Pena de Morte Uma Visão Global e o Papel Do Brasil

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Pena de morte: uma visão global e o papel do Brasil Somos pioneiros em acabar com a execução oficial por parte do Estado, mas as polícias matam seis por dia. Por Mauricio Santoro por Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais publicado 19/02/2015 08h59 CartaCapital | Por Mauricio Santoro* Em janeiro de 2015, pela primeira vez um brasileiro foi executado por um governo estrangeiro. Policiais da Indonésia fuzilaram Marco Archer, que havia sido condenado por tráfico de drogas naquele país. A execução confrontou o Brasil com a realidade brutal da aplicação da pena de morte. Por que houve uma forte crítica externa ao governo indonésio? As execuções foram ilegais à luz do direito internacional ou a Indonésia está em seu direito soberano? As autoridades brasileiras agiram corretamente ao convocar para consultas seu embaixador em Jacarta? Para responder às perguntas, é preciso analisar como a pena de morte se encaixa no debate contemporâneo de relações internacionais e conhecer o surpreendente e pioneiro papel que o Brasil desempenhou nesse tema. Panorama Internacional Desde a Segunda Guerra Mundial há uma objeção crescente à pena de morte, que acompanha a valorização dos direitos humanos e o repúdio às catástrofes humanitárias do século XX. Esses movimentos levaram à abolição dessa forma de punição em diversos países. Atualmente, cerca de 70% eliminaram-na de seus códigos legais ou não a aplicam mais. Em 2013, por exemplo, 22 países (pouco mais de 10% do total mundial) realizaram execuções. Que Estados ainda utilizam a pena de morte? Na estimativa da Anistia Internacional, a China sozinha executa mais do que o resto do mundo algo em torno de 2 mil pessoas por ano, embora os dados sejam imprecisos devido à dificuldade de acesso ao sistema jurídico chinês. Nos demais países, ocorreram cerca de 800 execuções confirmadas em 2013 80% na Arábia Saudita, Irã e Iraque. Todos esses quatro governos têm em comum o fato de serem regimes autoritários, que cerceiam de maneira cotidiana os direitos humanos de seus cidadãos. Poucas democracias mantêm a pena de morte e as únicas que a utilizam com frequência são os Estados Unidos e a Indonésia. No caso americano, há uma distinção importante: os estados podem optar por aboli-la. Dezoito dos 50 assim o fizeram. Nos anos 2000, Nova York, Nova Jersey, Novo México e Illinois, entre outros, tomaram essa decisão. Texas, Flórida e Ohio concentram cerca de 70% das mortes. Na década de 1970, a Suprema Corte dos Estados Unidos chegou a proibir sua aplicação, julgando-a incompatível com a Constituição.

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Page 1: Pena de Morte Uma Visão Global e o Papel Do Brasil

Pena de morte: uma visão global e o

papel do Brasil

Somos pioneiros em acabar com a execução oficial por parte do Estado, mas as

polícias matam seis por dia. Por Mauricio Santoro

por Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais — publicado 19/02/2015 08h59

CartaCapital |

Por Mauricio Santoro*

Em janeiro de 2015, pela primeira vez um brasileiro foi executado por um governo

estrangeiro. Policiais da Indonésia fuzilaram Marco Archer, que havia sido condenado

por tráfico de drogas naquele país. A execução confrontou o Brasil com a realidade

brutal da aplicação da pena de morte. Por que houve uma forte crítica externa ao

governo indonésio? As execuções foram ilegais à luz do direito internacional ou a

Indonésia está em seu direito soberano? As autoridades brasileiras agiram corretamente

ao convocar para consultas seu embaixador em Jacarta? Para responder às perguntas, é

preciso analisar como a pena de morte se encaixa no debate contemporâneo de relações

internacionais e conhecer o surpreendente e pioneiro papel que o Brasil desempenhou

nesse tema.

Panorama Internacional

Desde a Segunda Guerra Mundial há uma objeção crescente à pena de morte, que

acompanha a valorização dos direitos humanos e o repúdio às catástrofes humanitárias

do século XX. Esses movimentos levaram à abolição dessa forma de punição em

diversos países. Atualmente, cerca de 70% eliminaram-na de seus códigos legais ou não

a aplicam mais. Em 2013, por exemplo, 22 países (pouco mais de 10% do total

mundial) realizaram execuções.

Que Estados ainda utilizam a pena de morte? Na estimativa da Anistia Internacional, a

China sozinha executa mais do que o resto do mundo – algo em torno de 2 mil pessoas

por ano, embora os dados sejam imprecisos devido à dificuldade de acesso ao sistema

jurídico chinês. Nos demais países, ocorreram cerca de 800 execuções confirmadas em

2013 – 80% na Arábia Saudita, Irã e Iraque. Todos esses quatro governos têm em

comum o fato de serem regimes autoritários, que cerceiam de maneira cotidiana os

direitos humanos de seus cidadãos.

Poucas democracias mantêm a pena de morte e as únicas que a utilizam com frequência

são os Estados Unidos e a Indonésia. No caso americano, há uma distinção importante:

os estados podem optar por aboli-la. Dezoito dos 50 assim o fizeram. Nos anos 2000,

Nova York, Nova Jersey, Novo México e Illinois, entre outros, tomaram essa decisão.

Texas, Flórida e Ohio concentram cerca de 70% das mortes. Na década de 1970, a

Suprema Corte dos Estados Unidos chegou a proibir sua aplicação, julgando-a

incompatível com a Constituição.

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Organizações de direitos humanos como a Anistia Internacional e a Human Rights

Watch são contra a pena de morte em qualquer situação, considerando-a uma violação

do direito à vida – que o Estado deve proteger, e não destruir – e uma forma de punição

cruel, desumana e degradante. A Igreja Católica tem a mesma posição.

Quatro tratados internacionais proíbem a pena de morte, pelo menos em tempos de paz.

Um deles, no âmbito da ONU: o Segundo Protocolo Opcional ao Pacto Internacional

dos Direitos Civis e Políticos (1989), e três acordos regionais, um na Organização dos

Estados Americanos e dois na Europa. O tratado das Nações Unidas foi ratificado por

81 países, de todos os continentes.

A adesão a esses acordos é voluntária. Contudo, além dos tratados formais, desde 2007

a Assembleia Geral da ONU aprova resoluções recomendando que todas as nações

adotem moratória nas execuções. Esses documentos não têm a força obrigatória da lei,

mas possuem considerável influência política. Ir contra eles significa desrespeitar a

opinião pública internacional.

Razões para o repúdio internacional à Indonésia

A Indonésia não ratificou nenhum tratado internacional contra a pena de morte, mas

havia demonstrado sensibilidade às tendências globais, abstendo-se de utilizá-la por

diversos anos, entre 2008 e 2013. Essa decisão foi mantida mesmo diante dos graves

desafios de segurança enfrentados pelo país, como o combate a grupos extremistas

político-religiosos. Em grande medida, representava parte dos esforços dos novos

governos democráticos estabelecidos após a ditadura de Suharto (1967-1998) para

respeitar os direitos humanos.

Eleito presidente em 2014, Joko Widodo fez da pena de morte um cavalo de batalha

eleitoral e transformou sua aplicação – em particular no caso do tráfico de drogas – em

promessa de campanha. Em grande medida, para ganhar a simpatia dos grupos

muçulmanos que advogam políticas mais repressivas com relação a entorpecentes. É a

contramão das tendências globais que apontam para abordagens mais liberais e

flexíveis, como as adotadas por diversos estados americanos, em vários países da

Europa Ocidental e no Uruguai, e como recomendada pela comissão da ONU sobre

drogas.

A Indonésia é um importante destino turístico internacional, sobretudo por conta de Bali

e outras ilhas conhecidas pela beleza, e que são também pontos importantes do

comércio global de drogas. O país já havia executado anteriormente outras pessoas por

tráfico, mas até 2015 nenhum cidadão de uma nação rica havia sido punido dessa forma.

Neste ano, o holandês Ang Kim Soei foi vítima dessa punição, na mesma sequência em

que foram fuzilados o brasileiro Archer, Daniel Enemuo e Namaona Denis (Nigéria) e

Tran Thi Bich Hanh (Vietnã).

Foi um contraste com o passado, quando houve casos como o do francês Michael Blanc,

libertado em 2014 depois de forte campanha internacional em sua defesa. Ele havia sido

sentenciado à prisão perpétua na Indonésia, ao ser preso no aeroporto com 3,8 kg de

haxixe, escondidos em equipamento de mergulho.

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A mudança brusca no comportamento do governo da Indonésia, em contradição com as

recomendações internacionais, levou a críticas externas ao presidente Widodo. Brasil e

Holanda condenaram as execuções e a rejeição de seu pedido de clemência por seus

cidadãos e convocaram seus embaixadores em Jacarta para consultas – importante sinal

de censura diplomática. O governo brasileiro acompanha os casos de Archer e de

Rodrigo Gularte desde suas prisões, há mais de uma década, e havia feito discreta e

constante pressão de bastidores junto aos antecessores de Widodo.

O papel do Brasil no debate

Há uma longa tradição brasileira de repúdio à pena de morte que antecede em muito a

execução de Archer. O Brasil foi pioneiro em abolir essa forma de punição. Desde a 1ª

Constituição republicana, em 1891, o país a proíbe em tempos de paz, embora a

mantenha em tempos de guerra para crimes ligados à segurança nacional. À época, na

América Latina, só a Costa Rica tinha legislação semelhante.

A decisão brasileira foi fruto de trauma das décadas finais da monarquia, um dos piores

erros judiciais da história do País: a execução do fazendeiro Manuel da Mota Coqueiro

(1855), condenado erroneamente como mandante de uma chacina de oito colonos em

suas terras. O imperador lhe negou o perdão, mas ficou tão impactado quando soube de

sua inocência que passou a conceder a graça aos homens livres condenados à morte –

nenhum foi executado a partir da década de 1860, embora escravos ainda o fossem até

1876.

A ditadura de 1964-1985 rompeu com a tradição humanitária da república e

reestabeleceu a pena de morte, mas não chegou a implementá-la oficialmente. Os

assassinatos dos opositores do regime foram execuções extrajudiciais, crimes que

ocorreram à margem do sistema jurídico.

Na Constituição de 1988, a proibição da pena de morte é cláusula pétrea. Não pode ser

alterada por emenda constitucional, plebiscito ou referendo ou qualquer outra forma de

mobilização – importante freio institucional aos ardores das versões brasileiras de

Widodo. Após a promulgação da nova Carta Magna, o Brasil ratificou os acordos

internacionais da ONU e da OEA contra a pena de morte, posição que reforça nos

fóruns multilaterais e que, coerentemente, defendeu nas críticas à Indonésia.

É importante que o debate impulsionado pela condenação de Marco Archer e Rodrigo

Gularte possa estimular também a reflexão sobre as contradições brasileiras. Mesmo

sem pena de morte, as polícias do País matam pelo menos seis pessoas por dia. Muitos

desses casos são execuções sumárias. Que tenhamos políticas de segurança pública à

altura dos princípios humanitários expressos em nossa Constituição.

*Maurício Santoro é cientista político, assessor de direitos humanos da Anistia

Internacional e integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI.