vítima é muito importante. Se, depois, provar-se que ela não é guardiã, ela perde o benefício. Entretanto, no primeiro momento, tem que se dar o benefício da dúvida, em homenagem ao bem-estar da criança.

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acórdão188 189 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Entretanto, também estou aberto, se Vossa Excelência quiser subtrair este parágrafo, estou pronto a fazê-lo, em benefício de chegarmos a uma solução harmônica relativamente a este caso.

O Senhor Ministro Dias Toffoli É porque há casos específicos. Eu sempre tenho muitas dúvidas em amarrar

— e já disse isso em votos no Plenário e aqui na Turma —, de maneira objetiva, situações que são extremamente amplas na realidade social. Existem situações de maternidade que, embora não tenha havido a perda do pátrio poder por par-te de uma ação do Estado, a própria criança não quer ficar com a progenitora. A realidade social demonstra isso. Já tive oportunidade de, no passado, quando advoguei em São Paulo, ter atuado também no âmbito da Pastoral da Criança e do Adolescente, acompanhando casos referentes a crianças que tinham difi-culdades totais de restabelecerem os laços com sua própria mãe ou com os pais. Situações de mães que amarravam os filhos para ir trabalhar. Atuei em casos, no Centro Acadêmico 11 de Agosto, em que isso, infelizmente, existe: situações de crianças que são obrigadas pela mãe a trabalhar. Então, são situações sobre as quais o Estado tem que estar atento. Infelizmente, o Estado não dá essa ampla cobertura, e, muitas vezes, entidades de defesa dos direitos humanos ou enti-dades das igrejas, que prestam assessoria e assistência às pessoas carentes, aca-bam substituindo o Estado. Então, essa é uma preocupação que eu realmente tenho; quer dizer, a palavra da mãe não ser tomada de maneira absolutamente verdadeira e objetiva. Talvez, aqui, coubesse uma análise social, uma análise psicológica dessa situação. Certamente — e vejo que a eminente advogada que oficia nessa realidade, no dia a dia, tem conhecimento de como isso eventual-mente poderia funcionar -, a intenção do Ministro Relator é dar à palavra da mãe um peso que o princípio da boa-fé confere.

Por outro lado, há uma questão objetiva, que é a certidão de nascimento. A lei prevê, mas, a meu ver, não pode ser o único e exclusivo fundamento.

Penso que poderíamos deixar a contrario sensu, aqui, ou construir uma so-lução a contrario sensu, naquelas hipóteses em que for inviável a convivência, ou em que não seja possível a convivência da mãe com a criança, ou em que já tiver havido algum tipo de situação passada, não só a perda do pátrio poder, mas também a retirada da guarda, sem a perda do pátrio poder; isso é comum. É algo muito complexo.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Ministro, Vossa Excelência me permite? Sensível à preocupação que ago-

ra acaba de ser enunciada, talvez pudéssemos dar um tratamento semelhante

àquele dado quando se trata de uma progressão de regime prisional, em que o juiz pode, se estiver na dúvida, pedir um exame criminológico.

O Senhor Ministro Dias Toffoli Exatamente.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Então, aqui, podíamos dizer, talvez, o seguinte: Para apurar a situação de

guardiã dos seus filhos, da mulher presa, dever-se-á dar credibilidade à pala-vra da mãe, num primeiro momento. Sem prejuízo, conforme Vossa Excelência agora diz, de uma pesquisa de natureza social, em caso de dúvida, ou se neces-sário for, alguma coisa assim.

O Senhor Ministro Dias Toffoli Evidentemente que o juiz vai ponderar sobre aqueles casos excepcionais.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Claro, e tem as assistentes sociais, que vão verificar isso com relativa facili-

dade. Eu faria essa inclusão, se for satisfatória, ao final.

O Senhor Ministro Dias Toffoli E a fim de dar cumprimento imediato a esta decisão, deverão ser comuni-

cados os presidentes para que prestem informações no prazo de 30 dias, a con-tar de sua publicação, providenciando a análise de todas as prisões de gestantes e mães de crianças, à luz dos parâmetros ora enunciados.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Para que os tribunais saiam da inércia.

O Senhor Ministro Dias Toffoli Esse prazo, pela leitura que estou fazendo, parece um prazo inicial.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Não, é prazo máximo de 30 dias, a contar da publicação da decisão, se ela

prevalecer.

O Senhor Ministro Dias Toffoli É no prazo máximo de 30 dias para que providencie a análise.

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acórdão190 191 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Pois não, Vossa Excelência tem outra sugestão?

O Senhor Ministro Dias Toffoli Prazo de até 30 dias para iniciar a análise.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Para iniciar a análise? Pois não!

O Senhor Ministro Dias Toffoli É só uma questão de redação. Vossa Excelência tem os dados referentes

ao número de pessoas relacionadas e, com certeza, com a experiência que tem, ponderou que 30 dias seria um prazo razoável para essa análise.

Por fim, Vossa Excelência estabelece:

Com vistas a conferir maior agilidade, e sem prejuízo da medida determinada acima,

também deverá ser oficiado ao DEPEN para que comunique aos estabelecimentos pri-

sionais a decisão, cabendo a estes, independentemente de outra provocação, informar

aos respectivos juízos (...).

Uma questão de gestão administrativa da decisão jurisdicional.Estou de acordo. Quanto a oficiar ao Conselho Nacional de Justiça para o acompanhamento,

também me ponho de acordo.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Determinando ao Conselho Nacional de Justiça que faça o exame de saúde

da mulher que ingressa no sistema, para ver se está grávida ou não.

O Senhor Ministro Dias Toffoli E também aqui em relação à custódia.Enfim, com os outros dispositivos que Vossa Excelência coloca, na conclu-

são de voto, eu me encontro de pleno acordo. Acompanho Vossa Excelência. Mais uma vez parabenizo Vossa Excelência, as entidades, os advogados e advo-gadas que vieram à tribuna.

O Senhor Ministro Edson Fachin (Presidente)Ministro Toffoli, apenas para que já possamos tomar a anotação do voto de

Vossa Excelência, os parâmetros que Vossa Excelência está sugerindo o Relator está, portanto, a incorporar, pelo que acabo de depreender?

O Senhor Ministro Dias Toffoli Sim, sim; muito do que Sua Excelência propôs.

O Senhor Ministro Edson Fachin (Presidente)E em relação ao conhecimento parcial que Vossa Excelência se remeteu

apenas ao Superior Tribunal de Justiça?

O Senhor Ministro Dias Toffoli Quanto às demais instâncias, eu estendo, de ofício, a ordem.

O Senhor Ministro Edson Fachin (Presidente)Portanto, alcançando o mesmo resultado?

O Senhor Ministro Dias Toffoli Resultado de abrangência.

O Senhor Ministro Edson Fachin (Presidente)Isso significa que Vossa Excelência está acompanhando o Ministro-Relator

no deferimento imediato de convolar todas as preventivas que satisfizerem es-ses parâmetros em prisão domiciliar.

esc larec imento .

”“

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acórdão192 193 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator) Isso.

O Senhor Ministro Edson Fachin (Presidente)Portanto, Vossa Excelência está se dirigindo ao futuro, mas também ao pre-

sente em relação às prisões preventivas decretadas?

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator) Ao futuro, não sei. Estou contemplando uma situação hic et nunc, presente.

Aquelas presas nessas condições, ao arrepio da Constituição e das Leis, deverão ser imediatamente colocadas sob o regime de prisão domiciliar, sem prejuízo da aplicação das medidas alternativas do artigo 319, ou exclusivamente essas, quando a prisão domiciliar não for possível.

E ressalvo também, eu excluo, aquelas situações às quais eu me referi, quando a mulher tiver cometido o delito, o crime com violência ou grave amea-ça, ou contra o seu filho, enfim, aquelas ressalvas que fiz também.

Observei que o juiz pode examinar. Também há outras situações excepcio-nais, a critério do juiz, eventualmente. Como agora o próprio Ministro Toffo-li muito bem ressaltou, uma mulher que esteja, eventualmente, usando o seu filho menor de 12 anos para o tráfico de drogas, essa é uma situação excep-cionalíssima que deve ponderada pelo juiz. Não estamos tirando totalmente a discricionariedade do juiz para examinar cada caso concreto, mas estamos estabelecendo diretrizes firmes e rigorosas.

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator) Guidelines, como disse o nosso eminente Decano.

O Senhor Ministro Edson Fachin (Presidente)Eu fiz essa indagação a Vossa Excelência, à luz do voto do Ministro Dias

Toffoli, diante do que consta, à página 33, quando o Relator se refere ao estabe-lecimento de parâmetros a serem observados.

Portanto, essa é a razão de indagar se a decisão é prospectiva, mas Vossa Excelência acaba de esclarecer que, na verdade, as autoridades destinatárias das decisões deverão, segundo o voto de Vossa Excelência, cumprir imediata-mente essa decisão.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator) Eventualmente —e isso foi aventado pelo eminente Ministro Gilmar Men-

des, a mim, parece-me perfeitamente possível -, é possível que talvez possamos — claro, seguindo o rito apropriado — editar uma súmula vinculante, se esse entendimento prevalecer. Aí, abarcaremos algumas situações.

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator) Sim, isso depende do Plenário. Claro, eu disse: rito adequado, feitas as pu-

blicações, o chamamento de todos os interessados, o pronunciamento do Mi-nistério Público, do Plenário.

O Senhor Ministro Dias ToffoliDar início a uma proposta de Súmula.

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator) Uma proposta que pode ser, eventualmente, agasalhada ao final, se preva-

lecer esse ponto de vista.

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acórdão194 195 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

O Senhor Ministro Gilmar Mendes Presidente, também gostaria de cumprimentar mais uma vez o eminente

Relator pelo voto agora trazido no mérito e pelo destaque dado à matéria.Parece-me que os ajustes propostos pelo Ministro Toffoli também hão de

ser subscritos. Só lembro, ainda, em relação à questão anterior que discutimos, a da admissibilidade da própria ação, que recentemente, no Plenário, supera-mos um debate antigo sobre o significado do artigo 52, X. Isso se deu até num caso da relatoria do Ministro Dias Toffoli, uma situação bastante singular, a ADI em que se julgava inconstitucional incidentalmente uma dada norma.

Portanto, aqui acabamos por fazer uma equiparação entre aquilo que ocor-re quanto à eficácia erga omnes e efeito vinculante em sede de controle abs-trato e aquilo que hoje também ocorre em sede de controle incidental. É claro que essa evolução que se está a desenhar há de sinalizar também alguma maior abrangência da decisão que aqui se venha a tomar.

Eu percebi, e acho que já há casos concretos, talvez no universo que nós es-tamos discutindo, não abrangemos — discutia isso agora com o Ministro Toffoli

— aquelas pessoas, talvez até maiores de doze anos, mas incapazes, às vezes por de-ficiência, e que estão sob os cuidados da mãe, em que ocorre esse tipo de situação.

O Senhor Ministro Dias ToffoliA lei parece que cometeu um equívoco aqui, porque, em relação aos deficien-

tes sob cuidado da mãe, ela fala em até seis anos de idade. Na realidade, há uma impropriedade do legislador. É até incompatível com o conceito legal (ECA) de criança, que vai até doze anos. O deficiente ficaria limitado a seis anos.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Vossa Excelência se animaria a dar também esse benefício às mães que te-

nham sob sua guarda os deficientes físicos, por prazo indeterminado?

O Senhor Ministro Gilmar Mendes Deficientes que careçam, obviamente.

O Senhor Ministro Dias ToffoliPrazo indeterminado.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Não tenho nenhum problema com relação a isso, acho louvável e está den-

tro do espírito mesmo da Constituição, da proteção dos deficientes.

O Senhor Ministro Dias ToffoliHá os casos, por exemplo, de crianças, adolescentes e até adultos com Sín-

drome de Down sob os cuidados da mãe. Eu tenho um irmão com Down. Real-mente, é transcendental. Eu não me oporia a isso.

O Senhor Ministro Gilmar Mendes Eu proporia então essa abrangência.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Pois não. Eu, aqui, quando falo "diante do exposto, concedo a ordem para

todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de criança", aí ponho em parênteses "artigo 2º do ECA", que é até doze anos, "ou de deficientes físicos".

O Senhor Ministro Dias ToffoliNão só físicos, porque Síndrome de Down não é deficiência física.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Qual seria um termo mais abrangente?

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado.Penso que poderíamos até fazer uma referência à Convenção, subscrita

pelo Brasil, sobre os direitos das pessoas com deficiência, porque ela foi incor-porada ao Direito interno com força e eficácia de norma constitucional.

voto .

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acórdão196 197 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

O Senhor Ministro Gilmar Mendes Norma constitucional.

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado

A Senhora Nathalie Fragoso E Silva Ferro (Advogada) Solicito a palavra, para prestar um esclarecimento pontual sobre essa ques-

tão dos deficientes.

O Senhor Ministro Edson Fachin (Presidente)Se for de fato, porque precisamos concluir o julgamento, e o tempo da sus-

tentação oral Vossa Senhoria já utilizou.

A Senhora Nathalie Fragoso E Silva Ferro (Advogada) Muito breve, se me permite.

O Senhor Ministro Edson Fachin (Presidente)Pois não, vamos ao esclarecimento de fato.

A Senhora Nathalie Fragoso E Silva Ferro (Advogada) A questão da maternidade da pessoa com deficiência é uma reminiscência

da disposição anterior que já vigia no CPP. Esses dois incisos — somente esses dois incisos — foram alterados pelo Marco Legal da Primeira Infância e são, portanto, dispositivos novos. Esse anterior que limita a idade da pessoa com deficiência diz respeito a uma legislação anterior e que, de fato, não foi alterada.

O Senhor Ministro Gilmar Mendes Obrigado!

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado

A Senhora Nathalie Fragoso E Silva Ferro (Advogada) Não faz sentido, de fato, a persistência, pelas razões que os Senhores já

colocaram.

O Senhor Ministro Gilmar Mendes Esse é um aspecto que me parece, então, relevante, mas isso já está devida-

mente encaminhado.

Diante dos vários casos que já discutimos, a mim, parece-me que salta aos olhos — e aí realmente pensarei alto e pedirei ajuda dos Colegas — que aqui se coloca um problema manifestado nos relaxamentos de prisão, nos vários casos aí de prisão provisória, e mesmo depois para os egressos do sistema prisional. Porém, aqui se manifesta de maneira muito contundente, muito enfática. Se formos arrolar os casos que todos nós temos nos gabinetes, temos uma situa-ção que também se revela, Presidente, muito típica: O caso da mãe, que depois de o marido — o cônjuge —, o pai ter sido preso, acorre ao presídio e às vezes leva droga. Os casos muito típicos. E decidimos, temos decidido todos nós, pela ideia da prisão domiciliar.

Até sugeri, que o Ministro Lewandowski falou muito na participação do Conselho Nacional de Justiça, permiti-me, em 1º de dezembro de 2017, a redigir um ofício à Presidente deste Tribunal e do CNJ, eminente Ministra Cármen Lúcia, para dizer que, talvez, faça-se mister discutir algum tipo de programa de apoio ou de resgate social, porque devolvemos essas pessoas para o âmbito domiciliar. Vossa Excelência até disse que em muitos nem sequer essa confi-guração estará bem delineada, diante da destruição mesmo do projeto familiar, mas me parece que isso é um pouco impositivo. Quer dizer, do contrário essas pessoas continuam reféns do próprio processo em que acabaram por se inserir. De modo que deveríamos, talvez, passar uma mensagem aos próprios tribunais, no sentido de buscar apoio psicossocial para essas senhoras.

Então, lembra, nesse ofício, a bem-sucedida experiência que tivemos no chamado projeto "Começar de Novo", a ideia de que essas pessoas fossem inse-ridas em algum programa — certamente haverá em alguns estados mais do que em outros, essa é uma realidade. É fundamental que a simples substituição do encarceramento por essas medidas, especialmente a prisão domiciliar, parece-

-me que venha também acompanhada de algum tipo de suporte, a fim de que se faça realmente o desenlace.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Ministro Gilmar, dentro dessa linha de raciocínio e fazendo eco até ao ofí-

cio que Vossa Excelência mandou à eminente Presidente da Casa e também do CNJ, para que leve adiante medidas de natureza socioeducativas, de reinserção social, talvez aqui, quando falamos em oficiar ao Conselho Nacional de Justiça, para que avalie o cabimento de intervenção, nos termos do artigo 1º, § 1º, II, da lei, sem prejuízo de medidas socioeducativas, enfim, de reinserção social que julgar apropriadas.

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acórdão198 199 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

O Senhor Ministro Gilmar Mendes Está bem.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Algo assim.

O Senhor Ministro Gilmar Mendes Acompanho o Relator.

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Perfeito.

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Pois não. Ministro, eu acato integralmente essa sugestão. Até pensei que

isso estivesse implícito, mas não está. Já vi que não está, mas vamos explicitar, explicitarei.

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado

O Senhor Ministro Dias ToffoliO próprio Superior Tribunal de Justiça.

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado

O Senhor Ministro Dias ToffoliNão, não. Não cheguei a adentrar no prazo.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Não, Sua Excelência o Ministro Toffoli diz: ao invés "de providencie a aná-

lise", para "iniciar a análise".

ad i tamentoao voto .

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acórdão200 201 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Pois não.

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado

O Senhor Ministro Dias ToffoliQue deem cumprimento no prazo de 60 dias.

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)De 60 dias; "que deem cumprimento", nada de "análise", concordo com

Vossa Excelência. Porque "análise" é termo muito vago. Que deem cumprimen-to à presente decisão no prazo de "X" dias, a critério de Vossas Excelências.

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Acrescento.

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)Pois não. Já estão incluídas na parte dispositiva, Ministro Celso. Quanto ao

prazo, 60 dias é razoável, não é?

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado

O Senhor Ministro Dias ToffoliPrazo máximo de 60 dias.

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado

O Senhor Ministro Ricardo Lewandowski (Relator)As Corregedorias estão aparelhadas para isso.

O Senhor Ministro Celso De Mello: Cancelado

O Senhor Ministro Edson Fachin (Presidente)Ao votar, eu principio reiterando os cumprimentos ao eminente Ministro-

Relator, Ministro Ricardo Lewandowski, que recebeu justos e merecidos elo-gios de todos os seus Pares, aos quais também me associo, pelo ousio e funda-mentação sólidos com os quais brindou este Colegiado nesta tarde.

Cumprimento também os ilustres Ministros que acompanharam o voto de Vossa Excelência. Vossa Excelência, demonstrando grandeza de espírito, aco-lheu um conjunto de observações e ponderações que foram dirigidas a Vossa Excelência. Portanto, até este momento, formou-se a maioria já consolidada de quatro votos, no sentido de acolher o pedido alternativo que foi feito na petição inicial, visto que o pedido principal era a determinação da revogação da pri-são preventiva. O voto de Vossa Excelência, já majoritariamente acompanhado, acolhe o pedido alternativo de substituição da prisão preventiva decretada con-tra todas as gestantes pela prisão domiciliar.

Este Colegiado também foi brindado pelas sustentações orais aquilevadas a efeito, pelas contribuições e também pela compreensão da limi-

tação do tempo para que esse julgamento principiasse e, como vai ocorrer, ter-minasse, na data de hoje, realizando, portanto, este Supremo Tribunal Federal, quer se concorde ou não com essa decisão, mas realizando a sua eficaz presta-ção jurisdicional à luz de interesses legítimos.

Eu parto, em meu voto, que estou tomando a liberdade de fazer chegar às mãos de Vossas Excelências — e também colocaria à disposição dos ilustres patronos e também das ilustres advogadas que iluminaram com suas sustenta-ções e com seus pronunciamentos esta sessão -, das mesmas premissas, embora, peço todas as vênias, para votar numa extensão distinta e também com uma

antec ipaçãoao voto .

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acórdão202 203 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

fundamentação diversa, embora, como ver-se-á, por evidente, restarei vencido nesta limitação que sugiro.

Não vou ler as doze páginas da declaração de voto. Apenas vou perpassar os diversos tópicos para deixar evidenciado, com toda a licença que peço ao eminente Relator, esse dissenso parcial em relação ao acolhimento que, com sensibilidade e solidez, foi recebido pelo Ministro Ricardo Lewandowski.

O Senhor Ministro Edson Fachin Saúdo, inicialmente, o acutíssimo voto que veio de proferir o e. Ministro

Ricardo Lewandowski.Peço vênia a Sua Excelência, no entanto, para registrar a convergência no

resultado, que me leva à concessão da ordem, mas com extensão distinta e fun-damento diverso.

Tal como consignou o e. Ministro Ricardo Lewandowski, tenho que o Có-digo de Processo Penal, ao prever, em seu art. 318, a substituição da prisão pre-ventiva pela domiciliar, não concedeu uma faculdade irrestrita ao magistrado como uma leitura isolada do dispositivo poderia sugerir. No entanto, tampouco se poderiam invocar disposições de tratados de direitos humanos para assentar que, ante a condição de gestante, não haveria outra solução ao magistrado que não a de determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar.

Com efeito, o art. 318 do Código de Processo Penal tem a seguinte redação:

Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for:

I. maior de 80 (oitenta) anos;

II. extremamente debilitado por motivo de doença grave;

III. imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade

ou com deficiência;

IV. gestante;

V. mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos;

VI. homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos

de idade incompletos.

voto -voga l .

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acórdão204 205 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabe-

lecidos neste artigo.

Amparados nos incisos IV e V, os impetrantes, Eloísa Machado de Almeida, Bruna Soares Angotti, André Ferreira, Nathalie Fragoso e Hilem Oliveira, advo-gados membros do Coletivo de Advogados em Direitos Humanos CADHu, ago-ra amici curiae, sustentam, em síntese, que as mulheres em tais condições so-frem duplamente as consequências de um encarceramento cujos limites foram reconhecidos por esta Corte na ADPF 347, Rel. Ministro Marco Aurélio. Por essa razão, em seu entender, o cárcere, na forma como recebe e abriga gestantes, mães e crianças, é ilegal, inconstitucional e inconvencional (eDOC 1, p. 30).

É certo que o sistema penitenciário nacional foi caracterizado, ante o qua-dro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e da falência de políticas públicas, como estado de coisas in-constitucional. No entanto, tal como se consignou naquela decisão, não foram por isso revogadas as disposições constantes do Código de Processo Penal. Ao contrário, o sentido que norteou os debates travados no Tribunal quando do julgamento da ADPF 347 foi o de, face à realidade dos fatos, interpretar a legis-lação à luz dos direitos fundamentais de todos os presos. Foi essa a orientação que, aliás, foi dirigida a todos os juízes brasileiros.

Nessa dimensão, as ponderações a serem feitas pelo magistrado devem ser sempre concretamente realizadas. O estado de coisas inconstitucional não impli-ca automaticamente o encarceramento domiciliar. Apenas à luz dos casos concre-tos é que é possível avaliar todas as demais alternativas para que, como prevê a Declaração de Kiev sobre a Saúde das Mulheres Encarceradas, o encarceramento de mulheres grávidas ou com crianças menores seja reduzido ao mínimo. Essa diretriz decorre do próprio Código de Processo Penal, ao prever, para a prisão pre-ventiva, que ela só poderá ser aplicada, quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 282, § 6º, do Código de Processo Penal).

Não se dessume do Código de Processo Penal ou das normas internacio-nais de proteção à pessoa humana, diretriz interpretativa que inviabilize ao magistrado a aplicação, desde que justificada e excepcional, da prisão preven-tiva. No entanto, tal como asseverou o e. Ministro Ricardo Lewandowski, isso não significa que a sua substituição pela domiciliar fique a critério exclusivo do magistrado.

As alterações do Código de Processo Penal promovidas pela Lei 13.257/2016, que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância, sinaliza para a teleologia de sua aplicação: um plus em relação a mera faculdade, sem, porém, consubstanciar um dever imediato.

Com efeito, a Lei vem a concretizar o disposto no art. 227 que dispõe ser de-ver da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educa-ção, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

No mesmo sentido, a Declaração de Kiev (2009), em seu artigo 4.2, estabe-lece que sempre que os interesses das crianças estiverem envolvidas, o melhor interesse da criança deve ser o fator determinante em relação ao encarceramento de mulheres, o que implica pôr os interesses da criança em absoluta prioridade.

Tais dispositivos são objeto de detalhada proteção no âmbito da Convenção de Direitos das Crianças. Com efeito, logo no artigo 3.1 da Convenção, estabe-lece-se que todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades administra-tivas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança.

Nas Recomendações no Dia de Discussões sobre Crianças de Pais Encar-cerados, o Comitê dos Direitos da Criança, órgão responsável por interpretar a Convenção, expressamente recomendou aos Estados o seguinte (parágrafo 30):

O Comitê enfatiza que no sentenciamento dos pais ou responsáveis, medidas alter-

nativas à prisão devem, sempre que possível, ser fixadas em lugar de encarceramento,

inclusive na fase provisória. Alternativas à detenção devem ser disponibilizadas e apli-

cadas caso a caso, com consideração plena acerca dos possíveis impactos de sentenças

diferentes em relação ao melhor interesse da criança afetada.

É evidente que tais princípios foram acolhidos plenamente na legislação brasileira. O art. 4º da Lei 13.257/2016 prevê as seguintes medidas para concre-tizar o direito das crianças com absoluta prioridade:

Art. 4º As políticas públicas voltadas ao atendimento dos direitos da criança na pri-

meira infância serão elaboradas e executadas de forma a:

I. atender ao interesse superior da criança e à sua condição de sujeito de direitos e de

cidadã;

II. incluir a participação da criança na definição das ações que lhe digam respeito, em

conformidade com suas características etárias e de desenvolvimento;

III. respeitar a individualidade e os ritmos de desenvolvimento das crianças e valori-

zar a diversidade da infância brasileira, assim como as diferenças entre as crianças em

seus contextos sociais e culturais;

”“

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acórdão206 207 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

IV. reduzir as desigualdades no acesso aos bens e serviços que atendam aos direitos

da criança na primeira infância, priorizando o investimento público na promoção da

justiça social, da equidade e da inclusão sem discriminação da criança;

V. articular as dimensões ética, humanista e política da criança cidadã com as evidên-

cias científicas e a prática

profissional no atendimento da primeira infância;

VI. adotar abordagem participativa, envolvendo a sociedade, por meio de suas orga-

nizações representativas, os profissionais, os pais e as crianças, no aprimoramento da

qualidade das ações e na garantia da oferta dos serviços;

VII. articular as ações setoriais com vistas ao atendimento integral e integrado;

VIII. descentralizar as ações entre os entes da Federação;

IX. promover a formação da cultura de proteção e promoção da criança, com apoio

dos meios de comunicação social.

Parágrafo único. A participação da criança na formulação das políticas e das ações

que lhe dizem respeito tem o objetivo de promover sua inclusão social como cidadã e

dar-se-á de acordo com a especificidade de sua idade, devendo ser realizada por pro-

fissionais qualificados em processos de escuta adequados às diferentes formas de ex-

pressão infantil.”

Como se observa da leitura de tais dispositivos, é a partir do direito da criança, pensado em absoluta prioridade, que se deve analisar o direito de li-berdade invocado no presente habeas corpus , nos termos em que invocado na própria inicial da impetração Não há dúvidas que as mulheres, mas também os homens presos, nos termos do art. 318, VI, do CPP, têm direito à vida familiar e à reinserção social. O instrumento previsto pelo art. 318, no entanto, destina-se à avaliação concreta, feita pelo juiz da causa, do melhor interesse da criança.

Nesta perspectiva, para corroborar, trago à baila as regras sobre a situação das mulheres gestantes, com filhos/as e lactantes na prisão inseridos nas Re-gras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade Para Mulheres Infratoras, conhecidas como Regras de Bangkok (2010), complementando a regra 23 das Regras mínimas para o trata-mento de reclusos.

Regra 231. Nos estabelecimentos penitenciários para mulheres devem existir instalações es-

peciais para o tratamento das reclusas grávidas, das que tenham acabado de dar à luz

e das convalescentes. Desde que seja possível, devem ser tomadas medidas para que o

parto tenha lugar num hospital civil. Se a criança nascer num estabelecimento peni-

tenciário, tal fato não deve constar do respectivo registro de nascimento.

2. Quando for permitido às mães reclusas conservar os filhos consigo, devem ser to-

madas medidas para organizar um inventário dotado de pessoal qualificado, onde as

crianças possam permanecer quando não estejam ao cuidado das mães.

Regra 481. Mulheres gestantes ou lactantes deverão receber orientação sobre dieta e saúde

dentro de um programa a ser elaborado e supervisionado por um profissional da saú-

de qualificado. Deverão ser oferecidos gratuitamente alimentação adequada e pontual,

um ambiente saudável e oportunidades regulares de exercícios físicos para gestantes,

lactantes, bebês e crianças.

2. Mulheres presas não deverão ser desestimuladas a amamentar seus filhos/as, salvo

se houver razões de saúde específicas para tal.

3. As necessidades médicas e nutricionais das mulheres presas que tenham recente-

mente dado à luz, mas cujos/as filhos/as não se encontram com elas na prisão, deverão

ser incluídas em programas de tratamento.

Regra 49Decisões para autorizar os/as filhos/as a permanecerem com suas mães na prisão de-

verão ser fundamentadas no melhor interesse da criança. Crianças na prisão com suas

mães jamais serão tratadas como presas.

Regra 50Mulheres presas cujos/as filhos/as estejam na prisão deverão ter o máximo possível de

oportunidades de passar tempo com eles.

Regra 511. Crianças vivendo com as mães na prisão deverão ter acesso a serviços permanentes

de saúde e seu desenvolvimento será supervisionado por especialistas, em colaboração

com serviços de saúde comunitários.

2. O ambiente oferecido para a educação dessas crianças deverá ser o mais próximo

possível àquele de crianças fora da prisão.

Regra 521. A decisão do momento de separação da mãe de seu filho deverá ser feita caso a caso

e fundada no melhor interesse da criança, no âmbito da legislação nacional pertinente.

2. A remoção da criança da prisão deverá ser conduzida com delicadeza, e apenas

quando alternativas de cuidado da criança tenham sido identificadas e, no caso de pre-

sas estrangeiras, com consulta aos funcionários/as consulares.

3. Uma vez separadas as crianças de suas mães e colocadas com familiares ou paren-

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acórdão208 209 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

tes, ou sob outras formas de cuidado, serão oferecidas às mulheres presas o máximo

de oportunidades e condições para encontrar-se com seus filhos e filhas, quando es-

tiver sendo atendido o melhor interesse das crianças e a segurança pública não for

comprometida.”

A forma de se avaliar esse melhor interesse não é medida que comporta uma avaliação geral e abstrata. Como consta da recomendação do Comitê de Direito das Crianças e das Regras de Bangkok, apenas caso a caso é que o melhor interes-se da criança pode ser avaliado. O artigo 12.1 da Convenção de Direito das Crian-ças estabelece que os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se em consideração essas opiniões, em função da idade e maturidade da criança.

No ponto seguinte, a Convenção prevê que deve ser garantida a criança a opor-tunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que a afete, quer diretamente quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado.

É de se observar que, quando da elaboração da Convenção, foi suscitada a possibilidade de consignar no texto do tratado os assuntos e os temas em que se poderia ouvir a criança. No entanto, a visão consagrada é a mais ampla possí-vel, a fim de permitir, caso a caso, a oitiva cuidadosa da criança. Deve-se regis-trar, ademais, que, no Comentário Geral n. 12, o Comitê de Direito das Crianças recomenda expressamente aos Estados que adotem medidas apropriadas para que sejam fixados parâmetros a serem destinados aos tomadores de decisão acerca das opiniões da criança e das consequências para sua vida (§ 33).

É precisamente quanto a essa obrigação que a faculdade estabelecida pelo art. 318 não consubstancia liberalidade do magistrado. É evidente que a decisão que fixa a custódia cautelar ou definitiva de um dos pais ou responsáveis atinge a vida da criança e, como tal, sempre que possível, deve ela manifestar-se sobre seu destino. Situações haverá em que o melhor interesse da criança exigirá a custódia cautelar, em outras talvez não. Apenas à luz das especificidades dos casos concretos é que será possível ao juiz determinar qual será o melhor inte-resse da criança.

De outro lado, no caso das gestantes, a preocupação com a infância desti-na-se sobretudo à saúde e à alimentação adequadas que devem ser garantidas à mãe. Se, como prevê a Declaração de Kiev, deve ser compensada a flagrante desigualdade de gênero a que estão sujeitas as mulheres no estabelecimento da política pública, então é à luz dessa particular circunstância que o cumpri-mento das regras mínimas de tratamento das pessoas encarceradas deve ser estimado pelo juiz, nas concretas condições em que se encontram as mulheres.

Noutras palavras, mesmo no caso das mulheres gestantes, a primazia do direito à infância exige a individualização das concretas circunstâncias em que a pri-são cautelar poderia ser substituída pela domiciliar.

Face a essas limitações, não há como se deferir, tal como requerida, a or-dem em habeas corpus . É preciso reconhecer, porém, que, na linha do suscitou o próprio Ministério Público, o artigo 318 do Código de Processo Penal com-porta mais de uma interpretação, sendo que apenas uma, a que acolhe o inte-resse primordial da infância, é constitucionalmente conforme. Por essa razão, e nessa extensão, é que o deferimento da ordem deve ser fixado.

Ante o exposto, defiro a ordem de habeas corpus coletivo exclusivamente para dar interpretação conforme aos incisos IV, V e VI do art. 318 do Código de Pro-cesso Penal, a fim de reconhecer, como única interpretação constitucionalmente adequada, a que condicione a substituição da prisão preventiva pela domiciliar à análise concreta, justificada e individualizada, do melhor interesse da criança, sem revogação ou revisão automática das prisões preventivas já decretadas.

Dê-se conhecimento ao Conselho Nacional de Justiça para a adoção de providências cabíveis (art. 1º, § 1º, II e III, da Lei n. 12.106/2009).

É como voto.

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acórdão 211

d ec i sãoA Turma, preliminarmente, por votação unânime, entendeu cabível a impe-

tração coletiva e, por maioria, conheceu do pedido de habeas corpus, vencidos os Ministros Dias Toffoli e Edson Fachin, que dele conheciam em parte. Prosse-guindo no julgamento, a Turma, por maioria, concedeu a ordem para determi-nar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar — sem prejuízo da apli-cação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP — de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas, ou mães de crianças e deficien-tes sob sua guarda, nos termos do art. 2º do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiências (Decreto Legislativo 186/2008 e Lei 13.146/2015), relacionadas nesse processo pelo DEPEN e outras autoridades estaduais, en-quanto perdurar tal condição, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, as quais deverão ser devidamente fundamen-tadas pelos juízes que denegarem o benefício. Estendeu a ordem, de ofício, às demais mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e de pessoas

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acórdão212 213 pela liberdade, a história do habeas corpus coletivo 143.641

com deficiência, bem assim às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional, observadas as restrições previstas acima. Quando a detida for tecnicamente reincidente, o juiz deverá proceder em atenção às circunstâncias do caso concreto, mas sempre tendo por norte os princípios e as regras acima enunciadas, observando, ademais, a diretriz de excepcionalidade da prisão. Se o juiz entender que a prisão domiciliar se mos-tra inviável ou inadequada em determinadas situações, poderá substituí-la por medidas alternativas arroladas no já mencionado art. 319 do CPP. Para apurar a situação de guardiã dos filhos da mulher presa, dever-se-á dar credibilidade à palavra da mãe. Faculta-se ao juiz, sem prejuízo de cumprir, desde logo, a presente determinação, requisitar a elaboração de laudo social para eventual reanálise do benefício. Caso se constate a suspensão ou destituição do poder familiar por outros motivos que não a prisão, a presente ordem não se aplicará. A fim de se dar cumprimento imediato a esta decisão, deverão ser comunicados os Presidentes dos Tribunais Estaduais e Federais, inclusive da Justiça Militar Estadual e Federal, para que prestem informações e, no prazo máximo de 60 dias a contar de sua publicação, implementem de modo integral as determina-ções estabelecidas no presente julgamento, à luz dos parâmetros ora enuncia-dos. Com vistas a conferir maior agilidade, e sem prejuízo da medida determi-nada acima, também deverá ser oficiado ao DEPEN para que comunique aos estabelecimentos prisionais a decisão, cabendo a estes, independentemente de outra provocação, informar aos respectivos juízos a condição de gestante ou mãe das presas preventivas sob sua custódia. Deverá ser oficiado, igualmente, ao Conselho Nacional de Justiça — CNJ, para que, no âmbito de atuação do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas, avalie o cabimento de in-tervenção nos termos preconizados no art. 1º, § 1º, II, da Lei 12.106/2009, sem prejuízo de outras medidas de reinserção social para as beneficiárias desta de-cisão. O CNJ poderá ainda, no contexto do Projeto Saúde Prisional, atuar junto às esferas competentes para que o protocolo de entrada no ambiente prisional seja precedido de exame apto a verificar a situação de gestante da mulher. Tal diretriz está de acordo com o Eixo 2 do referido programa, que prioriza a saú-de das mulheres privadas de liberdade. Os juízes responsáveis pela realização das audiências de custódia, bem como aqueles perante os quais se processam ações penais em que há mulheres presas preventivamente, deverão proceder à análise do cabimento da prisão, à luz das diretrizes ora firmadas, de ofício. Em-bora a provocação por meio de advogado não seja vedada para o cumprimen-to desta decisão, ela é dispensável, pois o que se almeja é, justamente, suprir falhas estruturais de acesso à Justiça da população presa. Cabe ao Judiciário

adotar postura ativa ao dar pleno cumprimento a esta ordem judicial. Nas hi-póteses de descumprimento da presente decisão, a ferramenta a ser utilizada é o recurso, e não a reclamação, como já explicitado na ADPF 347. Tudo nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro Edson Fachin. Falaram: pelas pacientes, o Dr. Carlos Eduardo Barbosa Paz, Defensor Público-Geral Federal, pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHU), as Dras. Eloisa Machado de Almeida e Nathalie Fragoso e Silva Ferro; pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, o Dr. Rafael Muneratti; pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, o Dr. Pedro Paulo Carriello; pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, pelo Instituto Terra Trabalho e Cidadania

– ITTC e Pastoral Carcerária, a Dra. Débora de Lima; pelo Instituto Alana, o Dr. Pedro Affonso Duarte Hartung; pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), a Dra. Luciana Simas; e pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), a Dra. Dora Cavalcanti. Presidência do Ministro Edson Fachin. 2ª Turma, 20.2.2018.

Presidência do Senhor Ministro

Edson Fachin.

Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli.

Subprocurador-Geral da República,

Dr. Paulo Gustavo Gonet Branco.

Ravena Siqueira Secretária

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