Pelas vias de uma didática da obra de arte

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485 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 485-498, set./dez. 2007 Pelas vias de uma didática da obra de arte Eliana Gomes Pereira Pougy Universidade de Mogi das Cruzes Resumo Trata-se de um artigo teórico, de cunho filosófico-educacional, visando analisar o dispositivo saber-poder da didática e propor a base epistemológica para a construção de uma Didática da Obra de Arte. A partir da perspectiva pós-estruturalista, com destaque para a produção de Michel Foucault, faz-se uma arqueologia dos discursos didáticos da Bíblia, da Didactica magna de Comenius, do O Emilio ou da Educação de Rousseau e do Democracia e Educação de Dewey, e percebe-se que esses discursos comparti- lham, a despeito de suas especificidades e seus diferentes obje- tos, o mesmo paradigma geral segundo o qual se estruturam os saberes científicos da comunicação. Também a partir da perspectiva pós-estruturalista, enfocando as idéias de Gilles Deleuze e Felix Guattari, propõe-se a base epistemológica para a construção de novas formas de pensar a didática ou a relação educação-comunicação. Assim como Deleuze e Guattari afirmaram que existe uma pedagogia que é do Conceito, pode-se propor a existência de uma Didática que é da Obra de Arte. Essa didática, que entende a relação didática como agenciamento e a comunicação como redundância e observação, pode ajudar-nos a compreender os momentos em que o processo de ensino e de aprendizado se processa entre o mundo do ruído e da construção de sentido, o mundo da criação. Palavras-chave Educação – Comunicação – Didática – Ruído. Correspndência: Eliana Gomes Pereira Pougy Rua Nazaré Paulista, 163, ap. 11-A 05448-000 - São Paulo - SP e-mail: [email protected]

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485Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.3, p. 485-498, set./dez. 2007

Pelas vias de uma didática da obra de arte

Eliana Gomes Pereira PougyUniversidade de Mogi das Cruzes

Resumo

Trata-se de um artigo teórico, de cunho filosófico-educacional,visando analisar o dispositivo saber-poder da didática e propor abase epistemológica para a construção de uma Didática da Obrade Arte. A partir da perspectiva pós-estruturalista, com destaquepara a produção de Michel Foucault, faz-se uma arqueologia dosdiscursos didáticos da Bíblia, da Didactica magna de Comenius,do O Emilio ou da Educação de Rousseau e do Democracia eEducação de Dewey, e percebe-se que esses discursos comparti-lham, a despeito de suas especificidades e seus diferentes obje-tos, o mesmo paradigma geral segundo o qual se estruturam ossaberes científicos da comunicação. Também a partir da perspectivapós-estruturalista, enfocando as idéias de Gilles Deleuze e FelixGuattari, propõe-se a base epistemológica para a construção de novasformas de pensar a didática ou a relação educação-comunicação.Assim como Deleuze e Guattari afirmaram que existe uma pedagogiaque é do Conceito, pode-se propor a existência de uma Didática queé da Obra de Arte. Essa didática, que entende a relação didática comoagenciamento e a comunicação como redundância e observação,pode ajudar-nos a compreender os momentos em que o processode ensino e de aprendizado se processa entre o mundo do ruídoe da construção de sentido, o mundo da criação.

Palavras-chave

Educação – Comunicação – Didática – Ruído.

Correspndência:Eliana Gomes Pereira PougyRua Nazaré Paulista, 163, ap. 11-A05448-000 - São Paulo - SPe-mail: [email protected]

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Journey along a didactics of the work of art

Eliana Gomes Pereira PougyUniversidade de Mogi das Cruzes

Abstract

This is a theoretical article of a philosophical-educational nature,whose aim is to analyze the knowledge-power device of didactics,and to propose the epistemological basis for the construction ofa Didactics of the Work of Art. Based on the post-structuralistperspective, notably on Michel Foucault’s work, the text realizesan archaeology of the didactic discourses of the Bible, ofComenius’ Didactica Magna, of Rousseau’s Emile, and of Dewey’sDemocracy and Education, observing that these discourses share,despite their specificities and different objects, the same broadparadigm according to which the scientific knowledges ofcommunication are structured. Still from a post-structuralistoutlook, now focusing on the ideas of Gilles Deleuze and FelixGuattari, the article expounds the epistemological basis for theconstruction of new forms of thinking didactics or theeducation-communication relation. Just as Deleuze and Guattariaffirmed the existence of a pedagogy of the Concept, one canpropose a Didactics of the Work of Art. Such didactics, whichunderstands the didactic relation as agency, and thecommunication as redundancy and observation, can help us tounderstand the moments at which the process of teaching andlearning occurs between the world of noise and that of theconstruction of meaning, the world of creation.

Keywords

Education – Communication – Didactics – Noise.

Contact:Eliana Gomes Pereira PougyRua Nazaré Paulista, 163, ap. 11-A05448-000 - São Paulo - SPe-mail: [email protected]

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Linguagem, comunicação edidática

A história nos mostra que, a partir da eraModerna, em nome da democracia, da igualda-de social e da liberdade de expressão, aquiloque era dever de alguns passou a ser um direitode todos: sem sombra de dúvidas, em nossosdias, podemos falar e ouvir como em nenhumoutro tempo histórico. Em nome do diálogodemocrático, a filosofia, as artes e as ciênciasse uniram para permitir que todos possam co-municar-se eficaz e igualitariamente.

Foucault foi o principal teórico que, deforma metodológica, nos provou que o falar eo ouvir fazem parte de uma estratégia do po-der disciplinar e controlador que caracteriza onosso tempo e que tem origem em outros tem-pos: cristalizações que retornam diferentes, masque continuam a existir. A continuidade dopoder se mantém por meio de estratégias diver-sas que enganam, seduzem, criam ilusões econvencem-nos de que somos autônomos.

Na Educação, isso se traduz nas estraté-gias didáticas que, baseadas nas teorias peda-gógicas, buscam garantir o diálogo pedagógi-co ideal. Desde que Dewey afirmou que educaré comunicar, em sala de aula, os alunos falammais, opinam mais, reivindicam mais e os pro-fessores são ‘ouvidos’ das mais diversas manei-ras: por meio de filmes, objetos da cultura,obras de arte. Na administração escolar, osprofessores planejam mais, relatam mais, pro-põem mais e os gestores ouvem mais, organi-zam mais, respondem mais...

Assim, em busca do diálogo pedagógicoideal, foram criadas teorias científicas, testadase comprovadas, que resultam no controle ab-soluto do falar e do ouvir na escola: só o quemudou foram os mecanismos de controle. Dessaforma, compreende-se que as estratégias didá-ticas são um dispositivo do saber-poder.

E o que une todas as formas de didática,desde a mais tradicional até a mais renovada,desde a mais técnica até a mais crítica, a despeitode suas diferentes formas, de suas especificidades

e de seus diferentes objetos, é o paradigma geralsegundo o qual se estruturam os saberes científi-cos da comunicação: o paradigma da transmissãode mensagens e, conseqüentemente, a idéia denão-transmissão, ou de uma diferença entre o quese ensina e o que se aprende, como ruído.

Um paradigma funciona como uma es-trutura de pensamento arraigada, deriva deuma imposição dos detentores do saber oficiale resulta principalmente na conceituação doque é ou não verdade. O paradigma da comu-nicação entende o ruído como uma exceção,como algo que se deve negar e ocultar oumesmo ‘consertar’ para que a transmissão dasmensagens ocorra sem problemas. Entretanto,podemos afirmar que o ruído existe e faz par-te do processo de comunicação não como umaexceção, mas como uma regra. E como tal,possui sua especificidade e tem uma parte ati-va do processo de comunicação.

O paradigma da comunicação que en-tende o ruído como exceção faz parte de umoutro paradigma mais forte e poderoso quesempre esteve presente no pensamento ociden-tal: o paradigma da disjunção, que preconiza aseparação e a dicotomização entre sujeito eobjeto do conhecimento, que preconiza a lin-guagem como representação do real e que nãocompreende toda a complexidade do pensa-mento humano.

A idéia geral sobre linguagem que permeiaos discursos didáticos, como o discurso da Bíblia,da Didática Magna de Comenius, do O Emilio ouda Educação de Rousseau e do Democracia eEducação de Dewey, analisados por mim emminha dissertação de mestrado mediante a arque-ologia do discurso, método desenvolvido porMichel Foucault, é a idéia de que a linguagemtrabalha com signos que servem para representare significar as coisas do mundo e as idéias.

Esses signos possuem um código co-mum de representação que deve ser conhecidotanto pelo professor quanto pelo aluno. Caso oprofessor e o aluno não possuam o mesmocódigo de representação, caso os signos utili-zados pelo professor não signifiquem aquilo

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que deva ser ensinado e aprendido, e caso aresposta do aluno não seja adequada à signi-ficação comunicada a ele pelo professor, acomunicação não acontece. Por essa via, oaprendizado também não.

A principal conseqüência na Educaçãodesse modo de pensar a linguagem é a neces-sidade que se criou de se ensinar linguagempara as crianças a fim de que elas sejam deten-toras do código comum de representação usadopara a comunicação. Isso é tão enraizado emnossa cultura que nunca questionamos essanecessidade, que se tornou, para nós, algonatural. Entretanto, ensinar linguagem não éalgo natural, e sim algo construído histórica esocialmente, algo que faz parte da cultura,entendida como aquilo que cria civilizações,valora determinadas produções e mantém ummercado de produtos culturais e os jogos dopoder (Guattari; Rolnik, 2005).

A segunda conseqüência do uso da lin-guagem comunicacional na Educação é a valo-rização da linguagem lógica em detrimento dalinguagem mitológica. O uso da linguagemlógica na Educação estruturou o modo comoprofessor e aluno se comunicam em sala deaula, o modo como os saberes são organizadosno currículo e o valor que damos ao significa-do dos conceitos e das idéias. Esse valor estápresente principalmente na forma como avali-amos o aprendizado de nossos alunos. Emgeral, o que se avalia neles é se o significadodos conceitos e das idéias transmitidos oumediados pelo professor foi compreendido eassimilado. Em outras palavras, a significação éo conhecimento para nós.

Em nossa tradição filosófica, o conheci-mento está ligado à razão e seus princípios. Adefinição que fazemos de nós mesmos é de quesomos seres racionais. A razão obedece a deter-minadas regras que nem chegam à nossa cons-ciência quando pensamos. O conhecimento ra-cional segue determinados princípios que sãoopostos ao conhecimento ilusório (costumes,preconceitos, aparências), às emoções e aos sen-timentos (paixões cegas, caóticas, desordenadas),

à crença religiosa (a revelação divina) e ao êxtasemístico (inconsciência).

A atividade racional possui duas moda-lidades: a intuição e o raciocínio. De um modogeral, entendemos a intuição como uma com-preensão global e completa de uma verdade, deum objeto ou de um fato. De uma só vez, arazão capta todas as relações que constituem arealidade e, também, a verdade. O raciocíniotrabalha de forma diferente: ele é o processo doconhecimento. O conhecimento pode se dar, emalgum momento do processo, por meio da in-tuição. No entanto, para nós, o conhecimentoracional é mais importante porque ele trabalhacom provas e demonstrações, e trabalha com odiscurso, principalmente com o discurso quegeneraliza e universaliza. O conhecimento raci-onal cria teorias, discursos que ganham o statusde verdade (Chauí, 2004).

Há que se perguntar, então, como ad-quirimos a razão ou o conhecimento racional.A filosofia se divide, em relação a isso: existemcorrentes filosóficas que aceitam que a razão éinata, e existem correntes que aceitam que arazão é adquirida. Essa é a questão principal quemoveu mudanças no modo como encaramos oconhecimento, porque ela influi diretamente nomodo como organizamos os saberes (aquilo queaceitamos como verdades) e no modo como ostransmitimos de geração a geração.

Uma das soluções para esse impasse quemais marcaram a história do pensamento ociden-tal foi desenvolvida por Immanuel Kant (Chauí,2004), no século XVIII. A partir de suas idéias,nasceu a divisão entre as ciências empíricas e afilosofia transcendental. Para ele, o sujeito doconhecimento é uma estrutura universal e idên-tica para todos os seres humanos em todos ostempos e lugares, ou seja, o sujeito do conhe-cimento é a própria razão, e a realidade acabapor ser entendida como estruturada pelas idéi-as do sujeito.

Foi a partir das idéias de Kant que as ci-ências humanas herdaram a tarefa da metafísicade tentar alcançar a realidade e os fenômenosdessa realidade, mas sob as condições gerais

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universais e necessárias da objetividade e da ra-zão. Por isso, a metafísica kantiana também échamada de idealista, porque ela vai das idéiasproduzidas pelo sujeito em direção às coisas. E étambém chamada de filosofia da Consciência,pois dá prioridade para o sujeito do conhecimentoou para a consciência de si reflexiva. Por isso,para nós, que fazemos parte da civilização oci-dental contemporânea, o conhecimento temcomo centro a figura do sujeito do conhecimento,na qualidade de consciência de si reflexiva ouatividade permanente racional que conhece a simesma (Chauí, 2004).

Desde o pensamento moderno, numasala de aula, os sujeitos se encontram em buscada re-significação dos mais variados conceitossobre os objetos do conhecimento, conceitosesses que vêm sendo acumulados pela huma-nidade. Esses conceitos, suas qualidades e ca-racterísticas, são aquilo que costumamos cha-mar de saber. O conjunto dos métodos paraensinar e aprender os saberes tem como obje-tivo principal o aprendizado e a compreensãopor parte do alunado dos conceitos já criadose habilitar os aprendizes a usar a linguagemcomo representação. Ao aprender, as pessoasincrementam sua inteligência ou a faculdadeque possuem de conhecer, de compreender ede representar suas idéias. As diversas didáticasusadas para ensinar utilizam linguagens e con-juntos de signos para transmitir ou comunicaros saberes aos alunos. Por meio dos recursosdidáticos, comunicações úteis e objetos cultu-rais, as pessoas presentes numa sala de aularecebem informações necessárias e adequadas.

Assim, segundo a tradição filosófica clás-sica, num encontro pedagógico ideal, busca-sea transmissão de informações mediante um di-álogo pedagógico. Nesse encontro ideal, o pro-fessor pode se orientar por uma Didática Geral,uma didática que se aplica a qualquer área dosaber, e diversas didáticas específicas, utilizadasconforme a disciplina. Num encontro pedagógi-co ideal, ao aprender, os alunos atingem umaposição superior na hierarquia do saber, evolu-em em seu desenvolvimento cognitivo.

No começo do século XX, devido aosurgimento da lingüística, outros aspectos pas-saram a ser incorporados ao encontro pedagó-gico ideal. A lingüística compreende a lingua-gem por duas dimensões: a fala e a língua.Para os lingüistas, a língua possui um carátersocial. A principal conseqüência desse modo depensar é a de que o ensino da língua deve serlevado a todos, sem distinção. Levar saber aopovo significa capacitar todos na linguagemdenotativa, clara, científica, matemática e lógica.Ser capaz de usar corretamente os códigos dalíngua abre as portas aos saberes acumuladosna história da humanidade e, dessa forma, todaa sociedade acaba por se desenvolver.

A segunda conseqüência é que o desen-volvimento da inteligência leve à critica da sig-nificação. No caso da Educação, a crítica caisobre a pragmática, sobre o fazer escolar. Emnossos dias, já é lugar comum a busca por umtipo de professor: o professor crítico, ou seja,aquele que reflete sobre sua prática a fim detorná-la melhor, à frente de seu tempo. Por meioda reflexão e da crítica à prática e da propostade novas ações, ou seja, mediante a aplicação desuas idéias, o professor renova sua prática. En-tretanto, muitas vezes, este acaba por ver-se numbeco sem saída. Invariavelmente, a crítica recaisobre as instâncias maiores que ele, sobre ascontradições presentes na sociedade, e umaenorme sensação de impotência o abate.

Em geral, e também devido à nossa tra-dição filosófica, a solução encontrada para oproblema da Educação é buscar técnicas etecnologias que, aliadas ao trabalho pedagógi-co, garantam a assimilação dos significados porparte do aluno. Prova disso é o enorme investi-mento que o governo e as empresas vêm fazen-do para equipar as escolas com tecnologias deponta em comunicação e informação. Entretanto,isso também não garante a transformação daqui-lo que é real e imperfeito em ideal e perfeito...

Quando vivenciamos um processo deensino e de aprendizado em uma sala de aulareal, percebemos que nesse espaço sempreexistiram trocas inesperadas. É no espaço da

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sala de aula que as pessoas efetivamente es-barram-se umas nas outras, olham-se, tocam-se,cheiram-se. É no espaço da sala de aula que,muitas vezes, acontece o prazer, a alegria, a eu-foria, a frustração, a atração, a sedução, a in-competência, a tristeza, a raiva, a repulsa, aagressão, o desinteresse, o silêncio e mesmo atotal apatia. É também no espaço da sala deaula que o professor fracassa, perdendo o con-trole sobre o processo de ensinar. E é nesseemaranhado de afeições e percepções que osobjetivos de um encontro pedagógico ideal, oenvio e a recepção de mensagens significativasfogem pelo ralo, escoam pelas frestas das por-tas e das janelas, escapam pelo ar, traçam umalinha rizomática e se perdem no nonsense dabusca pelo sentido. Para que mesmo queestamos aqui?

Nesses momentos, enxergamos aquilo demistério que faz com que o ruído surja noprocesso de comunicação, mesmo que utilize-mos todos os recursos didáticos disponíveispara comunicar um saber aos nossos alunos.Infelizmente, nesses momentos, a sala de aulapode se tornar o palco da indisciplina e atémesmo da violência. Em geral, é esse aspectoque mais nos amedronta quando a comunica-ção entre professor-aluno-conhecimento nãoacontece de forma adequada. Em nome dessemedo, ações de exclusão as mais diversas vêemsendo praticadas há anos nas escolas em todoo mundo.

No entanto, é também nesses momentosruidosos e caóticos que podem surgir novasvias de comunicação, novos fluxos de transmis-são de conhecimento, novas ligações sinesté-sicas. É nesses momentos que pode aconteceraquilo de mistério que faz surgir a poética oua criação na sala de aula. Nesses momentos,reconhece-se que um aluno possa aprendercriando, fazendo diferente, e não apenas recri-ando ou ressignificando mensagens significati-vas. Além disso, aceita-se que o professor tam-bém possa dar a volta por cima, criar novosmétodos de ensino, desenvolver um estilo pró-prio de dar aula, sua própria didática. A isso,

dou o nome de didática poética, em contrapartidaà didática comunicacional. A arte de ensinar poressa via, torna-se a poieses de ensinar.

Infelizmente, para a didática comuni-cacional, qualquer forma de ruído na comunica-ção entre professor e aluno é considerado algoerrado, ruim, desmotivador. O resultado da cons-tante ressignificação, tanto por parte do alunoquanto do professor, e da eterna insatisfação emrelação ao diálogo ideal que deve existir entreprofessor e aluno são uma bola de neve rechea-da de pessimismo e desânimo.

Entretanto, essa constatação não me faz,de modo algum, defender a idéia de que o erroensina. Esse não é o meu objetivo. Em minhapesquisa (Pougy, 2006), acabei por descobrirnovas idéias que vêm surgindo1 e que têm a fi-losofia da Diferença como base, principalmentede acordo com as idéias de Gilles Deleuze e FélixGuattari. Por essa via, o erro, como o inverso doacerto, não existe. Para a filosofia deleuzeana, oque existe são sempre acontecimentos, singulari-dades. O que existe é a errância fazendo parte deum processo de transformação do saber, sempreem construção, enquanto houver vida. E desejopelo novo. Segundo Chauí (2004), a filosofia daDiferença se interessa mais pela singularidade eparticularidade e menos pelas semelhanças e iden-tidades. Inspirando-se nos trabalhos dos antropó-logos, interessa-se pela diversidade, pluralidade,singularidade das diferentes culturas, em lugar devoltar-se para a idéia de uma cultura universal queconteria dentro de si, como suas partes ou seusmomentos, as diferentes culturas singulares. Alémdisso, em vez de buscar uma ciência universal queconteria todas as ciências particulares, interessa-sepela multiplicidade e pela diferença entre as ciên-cias, pelos limites de cada uma delas e, sobretudo,por seus impasses e problemas insolúveis.

1. Nos últimos anos, a epistemologia da educação vem reconhecendo ocaráter transdisciplinar da educação, sua incerteza e a busca do “conhe-cimento do conhecimento” (Morin, 2002, p. 31) e a epistemologia da co-municação também vem buscando a formação de um campo acadêmicotransdisciplinar e a afirmação de um “estatuto transdisciplinar da comu-nicação” (Lopes, 2003, p. 290), fazendo parte de um movimento contem-porâneo crítico da compartimentação disciplinar que foi construída na his-tória das ciências.

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A filosofia da Diferença faz parte de umalinha de pensamento que quebrou as concep-ções filosóficas e cientificas que eram tidascomo verdadeiras. Essa quebra de paradigmasda ciência resultou em um novo modo de pen-sar que se caracteriza pela interdisciplinaridadee por novos modos de entender o que é sujei-to e o que é objeto. A maior diferença entre opensamento que aceita a diferença e o pensa-mento científico clássico é em relação à causa-lidade dos fenômenos. Para a filosofia da Dife-rença, a causalidade é circular e o conhecimentoé autoprodutivo, é autopoiético, ou seja, o efeitoé, ao mesmo tempo, causa.

Essa forma de pensar muda totalmente aconceituação de linguagem e de comunicação.Por seu caráter inovador, a filosofia da Diferen-ça compreende alguns aspectos presentes nalinguagem e na comunicação que outras nãoconseguem explicar.

A linguagem: estrutura ou uso?

Para Deleuze e Guattari, antes da estru-tura da linguagem, vem a função. A estruturadepende da função. E a principal função dalinguagem é agenciar: agenciar fluxos, agenciardevires. A filosofia deleuzeana compreende apragmática ou o uso da linguagem como oelemento de base de que dependem a lógica, asintaxe e a semântica. Ao contrário da lingüís-tica, que entende a pragmática como o estudodaquilo que foge às constantes da linguagem,Deleuze e Guattari entendem a pragmáticacomo a condição mesma da linguagem.

Essa idéia é muito providencial por quevivemos um momento em que os estudos dalingüística colocaram a pragmática numa encru-zilhada e fizeram com que perdesse sua defini-ção como campo de estudos. Em Educação,quem sofre essa mesma crítica é a didática. Porter um caráter interdisciplinar e não específico,a didática vem sendo tratada como um campoindefinido. A filosofia deleuzeana, pelo contrário,ao pressupor como base filosófica um empirismoradical, um empirismo que privilegie a relação

entre os conceitos e a vida, compreende o uso ea função das ciências. Por essa via, a Educaçãoé, antes de tudo, prática, uso, variação.

Da mesma forma, a filosofia deleuzeanapressupõe a relação entre os elementos da lin-guagem – sempre em variação – e a vida, nãoaceitando a separação vida-linguagem, e mui-to menos entendendo a linguagem como repre-sentação do real. Diferentemente da definiçãodo estruturalismo que explica que a linguagemé formada pelo par significante e significado,Deleuze e Guattari buscaram suas idéias sobrelinguagem dos estudos do lingüista Hjelmslev,que formulou a noção de que os signos são“uma solidariedade entre uma forma de expressãoe uma forma de conteúdo, que se manifestam poruma substância de expressão e uma substância deconteúdo” (Malberg apud Almeida, 2003, p. 40).Hjelmslev chamou sua lingüística de fluxos umalingüística imanente, que abdica de uma concep-ção de linguagem transcendental, baseada em en-tidades prévias.

Para Hjelmslev, nem o significante podeexpressar as coisas (expressão) nem o significa-do pode representar aquilo a que se refere(conteúdo). Mais do que uma relação signi-ficante-significado, o que existe é uma relaçãode pressuposição recíproca conteúdo-expressão.Assim, ao invés de uma linguagem formada porsignos, que carregam uma significação e quetêm como oposto não-signos, o lingüista pro-põe que a linguagem é sempre formada pornão-signos, ou seja, os signos sem significado,as figuras. O oposto a essas figuras seria asubstância semioticamente não formada, a queo lingüista deu o nome de matéria. Ele sugereuma nova repartição do campo semiótico: aolado das formas e substâncias formadas (deexpressão e de conteúdo), existe um campo desubstâncias semioticamente não formadas, dematérias desestratificadas.

Para Deleuze (Deleuze; Parnet, 1998),essa matéria não formada abre caminho para oestudo de semióticas independentes de semio-logias significantes, que não estão fundadassobre a bipolaridade significante-significado.

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Na filosofia deleuzeana, a idéia de estrati-ficação e desestratificação, de formalização ede aformalização, é essencial. Ela permite aidéia de função da linguagem.

Quem usa a linguagem não é um Eunem uma consciência. É algo que não é nemindividual nem pessoal e que, no entanto, ésingular, algo que salta de uma singularidadepara outra. Uma singularidade que percorrehomens, plantas, animais. Quem se expressa nalinguagem é uma máquina de expressão. Aexpressão é uma máquina semiótica coletivaque enuncia. Uma máquina abstrata.

O conteúdo expresso pela máquina de ex-pressão não é o objeto, o referente ou o significa-do. O conteúdo é uma prática, um regime decorpos, é um enunciado nos moldes foucaultianos.Como já foi dito, segundo Foucault (2004), umenunciado possui um espaço de correlações, umsujeito, um campo associado e uma materialidade.Tal como a expressão, o conteúdo ou enunciadopossui forma e substância e é por excelênciatecnológico. O conteúdo opera modificações nomundo exterior, o conteúdo age no mundo. Oenunciado não é ideologia, não há ideologia. Oconteúdo é uma máquina social técnica que tor-na visível, que visibiliza.

As formalizações de expressão e de conteú-do se dão em agenciamentos, conjuntos de vizi-nhança homem-utensílio-animal-coisa. Um agen-ciamento é ao mesmo tempo um agenciamentomaquínico de expressão e um agenciamento cole-tivo de enunciação. A linguagem, ou qualquerformalização da expressão, existe apenas comoforma engajada em um agenciamento complexo ecoletivo, que lhe fornece consistência. Nos agen-ciamentos, os devires se territorializam, man-têm-se. Os agenciamentos são invenções, sãoculturas, são idades da história, são quadros,são livros, são encontros.

Os agenciamentos são elaborados porformalizações de expressão e de conteúdo quese dão em estratos, e eles são, também, forma-dos por desestratificações, movimentos, fugas.Todo agenciamento pode ser medido pelos mo-vimentos de territorialização, desterritorialização

e reterritorialização que acontecem em seus flu-xos, movimentos que conjugam formas, estabi-lizando-as, e que também as desmancham,desformando-as. Todo agenciamento possuiuma tetravalência: conteúdo, expressão, estra-tos ou territórios e linhas de desestratificação,de desterritorialização (Almeida, 2003).

Territórios e desterritorializações não sãoopostos, não possuem uma relação dual, pelocontrário, eles fazem parte de um plano deconsistência, um plano onde todas as metáfo-ras são abolidas, onde tudo é real. Deleuze eGuattari (1995a) definem os estratos como re-caídas, como reterritorializações, porque o pla-no de consistência é traçado pela MáquinaAbstrata, que existe “simultaneamente desenvol-vida no plano desestratificado que traça, masenvolvida em cada estrato cuja unidade decomposição define e mesmo erigida pela meta-de em certos estratos cuja forma de preensãoela também define” (Almeida, 2003, p. 87). Oplano de consistência não é o caos. Ele é carrega-do de estratos, de lembranças, de tensões. Eleconstrói contínuos de intensidade, emite e combinasignos-partículas, opera conjunções de fluxos dedesterritorialização. O caos é o fora, o exterior.

A questão que se coloca, então, é comose dão as estratificações? Como se dão a nome-ação e a identificação das coisas? Quando ossignos surgem? Segundo os filósofos:

[...] é difícil expor o sistema dos estratossem parecer introduzir entre eles uma espé-cie de evolução cósmica ou mesmo espiri-tual, como se eles se ordenassem em está-gios e passassem por graus de perfeição.(Deleuze; Guattari, 1995a, p. 86)

Entretanto, os estratos não seguem umaseqüência ordenada, eles possuem pressuposi-ção recíproca, disseminam-se uns nos outros.Um estrato serve de substrato a outro, fazen-do com que o agenciamento maquínico funci-one como um metaestrato. O que varia de umestrato a outro é a natureza da distinção entreconteúdo e expressão.

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A filosofia deleuzeana define três tiposde diferenciação entre as formas de expressãoe de conteúdo, sendo que nas três há sempreuma distinção real entre expressão e conteúdo:

• Distinção real-formal, na qual se instaurauma ressonância de expressão. Nesse estrato,geológico, conteúdo e expressão diferem-sepela dimensão e ligam-se por indução, porsugestão. Aqui, a expressão determina o con-teúdo como se fosse um molde. Por exemplo:um cristal expressa sua forma a um meio amorfoque lhe é exterior, mas que, ao mesmo tempo, éinteriorizado e incorporado pelo germe que ori-ginou o cristal. Meio e cristal se comunicam porindução, estratificando um bloco de devir germe-meio-cristal.• Distinção real-real, na qual se instaura umalinearidade de expressão. Nesse estrato, orgâ-nico, expressão e conteúdo possuem a mes-ma dimensão, mas diferem realmente e se li-gam por transdução, por um processo peloqual uma energia se transforma em outra denatureza diferente. Aqui, a expressão vai deum estado a outro continuamente. Ela se re-produz, ela é autônoma e possui um limiar dedesterritorialização. Por exemplo: a moléculaexpressa porque ela percebe e reage em rela-ção a outras moléculas com as quais trocaenergia e cria vida, constituindo o meio asso-ciado, produzindo novos estratos, inclusivecruzando espécies, interferindo nelas. Um ví-rus, por exemplo, comunica-se com as outrasespécies por transdução, estratificando umbloco de devir macaco-vírus-homem.• Distinção real-essencial, na qual se instaurauma sobrelinearidade de expressão. Nesse es-trato, linguageiro, a forma do conteúdo torna-se lingüística, opera por símbolos compreensí-veis e opera modificação no mundo exterior.Conteúdo e expressão, aqui, se ligam por tra-dução. Aqui, a expressão se dá por intermédiodos signos, a partir de sujeitos, que não sãonecessariamente uma essência humana. Aqui, aexpressão desterriotorializa as coisas do mundoe dos seres, criando novas funções, novos

usos, novas ferramentas. Por exemplo: a mão,como forma geral de conteúdo, se prolonganas ferramentas. Além desse aspecto, a ex-pressão compõe conjuntos de traços formais,as línguas formais, que também transforma assubstâncias e as coisas, desterritorializando-as. Por exemplo: a desterritorialização daboca, que perde sua função de receber ali-mentos, para liberar palavras e sons codifica-dos (Deleuze; Guattari, 1995a). Nesse estrato, acomunicação se dá por tradução, estra-tificando um bloco de devir sujeito-signo-fer-ramenta-objeto. A tradução é diferente emcada agenciamento, não seguindo um padrãode significação transcendente.

A unidade elementar da linguagem que sedá no estrato linguageiro não é o signo, é apalavra de ordem. Segundo Deleuze e Guattari(1995b), as palavras de ordem redundam naspalavras e nos atos, na disciplina da gramática.Para os filósofos, é a palavra de ordem que faz dapalavra, ou de qualquer outra unidade de lingua-gem, uma enunciação nos moldes foucaultianos:uma função que possui um conjunto de condi-ções de existência. As palavras de ordem sãopressupostos implícitos, são regimes de signosque perpassam a sociedade e formam regimesmistos, que se transformam, redundando nasmesmas palavras. É o discurso indireto, semprepresente, sempre imanente.

Entretanto, existe uma outra função dalinguagem que acontece no estrato linguageiroe que ultrapassa os limites e os restitui à equi-valência infinita de um devir ilimitado, de umaidentidade infinita. Quando nessa função, a lin-guagem pode não ser um código, não sertransmissão de informações. Segundo Deleuze eGuattari (1995a), o que se opõe à linguagem-palavra de ordem não é aquilo que chamamos deruído, mas a indisciplina das linguagens sem or-dem, sem estrutura, a linguagem agramatical. Nomovimento de desterritorialização dos devires, aexpressão se dá desordenadamente.

Ele justifica a existência dessa funçãonão como algo ruim, errado, falso. A significa-

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ção, para Deleuze (2003), não é a verdade oua mentira, é apenas uma condição da lingua-gem. Portanto, a significação não fundamentaa verdade, ela a condiciona.

O uso menor da linguagem pode serentendido como a produção de arte, e o usomenor da língua como a produção de literatu-ra ou a produção de arte. Dessa forma, com-preende-se que a linguagem não é apenas re-presentação, uma imagem do mundo, nem quesua função principal seja comunicar informa-ções. A linguagem é sempre relativa a umagenciamento, aos processos de territorializaçãoe desterritorialização, no meio de um rizoma. Éum processo que não pára de se formar, feito dedimensões, direções movediças, que não temcomeço nem fim, um processo feito de platôsque estão sempre no meio de agenciamentos dodesejo que trabalham sobre fluxos semióticos,materiais e sociais. Em Mil Platôs, Deleuze eGuattari (1995a) trabalham dois tipos de imagemdo pensamento: de um lado, o modelo raiz e,do outro, o rizoma. O pensamento rizomático éacentrado e não hierárquico, é criador de dife-renças, consistência e sentido. Ele é um sistemaaberto apto a montar cadeias, ou seja, é o pen-samento não acabado que busca realizar resso-nâncias entre planos distintos.

A obra de arte no pensamentodeleuzeano

Para Deleuze e Guattari (2000), a artenão é o caos, mas uma composição do caos,que dá a visão ou a sensação, constituindo umcaosmo ou, como diz Joyce, um caos compos-to. A arte precisa de um método que varie comcada autor e que faça parte da obra de arte,que é um composto de perceptos e afectos. Aobra de arte é um ser de sensação: ela existeem si. E é exatamente esse bloco que se con-serva. A verdadeira obra de arte é aquela queconsegue tornar um momento do mundo du-rável ou fazê-lo existir por si.

A obra de arte se dá num plano de com-posição. O plano de composição se constrói à

medida que a obra avança, abrindo, misturan-do, desfazendo e refazendo compostos cadavez mais ilimitados. O plano de composiçãoestética não vem antes dos compostos de sen-sações, não sendo preconcebido, não tendonada a ver com um programa, mas também nãovem depois, embora a tomada de consciênciado personagem conceitual se faça progressivamen-te e surja freqüentemente depois. A arte e a filo-sofia recortam o caos e o enfrentam, mas não nomesmo plano de corte. A arte não pensa menosque a filosofia, mas pensa por afectos e perceptos.

O plano de composição da arte, o planode imanência da filosofia e o plano de referên-cia da ciência deslizam um no outro, transver-salmente, a ponto de certas extensões de umserem ocupadas por entidades do outro. Os trêsplanos devem lutar com o caos e com sua instân-cia contraposta: a Doxa (o bom senso e o sensocomum). A Doxa, a Opinião, o bom senso e osenso comum são inúteis para o pensamento por-que coincidem com o dogmatismo, a anticriação.

Por isso, a filosofia não pode ser comunica-ção: para comunicar é preciso ter um conjun-to de coordenadas comuns que coincidamcom a opinião. (Bianco, 2005, p. 1298)

Todas as atividades criadoras constituemum ato de resistência à Doxa e à comunicação.Essa é a nova função do pensamento propos-ta por Deleuze e Guattari (2000). Um pensa-mento transdisciplinar, transversal, que começasempre pela diferença, no meio de algumacoisa, a partir de um acontecimento que façasentido e que force o pensador a pensar, a criarconceitos e não a reconhecer a Idéia. Esse é oeterno retorno do diferente. Para a imagemdogmática e clássica do pensamento, o profes-sor formula questões que possuem respostasprontas. Para o pensamento sem imagem, osproblemas se dão e, com eles, suas soluções.Assim, os principais elementos do pensamen-to não são as categorias do verdadeiro e dofalso, são, isso sim, o interessante e o não in-teressante, aquilo que tem sentido e aquilo

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que não tem. Muitas vezes, o interessante éaquilo que não tem sentido, mas que possibi-lita a sua construção. Em vez de boa vontadedo pensador, o pensamento sem imagem bus-ca favorecer o encontro do pensador comforças que façam o pensamento ultrapassar oseu estado de torpor.

Compreender que o pensamento possuiuma função criadora modifica totalmente omodo como compreendemos o saber que agorapode ser definido também como uma função enão como uma forma ou uma força.

Nesse sentido, a aprendizagem passa aimplicar o criar e não as soluções ou a Idéia(Deleuze, 1998). Por essa via, o aprender tor-na-se a passagem viva entre não-saber e sabere transforma-se numa tarefa infinita, não su-bordinada ao ideal do saber absoluto, e aerrância passa a fazer parte da relação proces-sual de construção do sentido. Assim, reconhe-ce-se que é do aprender e não do saber que acondição transcendental do pensamento deve serextraída, principalmente porque o tempo do pen-samento é puro ou uma condição de direito (otempo se apodera do pensamento) e não é otempo empírico do pensador submetido a condi-ções de fato. Conseqüentemente, o ensinar pas-sa a ser encarado como um ato de colocar pro-blemas aos alunos, e a avaliação do aprendizadodeve ser do processo de construção e solução dosproblemas e não apenas da solução adequada àIdéia. Para Deleuze e Guattari (2000), o concei-to filosófico possui um estatuto pedagógico, ouseja, existe uma pedagogicidade que é a do con-ceito. A principal crítica da filosofia de Deleuzee Guattari é em relação à imagem do pensamen-to como representação, pois para os filósofos, opensamento como representação é incapaz depensar a diferença em si mesma, reduzindo-a àtranqüilizadora identidade do conceito já criado,à Idéia. Essa imagem clássica do pensamentonão entende um método para o pensar, porquejá o condiciona a uma imagem implícita e pré-filosófica, que entende que o pensamento pos-sua uma boa natureza e uma boa vontade, queo pensador queira naturalmente o verdadeiro e

que o pensamento tenha uma afinidade com averdade (bom senso). Dessa forma, o pensa-mento passa a ser uma atividade servil, relaci-onada às soluções cujas condições já estãodadas. Em outras palavras: o pensamentorepresentacional faz perguntas já formuladas edá respostas predeterminadas.

A comunicação comoredundância

De acordo com pesquisas que vêm sen-do realizadas pelo departamento de Filosofia daComunicação da ECA-USP (Filocom), coordena-do pelo professor Ciro Marcondes Filho, maisdo que um ato de transmissão e de recepçãomensagens, o ato comunicacional é um ato deredundância e de observação de mensagens.

Para a teoria da informação de Shannon,na economia dos processos comunicacionais,uma informação pode ser mais ou menos codifi-cável, ou seja, ela possui um determinado co-eficiente de comunicação. A esse coeficiente,dá-se o nome de redundância. Quanto mais re-dundante, mais decodificável é a informação(Mattelart, 2002).

Desde meados dos anos 1980, o Filocomvem buscando uma nova teoria da comunicação.Para o grupo, a comunicação é aceita como umprocesso social, um acontecimento, uma combi-nação de múltiplos vetores (sociais, históricos,subjetivos, temporais, culturais), que se dá peloatrito dos corpos e das expressões, algo queocorre num ambiente, permitindo que se reali-ze, a partir dela, algo novo.

Para que ocorra o evento comunicacional,é necessário que haja uma continuidade de co-municação, é preciso que haja a criação de umprocesso comunicacional, uma seqüência de se-leções. Este não acontece necessariamente entrepessoas que se relacionam para essa finalidade,mas acaba necessariamente acontecendo na pre-sença muda, nos olhares, no contato dos corpos.O tempo dessa comunicação se realiza apenas nomomento em que se identifica a distinção entreum mero sinal e uma informação.

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Comunicar não é transmitir mensagens.É redundar informações num pulsar constante,é a seletividade que se constrói no processo decomunicação. O entendimento é um entendi-mento passageiro e não chega a ser um con-senso, é um acordo passageiro. Nesse sentido,os meios de comunicação não são apenas osmeios diretos e os meios de massa, são tambémos meios simbolicamente generalizados de co-municação, os meios improváveis, tais como opoder, o dinheiro, a arte, a verdade científica,os valores, o amor etc.

Dessa forma, a comunicação é aceitacomo um mecanismo de auto-regulação, ummodo como um sistema observa-se a si próprioe aos outros ou, mesmo, ela é que torna possí-veis os sistemas sociais. Os signos gerados nacomunicação são um julgamento, sempre emmovimento, em busca de sentido, e os media sãoelementos que podem ser livremente acopladosao processo de comunicação, são como umaforma criada durante o processo, uma singula-ridade que surge e que pode se desmanchar aqualquer momento.

A comunicação funciona como um pro-cesso no qual acontece a produção de diferen-ças e também como uma observação, aquilo quecria o sentido. Tanto a produção e redundânciade mensagens quanto a observação se dão nomovimento, no fluxo. Quanto mais redundantefor uma mensagem, mais ela se torna presentenum determinado sistema ou agenciamento.Essa mensagem, um ente vivo e novo, nãopossui um emissor original, mas vários, vindosde uma longa cadeia de emissores no tempo eno espaço, e pode manter-se num determinadoagenciamento com uma potência mais forte oumais fraca, dependendo das forças do desejo depoder presentes nesse agenciamento.

Por uma didática errante,redundante e poética: a didáticada obra de arte

Por tudo isso, não posso deixar de pen-sar que as idéias de Deleuze e Guattari além de

proporem uma pedagogia que é do Conceito,também propõem uma didática que é da Obrade Arte. Segundo penso, a Didática da Obra deArte pode nos ajudar a compreender os mo-mentos em que o processo de ensino e deaprendizado se processa entre o caos e o co-nhecimento, no mundo do ruído e da constru-ção de sentido.

A didática comunicacional rejeita o ruí-do, o quase caos, transformando-os em algo aser consertado, corrigido, anulado. Ao buscar acomunicação, a re-cognição, a representação eo feedback, enfatizando a ressignificação, aca-ba por cercear possibilidades de criação denovos sentidos.

Podemos pensar que o momento depoieses num agenciamento de ensino e deaprendizado pode ser visto como o momentodo ruído, do quase caos. Esse momento acon-tece na desterritorialização dos devires, aconte-ce no momento em que a máquina de expres-são tende ao agramatical. Nesses momentos, oprofessor deve estar atento à construção desentido, ao mesmo tempo em que participa dela.

O principal objetivo de se compreendero processo de criação em sala de aula é trazera errância para perto do professor. Ensinar sig-nifica também aventura e abertura ao diferen-te, com tudo o que isso implica em termos derisco e de esforço. Mais do que valorar as ver-dades possíveis, para mim, a Educação devejuntar uma verdade particular a um contextoglobal e a didática deve compreender o usomenor da linguagem e da comunicação. Numasociedade que se pretende educativa, o papeldo professor não pode ficar confinado ao deum mero transmissor de verdades feitas.

Nesse quadro, a formação do professordeve ser vista como uma oportunidade de exercí-cio de autonomia e de maturidade profissional. Opapel do professor é o de alguém atento, prepa-rado, ensaiado, um ser que inspira seus alunos porser um verdadeiro apaixonado pelo saber nômade.O devir mestre deseja um agenciamento que pro-picie a interação no espaço da sala de aula econstrua seu próprio método, o que o fará produ-

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zir, em conjunto com seus alunos e com os signospresentes no processo de ensino e de aprendiza-do, verdadeiras obras de arte pedagógica.

Quando pensamos como Deleuze eGuattari (1995a), compreendemos que umagenciamento de ensino e de aprendizadoconstitui-se como um espaço de expressão e deenunciação e não de representação e comunica-ção. E é por isso que o devir mestre deve estaratento ao modo como se dão a expressão e aenunciação em cada estrato do agenciamento deensino e de aprendizado.

Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari (1995b)dividiram os estratos do agenciamento em trêstipos: real-formal, real-real e real-essencial. Ape-nas o estrato real-essencial é linguageiro, operapor signos.

O primeiro estrato, real-formal, é físico-químico, geológico. Nele, a expressão se dá porindução. Deleuze afirmou que “Uma aula querdizer momentos de inspiração, senão não querdizer nada” (Deleuze; Parnet, 2005). O devirmestre, dessa forma, ao invés de apenas transmitirinformações, pode inspirar seus alunos, sem fala,sem signos codificados, como por inspiração.

O segundo estrato, real-real, é orgânico.Nele, a expressão se dá por transdução, portransferência molecular. O devir mestre, nesseestrato, pode expressar conhecimento por sen-sações, por trocas moleculares, sem fala, semsignos codificados.

O terceiro e último estrato, real-essencial,é linguageiro. Nele, a expressão se dá por tra-dução, por transposição. Aqui, o devir mestredeve se preparar, organizar os signos, agenci-ar enunciados, amar o assunto da aula. Alémdisso, nesse estrato do agenciamento escolar, odevir mestre usa a voz, a fala, a língua oral:

Uma aula implica vocalizações, implica atéuma espécie de – eu falo mal alemão –Sprechgesang [canção do discurso]. Evi-

dentemente. Há mitificações, ‘Viu as unhasdele?’ etc. Faz parte de todos os professo-res. Desde o primário é assim. O mais im-portante é a relação entre a voz e o con-ceito. (Deleuze; Parnet, 2005, p. 10)

No estrato linguageiro, o devir mestretraduz o conhecimento em palavras de ordem,em territorializações técnicas e tecnológicas,redundando mensagens de forma intensa ecujos meios são os valores como o amor, aamizade, o respeito, o dinheiro, o poder etc.Nesse espaço, o plano de referência da ciência seconfigura em proposições, em paradigmas, a fimde dominar o caos e transformá-lo em verificação.

Entretanto, no agenciamento de ensino ede aprendizado também acontecem desterrito-rializações, fugas, e a linguagem se apresentacomo agramatical, menor, constituindo a possibi-lidade para a criação de um plano de composi-ção da arte. É aí que podem surgir as obras dearte, as figuras estéticas, novos seres, novas for-mas. E é aí que o devir mestre redunda informa-ções e observa o agenciamento a fim de mantera autoprodução do agenciamento.

Numa educação rizomática, o devir mes-tre deve estar atento ao movimento de terri-torialização, desterritorialização e reterritoriali-zação dos devires e, para isso, pode ser muitoútil traçar o cinemapa: o mapa dos movimen-tos no agenciamento. Assim, o devir mestre deveser, também, um devir cartógrafo, aquele quetraça o mapa do agenciamento do qual participa.

Deleuze e Guattari (1995a) comentamque os mapas não têm um único ponto dechegada ou de partida, devem ser flexíveis eestar em contínua atualização e, por isso, sãocontinuamente construídos. Eles possibilitamdescobrir novos atalhos e estabelecer novasconexões: os mapas abrem novos caminhos. Eeu acrescentaria: os mapas propõem tambémmúltiplas saídas.

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Recebido em 11.05.06

Aprovado em 16.04.07

Eliana Gomes Pereira Pougy, bacharel em Comunicação Social pela Fundação Armando Álvares Penteado e mestre em Educaçãopela Faculdade de Educação da USP, é professora da Universidade de Mogi das Cruzes, autora de cursos online e de livros didáticose paradidáticos de Arte e assessora de Artes da Diretoria de Orientações Técnicas da SME da Prefeitura de São Paulo.