Pensamento e Linguagem

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A relação entre pensamento e linguagem é um problema filosófico tra- dicional que tem sido objeto de debates aprofundados na filosofia ana- lítica entre aqueles que defendem que o pensamento requer linguageme os seus adversários mentalistas que afirmam a existência de pensa- mento não-linguístico. Um representante típico da primeira posição(lingualismo) é Davidson, o qual considera ser possível demonstrarfilosoficamente a existência de uma conexão entre conceito, crença elinguagem. Pelo contrário, mentalistas como Fodor, apesar de defen- derem que o pensamento se assemelha a uma linguagem (a “linguagemdo pensamento”), por ser constituído por símbolos ou representaçõesmentais com uma sintaxe e semântica combinatória, afirmam o pri- mado do pensamento sobre a linguagem natural, bem como a possibi- lidade de pensamento em seres não-linguísticos. A reflexão sobre esteproblema deve ser empiricamente informada, razão pela qual são tidosem consideração contributos do domínio da ciência cognitiva.

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PENSAMENTO E LINGUAGEMEDIO DE 2014 doCOMPNDIO EM LINHADE PROBLEMAS DE FILOSOFIA ANALTICA2012-2015 FCT Project PTDC/FIL-FIL/121209/2010Editado porJoo Branquinho e Ricardo SantosISBN: 978-989-8553-22-5Compndio em Linha de Problemas de Filosofia AnalticaCopyright 2014 do editorCentro de Filosofia da Universidade de LisboaAlameda da Universidade, Campo Grande, 1600-214 LisboaPensamento e LinguagemCopyright 2014 do autorRui SilvaTodos os direitos reservadosResumoA relao entre pensamento e linguagem um problema filosfico tra-dicional que tem sido objeto de debates aprofundados na filosofia ana-ltica entre aqueles que defendem que o pensamento requer linguagem eosseusadversriosmentalistasqueafirmamaexistnciadepensa-mentono-lingustico.Umrepresentantetpicodaprimeiraposio (lingualismo)Davidson,oqualconsideraserpossveldemonstrar filosoficamente a existncia de uma conexo entre conceito, crena e linguagem. Pelo contrrio, mentalistas como Fodor, apesar de defen-derem que o pensamento se assemelha a uma linguagem (a linguagem do pensamento), por ser constitudo por smbolos ou representaes mentaiscomumasintaxeesemnticacombinatria,afirmamopri-mado do pensamento sobre a linguagem natural, bem como a possibi-lidade de pensamento em seres no-lingusticos. A reflexo sobre este problema deve ser empiricamente informada, razo pela qual so tidos em considerao contributos do domnio da cincia cognitiva.Palavras-chavePensamento,linguagem,linguagemdopensamento,relatividade lingustica, perceo.AbstractThe relation between thought and language is a traditional philosophi-cal problem that has been object of in-depth debates in the analytic phi-losophy between those who claim that thought requires language and their mentalist opponents, who defend the existence of nonlinguistic thought.Atypicalrepresentativeofthefirstposition(lingualism)is Davidson, who claims that it is possible to demonstrate philosophically theexistenceofaconnectionbetweenconcept,beliefandlanguage. On the contrary, mentalists like Fodor, in spite of claiming that thou-ghtissimilartoalanguage(thelanguageofthought),inthesense that it is constituted by symbols or mental representations with a com-binatorialsyntaxandsemantics,defendtheprimacyofthoughtover natural languages, as well as the possibility of thought in nonlinguistic creatures.Thereflectiononthisproblemmustbeempiricallyinfor-med,andforthisreasonthepapertakesintoaccountcontributions from the domain of cognitive science.KeywordsThought,language,languageofthought,linguisticrelativity, perception.Publicado pela primeira vez em 2014Pensamento e Linguagem1IntroduoA tradio filosfica, desde a filosofia grega at ao empirismo ingls, sempretendeuaconceberopensamentocomoalgodeanterior linguagemeestaltimacomoumveculooumeiodemanifesta-o de pensamentos previamente formados. No incio do tratado Da Interpretao,doOrganon,Aristtelesafirmaexplicitamentequeas palavras escritas so sinais dos sons verbais e que estes so sinais dos estados de alma. Isto no significa que a tradio tenha considerado a linguagem como inoperante do ponto de vista cognitivo, mas quando se reconhecia o seu efeito sobre o conhecimento humano, o mesmo era normalmente considerado negativo. Deste modo, Francis Bacon, no Novum organum, em particular na sua teoria dos idola, denunciou a influncia nociva dos preconceitos ou enviesamentos presentes na linguagem(aquiloaquechamavaosidolafori).Deformaanloga, Berkeley alertou para o efeito obscurecedor das palavras sobre o co-nhecimento humano:Enquanto eu confinar os meus pensamentos s minhas prprias ideias despidas de palavras, no vejo como poderei facilmente errar. () Mas a obteno desta vantagem pressupe uma libertao completa do en-gano das palavras. () Seria, portanto, desejvel que cada um se esfor-asse ao mximo por obter uma viso clara das ideias que considerasse, separadasdaroupagemeestorvodaspalavras,quetantocontribuem para cegar o juzo. (Berkeley 1996: 21-22)Os contornos do debate contemporneo sobre a ao da linguagem sobre o pensamento comeam a desenhar-se no sc. XVIII, momento emqueseassisteaumareavaliaodarelaoentrepensamentoe linguagem. Neste contexto, importa realar a conceo humboldtia-na da linguagem como rgo formador do pensamento (Humboldt 1999: 54) e como possuidora de uma viso do mundo (1999: 59). De acordo com a linha de argumentao de Humboldt, no h ob-jetossemconceitos,porqueaexperincialimita-seaofereceruma amlgamadedadossensoriais,enohconceitossemlinguagem, porque esta que articula e organiza o pensamento. Deste modo, a linguagem teria um papel constitutivo quer a nvel do pensamento, quer a nvel da realidade.Rui Silva 2Compndio em Linha de Problemas de Filosofa Analtica Edio de 2014Nosc.XX,doislinguistasnorte-americanos,SapireWhorf, formularamatesedarelatividadelingustica,quetemestimulado diversasinvestigaesempricassobrearelaoentrelinguageme pensamento. A referida tese afirma que a lngua que falamos deter-mina ou, numa verso mais fraca, influencia o modo como pensamos epercebemosarealidade.Maisprecisamente,atesedarelativida-delingusticaassentaemtrspontosfundamentais(cf.Gentner& Goldin-Meadow 2003: 4):(1)Diferentes lnguas aplicam diferentes categorias ao mundo.(2)Aestruturaeascategoriasdeumalnguaafetamomodo como percebemos e compreendemos a realidade.(3)Diferentes lnguas contm diferentes vises do mundo. AseguintepassagemdeWhorf,queevocanaturalmente Humboldt,frequentementecitadacomoexpressoclaradarefe-rida tese: Ns dissecamos a natureza de acordo com linhas estabelecidas pela nos-sa lngua materna. As categorias e os tipos que abstramos do mundo dos fenmenos no so encontrados porque se impem aos observado-res; pelo contrrio, o mundo apresentado num fluxo caleidoscpico de impresses que tem de ser organizado pelas nossas mentes e isto significa, em larga medida, pelo sistema lingustico das nossas mentes. (Whorf 1956: 213)Deformasimilar,GeorgeOrwell,numfamosoapndicesua obra Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, descreve o modo como o regi-me totalitrio descrito neste romance tinha procedido a uma refor-ma da lngua inglesa de forma a formar uma Novilngua (Newspeak) quesupostamenteimpediriaaformulaodepensamentoscrticos ou subversivos.1 Temos aqui uma interessante irrupo no domnio da literatura daquilo a que se poderia chamar a tese do determinis-mo lingustico. No mundo acadmico, importa tambm destacar o movimento de defesa de uma linguagem politicamente correta (de-1 A Novilngua () fora concebida para satisfazer as necessidades ideolgicas do SOCING ou Socialismo Ingls. () O propsito da Novilngua pretendeu no apenas proporcionar um meio de expresso para a viso do mundo e os hbitos mentais especficos dos adeptos do SOCING, mas tambm tornar impossvel to-dasasoutrasformasdepensamento.Pretendia-seque()todoopensamento hertico () se tornasse literalmente impensvel, pelo menos na medida em que o pensamento depende da palavra.(Orwell 1997: 299-300)Compndio em Linha de Problemas de Filosofa Analtica Edio de 20143 Pensamento e Linguagempurada de preconceitos ou enviesamentos de natureza sexista, racista ou classista), o qual se baseia na crena de que a linguagem influencia o pensamento.Aquestoqueseagoracolocaadedeterminarqualotipode relao que existe entre pensamento e linguagem. Comearemos por fazerrefernciaarespostas filosficas aeste problema, mas porque esta questo s pode ser devidamente tratada por uma reflexo em-piricamenteinformada,serotambmconsideradoscontributosde disciplinascomoalingusticaeapsicologia,bemcomodaetolo-gia cognitiva, uma vez que o estudo do pensamento animal tambm pode lanar luz sobre o problema da relao entre linguagem e pen-samento.2Arelaoentrelinguagemepensamento:perspetivas filosficasA relao entre pensamento e linguagem j ocupa um lugar impor-tante na obra de Frege. Apesar de a filosofia da linguagem de Frege no estar, em rigor, comprometida com a tese do carcter lingusti-co do pensamento, a verdade que alguns pontos fundamentais da suafilosofiadalinguagemtornamdifcilconceberopensamento margem da linguagem. No seu famoso artigo Der Gedanke, Frege defendeuqueospensamentosnopertencemnemesferadasre-presentaes subjetivas, nem ao mundo exterior, mas a um terceiro domnio. De acordo com Frege, o pensamento uma entidade abs-trata, independente do sujeito que o apreende, e isto de tal modo que ele no deixa de ser verdadeiro se no for pensado (Frege 1993: 50). Concebido nestes termos, o pensamento no depende da linguagem. Todavia, Frege tambm afirma que existe um paralelismo entre lin-guagem e pensamento e que a anlise do pensamento dever ser feita atravs da anlise da linguagem, o que, no excluindo a possibilidade de pensamento no-lingustico, torna difcil a sua atribuio a criatu-ras no-lingusticas. Convm notar, a este respeito, que Frege tam-bm concebe o pensamento como o sentido de uma frase declarativa (avalivel como verdadeira ou falsa), o que torna difcil, na prtica, separar pensamento e linguagem (cf. Bermdez 2003: 19). O signi-ficado de uma frase dado pelas suas condies de verdade, e com Rui Silva 4Compndio em Linha de Problemas de Filosofa Analtica Edio de 2014base no significado assim caracterizado que se poderia identificar o que um falante quer dizer. Recorrendo a uma conhecida distino, haveria um primado explicativo do chamado sentence meaning sobre o speaker meaning.DepoisdeFrege,desenvolveu-senafilosofiadalinguagemcon-temporneaumalinhadeargumentaoimportanteemdefesado carcterlingusticodopensamentoquesebaseianaexistnciade umaconexonecessriaentreconceito,crenaelinguagem.Um dos principais defensores desta estratgia argumentativa Davidson, oqualconsideravaque,combasenumacaracterizaocorretadas noes de conceito e crena, se pode inferir a existncia de uma co-nexo necessria entre linguagem e pensamento. Na sua anlise do conceitodeconceito,Davidsondefendequeosconceitospossuem um carcter normativo e holstico que no pode ser reduzido capa-cidade de discriminar aspetos do ambiente e de responder de forma diferencialaestmulosexternos.Sefossepossvelreduziroscon-ceitos a uma tal capacidade, nada nos impediria de atribuir concei-tosaanimais.Davidsonalega,porm,queacapacidadepercetiva dediscriminarobjetosequivaleamerasdisposiesparareagirde determinado modo a certos objetos ou situaes, mas as disposies notmcarcternormativo.AoutrarazopelaqualDavidsonen-tende que os conceitos no podem ser reduzidos a princpios de dis-criminaoprende-secomoseuholismosemnticoepsicolgico; Davidson entende que s se possui um conceito C se dominarmos as relaes existente entre este conceito e outros conceitos associados. A seguinte passagem ilustra bem esta dupla crtica da possibilidade de conceitos em seres no-lingusticos:Os ratos so muito bons a distinguir gatos de rvores, lees e cobras. Mas ser capaz de discriminar gatos no a mesma coisa do que ter o conceito de gato. Tens o conceito de gato apenas se podes compreen-der a ideia de aplicar incorrectamente [misapplying] o conceito, de crer ou julgar que algo que no um gato um gato. Para ter o conceito de um gato, deves ter o conceito de um animal, ou pelo menos de um objeto fsico subsistente, o conceito de um objeto que se move de certas ma-neiras. (Davidson 2001: 124)Oholismosemnticoumatesecontroversa,queseraprecia-daabaixo,peloqueimportaaprofundaraideiadequeconceitose crenastmumcarcternormativo.Jvimosqueapossedeum conceitoenvolve,segundoDavidson,padresdecorreoaonvel Compndio em Linha de Problemas de Filosofa Analtica Edio de 20145 Pensamento e Linguagemdasuaaplicao.Deformaanloga,Davidsonalegaqueapossede crenas implica a conscincia do erro: No se pode ter uma crena a menos que se compreenda a possibilidade de se estar errado, e isto requer a apreenso do contraste entre verdade e erro, crena falsa e crenaverdadeira(Davidson1984:170).SegundoDavidson,uma tal distino requer o conceito de crena. Por seu turno, a noo de verdade objetiva que inerente ao conceito de crena requer um pro-cesso comunicativo ancorado num mundo partilhado e regulado por padreslingusticoscomuns.Ainteraosocialelingusticaseria, assim, uma condio necessria para a conscincia do erro.Emsuma,esteargumentocontraapossibilidadedepensamen-tono-lingusticobaseia-seemduaspremissasfundamentais:(1)a posse de crenas pressupe o conceito de crena; (2) o conceito de crenapressupelinguagem(cf.Davidson2001:102).Asegunda premissa aceitvel. Todavia, possvel alegar que um animal pode simplesmentesubstituirumacrenafalsaporoutraverdadeirasem que para tal seja necessrio o conceito de crena (Glock 2000: 56). Alm disso, reaes de surpresa nos animais, que podem ser provo-cadas por tcnicas experimentalmente controladas de desabituao, atravs das quais um animal confrontado com situaes ilgicas ou anormais, podem ser interpretadas como indcios de conscincia de erro. Por exemplo, pode atribuir-se o domnio de alguma aritmtica elementar(envolvendosubtraeseadiesat3,porexemplo)a bebs e chimpanzs com base em experincias nas quais eles exibem precisamentereaesdesurpresaperanteresultadosilgicos.2Tais reaesindiciariamumacapacidadedereconheceroerroqueno pressupe o conceito de erro. Nestes casos, seria lcito atribuir pen-samentos (embora rudimentares) a criaturas no-lingusticas. Preve-nindo uma objeo deste tipo, Davidson (2001: 104) apresenta uma conceo exigente de surpresa, de acordo com a qual estar surpreen-dido requer o conceito de crena. Neste sentido mais sofisticado, no se encontra nos animais o fenmeno da surpresa.2 Cf. Pinker (1994: 68-70). Por exemplo, numa experincia em que h dois bonecosnumpalco,quedeseguidaocultadocomumacortina,eemquese vumamoaretirarumbonecodopalco,quandoacortinaafastadaosbe-bs olham demoradamente para o palco se o resultado for ilgico; se virem, por exemplo, dois bonecos em vez de um.Rui Silva 6Compndio em Linha de Problemas de Filosofa Analtica Edio de 2014Masomentalismo,enquantodefesadoprimadodoscontedos mentaissobrealinguagemnatural,tambmrecolheimportantes apoios na filosofia analtica. Uma referncia clssica, a este respeito, Grice (1989), o qual defendia que o significado de expresses lingus-ticas deve ser analisado a partir de elocues (entendidas como atos de fala) e que o significado destas ltimas, por seu turno, depende do contedodeestadosmentais,maisprecisamente,dasintenesde significao de um falante. Explicar o significado de elocues com base nas intenes do falante parece estar de acordo com intuies comuns, mas uma tal estratgia comporta algumas dificuldades.Considere-se,porexemplo,apersonagemHumptyDumptyde LewisCarroll,aqual,depoisdeafirmarqueglriasignificaum bonito argumento arrasador, acrescenta que, quando usa uma pala-vra, ela significa simplesmente aquilo que eu escolhi que ela signifi-casse nem mais nem menos (Carroll 1988: 196). Ningum aceita-r uma tal teoria do significado, pelo que Grice, na sua tentativa de reduodosignificadolingusticoaestadospsicolgicos,procurou evitaresteperigodearbitrariedade,eh,defacto,entreGricee Humpty Dumpty uma diferena fundamental: na sua explicao do significadolingustico,aformaodaintenorequerumaexpec-tativa de sucesso (cf. Barber 2010: 34). Assim sendo, uma elocuo significa que p se, e somente se, as seguintes condies forem cum-pridas (Grice 1989: 213-223):(1)Aelocuofeitacomaintenodeinduzirno interlocutor/auditrio a crena de que p;(2)O interlocutor/auditrio reconhece a referida inteno;(3) o reconhecimento da referida inteno que conduz forma-o da crena de que p.Com esta formulao algo tcnica, Grice pretende evitar a apre-sentaodecontraexemplosparaasuatentativadereduodesig-nificados a intenes, mas apesar deste esforo Searle construiu um exemplo interessante que pe em xeque a teoria de Grice. O exem-plo o de um soldado norte-americano que se encontra em Itlia, na II Guerra Mundial, e que detido por soldados italianos. No saben-do falar italiano nem alemo, para convencer os seus captores de que alemo, ele profere a nica frase em alemo que conhece, da auto-ria de Goethe: Kennst Du das Land wo die Zitronen blhen?. De Compndio em Linha de Problemas de Filosofa Analtica Edio de 20147 Pensamento e Linguagemacordo com as condies fixadas por Grice, a frase deveria significar algo como sou um militar alemo, mas, de facto, significa conhe-cesaterraondeoslimoeirosflorescem?AobjeodeSearle uma boa ilustrao da dificuldade de reduzir significados lingusticos acontedosmentais,constituindoumachamadadeatenoparaa necessidade de complementar uma anlise mentalista do significado lingustico com outra dimenso essencial, a das convenes lingusti-cas que vigoram numa comunidade. Em todo o caso, e apesar de no terdesenvolvidoumaconceonaturalistadamente,Gricelanou as bases para um programa mentalista de naturalizao do contedo mental.A hiptese da Linguagem do Pensamento (que podemos designar por LOT, tal como conhecida em ingls) defende, pelo contrrio, queopensamentoanterioraemaisfundamentaldoquequal-quer lngua histrica, pelo que se pode atribuir pensamento a seres no-lngusticos.3 Recorde-se que, segundo Frege, se devia estudar o pensamento a partir da linguagem e conceber os pensamentos como os sentidos de frases. De acordo com a hiptese LOT, devemos partir no de frases, mas de atitudes proposicionais. Alm disso, as atitudes proposicionaisexprimemrelaescomrepresentaesmentaisou frmulas numa linguagem do pensamento, a qual deve ser claramen-te distinguida da linguagem natural ou de qualquer lngua histrica. A linguagem do pensamento um meio representacional, realizado fisicamente no crebro, que se assemelha a uma linguagem na medida em que constituda por smbolos (representaes mentais que cor-respondemspalavrasdeumalnguahistrica)reguladosporuma sintaxe prpria e dotados de uma dimenso semntica, por se referi-rem a objetos ou aspetos da realidade. O pensamento consistiria na manipulao destes smbolos de acordo com a respetiva sintaxe. Para se designar esta linguagem do pensamento usa-se tambm o termo mentals; falar seria traduzir uma frase em mentals para uma ln-gua histrica como o portugus ou o ingls. Nas palavras de Pinker:3 Importa salientar que a hiptese LOT no uma hiptese puramente filo-sfica, no sentido de envolver investigaes essencialmente conceptuais. Ela tem consequncias empiricamente testveis e foi desenvolvida a partir da dcada de 70 do sc. XX por corresponder s pressuposies de importantes teorias e progra-mas de investigao no domnio da cincia cognitiva.Rui Silva 8Compndio em Linha de Problemas de Filosofa Analtica Edio de 2014Saber uma lngua, ento, saber como traduzir mentals em sries de palavras e vice-versa. Pessoas sem uma lngua continuariam a ter men-tals,ebebseanimaisno-humanostmpresumivelmentedialetos ainda mais simples. (Pinker 1994: 82)A ideia de que o pensamento conceptual tem uma estrutura simi-lar a uma linguagem motivada pelo facto de o pensamento partilhar certas caractersticas-chave com a linguagem, como a produtividade (a capacidade de formar corretamente novos pensamentos ou frases), a composicionalidade (o significado de representaes mentais com-plexas,talcomoodeexpresseslingusticas,determinadopela significado e estrutura das partes constituintes) ou a sistematicidade (cf. e.g. Fodor 2008: 7). Outra atrao da hiptese LOT o facto de searticularnaturalmentecomainfluenteconceocomputacional da mente, segundo a qual a cognio humana consiste no processa-mento de smbolos de acordo com regras ou algoritmos.Em todo o caso, a hiptese LOT enfrenta vrias dificuldades. Em primeirolugar,apesardeeladependerdanoocrucialdesmbo-lo,unanimementereconhecidoqueossmbolosdestahipottica linguagemdopensamentopermanecemumanooobscura.Uma caracterizaopreliminarconsisteemdescrev-loscomoconfigu-raes de matria e energia que tm propriedades simultaneamente causaiserepresentacionais.(cf.Pinker1997:76eSchneider2011: 14). Tambm a noo de uma frase ou frmula na linguagem do pen-samento de certo modo esquiva, na medida em que no se refere a uma entidade observvel, mas a uma abstrao funcional que no pode ser simplesmente inferida [read off ] de padres imediatamente observveis de atividade cerebral (Bermdez 2003: 28).Emsegundolugar,Fodor,oautordaprimeiragrandeobrade refernciaparaoprogramadalinguagemdopensamento(Fodor 1975),acabouporreconhecerque,apesardeosdiferentesmdu-losdamentehumanateremumcarctercomputacional,osistema central no seria computacional, e isto devido a dois problemas fun-damentais: o problema da relevncia e o problema da globalidade. O primeiro refere-se ao facto de os seres humanos nos seus raciocnios, juzosedecisesteremacapacidadedeselecionaremainformao relevanteemcadacontexto.Ora,extremamentedifcilsimular tal capacidade em termos computacionais. O segundo problema diz respeitoaofactodeacogniohumanasersensvelapropriedades Compndio em Linha de Problemas de Filosofa Analtica Edio de 20149 Pensamento e Linguagemglobais,quetranscendemoslimitesdecadaumdosseusmdulos especficos. O papel cognitivo de uma crena, por exemplo, parece dependerdeaspetosdorespetivocontexto,masdeacordocoma conceo computacional da cognio humana deve ser a sintaxe das representaes mentais, e no os contextos de pensamento e de ao, a determinar os processos cognitivos.4Anoocrucialdeconceitoigualmenteproblemtica.Fodor adotaumaconceocartesianadosconceitosporoposioauma pragmatista. Isto significa que o pensamento e a perceo so ante-riores ao e que o saber que anterior ao saber como (Fodor 2008: 10-14).Aomesmotempo,lamentaquesetenhadifundidonafilo-sofia e na cincia cognitiva uma conceo pragmatista dos conceitos, de acordo com a qual o que essencial no a relao do pensamen-tocomosobjetosrepresentados,mascomasaesouocompor-tamento.Ora,segundoFodor(2008:9),opragmatismotalvez a pior ideia que a filosofia j teve. Tambm o atomismo semntico defendidoporFodorcontroversoerejeitado,porexemplo,pela assim chamada semntica do papel conceptual, muito influente nos domnios da filosofia da linguagem e da cincia cognitiva. Esta teo-ria semntica tem claras afinidades com a conceo funcionalista da mente, segundo a qual os estados mentais so estados funcionais que se distinguem pelo seu papel causal, mais especificamente, pelas suas relaes com estmulos externos, com outros estados mentais e com reaescomportamentais.Deformaanloga,asemnticadopapel conceptualafirmaqueosignificadodeexpresseslingusticaseo contedo de estados mentais so determinados pelo papel das respe-tivas expresses ou estados. Esta teoria semntica pode ser articulada comahipteseLOT,masdivergeclaramentedaversofodoriana, uma vez que apresenta uma conceo holstica e, como diria Fodor, pragmatista dos conceitos. Relativamente a este ltimo ponto, a re-ferida teoria semntica defende que o significado e o contedo deri-vam do uso, e no ao contrrio (Greenberg & Harman 2006: 295). A semntica do papel conceptual conduz naturalmente a um ho-lismo do significado e do contedo mental, o qual, segundo Fodor, tem consequncias desastrosas. Vejamos porqu. Partindo da crtica 4Paraumatentativaderesolverestesproblemasdentrodoespritodeuma teoria computacional da mente, cf. Schneider (2011: cap. 2 e cap. 3).Rui Silva 10Compndio em Linha de Problemas de Filosofa Analtica Edio de 2014de Quine distino analtico/sinttico, Fodor e Lepore (1992: cap. 6)alegamqueasemnticadopapelconceptualnodispedeum critrioparadistinguirentreasrelaesinferenciaisquesocons-titutivasdosignificadooucontedomentaldaquelasquenoso. Comoemdiferentesindivduos(ounomesmoindivduoaolongo dotempo)smbolosecontedosseintegramemdiferentesredes derelaes,entodiferentesindivduosnopoderiampartilharos mesmos conceitos ou estados intencionais; uma consequncia grave queinviabilizariaapsicologiaintencional.Poroutrolado,opapel conceptual no teria carcter composicional, ao contrrio do pensa-mento, o que retiraria plausibilidade semntica do papel conceptual enquanto teoria da representao mental. Uma linha de defesa poss-vel contra esta crtica do holismo consiste em elaborar uma conceo desemelhanadecontedo,emvezdanoomaisfortedeiden-tidadedecontedo.Outrapossibilidadepassapelodesdobramento docontedomentalemdoiscomponentes:ocontedoestreito(o papel conceptual presente numa mente individual) e o contedo am-plo (que diz respeito relao entre representaes mentais e os seus referentes ou condies de verdade no mundo exterior).53Arelaoentrelinguagemepensamentoenquanto problema empricoAdiscussodevriosproblemasfilosficostradicionaispodereco-lher importantes benefcios de investigaes empricas, e o problema da relao entre pensamento e linguagem disso um bom exemplo. Emparticular,investigaespsicolgicaselingusticassoparticu-larmente relevantes para determinar o tipo de relao existente en-tre pensamento e linguagem. Veja-se o caso da tese de Sapir-Whorf, inspirada pelo estudo de diferenas significativas entre lnguas euro-peias e lnguas de ndios norte-americanos, diferenas que abrangem querodomniodasemntica,querodasintaxe.Comojserefe-riu, Sapir e Whorf defendiam que a lngua que falamos afeta o modo comopensamosepercebemosarealidade.Masaverdadequea 5 Em Block 1994, encontra-se uma defesa da semntica do papel conceptual que faz referncia a estas duas linhas de defesa, que so, por seu turno, objeto de anlise crtica em Fodor and Lepore 1992: cap. 6.Compndio em Linha de Problemas de Filosofa Analtica Edio de 201411 Pensamento e Linguagemtese de Sapir-Whorf foi objeto de um forte reao crtica na segunda metade do sc. XX.Um dos fatores que contribuiu para a crtica da tese da relativi-dadelingusticaprende-secomumareapreciaodasdivergncias existentesentreosvocabulriosdecores.Comosesabe,diferen-teslnguasclassificamdeformadiferenteascores.Emrusso,por exemplo,azul-escuroeazul-clarosoduascoresdiferentes,ese compararmoslnguaseuropeiascomlnguasdeoutroscontinentes encontramos diferenas bem mais significativas. Estas diferenas po-deriam ser consideradas como uma ilustrao da tese da relatividade lingustica, uma vez que, de um ponto de vista estritamente fsico, no h razes para segmentar o espectro de cores de um determina-do modo e no de outro. A ao da linguagem parece ser decisiva na classificao das cores, mas o verdadeiro problema o da influncia dos vocabulrios de cores ao nvel cognitivo. Num primeiro momen-to,esobainflunciadatesedeSapir-Whorf,conjeturou-sequea linguageminfluenciaacapacidadedereconhecererecordarcores. Todavia,Heider(1972),nasequnciadeumainvestigaosobrea lnguaDani,desferiuumsriogolpenatentativaderecorreraos vocabulrios de cores para fundamentar a tese de Sapir-Whorf. Com efeito,areferidalnguatemdoistermosbsicosparacores(quese podem traduzir aproximadamente como claro e escuro), mas ape-sar desta especificidade Rosch Heider observou que os seus falantes classificam os objetos de forma anloga aos falantes de lngua inglesa. As suas investigaes levaram-na a concluir que a perceo de cores se baseia em alguns pontos focais no espectro das cores que seriam identificados pelos falantes de diferentes lnguas. Em contraste com a tese de Sapir-Whorf, a perceo da cor seria determinada pela bio-logia e no pela estrutura de uma lngua.Outro fator que contribuiu para o declnio da tese de Sapir-Whorf foi a influncia conjunta exercida por Chomsky, com a sua defesa do carcter fundamentalmente universal e inato da gramtica, e pela j analisada hiptese LOT, a qual, com a sua tese de que os seres huma-nospartilhamnoessencialamesmaestruturaconceptual,permite estender o inatismo lingustico de Chomsky ao campo da semntica. A seguinte declarao de dois defensores da hiptese LOT ilustra de Rui Silva 12Compndio em Linha de Problemas de Filosofa Analtica Edio de 2014forma clara a oposio da referida hiptese ao princpio da relativi-dade lingustica:Ascategoriaseestruturaslingusticasresultamdecorrespondncias [mappings] mais ou menos diretas com um espao conceptual preexis-tente,programadonanossanaturezabiolgica:ossereshumanosin-ventam palavras que rotulam os seus conceitos. (Li & Gleitman 2002: 266)Convm notar, a este respeito, que uma conceo inatista dos con-ceitos no implica uma negao do papel da experincia no que diz respeitopossedeconceitos;enquantooempiristaalegaqueos conceitos so abstrados da experincia, o inatista contrape que so ocasionadospelaexperincia(Fodor1998:127).Emambososca-sos, o papel da experincia reconhecido. Um defensor da hiptese LOTpodeinclusivamentesentir-seincomodadocomuminatismo conceptual radical e defender que grande parte dos nossos conceitos so psicologicamente primitivos e no inatos e que em vez de um nativismo de conceitos se pode optar por um nativismo de mecanis-mos de formao de conceitos (Fodor 1998: 137 e 142).6Emtodoocaso,nosepodedizerqueatesedeSapir-Whorf tenha sido refutada, porque continua a haver um nmero significa-tivo de investigadores a defender verses fracas da referida tese ou a descobrir exemplos dos chamados efeitos whorfianos. Em primeiro lugar, a enorme diversidade semntica existente entre as lnguas tor-na pouco plausvel a ideia de que as nossas redes conceptuais possam sersatisfatoriamentefundadasnumabaseessencialmentebiolgica. Um autor que merece ser destacado neste contexto Levinson, que contrapeaoInatismoSimples,resultantedaarticulaoentre atesedagramticauniversaldeChomskyeahipteseLOT,uma 6 Partindo de uma anlise do conceito de maaneta (um candidato improv-vel a conceito inato), Fodor (1998: cap. 6) defende que conceitos deste tipo no podem ser adquiridos indutivamente atravs da formulao e teste de hipteses, pois um tal procedimento pressupe uma compreenso prvia dos conceitos. Eles devemserconcebidoscomopropriedadesdeaparecimento(appearanceproper-ties), como por exemplo vermelhido. Assim sendo, o que constitui a proprieda-de maaneta facto de ela nos afetar [strike] de certo modo. Mais precisamente: o que as maanetas tm em comum enquanto maanetas serem o tipo de coisa a que o nosso tipo de mentes se liga (ou ligaria [lock]) a partir de instncias do esteretipo de maaneta (Fodor 1998: 137).Compndio em Linha de Problemas de Filosofa Analtica Edio de 201413 Pensamento e LinguagemAlternativaCoevolucionria,assimchamadapordefenderquea evoluo humana em geral, e da linguagem em particular, se desen-volve em dois eixos, o gentico e o cultural. O Inatismo Simples, ao procurar fundar a capacidade lingustica numa base fundamental-mentebiolgica,terianegligenciadoerradamenteadimensocul-tural da linguagem. Levinson, pelo contrrio, apesar de reconhecer que a nossa constituio biolgica impe limites variabilidade lin-gustica, tambm afirma que ela insuficiente para explicar satisfa-toriamente boa parte das propriedades relevantes da linguagem, que s podem ser compreendidas com base na interao entre biologia e cultura. Muitas diferenas semnticas ou conceptuais requerem uma explicao apoiada em prticas sociais e culturais. A base biolgica da linguagem, longe de formar no essencial o nosso espao conceptual, deve ser entendida como um mecanismo de aprendizagem maravi-lhosamente adaptado para discernir a variabilidade de sistemas cul-turais distintos (Levinson 2003: 27).Em segundo lugar, assistiu-se nas ltimas dcadas a um interesse renovado na obra de Vygotsky, o psiclogo russo que, apesar de re-conhecerquealinguagemeopensamentotmorigensdiferentes, defendeu que desde cedo se entrelaam no desenvolvimento cogniti-vo da criana. Vygotsky pode emprestar alguma plausibilidade a uma verso fraca da tese de Sapir-Whorf, na medida em que defende que alinguagempromovecertascapacidades.Porexemplo,investiga-es sobre a influncia de sistemas lingusticos de numerao sobre a aprendizagem da matemtica tm revelado que os falantes de lnguas com um sistema pobre de numerais tm maiores dificuldades no do-mnio da matemtica (cf. Gordon 2010).Emterceirolugar,novasinvestigaesincidindojnosobre ovocabulriodecoresmassobrecategoriasespaciais(cf.e.g.Le-vinson1996)sugeremqueadiversidadedecategoriaslingusticas espaciaisserefleteemtarefascognitivas.Umexemploilustrativo destainflunciafaz-sesentirnosquadrosderefernciaespacialin-corporadosnumalngua:relativos(baseadosemdistinescomo esquerda/direita,frente/atrs),intrnsecos(assimchamadosporse basearemempropriedadesintrnsecasdeumobjetoouaspetosde uma paisagem) e absolutos (baseados em direes cardiais, que po-dem ser indicadas pelos prprios pontos cardiais, mas no necessaria-mente). Levinson, que conduziu estudos sobre a influncia cognitiva Rui Silva 14Compndio em Linha de Problemas de Filosofa Analtica Edio de 2014destesquadrosdereferncia,concluiu,porexemplo,quefalantes deumalnguacaracterizadaporumquadroabsolutodereferncia manifestam um melhor sentido de orientao espacial (cf. Levinson 1996 e 2003).Emquartolugar,estudosposterioresinvestigaodeRosch HeidersobrealnguaDanisugeremaexistnciadeumainflun-cia limitada dos vocabulrios de cores no reconhecimento de cores, edefensoresdeumaposiouniversalista(poroposioteseda relatividadelingustica)admitemsintomaticamentequeopndu-lo da investigao sobre as cores est a dirigir-se novamente para o relativismo(cf.Regieretal.2010).7Aexistnciadeumaoscilao entre os polos do relativismo e do universalismo no debate sobre a influnciadalinguagemaonveldascorespodedever-seaofacto deaperceodacorenvolverdoissistemas,umlingusticoeou-tro no-lingustico, cujo peso relativo avaliado diferentemente por diferentes investigadores.8Em quinto lugar, vrios autores tm contestado tentativas tradi-cionaisdeidentificaremoeshumanasfundamentaisque,emvir-tudedasuabasebiolgica,teriamumcarcteruniversal.Goddard (2010),porexemplo,defendendoatesedequealinguagemea culturamoldamaexperinciaemocional,mostraadificuldadede traduzirasemoesbsicasdesignadaspelostermosinglesessad e unhappy para chins; os termos mais parecidos seriam bei, que se distingue, porm, pelo seu carcter simultaneamente pessimista e fatalista, e chou, que se pode traduzir por preocupao, dada a sua distintiva orientao para o futuro. Wierzbicka (2009) alerta, a este respeito,paraofactodeastentativasdeidentificaodeemoes bsicas universais serem permeveis ao etnocentrismo por negligen-ciarem as variaes lingusticas e culturais.7 Encontra-se em Lund 2003: 16-18 uma exposio concisa do significado dos estudos sobre as cores para a tese da relatividade lingustica. Malt & Wolff 2010 contmestudosmaisrecentes,nossobreainflunciadalinguagemsobreas cores, mas tambm sobre outras dimenses da influncia da linguagem sobre o pensamento.8 Roberson e Hanley (2010) defendem precisamente uma teoria dual do pro-cessamento da cor, considerando que no h razes para se considerar o sistema lingustico como superficial relativamente ao sistema no-lingustico.Compndio em Linha de Problemas de Filosofa Analtica Edio de 201415 Pensamento e LinguagemPorltimo,estudossobreindivduosbilinguestambmpermi-tem lanar alguma luz sobre a relao entre linguagem e pensamen-to.Pavlenko(2011),baseadaemdadosintrospetivosdeindivduos bilingues, destaca o facto de serem frequentes as referncias a uma relao estreita entre linguagem e identidade pessoal, bem como ao sentimentodeduplapersonalidade;9amesmahistriadevida,por exemplo, pode aparecer a uma luz diferente se narrada numa segun-da lngua (cf. Pavlenko 2011: 4-9).4Pensamento animalOdebatefilosficosobrearelaoentrepensamentoelinguagem estende-senaturalmenteaodomniodacognioanimal,umavez que se for correta a tese de que o pensamento tem carcter lingus-tico seremos forados a concluir que os animais no pensam. Inver-samente,provadaaexistnciadepensamentoanimal,caiatesede que o pensamento requer linguagem. No debate sobre o pensamento animal,podemosdistinguirtrsposiesfundamentais:olingua-lismo,atesedequessereslingusticospensam;omentalismo,a teseopostasegundoaqualsepodeatribuirpensamentoacriatu-ras no-lingusticas; e uma posio intermdia (ou conjunto de po-siesintermdias),que,emboraaceitandoaexistnciadepensa-mento no-lingustico, ressalva que se trata um tipo de pensamento substancialmente diferente do pensamento humano. Um lingualista como Davidson nega, como vimos, a existncia de pensamento ani-mal, considerando as atribuies comuns de crenas e desejos a ani-mais e crianas pr-lingusticas como sendo simplesmente uma faon deparler,aopassoqueummentalistaqueperfilhe,comoFodor,a hiptese LOT no ter dificuldades em afirmar a existncia de pen-samento animal.indiscutvelqueseencontramnomundoanimalexemplosde racionalidadeinstrumental,incluindocomportamentosquevisam induzir outros animais em erro, o que indicia um certo grau de so-9 Num inqurito realizado por Pavlenko e Dewaele sobre o modo como indi-vduos bilingues avaliam o impacto da lngua sobre a sua identidade, vrios par-ticipantes afirmaram que ser bilingue equivale a ter duas identidades diferentes (Pavlenko 2011: 9-10).Rui Silva 16Compndio em Linha de Problemas de Filosofa Analtica Edio de 2014fisticao mental, mas a questo central a de saber se necessrio atribuirdesejosecrenasparaexplicarocomportamentoanimal. Segundo uma famosa regra metodolgica da psicologia (que se esten-de etologia), o cnone de Morgan, no se deve explicar um com-portamento com base em faculdades psicolgicas de nvel superior se omesmocomportamentoforexplicvelcombaseemmecanismos mais bsicos. Isto significa que s se dever atribuir desejos e crenas aanimaissenohouveroutraestratgiaexplicativadocomporta-mento animal. A este respeito, podem explorar-se vrias hipteses. Dummett,porexemplo,procuraevitarasposiesextremasdo lingualismoedomentalismo,recorrendonoodeprotopensa-mentoparacaracterizarotipodepensamentono-lingusticoque seencontranosanimaisedistingui-lo,assim,dopensamentotpi-codesereslingusticos.Oprotopensamentoanimaldistinguir-se--iapelasuaincapacidadededesprendimentoperanteaatividadee circunstncias presentes e por o seu veculo consistir em imagens espaciaissobrepostassobreperceesespaciais(Dummett1994: 123). Os protopensamentos podem ser corretos ou incorretos, mas de um modo diferente do pensamento lingustico ou proposicional, dado que a noo de correo aqui eminentemente pragmtica por remeter para o sucesso dos comportamentos. Deste modo, a expli-caodocomportamentoseriadiferenteparasereslingusticose no-lingusticos, porque s no primeiro caso, e no no segundo, se poderia aplicar uma psicologia de desejos e crenas.Outra forma de distinguir o tipo de pensamento caracterstico de criaturaslingusticaseno-lingusticasapropostaporBermdez (2003),oqualdestacadoistraosfundamentaisnumaexplicao psicolgica: em primeiro lugar, ela tem um carcter teleolgico, na medidaemqueconcebeocomportamentocomoestandoorienta-do para certos fins; em segundo lugar, o comportamento a explicar no pode ser determinado de forma linear por estmulos externos: aessnciadeumaexplicaopsicolgicaqueelaexplicaocom-portamentonostermosdecomoumacriaturarepresentaoseuam-biente, e no simplesmente nos termos dos estmulos que ela deteta (Bermdez2003:8).Destemodo,importaesclarecerquetipode representaes caracterizam o pensamento animal. Ao contrrio de Dummett,quedefendequeopensamentoanimalfundamental-menteno-proposicional,Bermdezdefendequeumaexplicao Compndio em Linha de Problemas de Filosofa Analtica Edio de 201417 Pensamento e Linguagemadequada do comportamento animal deve incluir uma psicologia de desejos e crenas, a qual seria possvel com base numa semntica de sucesso. Recorre-se aqui noo de sucesso, porque o contedo das crenas poderia ser determinado por condies de utilidade, as quais so estados de coisas cuja existncia conduz satisfao de desejos, enquantoocontedodosdesejosseriadeterminvelporcondies de satisfao, que consistem nos estados de coisas cuja existncia con-duzcessaodocomportamentocausadopelodesejo(Bermdez 2003: 104-5).Rui SilvaUniversidade dos AoresLanCog Group/Universidade de LisboaRefernciasBarber, Alex. 2010. Language and Thought. Milton Keynes: Open University Press.Berkeley,George.1996.PrinciplesofHumanKnowledge.ThreeDialogues.Oxford: Oxford University Press.Bermdez, Jos. 2003. 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