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David Foster Wallace

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    Pense na lagosta

    por DAVID FOSTER WALLACE

    Uma incurso num mundo de exageros, mau gosto, prazeres e crueldade

    O enorme, pungente e muitssimo bem divulgado Festival da Lagosta do Maine ocorre a cada final de julhona regio costeira central do estado, isto , o lado ocidental da baa de Penobscot, tronco nervoso daindstria da lagosta do Maine. A chamada regio costeira central vai de Owls Head e Thomaston, ao sul,at Belfast, ao norte. (Na verdade poderia se estender at Bucksport, mas nunca conseguimos passar deBelfast seguindo rumo ao norte pela Rota 1, cujo trfego no vero , como se pode imaginar, inimaginvel.)As duas principais comunidades da regio so Camden, com suas famlias ricas tradicionais, marina,restaurantes cinco estrelas e pousadas maravilhosas, e Rockland, um vilarejo de pescadores muito antigoque a cada vero abriga o festival no histrico Harbor Park, bem ao lado da gua.

    O turismo e as lagostas so os principais setores de atividade da regio costeira central, dois ramosassociados ao clima quente, e o Festival da Lagosta do Maine, mais que uma interseco dessas indstrias,representa uma coliso proposital, alegre, lucrativa e barulhenta. O assunto escolhido para este artigo darevista Gourmet o 56o FLM, promovido de 30 de julho a 3 de agosto de 2003, neste ano com o temaoficial de Faris, Risadas e Lagostas. O pblico pagante total superou as 80 mil pessoas, em parte graasa um anncio veiculado nacionalmente na CNN em junho, no qual a editora snior da revista Food &Winesaudava o FLM como uma das melhores festividades gastronmicas do mundo.

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    Pontos altos do festival em 2003: as apresentaes de Lee Ann Womack e Orleans, o concurso de belezaanual da Deusa do Mar do Maine, o grande desfile do sbado, a Corrida Sobre Gaiolas de Lagosta emMemria a William G. Atwood no domingo, a Competio Anual de Culinria Amadora, os brinquedos eestandes do parque de diverses, as barraquinhas de comida e a Praa de Alimentao Principal da flm,onde perto de 12 mil quilos de lagostas do Maine fresquinhas so consumidos aps serem preparados naMaior Panela Para Lagostas do Mundo, perto do acesso norte do festival. Tambm so oferecidossanduches de lagosta, folhados de lagosta, lagosta salteada, salada de lagosta Down East, sopa creme delagosta, ravili de lagosta e bolinhos fritos de lagosta. possvel obter lagosta thermidor em umrestaurante tradicional chamado Black Pearl, no cais noroeste do Harbor Park.

    Um amplo estande de madeira de pinho patrocinado pelo Conselho de Fomento Lagosta do Mainedistribui panfletos gratuitos com receitas, dicas de consumo e curiosidades sobre lagostas. O vencedor daCompetio de Culinria Amadora da sexta-feira preparou Potinhos de Lagosta com Aafro, receita queagora se encontra disponvel ao pblico para download em www.mainelobsterfestival.com. H camisetasde lagostas, bonecos articuladosde lagostas, lagostas inflveis para piscinas e chapus acoplveis delagosta com enormes garras escarlates que chacoalham em molas. Este correspondente viu tudo isso,acompanhado por uma namorada e ambos os pais um dos quais, a propsito, nascido e criado noMaine, ainda que no interior da regio mais ao norte, uma terra de batatas a um mundo de distncia doturismo da regio costeira central.

    ara fins prticos, todo mundo sabe o que uma lagosta. Como de costume, todavia, existe muito maispara saber do que a maioria de ns se importa em descobrir tudo uma questo de interesses

    pessoais. Em termos taxonmicos, uma lagosta um crustceo marinho da famlia homaridae,caracterizado por cinco pares de patas articuladas dos quais o primeiro termina em grandes garrassemelhantes a pinas, utilizadas para subjugar presas. Como muitas outras espcies de carnvorosbentnicos, as lagostas so ao mesmo tempo caadoras e saprfagas. Possuem antenas, olhospedunculares e guelras nas patas. H mais ou menos uma dzia de tipos diferentes de lagostas ao redor domundo, mas a espcie aqui relevante a Homarus americanus, conhecida como lagosta do Maine oulagosta-americana.A palavra inglesa lobster vem do ingls antigo loppestre, supostamente uma corruptelade locusta, a palavra latina para gafanhoto que tambm a raiz de lagosta, combinada com o inglsantigo loppe, que significa aranha.

    Alm disso, um crustceo um artrpode aqutico da classe crustacea, que inclui caranguejos, camares,cracas, lagostas e lagostins-de-gua-doce. Tudo isso est l, na enciclopdia. E os artrpodes so membrosdo filo Arthropoda, que abrange insetos, aranhas, crustceos e quilpodes/diplpodes, que possuem comoprincipal trao comum, alm da ausncia de uma estrutura centralizada cerebroespinal, um exoesqueletoquitinoso composto por segmentos,ao qual se articulam pares de apndices.

    questo que lagostas so basicamente insetos marinhos gigantes. (Por sinal, o termo usado pelosnativos da regio costeira central para falar de lagostas inseto. Por exemplo: Aparece l em casa

    no sbado, vamos cozinhar uns insetos.) Como a maioria dos artrpodes, as lagostas remontam ao pero-

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    do jurssico; biologicamente so anteriores aos mamferos que bem que poderiam ser de outro planeta. E particularmente em seu estado natural marrom-esverdeado, brandindo as garras como se fossem armase agitando as grossas antenas no so bonitas de se ver.E verdade que se trata de lixeiras do mar,comedoras de coisas mortas, embora tambm comam um pouco de moluscos vivos, certos tipos de peixesmachucados e por vezes umas s outras. Cultura intil: armadilhas para lagostas geralmente usam comoisca arenques mortos.

    Mas tambm so boas de comer. Ou pelo menos o que achamos agora. At certa altura do sculo XIX,todavia, a lagosta era literalmente um alimento de classe baixa, consumido apenas pelos pobres eencarcerados. At mesmo no rude ambiente penal dos primrdios da histria americana algumas dascolnias tinham leis limitando o uso de lagostas na alimentao dos detentos a uma nica vez por semana,porque isso era julgado cruel e incomum, semelhante a obrigar pessoas a comerem ratos. Uma das razespara esse baixo prestgio era a fartura de lagostas na Nova Inglaterra de ento. Abundncia inacreditvelso as palavras com que uma fonte descreve a situao, inclusive com relatos de peregrinos de Plymouthcapturando lagostas vontade com as mos nuas ou do antigo litoral de Boston coberto de lagostas apsuma srie de tempestades. Elas foram consideradas um incmodo fedorento e modas para serem usadascomo adubo. Tambm preciso levar em conta que as lagostas pr-modernas eram cozidas mortas e emseguida postas em conserva, geralmente em sal ou embalagens hermticas primitivas. A indstria dalagosta no Maine teve incio com uma dzia dessas fbricas de conserva nos anos 1840, de onde aslagostas eram enviadas a lugares to distantes quanto a Califrnia, e a demanda existia somente por serembaratas e possurem um alto teor de protena, basicamente um combustvel mastigvel.

    Hoje em dia, claro, a lagosta chique, uma iguaria, poucos graus abaixo do caviar. Possui uma carnemais saborosa e substancial que a maioria dos peixes, com um gosto sutil se comparado ao gosto de mardos mexilhes e dos mariscos. Na imaginao alimentcia populardos Estados Unidos, a lagosta se tornouo anlogo marinho do fil, ao lado do qual tantas vezes servida como Surf and Turf na parte mais carados cardpios de cadeias de restaurantes.

    Alis, um projeto bvio do FLM e de seu patrocinador onipresente, o Conselho de Fomento Lagosta doMaine, combater a ideia de que a lagosta uma comida luxuosa, cara ou prejudicial sade, adequadasomente a paladares afetados ou como petisco ocasional para escapar da dieta. Palestrase panfletosenfatizam sem descanso que a carne de lagosta tem menos calorias, menos colesterol e menos gordurasaturada que a carne de frango. E na Praa de Alimentao Principal possvel comprar um quarto (griada indstria para uma lagosta de 600 gramas), um copinho com 120 gramas de manteiga derretida, umsaco de batatas fritas e um pozinho com manteiga por 12 dlares, o que apenas um tantinho mais caroque jantar no McDonalds. claro que o hbito corriqueiro de mergulhar carne de lagosta em manteigaderretida torpedeia todas essas alegres curiosidades saudveis sobre gordura, o que nunca mencionadopelo material promocional do Conselho, assim como os informativos da indstria da batata nuncamencionam o creme azedo e os cubinhos de bacon.

    aiba que no Festival da Lagosta doMaine a democratizao da lagosta vem acompanhada por toda ainconvenincia macia e concesso esttica da verdadeira democracia. Confira, por exemplo, a

    supracitada Praa de Alimentao Principal, para a qual existe uma fila constante digna da Disneylndia, e

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    que consiste em meio quilmetroquadrado de balces de cafeteria protegidos por um toldo e fileiras delongas mesasinstitucionais onde amigos e desconhecidos sentam-se coladinhos, quebrando, mastigando ebabando. um lugar quente, onde o teto descado aprisiona o vapor e os odores, sendo que estes ltimosso fortes e apenas parcialmente relacionados a alimentos. tambm um lugar barulhento, e umaporcentagem considervel do rudo total mastigatria.

    A comida servida em bandejas de isopor, os refrigerantes no tm gelo nem gs, o caf caf de loja deconvenincia em mais isopor e os talheres so de plstico (no possvel encontrar nenhum daquelesgarfos especiais e compridos que servem para extrair a carne da cauda, ainda que alguns clientesespertostragam os seus de casa). O nmero de guardanapos fornecido tambm no chega nem perto dosuficiente, levando-se em considerao que comer lagosta uma lambuzeira, especialmente quando seest espremido em bancos ao lado de crianas de idades variadas e estgios vastamente diversos decoordenao motora isso sem mencionar as pessoas que de algum jeito conseguiram contrabandear suaprpria cerveja em enormes isopores que bloqueiam a passagem, ou aquelas que aparecem de repente comtoalhas de plstico que espalham sobre pores considerveis das mesas numa tentativa de reserv-las (asmesas) aos seus grupinhos. E assim por diante.

    Isolado, qualquer um desses exemplos naturalmente no passa de um incmodo trivial, mas o fato que oFLM se mostra cheio desses pequenos aborrecimentos irritantes por exemplo, quando voc descobreque precisa pagar 20 dlares a mais por uma cadeira dobrvel se quiser se sentar ao assistir a alguma dasgrandes atraes do Palco Principal; ou a loucura desenfreada que se instala na Tenda Norte quandocomea a distribuio dos copinhos minsculos, que mais parecem dedais, com bocadinhos das receitasfinalistas da Competio de Culinria; ou a aclamadssima final do concurso de beleza Deusa do Mar doMaine, que se revela excruciantemente longa e consiste sobretudo em infinitos agradecimentos ehomenagens a patrocinadores locais. Melhor nem falar sobre a terrvel inadequao dos banheirosqumicos ou sobre o fato de no haver lugar algum para se lavar as mos antes ou depois de comer.

    Na verdade o Festival da Lagosta do Maine uma feira interiorana de nvel mdio com gancho culinrio, ea esse respeito no difere muito dos festivais de caranguejos de Tidewater, dos festivais de milho do Meio-Oeste, dos festivais de chili do Texas etc.,e compartilha com esses acontecimentoso paradoxo central detodos os apinhados eventos comerciais populares: no para todos. Nada contra a eufrica editora sniorda Food & Wine, mas eu ficaria surpreso se descobrisse que ela realmente j esteve aqui no Harbor Park,entre multides matando a tapa os mosquitos da zona do canal enquanto comem Twinkies fritose assistemao professor Paddy-Whack aterrorizando as crianas sobre pernas de pau de 1,80 metro, vestido com umsobretudo de onde saltam em todas as direes lagostas de plstico dependuradas em molas.

    Um parntese: na verdade, muitas coisas podem ser ditas a respeito das diferenas entre a classetrabalhadora de Rockland e o sabor acentuadamente populista do festival versusa confortvel e elitistaCamden com sua paisagem carssima, suas lojas tomadas inteiramente por suteres de 200 dlares efileiras de casas vitorianas transformadas em pousadas de luxo. E tambm a respeito dessas diferenascomo os dois lados da grande moeda que o turismo nos Estados Unidos. Confesso que nunca entendi porque a ideia de frias divertidas de tantas pessoas calar chinelos e culos de sol e se arrastar por umtrfego enlouquecedor at locais tursticos quentes e lotados com o intuito de provar um sabor local quepor definio arruinado pela presena de turistas. Isso tudo pode ser uma questo de personalidade egostos inatos: o fato de eu no gostar de locais tursticos significa que nunca vou compreender seu

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    encanto, e assim provavelmente no sou a pessoa mais indicada para falar sobre isso (o suposto encanto).Do meu ponto de vista, provvel que ser turista faa mesmo algum bem para a alma, mesmo que apenasde vez em quando. Todavia, no que faa bem para a alma de algum modo revigorante ou alentador, masde um jeito severo e obstinado de vamos-encarar-os-fatos-com-honestidade-e-tentar-encontrar-um-modo-de-lidar-com-eles. Minha experincia pessoal no a de que viajar pelo pas seja relaxante ouamplie os horizontes, ou de que mudanas radicais de lugar e contexto tenham um efeito salutar, mas simde que o turismo intranacional radicalmente constritivo e humilhante da pior forma hostil minhafantasia de ser um indivduo genu-no, de viver de algum modo fora e acima de todo o resto. Ser um turistamassificado, para mim, se tornar um puro americano contemporneo: alheio, ignorante, vido por algoque nunca poder ter, frustrado de um modo que nunca poder admitir. macular, atravs de puraontologia, a prpria imaculabilidade que se foi experimentar. se impor sobre lugares que, em todas asformas no econmicas, seriam melhores e mais verdadeiros sem a sua presena. confrontar, em filas eengarrafamentos, transao aps transao, uma dimenso de si mesmo to inescapvel quanto dolorosa:na condio de turista voc se torna economicamente significativo mas existencialmente detestvel.

    lagosta, em essncia, um alimento de vero. Isso porque agora preferimos lagostas frescas, o quesignifica que elas precisam ter sido capturadas recentemente, o que por razes tanto tticas quanto

    econmicas ocorre em profundidades inferiores a 45 metros. Lagostas tendem a ficar mais famintas eativas (isto , mais fceis de capturar) quando a temperatura da gua fica entre 7 e 10 graus, como tpicodo vero. No outono a maioria das lagostas do Maine migra para guas mais profundas, seja em busca decalor ou para evitar as ondas pesadas que golpeiam o litoral da Nova Inglaterra durante o inverno inteiro.Algumas se enterram no leito marinho. Talvez hibernem; ningum sabe ao certo. tambm no vero queas lagostas trocam de carapaa mais especificamente, do incio metade de julho.

    Artrpodes quitinosos crescem trocando de carapaa, mais ou menos da mesma forma que compramosroupas maiores medida que envelhecemos e ganhamos peso. Como as lagostas podem viver mais de 100anos, podem tambm ficar bem grandes, chegando a passar dos 9 quilos ainda que nos dias de hojesejam raras as lagostas da terceira idade, pois as guas da Nova Inglaterra esto cheias de armadilhas.Enfim, disso vem a diferena culinria entre lagostas de casca dura e de casca mole.Uma lagosta de cascamole uma lagosta que acabou de trocar de carapaa. Ambas so oferecidas nos cardpios de vero dosrestaurantes da regio costeira central, nos quais as lagostas de casca mole so um pouco mais baratasmesmo sendo mais fceis de destrinchar e donas de uma carne considerada mais suave.O motivo dodesconto que uma lagosta em fase de troca utiliza uma camada de gua do mar como isolamentoenquanto a nova carapaa endurece, e por causa disso quando se arrebenta uma lagosta de casca mole hum pouquinho menos de carnee um fragrante jorro dgua que se espalha sobre tudo, s vezes espirrandocomo um limo e atingindo um companheiro de mesa bem no olho. Se inverno ou se voc estcomprando lagostas em algum lugar distante da Nova Inglaterra, por outro lado, d quase para apostarque a lagosta vai ter a casca dura, que por motivos bvios mais transportvel.

    Como prato principal la carte, a lagosta pode ser assada, grelhada, cozida ao vapor, refogada,salteada,feita em wok ou no micro-ondas.Mas o mtodo mais comum a fervura. Quem gosta de comerlagostas em casa provavelmente a prepara desta forma, pois ferver lagostas muito fcil. necessrio umtacho grande com tampa, que preenchido com gua at mais ou menos a metade (a recomendao mais

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    comum so 2 litros e meio de gua por lagosta). O ideal gua do mar, ou adicione duas colheres de sopade sal a cada litro de gua da torneira. Tambm interessante saber o peso de cada lagosta. Espera-se agua ferver, coloca-se uma lagosta de cada vez, cobre-se o tacho e aumenta-se o fogo at a gua voltar aferver.Ento preciso baixar o fogo e deixar o tacho em fogo brando dez minutos para o primeiro meioquilo de lagosta, e acima disso trs minutos para cada meio quilo. (Isso considerando-se que esto sendousadas lagostas de casca dura, que, repito, se voc no mora entre Boston e Halifax, so provavelmente asnicas que conseguiu encontrar. No caso de lagostas de casca mole preciso subtrair trs minutos dototal.) As lagostas ficamvermelhas porque de algum modo essa fervura suprime todos os pigmentos naquitina, exceto um. Um teste simples para saber se as lagostas esto prontas tentar arrancar uma dasantenas se ela se descolar da cabea ao menor esforo, o bicho est pronto para comer.

    Um detalhe to bvio que a maioria das receitas nem se preocupa em mencionar que as lagostasprecisam estar vivas ao serem colocadas no tacho. Isso faz parte do apelo contemporneo da lagosta oalimento mais fresco que existe. No acontece decomposio alguma entre a pescaria e a hora de comer. Ealm de no precisarem ser limpas, temperadas nem depenadas, simples para os vendedores manter aslagostas vivas. Chegam vivas dentro das armadilhas, so colocadas em recipientes com gua do mar epodem (desde que a gua seja mantida aerada e as garras dos animais estejam amarradas ou presas paraimpedir que ataquem uns aos outros por causa do estresse do confinamento) sobreviver at o instante emque so fervidas. Um raciocnio similar embasa o que se chama de debicar frangos e galinhas poedeirasnas fazendas de confinamento. A mxima eficincia comercial exige que populaes imensas de galinceossejam confinadas em espaos desnaturadamente exguos, condies sob as quais muitas avesenlouquecem e bicam umas s outras at a morte. Como observao de carter puramente emprico,informo que a debicagem costuma ser um processo automatizado e que as galinhas no recebemanestsico nenhum. No sei se os leitores conhecem a debicagem ou as prticas relacionadas, como aextrao dos chifres do gado em fazendas industriais e o corte da cauda dos porcos em fazendas deconfinamento de sunos para impedir vizinhos psicoticamente entediados de arranc-las com os dentes eassim por diante.

    uase todo mundo j esteve em supermercados ou restaurantes que contam com aqurios de lagostasvivas, onde podemos escolher o jantar enquanto ele encara nosso dedo estendido. E uma parte

    importante do espetculo no Festival da Lagosta do Maine assistir s embarcaes dos pescadores delagostas atracando nos molhes da parte nordeste e descarregando o produto recm-pescado, que entotransferido manualmente ou com auxlio de carrinhos por cerca de 90 metros at os imensos tanquestransparentes empilhados ao redor do panelo do festival que, como mencionei, divulgado como aMaior Panela para Lagostas do Mundo e pode cozinhar de uma s vez mais de 100 lagostas para a TendaPrincipal.

    Ento aqui vai uma pergunta que se torna praticamente inevitvel diante da Maior Panela para Lagostasdo Mundo e pode vir tona em cozinhas espalhadas por todos os Estados Unidos: certo ferver viva umacriatura senciente para nosso mero prazer gustativo? Um conjunto de preocupaes relacionadas: seria aperguntaanterior uma manifestao enfadonha de sentimentalismo ou raciocnio politicamente correto?Nesse contexto, qual seria o sentido de certo? Seria isso tudo apenas uma questo de escolha pessoal?

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    Como talvez voc saiba, ou no, um grupo notrio conhecido como People for the Ethical Treatment ofAnimals(Pessoas pelo Tratamento tico dos Animais) acredita que a moralidade do ato de ferver lagostasno apenas uma questo de conscincia individual. Na verdade, uma das primeirssimas coisas queescutamos sobre o FLM... bem, vamos definir a cena: estamos vindo de txi do quase indescritivelmenteestranho e rstico aeroporto do condado de Knox, na madrugada anterior abertura do festival, dividindoo txi com um consultor poltico endinheirado que passa metade do ano morando na ilha Vinalhaven, quefica na baa (seu destino a balsa de Rockland).

    O consultor e o motorista esto respondendo a sondagens jornalsticas informais sobre aviso real dosmoradores da regio sobre o FLM, se por exemplo consideram o festival apenas um evento para atrairturistas e lucrar bastante ou se algo pelo qual os moradores do local esperam ansiosos, quegenuinamente promove seu orgulho como cidados etc. O motorista (que passou dos 70 anos e parecefazer parte de um peloto inteiro de aposentados contratado pela empresa de txi para ajudar noburburinho do vero, usa um broche de lapela com a bandeira americana e dirige de um modo que podesomente ser descrito como muito cauteloso) nos garante que os moradores apoiam e apreciam o FLM,embora faa vrios anos que ele mesmo no comparece ao evento e, parando para pensar, ningum que eleou a esposa conheam. Todavia o consultor seminativo participou de alguns festivais recentes (tive aimpresso de que fez isso por ordem da esposa), dos quais guardou como impresso mais vvida o fato deser necessrio esperar na fila por um tempo interminvel e lancinante at comprar as lagostas, eenquanto isso um monte de ex-malucos-beleza zanza para cima e para baixo distribuindo panfletosdizendo que as lagostas morrem sofrendo dores terrveis e que ningum deveria com-las.

    E calhou que os ps-hippies das reminiscncias do consultor eram ativistas do Peta. No havia ningumdo Peta vista no FLM de 2003,[1] mas eles foram uma presena ostensiva em muitos dos festivaisrecentes. Desde a metade dos anos 90, pelo menos, artigos publicados em todo tipo de jornais, do CamdenHerald ao New York Times, descreveram o Peta incitando boicotes ao Festival da Lagosta do Maine,muitas vezes empregando porta-vozes famosos como Mary Tyler Moore em cartas abertas e annciosdeclarando coisas como Lagostas so extraordinariamente sensveis e Para mim, comer uma lagostaest fora de questo. Mais concreto o depoimento oral de Dick, nosso floreado e deveras socivelcontato na locadora de automveis, segundo o qual o Peta esteve to presente nos ltimos anos que osativistas e os nativos do festival chegaram a uma espcie de homeostase de tolerncia precria, porexemplo: Tivemos alguns incidentes uns anos atrs. Uma mulher tirou quase toda a roupa, se pintouinteira de lagosta e quase acabou presa. Mas na maior parte do tempo eles so deixados em paz. [Umasequncia rpida de risadinhas ambguas, algo que acontece bastante com Dick.] Eles fazem a parte deles ens fazemos a nossa.

    Essa interlocuo inteira ocorre na Rota 1, em 30 de julho, durante um trajeto de 6 quilmetros ecinquenta minutos do aeroporto at a locadora para assinar os documentos de aluguel do carro. Depois devrios desdobramentos irreproduzveis das anedotas sobre o Peta, Dick (cujo genro pescador de lagostaspor ofcio e um dos fornecedores da Praa de Alimentao Principal) expe o que ele e sua famliaconsideram o fator atenuante crucial em toda essa questo sobre a moralidade de ferver lagostas vivas:No crebro das pessoas e dos animais existe uma parte que nos faz sentir dor, e os crebros das lagostasno tm essa parte.

    Sem entrar no mrito de essa tese estar incorreta por uns onze motivos diferentes, a declarao de Dick se

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    torna interessante por ser mais ou menos ecoada pelo pronunciamento oficial do FLM sobre lagostas edor, parte integrante de um teste chamado Teste seu QI de lagosta encartado no programa do festival de2003 por cortesia do Conselho de Fomento Lagosta do Maine: O sistema nervoso da lagosta muitosimples, e na verdade muito semelhante ao sistema nervoso do gafanhoto. descentralizado, sem umcrebro. No h um crtex cerebral, que nos humanos a rea do crebro que proporciona a experinciada dor.

    Embora soe mais sofisticado, boa parte do embasamento neurolgico desta afirmao ainda falsa ouimprecisa. O crtexcerebral humano a parte do crebro que lida com as faculdades superiores, como arazo, a autoconscincia metafsica, a linguagem etc. Sabemos que os receptores da dor fazem parte de umsistema muito mais antigo e primitivo de nociceptores e prostaglandinas administrados pelo troncoenceflico e o tlamo. Por exemplo, a experincia corriqueira de encostar a mo sem querer em um fornoquente e retir-la bruscamente antes mesmo de notar que h algo de errado se explica pelo fato de muitosdos processos atravs dos quais detectamos e evitamos os estmulos dolorosos no envolverem o crtex.No caso da mo e do forno, o crebro totalmente contornado; toda a ao neuroqumica importanteacontece na espinha dorsal.

    Por outro lado, verdade que o crtex cerebral est envolvido no que se costuma chamar de sofrimento,aflio ou experincia emocional da dor isto , experimentar estmulos dolorosos como desagradveis,muito desagradveis, intolerveis e assim por diante.

    ntes de avanarmos, vamos reconhecer que as questes sobre se e como diferentes tipos de animaissentem dor, e de se e por que seria justificvel lhes infligir dor para se alimentar deles, se mostram

    extremamente complexas e difceis. E neuroanatomia comparada apenas parte do problema. Como a dor uma experincia mental totalmente subjetiva, no temos acesso direto dor de ningum ou de coisaalguma, somente nossa; e at mesmo os princpios pelos quais podemos inferir que outros sereshumanos experimentam a dor e tm um interesse legtimo em no sentir dor envolvem filosofia pura metafsica, epistemologia, teoria dos valores, tica.

    O fato de nem mesmo os mamferos no humanos mais evoludos serem capazes de usar linguagem parase comunicar conosco a respeito de sua experincia mental subjetiva apenas a primeira camada dacomplicao adicional de tentar estender aos animais nossos raciocnios sobre dor e moralidade. E tudofica cada vez mais abstrato e intrincado medida que nos afastamos mais e mais dos ma-mferossuperiores e passamos aos bovinos e sunos, aos ces e gatos e aos roedores, e ento aos pssaros, aospeixes e por fim aos invertebrados, como as lagostas.

    Todavia o mais importante aqui que toda a questo da crueldade com os animais e da moralidade decom-los no apenas complexa, mas tambm desconfortvel. Ou pelo menos desconfortvel para mim,e para praticamente todos os meus conhecidos que apreciam uma ampla gama de alimentos e ao mesmotempo no querem se enxergar como cruis ou insensveis. At onde percebo, minha principal maneira delidar com esse conflito tem sido evitar pensar sobre esse assunto to desagradvel. Devo admitir quetambm me parece improvvel que muitos leitores de Gourmet queiram pensar sobre isso ou serquestionados a respeito da moralidade dos seus hbitos alimentares por uma revista mensal de

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    gastronomia. Porm, como a pauta definida para este artigo descrever como foi participar do FLM de2003, e por causa disso passar vrios dias em meio a uma grande massa de americanos comendo lagostas,e consequentemente ser mais ou menos impelido a pensar a fundo sobre lagostas e sobre a experincia decomprar e comer lagostas, calha que no existe uma maneira honesta de evitar certas questes morais.

    H vrios motivos para isso. Para comear, no existe s o problema de que as lagostas so fervidas vivas,mas tambm o de que quem faz isso voc ou pelo menos isso feito especificamente para voc, in loco. Em termos de moralidade, preciso admitir que isso uma faca de dois gumes. Pelo menos comerlagostas no torna ningum cmplice do sistema corporativo de fazendas de confinamento que produz amaior parte da carne de boi, porco e frango. Por causa, no mnimo, do modo como so comercializadas eembaladas, comemos essas carnes sem ter de pensar que um dia j foram criaturas sencientes e dotadas deconscincia s quais foram feitas coisas horrveis.

    Conforme mencionado, a Maior Panela para Lagostas do Mundo, que destacada como uma atrao noprograma do festival, fica bem vista de todos na rea norte do FLM. Tente imaginar um Festival daCarne do Nebraska cujas festividades inclussem caminhes estacionando e gado sendo descarregado poruma rampa para em seguida ser abatido diante do pblico no Maior Matadouro do Mundo ou coisaparecida seria impossvel.

    intimidade da coisa toda maximizada em casa, onde naturalmente a maioria das lagostas preparada e comida (percebam, contudo, o eufemismo semiconsciente preparada, que no caso das

    lagostas significa na verdade mat-las bem no meio das nossas cozinhas). No cenrio habitual, o sujeitochega em casa com as lagostas e toma pequenas providncias como encher o tacho de gua e pr paraferver, em seguida retira as lagostas da sacola ou qualquer que seja o recipiente em que tenham sidotrazidas... e ento coisas desconfortveis comeam a acontecer. Por mais estuporada que esteja depois dotrajeto, por exemplo, a lagosta costuma voltar vida de forma alarmante ao ser colocada na gua fervente.Quando despejada do recipiente para dentro do tacho fumegante, s vezes a lagosta tenta se segurar nasbordas do recipiente ou at mesmo enganchar as garras na beira do tacho como uma pessoa dependuradade um telhado, tentando no cair. Pior ainda quando a lagosta fica imersa por completo. Mesmo que osujeito tampe o tacho e saia de perto, normalmente possvel ouvir a tampa chacoalhando e rangendoenquanto a lagosta tenta empurr-la. Ou escutar as garras da criatura raspando o interior do tachoenquanto se debate. Em outras palavras, a lagosta apresenta um comportamento muito parecido com oque eu ou voc apresentaramos se fssemos atirados em gua fervente (com a bvia exceo dos gritos).Para falar de modo ainda mais direto, a lagosta age como se sentisse dores terrveis, fazendo com quealgumas pessoas abandonem a cozinha levando consigo um daqueles cronmetros de plstico para esperarem outro cmodo at o processo inteiro chegar ao fim.

    H um mito populista relevante acerca do apito agudo que por vezes escapa de uma panela onde se fervemlagostas. O som causado pelo vapor expelido pela camada de gua marinha entre a carne da lagosta e suacarapaa ( por isso que as lagostas de casca mole apitam mais que as de casca dura), mas a verso popafirma que esse som, semelhante aos guinchos de um coelho, o grito de morte da lagosta. As lagostas secomunicam atravs de feromnios na urina e no possuem nada remotamente parecido com oequipamento vocal necessrio para gritar, mas o mito bastante persistente o que pode, mais uma vez,

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    apontar para um desconforto baixo cultural a respeito dessa histria de ferver lagostas.

    maioria dos eticistas concorda que existem dois critrios principais para determinar se uma criaturaviva possui a capacidade de sofrer e, assim, possui interesses genunos que podemos ou no ter o

    dever moral de levar em conta.[2] Um deles se relaciona ao hardwareneurolgico requerido para aexperincia da dor com que o animal vem equipado nociceptores, prostaglandinas, neurorreceptores deopioides etc. O outro critrio se o animal demonstra algum comportamento associado dor. E necessria uma boa dose de ginstica intelectual e detalhismo behaviorista para no ver as aes de lutar,se debater e fazer tilintar tampas de panela como comportamentos associados dor. Segundo os zologosmarinhos, em geral uma lagosta leva de 35 a 45 segundos para morrer dentro da gua fervente. (Noconsegui encontrar nenhuma fonte que mencione o tempo necessrio pa-ra que morram em vaporsuperaquecido; espera-se que seja mais rpido.)

    Existem, claro, outras maneiras de matar sua lagosta in loco e assim obter o mximo de frescor. Algunscozinheiros tm como hbito espetar a ponta de uma faca afiada e pesada em um ponto logo acima dametade da distncia entre os olhos pedunculares da lagosta (mais ou menos onde o Terceiro Olho selocaliza nas frontes humanas). A alegao que isso ou mata a lagosta instantaneamente ou a tornainsensvel, e dizem que elimina ao menos parte da covardia envolvida no ato de jogar uma criatura emgua fervente e em seguida abandonar o recinto.

    At onde pude deduzir conversando com defensores do mtodo da facada na cabea, o raciocnio que ele mais violento, todavia no fim das contas mais misericordioso, alm de que a disposio de exerceragncia pessoal e aceitar a responsabilidade de apunhalar a cabea da lagosta de algum modo honra oanimal e autoriza algum a com-lo (os argumentos pr-facada muitas vezes tm um sabor vago deespiritualidade da caa do nativo americano). Mas o problema do mtodo da facada biologia bsica: ossistemas nervosos das lagostas no operam a partir de um, mas de diversos gnglios conhecidos comofeixes de nervos, meio que conectados em srie e distribudos por toda a parte de baixo do corpo doanimal, da proa popa. E incapacitar somente o gnglio frontal no costuma resultar em morte rpida ouperda de conscincia.

    Outra alternativa colocar a lagosta em gua salgada fria e em seguida ferver lentamente. Cozinheiros quedefendem este mtodo recorrem analogia da r, que supostamente pode ser impedida de saltar de umapanela fervente se a gua for esquentada aos poucos. Para poupar a todos de um resumo das minhaspesquisas, vou simplesmente garantir que a analogia entre rs e lagostas no se sustenta e digo mais, sea gua na panela no for gua marinha e aerada, a lagosta nela imersa submetida a uma lenta sufocao,embora esta no seja severa o suficiente para impedir que ela se debata e faa barulho quando a gua ficarquente o bastante para mat-la. Na realidade, lagostas fervidas aos poucos muitas vezes demonstram todoum conjunto adicional de reaes pavorosas e convulsivas que normalmente no so registradas nafervura comum.

    Em ltima anlise, as nicas virtudes confirmadas dos mtodos de lobotomia caseira e fervura lenta socomparativas, pois h quem prepare lagostas de formas ainda piores, mais cruis. Cozinheirosinteressados em poupar tempo s vezes colocam as lagostas vivas no micro-ondas (geralmente aps fazer

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    vrias perfuraes na carapaa, uma precauo cuja utilidade muitos adeptos do micro-ondas aprendemna prtica). Esquartejar a lagosta viva, por outro lado, faz sucesso na Europa alguns chefs dividem alagosta ao meio antes de cozinhar; outros gostam de arrancar as patas e a cauda e atirar somente essaspartes dentro da panela.

    h outras ms notcias relacionadas ao critrio de sofrimento nmero 1. Ainda que no sedestaquem pela viso ou pela audio, as lagostas possuem um tato muito refinado, auxiliado por

    centenas de milhares de pelos minsculos que se projetam atravs da carapaa. E por isso, naspalavras de T. M. Prud-den no clssico do ramo, About Lobsters, que embora envolta pelo que pareceuma armadura slida e impenetrvel, a lagosta capaz de receber estmulos e sensaes do mundoexterior to prontamente quanto se possusse uma pele macia e delicada. E as lagostas possuemnociceptores,[3] bem como verses invertebradas de prostaglandinas e neurotransmissores importantesatravs dos quais nossos prprios crebros registram a dor.

    Por outro lado, as lagostas no parecem contar com o equipamento necessrio para produzir ou absorveropioides naturais como as endorfinas ou as encefalinas, utilizados pelos sistemas nervosos mais avanadospara tentar lidar com a dor intensa. A partir desse fato, porm, pode-se concluir que as lagostas talvezsejam ainda mais vulnerveis dor, pois no contam com a analgesia embutida nos sistemas nervosos dosmamferos. Ou, em vez disso, concluir que a ausncia de opioides naturais implica a ausncia dassensaes de dor realmente intensas que essas substncias so destinadas a aliviar. Eu particularmentedetecto uma melhora sensvel no meu humor ao contemplar esta ltima possibilidade. possvel que aausncia de hardwarepara endorfinas/encefalinas signifique que para as lagostas a experincia crua esubjetiva da dor seja to radicalmente diferente da experincia dos mamferos que pode nem mesmo sermerecedora do termo dor. Talvez as lagostas tenham mais em comum com aqueles pacientes delobotomia frontal sobre quem a gente s vezes l, que relatam experimentar a dor de uma maneiratotalmente diferente de voc e eu. evidente que esses pacientes sentem dor fsica, neurologicamentefalando, mas no desgostam dela embora tambm no cheguem a gostar; como se eles sentissem dor,mas no sentissem nada a respeito dela ou seja, a dor no lhes aflige nem algo que desejem evitar.

    Talvez as lagostas, que tambm no possuem lobos frontais, sejam da mesma forma indiferentes aoregistro neurolgico de ferimento ou perigo que chamamos de dor. Existe, afinal de contas, uma diferenaentre: (1) a dor como um evento puramente neurolgico e (2) o sofrimento genuno, onde parece crucial oenvolvimento de um componente emocional, uma conscincia da dor como uma experincia desagradvel,algo a se temer/desgostar/querer evitar.

    Ainda assim, aps toda a abstrao intelectual, restam os fatos da tampa batendo freneticamente, daspatas enganchadas de forma pattica na beira da panela. Diante do fogo difcil negar de qualquer modoque aquilo seja uma criatura viva sentindo dor e tentando evitar/escapar dessa experincia dolorosa. Paraminha mente leiga, o comportamento da lagosta no tacho parece ser uma expresso de preferncia; e bem possvel que uma habilidade para formar preferncias seja o critrio decisivo para o sofrimento real.Em linhas gerais preferncia talvez seja um sinnimo de interesses, mas um termo melhor paranossos fins por ser menos abstratamente filosfico preferncia parece mais pessoal, e o que est emquesto justamente toda a ideia da experincia pessoal de uma criatura viva.

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    A lgica desta relao (preferncia sofrimento) pode ser mais facilmente compreensvel no casonegativo. Se cortarmos ao meio certos tipos de vermes, muitas vezes as metades seguiro rastejando por ae cuidando dos seus assuntos vermiformes como se nada tivesse acontecido. Quando, tomando como baseseu comportamento ps-operatrio, afirmamos que esses vermes no parecem estar sofrendo, estamos naverdade dizendo que no existe indcio algum de que os vermes saibam que algo de ruim aconteceu ou queprefeririam no ser divididos ao meio.

    As lagostas, porm, manifestam preferncias. Experimentos demonstraram que elas so capazes dedetectar mudanas de apenas 1 ou 2 graus na temperatura da gua; um dos motivos para seus complexosciclos migratrios (que muitas vezes abarcam mais de 180 quilmetros por ano) a busca portemperaturas que consideram mais agradveis. E, como j foi mencionado, as lagostas vivem no leitomarinho e no gostam de claridade se um aqurio cheio de lagostas for colocado luz do sol ou mesmosob a luz fluorescente de uma loja, elas vo sempre se aglomerar na parte mais escura. Por serem bastantesolitrias no oceano, as lagostas tambm claramente desgostam do amontoamento que parteindissocivel do seu cativeiro em aqurios, pois (como tambm j foi mencionado) um dos motivos pelosquais se amarram as garras das lagostas assim que elas so capturadas evitar que elas ataquem umas soutras por causa do estresse do armazenamento em espaos exguos.

    e qualquer modo, no FML, diante dos aqurios borbulhantes em frente Maior Panela paraLagostas do Mundo, observando as lagostas recm-pescadas se amontoando umas sobre as outras,

    sacudindo impotentes as garras amarradas, se escondendo nos cantos mais escuros ou se afastandoinquietas do vidro quando algum se aproxima, difcil no sentir que esto infelizes, ou assustadas,mesmo que seja alguma forma rudimentar dessas emoes... e, a propsito, por que a rudimentariedadetem que ser includa na questo? Por que uma forma primitiva e inarticulada de sofrimento seria menosurgente ou desconfortvel para a pessoa que est colaborando com ela ao pagar pelo alimento resultantedesse sofrimento? No estou tentando passar um sermo ao estilo do Peta ou pelo menos acho que no.Em vezdisso, estou tentando compreender e articular alguns dos questionamentos perturbadores que vm tona em meio s risadas, animao e ao orgulho comunitrio do Festival da Lagosta do Maine.A verdade que, se comparecendo ao festival o sujeito se permitir cogitar que as lagostas podem sofrer eque prefeririam que isso no acontecesse, o flm comea a ficar parecido com um circo romano ou umfestival de torturas medievais.

    Parece uma comparao exagerada? Se for o caso, exatamente por qu? Ou que tal esta: possvel que asgeraes futuras considerem as prticas de agronegcio e alimentares contemporneas da mesma maneiracomo hoje enxergamos os espetculos de Nero ou os experimentos de Mengele? Minha prpria reaoinicial achar tais comparaes histricas e extremadas todavia, o motivo pelo qual me parecemextremadas que eu creio que os animais so moralmente menos importantes que os seres humanos;[4] equando se trata de defender essa crena, ainda que para mim mesmo, preciso reconhecer que: (a) tenhoum bvio interesse egosta nessa crena, pois gosto de comer certos tipos de animais e quero ser capaz decontinuar fazendo isso, e (b) no consegui elaborar nenhum tipo de sistema tico pessoal dentro do qualessa crena se torne verdadeiramente justificvel em vez de ser apenas uma convenincia egosta.

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    evando em conta o lugar onde este artigo ser publicado e minha prpria falta de sofisticaoculinria, tenho curiosidade de saber se o leitor se identifica com quaisquer dessas reaes,

    confisses e desconfortos. Tambm no quero soar excessivo ou moralista, quando na verdade o que sinto confuso. Perguntas aos leitores de Gourmet que apreciam refeies bem-feitas e bem-apresentadasenvolvendo carne de vaca, vitela, cordeiro, porco, frango, lagosta etc.: Vocs pensam muito sobre a(possvel) condio moral e o (provvel) sofrimento dos animais envolvidos? Se pensam, quais convicesticas desenvolveram para se permitir no apenas comer, mas tambm saborear e desfrutar de iguarias base de carnes de animais (pois o desfrute refinado, em contraste com a mera ingesto, naturalmente arazo de ser da gastronomia)? Se, por outro lado, vocs no do a menor bola para confuses ouconvices e acham coisas como o pargrafo anterior puro umbiguismo sem sentido, o que em seu ntimofaz vocs sentirem que no existe realmente problema algum em desconsiderar de forma peremptria todaessa questo? Isto , a recusa em pensar nessas coisas seria o produto de um raciocnio ou na verdadevocs apenas no querem pensar sobre o assunto? E se for isso mesmo, por que no? Vocs chegam apensar, mesmo toa, sobre as possveis razes dessa relutncia em pensar no assunto? No estoutentando importunar ningum minha curiosidade genuna. Afinal de contas, ser muito consciente,atencioso e cuidadoso a respeito do que se come e de todo o contexto englobante no parte do quedistingue um verdadeiro gourmet? Ou toda a ateno e a sensibilidade extraordinrias do gourmetdevemse limitar ao sensorial? Tudo poderia realmente ser resumido a uma questo de sabor e apresentao?

    Estas ltimas indagaes, todavia, ainda que sinceras, obviamente envolvem questes muito maiores emais abstratas a respeito das conexes (caso existentes) entre esttica e moralidade sobre o querealmente significa o adjetivo em uma expresso como A Revista da Boa Vida , e essas questes levamdiretamente a guas to profundas e traioeiras que talvez seja melhor encerrar por aqui a discussopblica. Existem limites mesmo para o que as pessoas interessadas podem perguntar umas s outras. J

    [1]No fim das contas se descobriu que um tal sr. William R. Rivas-Rivas, membro de alto escalo doquartel-general do Peta na Virginia, estava no festival este ano, ainda que sozinho, cuidando das entradasprincipal e lateral no sbado, dia 2 de agosto, distribuindo panfletos e adesivos com a inscrio SerFervido Di.

    [2]Interesses significa basicamente preferncias fortes e legtimas, que obviamente exigem algum graude conscincia, reatividade a estmulos etc. Veja, por exemplo, o que diz o filsofo utilitarista Peter Singer,cujo livro Libertao Animal, de 1975, a bblia do movimento contemporneo de direitos dos animais:Seria tolice dizer que no est nos interesses de uma pedra ser chutada por um garoto ao longo de umaestrada. Uma pedra no tem interesses, pois no pode sofrer. Nada que possamos fazer com elarepresentaria qualquer diferena em seu bem-estar. Um rato, por outro lado, tem interesse em no serchutado ao longo da estrada, pois sofrer se isso vier a acontecer.

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    [3]Este o termo neurolgico para receptores sensoriais especficos, sensveis a extremos de temperaturapotencialmente nocivos, a foras mecnicas e a substncias qumicas liberadas quando os tecidos do corposofrem danos.

    [4]Significando bem menos importantes, ao que parece, posto que a comparao moral em jogo no ovalor de uma vida humana versus o valor de uma vida animal, mas sim o valor de uma vida animalversus o valor do gosto humano por um tipo especfico de protena. At mesmo o carnfilo mais teimosoreconheceria que possvel viver e comer bem sem consumir animais.

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