Pela Restauração Intelectual Do Brasil

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Pela restauração intelectual do Brasil Olavo de Carvalho Diário do Comércio, 4 de setembro de 2006 Os artigos que aqui publiquei em 13 e 27 de fevereiro (http://www.olavodecarvalho.org/semana/060213dc.htm e http://www.olavodecarvalho.org/semana/060227dc.htm ) rendem até hoje cartas e perguntas que não posso responder uma a uma. Elas refletem não só o anseio inatendido de conhecimento por parte de tantos estudantes brasileiros, mas uma necessidade mais profunda e geral. Um país não pode sobreviver por muito tempo sem alguma vida intelectual na qual ele se enxergue e se reconheça como unidade histórica, cultural e espiritual. Isso falta totalmente no Brasil de hoje. As discussões públicas entre pessoas supostamente letradas perdem-se em fatos isolados, em tagarelice ideológica sem nenhum proveito ou na exteriorização fortuita de impressões grupais totalmente alienadas. Já não apreendem nem a nação como conjunto, nem muito menos a sua situação no mundo, na civilização, na História. O Brasil tornou-se invisível a si mesmo, e na treva geral crescem monstros. Talvez o mais feio deles seja justamente a esperança cretina de livrar-se de todos os outros a curto prazo, mediante ações práticas na esfera política, saltando sobre a necessidade prévia da restauração intelectual. Nenhum ser humano ou país está mais louco do que aquele que acredita poder resolver todos os seus problemas primeiro, para tornar-se inteligente depois. A inteligência não é o adorno do vitorioso, é o caminho da vitória. Não é a cereja do bolo, é a fórmula do bolo. Quando chegarão os brasileiros a compreender uma coisa tão óbvia? Quando chegarão a compreender que nem tudo pode ser resolvido com formulinhas prontas, com pragmatismos rotineiros, com improvisos imediatistas ou mesmo com técnicas da moda, por avançadas que sejam, se não há por trás delas uma inteligência bem formada, poderosa, capaz de transcendê-las infinitamente e por isso, só por isso, capaz de manejá-las com acerto? A sólida estupidez do petismo triunfante é a culminação de pelo menos cem anos de desprezo ao conhecimento.

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Artigo do Olavo de Carvalho.

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Pela restaurao intelectual do BrasilOlavo de CarvalhoDirio do Comrcio, 4 de setembro de 2006Os artigos que aqui publiquei em 13 e 27 de fevereiro (http://www.olavodecarvalho.org/semana/060213dc.htm e http://www.olavodecarvalho.org/semana/060227dc.htm) rendem at hoje cartas e perguntas que no posso responder uma a uma. Elas refletem no s o anseio inatendido de conhecimento por parte de tantos estudantes brasileiros, mas uma necessidade mais profunda e geral. Um pas no pode sobreviver por muito tempo sem alguma vida intelectual na qual ele se enxergue e se reconhea como unidade histrica, cultural e espiritual. Isso falta totalmente no Brasil de hoje. As discusses pblicas entre pessoas supostamente letradas perdem-se em fatos isolados, em tagarelice ideolgica sem nenhum proveito ou na exteriorizao fortuita de impresses grupais totalmente alienadas. J no apreendem nem a nao como conjunto, nem muito menos a sua situao no mundo, na civilizao, na Histria. O Brasil tornou-se invisvel a si mesmo, e na treva geral crescem monstros. Talvez o mais feio deles seja justamente a esperana cretina de livrar-se de todos os outros a curto prazo, mediante aes prticas na esfera poltica, saltando sobre a necessidade prvia da restaurao intelectual. Nenhum ser humano ou pas est mais louco do que aquele que acredita poder resolver todos os seus problemas primeiro, para tornar-se inteligente depois. A inteligncia no o adorno do vitorioso, o caminho da vitria. No a cereja do bolo, a frmula do bolo. Quando chegaro os brasileiros a compreender uma coisa to bvia? Quando chegaro a compreender que nem tudo pode ser resolvido com formulinhas prontas, com pragmatismos rotineiros, com improvisos imediatistas ou mesmo com tcnicas da moda, por avanadas que sejam, se no h por trs delas uma inteligncia bem formada, poderosa, capaz de transcend-las infinitamente e por isso, s por isso, capaz de manej-las com acerto? A slida estupidez do petismo triunfante a culminao de pelo menos cem anos de desprezo ao conhecimento. A aposta obsessivamente repetida no poder mgico da ignorncia esperta levou finalmente ao resultado inevitvel: a bancarrota cultural, moral e poltica. No h nada, nada mais urgente, neste pas, do que criar uma gerao de estudantes altura das responsabilidades da inteligncia. Ao dizer isso, estou consciente de pedir urgncia para uma tarefa que, por sua natureza, de longussimo prazo. A vida intelectual no se improvisa: ela resulta da confluncia feliz de inumerveis trajetos existenciais pessoais numa nova linguagem comum laboriosamente construda com materiais absorvidos, a duras penas, de tradies milenares. Quando a urgncia imperiosa vem amarrada demora invencvel, o esprito humano testado at o mximo da sua resistncia. Nada mais difcil do que aliar a intensidade do esforo contnuo longa espera de resultados incertos. Contra o desespero em tais circunstncias, o nico remdio est na frmula de Goethe: urgente ter pacincia. Aos leitores deste jornal, empresrios na maioria, digo sem rodeios: a responsabilidade de vocs nisso enorme. As universidades tornaram-se instrumentos do crime organizado, empenhados em tapar bocas, paralisar conscincias, destruir talentos, perverter vocaes, secar todas as fontes de uma restaurao possvel e, claro, gastar dinheiro pblico. Custam caro e s servem para o mal. preciso inventar o quanto antes novas formas de estruturao social da vida intelectual e torn-las economicamente viveis. S o empresariado pode tomar essa iniciativa. S ele tem capacidade de organizao e de aglutinao de recursos para isso. O sistema dos think tanks talvez funcione, se assimilado com a devida seriedade e adaptado eficazmente s condies brasileiras. Os modelos da Heritage Foundation, da Atlas Foundation, do Hudson Institute esto a para ser estudados. Nos EUA eles tornaram-se centros irradiantes de energia positiva capaz de contrabalanar, e com freqncia vencer, o ativismo imbecilizante dos comissrios-do-povo universitrios. ***Enquanto isso, posso sugerir, aos candidatos a membros de uma hipottica intelectualidade brasileira do futuro, algumas normas gerais que talvez os ajudem, na escurido ambiente, a encontrar o caminho. A formao da inteligncia se d em dois planos simultneos: o propriamente intelectual, ou cognitivo, e o espiritual, ou inspiracional. O que voc sabe depende de quem voc quer ser; o modelo do que voc pode ser depende do que voc sabe. A ligao entre os dois planos ignorada pelo ensino atual porque ele nem mesmo entende que existe uma dimenso espiritual, embora s vezes fale dela, at demais, confundindo-a com o simples culto religioso, com a moral ou com a psicologia.***No plano intelectual, o estudante deve esforar-se para obter a mais alta qualificao possvel, adotando como modelos da sua auto-educao as prticas melhores registradas historicamente: as da Academia platnica, do Liceu aristotlico, da universidade europia no sculo XIII (com seus ecos residuais na filosofia crist moderna, por exemplo La Vie Intellectuelle de A. D. Sertillanges e Conseils sur la Vie Intellectuelle de Jean Guitton), da intelectualidade superior alem no sculo XIX e austraca no comeo do sculo XX (tal como descrita, por exemplo, nos depoimentos de Eric Voegelin, Otto Maria Carpeaux e Marjorie Perloff) e, last not least, da tradio americana de liberal education (v., alm do clssico How to Read a Book de Mortimer J. Adler, The Trivium, de Sister Miriam Joseph, Another Sort of Learning, de James V. Schall, e The House of Intellect, de Jacques Barzun). O objetivo primeiro da educao superior negativo e dissolvente: consiste em desaculturar, no sentido antropolgico do termo: desfazer os laos que prendem o estudante sua cultura de origem, s noes consagradas do nosso tempo, iluso corrente da superioridade do atual, e fazer dele um habitante de todos os tempos, de todas as culturas e civilizaes. No se pode chegar a nada sem um perodo de confuso e relativismo devido ampliao ilimitada dos horizontes. No basta saber o que pensaram Abraho e Moiss, Confcio e Lao-Tseu, Pricles e Scrates, ou os monges da Era Patrstica: preciso um esforo para perceber o que eles perceberam, imaginar o que eles imaginaram, sentir o que eles sentiram. No se preocupe em arbitrar, julgar e concluir. Em todas as idias que resistiram ao tempo o bastante para chegar at ns h um fundo de verdade. Apegue-se a esse fundo e faa sua coleo de verdades, no se impressionando muito com as contradies aparentes ou reais. Aprenda a desejar e amar a verdade como quer que ela se apresente. Acostume-se a conviver com as contradies, j que voc no ter tempo, nesta vida, para resolver seno um nmero insignificante delas. A educao universitria brasileira toda ela anti-educao, j que visa somente a inculcar no aluno a mentalidade dominante da classe acadmica atual (quando no o slogan partidrio da semana), julgando o passado luz do presente e nunca o presente luz do passado. Isso prender o estudante num provincianismo temporal -- ou cronocentrismo, como costumo cham-lo -- ainda mais lesivo do que qualquer etnocentrismo geogrfico, racial, religioso ou poltico. Todas as pocas so iguais perante Deus, ensinava Leopold von Ranke. A inteligncia humana tende poderosamente universalidade, mas s se aproxima dela vencendo as barreiras culturais do espao e do tempo, uma por uma. Resista ao triunfalismo presunoso da atualidade. Quando ler o que algum pensador de hoje acha de Plato, pergunte o que Plato acharia dele. Em noventa e nove por cento dos casos voc ver que o suposto progresso do conhecimento veio amplamente neutralizado por um concomitante progresso da ignorncia. Jean Fourasti, em Les Conditions de lEsprit Scientifique, observava que, ao lado da histria do saber, seria preciso escrever a histria do esquecimento. Comece j. No digo isso genericamente. de uma norma muito prtica que estou falando. Quando ler os clssicos, use tudo, absolutamente tudo o que vier a aprender com eles como instrumento analtico para a compreenso do presente, includa nisso a sua prpria vida pessoal. Fora o contedo filosfico e sapiencial mais geral, h tesouros de sociologia, de psicologia e de cincia poltica em Confcio, em Shnkara, em Plato, em Aristteles, em Dante, em Sto. Toms, em Shakespeare. Uma longa convivncia com esses sbios lhe dar uma idia do que seja a verdadeira autoridade intelectual, da qual seus professores na universidade so caricaturas grotescas. No se deixe iludir por erros de detalhe que a cincia moderna se gaba de ter superado. Quase sempre a superao ilusria e s serve para, logo adiante, ser superada por sua vez. Voc l nos manuais, por exemplo, que Galileu superou a fsica de Aristteles. Durante quatro sculos essa bobagem foi repetida como verdade terminal. S por volta de 1950 os estudiosos perceberam que a fsica de Aristteles no era uma fsica, mas uma metodologia cientfica geral, bem mais sutil do que Galileu poderia jamais ter percebido, e muito bem adequada s necessidades da cincia mais recente. Os famosos erros assinalados por Galileu existiam, mas eram detalhes secundrios que no afetavam de maneira alguma o conjunto da proposta. Qualquer que seja a questo em estudo, busque atender a trs condies: (1) a abrangncia mxima da informao bsica, (2) o conhecimento do status quaestionis (j explico) e (3) a variedade das perspectivas. A abrangncia da informao obtm-se trocando a absoro casual pela pesquisa sistemtica das fontes. Uma lista bibliogrfica o mais completa possvel o melhor comeo em qualquer investigao. Se voc souber somente os ttulos e datas dos livros publicados sobre determinado assunto, j ter uma viso inicial bem apropriada do problema antes mesmo de ler o primeiro deles. No se perca, porm, na multido de trabalhos acadmicos atuais, a maioria deles produzida s por exigncia administrativa ou carreirismo. Comece com as obras mais antigas, e isso facilitar a seleo das mais recentes. O status quaestionis, estado da questo a evoluo dos debates sobre um determinado ponto desde a origem da discusso at hoje. O conhecimento do status quaestionis distingue o erudito profissional do palpiteiro amador. (Todos os professores universitrios que conheo no Brasil, com excees que no chegam a meia dzia, so palpiteiros amadores. Esquea-os. Aprenda trs ou quatro lnguas e s use o portugus para ler material universitrio de Portugal, que muito bom em todas as reas. Se no puder sair do Brasil fisicamente, saia intelectualmente. O que h de valioso na nossa cultura passada assimila-se em dois anos no mximo, com exceo da obra de Mrio Ferreira dos Santos, que leva uma vida inteira, mas que voc pode carregar debaixo do brao na sua fuga para fora do pas ou para dentro de si mesmo.) A variedade das perspectivas consiste na habilidade de pensar um problema exatamente como o pensaram os diversos autores que trataram dele. Isso exige algo mais que leitura inteligente. Exige a capacidade de voc se identificar imaginativamente com a viso de cada um enquanto a est estudando, sem se preocupar em julg-la ou contest-la, mas sabendo que mais cedo ou mais tarde ela ser julgada e contestada automaticamente quando voc passar leitura de outros autores. Deixe que a discusso, na sua mente, v se montando sozinha, aos poucos, com os vrios materiais contraditrios que voc colhe das leituras. No momento em que a acumulao de material chegar a abranger o campo inteiro do status quaestionis, voc ter uma experincia intelectual maravilhosa: quando os vrios ngulos pelos quais voc enxerga um problema no refletem apenas a sua imaginao, mas tudo aquilo que de melhor e mais inteligente se escreveu a respeito ao longo dos tempos, as concluses a que voc chega j no so meras opinies pessoais elas j so conhecimento em sentido pleno. Isso no quer dizer que voc descobriu a verdade, claro, mas significa que se aproximou dela tanto quanto possvel parte mais dedicada e mais sria da humanidade. Seu horizonte j no ser o da subjetividade individual, ser o do conhecimento humano. Voc talvez ainda seja um ano. Mas j estar sentado sobre os ombros de gigantes.***Para avanar no plano espiritual, o estudante deve estar aberto realidade do transcendente e do infinito, tendo ante essa dimenso a atitude gnoseologicamente apropriada e psicologicamente obrigatria de admirao contemplativa, temor reverencial e confiana existencial. Para muitas pessoas hoje em dia, sobretudo os ditos intelectuais, essa percepo inacessvel e at inconcebvel. No por coincidncia, so as pessoas que mais opinam a respeito, umas teorizando a sua prpria incapacidade sob a forma de tagarelice materialista, cientificista, agnstica etc., outras tratando de disfar-la por meio de conversas estereotipadas sobre religio, estados msticos, esoterismo, alquimia etc. Essas duas modalidades de tergiversao podem requerer muito estudo, e vidas inteiras se gastam no seu cultivo. O estudante deve aprender a reconhecer ambas distncia e fugir delas mais que depressa. Caso pertena a alguma confisso religiosa, o estudante deve tomar seus ensinamentos como mistrios simblicos cujo contedo no fcil de discernir e cujo influxo vivificante pode secar pela adeso prematura a interpretaes dogmticas e receiturios morais prontos. A religio no uma doutrina para ser acreditada ou uma tbua de mandamentos morais exteriores como um cdigo civil. Ela um conjunto de acontecimentos de ordem histrico-espiritual cuja notcia nos chega pelas escrituras sagradas e pela tradio. Esses acontecimentos podem, em parte, ser confirmados historicamente, mas no podem ser historicamente compreendidos, pois prosseguem at hoje e seu sentido s se elucida nesse prosseguimento, na medida em que voc toma cincia de que eles o envolvem pessoalmente. Voc pode participar deles atravs dos ritos, da prece, da f e sobretudo dos milagres. A f no significa adeso a uma doutrina, mas confiana numa Pessoa em cuja humanidade transparece, de maneira ao mesmo tempo auto-evidente e misteriosa, a presena do transcendente e do infinito. Milagres acontecem o tempo todo, mas a maioria das pessoas estpida, distrada ou fechada demais para perceb-los (leiam James Rutz, Megashif). Mesmo a experincia reiterada das preces atendidas, carregada do inevitvel desconforto cognitivo da desproporo entre a causa aparente e o efeito real, pode ser neutralizada ex post facto por meio de racionalizaes de um puerilismo atroz, que muitos chamam de cincia. Mas talvez pior do que a falta de experincia, ou do que a experincia neutralizada, a substituio da experincia objetiva do milagre por um sucedneo psquico uma emoo, um subjetivo no-sei-qu -- a que alguns do o nome pomposo de meu encontro com Jesus, minha f ou coisa assim, sem entender que com isso sobrepem os seus estados de alma realidade suprema do prprio Deus. Deus se manifesta nos fatos do mundo, da natureza, da histria, e no curso objetivo da vida de cada um, no fazendo afagos na alma de quem quer que seja. Por incrvel que parea, so esses afagos o mximo que alguns esperam encontrar na religio, enquanto outros, ateus ou at sacerdotes, acreditam piamente que ela consiste nisso na melhor das hipteses e tiram da conseqncias que lhes parecem muito cientficas, como fez o clssico da cretinice antropolgica americana, Edward Sapir, ao definir a religio como busca da paz de esprito, que se tambm pode alcanar com um comprimido de Valium. O estudante tem de aprender a fugir dessas vulgaridades, mesmo ao preo de colocar entre parnteses toda a questo religiosa at melhor entendimento.***Num prximo artigo, se nada acontecer nesse nterim que exija mudana de assunto, exporei algumas condies da ordem moral e poltica para o desenvolvimento da vida intelectual.