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1 Penteia meu fiapo de lã: Criação e Questionamentos de Gênero nas HQ’s 1 Lais Gabrielle de Lima Rabelo / Faculdade Estácio de Belém IESAM RESUMO Penteia meu fiapo de lã é uma coletânea de história em quadrinho online (disponível em http://Penteia.com), semestralmente atualizada, em processo de expansão voltada para temas do cotidiano pós-moderno, envolvendo sobretudo questões de gênero. Utilizando quadrinhos de forma crítica e convidativa às discussões ao longo de seus capítulos, faz o público exercer habilidades interpretativas visuais e verbais, seguida a proposta de Eisner (1985) para a definição desta mídia. Nesta modalidade, as possibilidades de extensão para monitores e dispositivos móveis reinventa os quadrinhos, conforme McCloud (2006), propondo às leitoras e leitores maior interatividade e contato com estas discussões. O trabalho também questiona as representações do feminino, uma vez que, ao longo de sua trajetória histórica, as HQ’s refletiram a imagem da mulher na sociedade. Representações estas, criadas geralmente por homens e para homens ainda que frequentes, estas sutis imposições, certamente têm grande peso simbólico, as quais são questionadas e reapresentadas nos vários capítulos do Penteia meu fiapo de lã. O projeto experimental Penteia meu fiapo de lã protagoniza três bonecas de pano, apresentando tabus sociais ao gênero e reflexões do padrão familiar heteronormativo. A Primeira personagem a ser apresentada é a boneca de Maria Valentina, que problematiza diversos assuntos de forma lúdica, a respeito de uma menina de 12 anos em sua brincadeira de boneca. Medos e indagações impostas ao feminino finalizam o volume um desta saga dando abertura aos dilemas mais complexos nos dois volumes posteriores. Nestes, são apresentados os pais de Maria Valentina, a saber, Regininha e Antônio Amorosa, respectivamente uma mãe preconceituosa e um pai que se revela homossexual, passando posteriormente a “performar a feminilidade”, no conceito de Butler (2010), apresentando-se como Drag Queen. Com capítulos a serem lidos de forma breve e simples, o projeto conta com análises sócio semióticas dos desenhos e críticas do discurso em determinadas falas das personagens. Isto enriquece os conteúdos a serem debatidos entre o público, o que amplia a representatividade da temática, no mercado das mídias. 1 Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA

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Penteia meu fiapo de lã: Criação e Questionamentos de Gênero nas HQ’s1

Lais Gabrielle de Lima Rabelo / Faculdade Estácio de Belém IESAM

RESUMO

Penteia meu fiapo de lã é uma coletânea de história em quadrinho online (disponível em

http://Penteia.com), semestralmente atualizada, em processo de expansão voltada para temas

do cotidiano pós-moderno, envolvendo sobretudo questões de gênero. Utilizando quadrinhos

de forma crítica e convidativa às discussões ao longo de seus capítulos, faz o público exercer

habilidades interpretativas visuais e verbais, seguida a proposta de Eisner (1985) para a

definição desta mídia. Nesta modalidade, as possibilidades de extensão para monitores e

dispositivos móveis reinventa os quadrinhos, conforme McCloud (2006), propondo às leitoras

e leitores maior interatividade e contato com estas discussões. O trabalho também questiona as

representações do feminino, uma vez que, ao longo de sua trajetória histórica, as HQ’s

refletiram a imagem da mulher na sociedade. Representações estas, criadas geralmente por

homens e para homens ainda que frequentes, estas sutis imposições, certamente têm grande

peso simbólico, as quais são questionadas e reapresentadas nos vários capítulos do Penteia meu

fiapo de lã.

O projeto experimental Penteia meu fiapo de lã protagoniza três bonecas de pano,

apresentando tabus sociais ao gênero e reflexões do padrão familiar heteronormativo. A

Primeira personagem a ser apresentada é a boneca de Maria Valentina, que problematiza

diversos assuntos de forma lúdica, a respeito de uma menina de 12 anos em sua brincadeira de

boneca. Medos e indagações impostas ao feminino finalizam o volume um desta saga dando

abertura aos dilemas mais complexos nos dois volumes posteriores. Nestes, são apresentados

os pais de Maria Valentina, a saber, Regininha e Antônio Amorosa, respectivamente uma mãe

preconceituosa e um pai que se revela homossexual, passando posteriormente a “performar a

feminilidade”, no conceito de Butler (2010), apresentando-se como Drag Queen. Com capítulos

a serem lidos de forma breve e simples, o projeto conta com análises sócio semióticas dos

desenhos e críticas do discurso em determinadas falas das personagens. Isto enriquece os

conteúdos a serem debatidos entre o público, o que amplia a representatividade da temática, no

mercado das mídias.

1 Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA

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Como resultados alcançados até o momento, destaca-se que nos últimos meses, o Penteia

meu fiapo de lã tem participado de encontros de leituras em bibliotecas públicas e mesas

redondas de discussão acadêmica, além de exposições. É digna de nota a receptividade positiva,

deste projeto, por crianças, jovens e profissionais de comunicação. Isto aponta para a

importância das produções independentes, na literatura pós-moderna, as quais servem de base

à inserção do combate à discriminação entre gêneros, raça, e pensamentos filosóficos, em

antítese da dignidade e a negação do pluralismo. Este trabalho milita no sentido de dar

concretude aos direitos preconizados pelos dispositivos contidos no art. 1º, III e art. 3º, IV,

ambos da Constituição Federal.

Palavras-chave: Quadrinhos , Gênero , Mídias

Introdução

O presente trabalho enfoca a narrativa e a imagética, de quadrinhos experimentais que

compõem um volume, que se encontra disponível no site Penteia.com. As narrativas e imagens

têm a função precípua de questionar papéis de gênero e representatividade, sobretudo através

de três personagens femininas.

Nesta oportunidade cabe uma breve síntese, com o intuito de explicar o que são os quadrinhos,

bem como o “papel” sinóptico, da representatividade feminina nesta mídia, que “in casu”

questiona as vestimentas, o cotidiano intrínseco e a representatividade e significação do

universo da mulher.

Como suporte filosófico, abordamos todas essas interativas e complexas questões, sob a

âncora do hiper modernismo. Este Termo foi cunhado por Lipovetsky (2004), em cujo termo

hiper conceitua a exacerbação de valores ainda presentes no pós moderno, como a liberdade e

igualdade, os quais contribuem para uma situação de mudanças constantes, dentro da sociedade.

Este mesmo autor refletiu sobre a história da mulher, em seu livro ‘A terceira Mulher’, no qual

tem como parâmetros, a primeira mulher submissa, a segunda mulher-objeto e a terceira mulher

descrita com que “Ela não era mais do que aquilo que o homem pretendia que ela fosse.”

(LIPOVETSKY, 2000 ; pg. 232)

Assim, de acordo com Lipovetsky (op. cit.; pag. 14):

“No próprio coração da hiper modernidade, reorganiza-se a diferença das

posições de gênero. É apenas quando se esvaziam de sentido existencial e se

chocam de frente com os princípios de soberania individual que os códigos

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ancestrais do feminino se eclipsam. Em outras situações, as funções e papéis

antigos se perpetuam, combinando-se de maneira inédita com os papéis

modernos”

O mesmo conceito aplica-se aos questionamentos de gênero, discutidos nas mídias, moda e

projetos de educação do governo. Como exemplo cita-se Sylvia Cavasin, coordenadora da Rede

de Gênero e Educação em Sexualidade (Reges), na sua entrevista sobre a importância de

discutir gênero nas escolas (CAVASIN, 2015).

"A escola é um campo fértil para identificação das questões que

envolvem a opressão, os preconceitos, a homofobia, o sexismo, o

racismo e outras iniquidades”.

De acordo com as manifestações de receptividade do nosso público de período escolar, em

certas ocasiões crianças de 10 a 12 anos e adolescentes até 15 anos, o quadrinho Penteia meu

fiapo de lã representou uma porta de entrada para discussões outras, independentes das

“amarras” curriculares formais. Estas declarações espontâneas, sobretudo, do público estudantil

dos Ensinos Médio e Fundamental, nos fazem refletir seriamente, sobre a importância destas

temáticas de gênero e representatividade, nas mídias de massa, na inclusão social e no combate

ao preconceito.

Histórias em quadrinhos, como o próprio nome diz, é conteúdo criado de forma a provocar

o público, a exercer as suas habilidades interpretativas visuais e verbais, como nos apontou

Eisner (1985) em seu livro “A arte sequencial”. Neste trabalho, o autor supra, definiu

pioneiramente a criadores, desenhistas e roteiristas de quadrinhos, as técnicas a serem utilizadas

nas HQ’S.

O progresso acadêmico e técnico-científico em uma discussão relativamente atual, com o

auxílio de novas mídias, requer tempo para aceitação do grande público. Afinal, interagir com

uma obra, que é prenhe de enunciados da cultura popular, ainda entendidos pelo “status quo”,

como grande tabu do “nosso tempo”, a exemplo da menstruação, assédio infantil e as novas

definições de família, significa mexer em temas, mazelas e feridas culturais, que ainda estão

longe da cicatrização. Como fundamento da percepção obtida em nossa caminha, acerca do uso

social crítico dos veículos de mídia, e a expectativa do horizonte de seus resultados, cita-se

Xavier (2005; p. 28) e seu livro "Storytelling, histórias que deixam marcas". Este o autor nos

leciona que:

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“Histórias são poderosas, desconstruir as ideias consistentemente

implementadas leva tempo”.

Considerações Fundamentais Acerca dos Quadrinhos

Neste Item será apresentado um conjunto de considerações, entendidas como fundamentais,

para que se possa avançar na avaliação crítica e na cognição que se pretende divulgar, com o

conteúdo dos quadrinhos.

Antes de tudo, precisamos entender o que são os quadrinhos.

Neste projeto, o conteúdo a ser apresentado baseia-se nas definições fundamentais, do que

se entende por “Arte Sequencial” e suas técnicas. Segundo Eisner (1982, p. 18) a função

principal da arte dos quadrinhos é comunicar uma ideia e/ou histórias, por meio de palavras e

figuras.

Há certa discussão, entre autores relacionados aos quadrinhos, quanto ao surgimento deste

veículo. Na nossa avaliação, o melhor posicionamento, que sintetiza a maioria dos

entendimentos estudados como referência deste trabalho, é aquele proposto por Waldomiro

Vergueiro (2014; p. 6), qual seja a síntese:

"De certa forma pode-se dizer que as histórias em quadrinhos vão ao

encontro das necessidades do ser humano, na medida em que utilizam

fartamente um elemento de comunicação que esteve presente na

história da humanidade desde os primórdios: A imagem gráfica”

Uma questão de extrema importância, que merece profunda reflexão, é a ênfase na

organização e disposição, planejada, sequencial ou não dos quadrinhos. Outra consideração de

muito significado é a necessidade ou não da fusão perfeita, entre as palavras e as imagens.

Tais preocupações acerca dos usos da imagem e dos textos, para os quadrinhos, podem ser

determinantes para o modo e o sucesso da leitura. Neste contexto, segundo McCloud (2008, p.

12)

“O fluxo da leitura pode prosseguir ininterrupto (...) melhorar o fluxo

pode ajudar o público a entrar no mundo de sua história”.

Estas “preocupações” acerca dos fundamentos apresentados supra, sempre nortearam este

trabalho, no que concerne às construções midiáticas, imagéticas e críticas, de cada quadrinho,

encadeados contextualmente, de acordo com as proposições de Eisner (op. cit.), para as

questões de criação sequencial. A todo tempo perseguiu-se o fomento de interesse e, de certa

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forma o relevo dos significados sociológicos, de modo a não produzir lacunas ou quebras

cognitivas, favorecendo assim, o fluxo sobre o qual nos lecionou McCloud (op.cit.), e que

certamente lastrearam tecnicamente, a boa aceitação do público, até então.

Tais fundamentos são subjacentes ao Primeiro Capítulo “Tamanho PP”. Neste, a

personagem principal - Maria Valentina - narra a situação do seu primeiro sutiã. No trato com

esta peça do vestuário, que é ícone da representação feminina moderna, surgem indagações

críticas, acerca da necessidade do uso do item, bem como do porquê de sua utilização? Uma

vez que se nem “corpo” de mulher ela tem.

Impulsionada por uma breve pressão das colegas de escola sobre a definição de que peitos

define uma mulher. Ridicularizada por utilizar meias para aumento dos seus seios, as leitoras e

Leitores são induzidos por meio de ilustrações criando um fluxo de leitura na página 4, visto

na Figura 1, para a próxima folha (Página 5) na qual explica, a representatividade das bonecas

na história, “brincando” com o reflexo do real, Figura 2.

Os discursos são auxiliados também pelos balões das falas. Apenas as imagens ou narrativas,

feitas pela própria personagem central de cada volume, são marcadas por retângulos na parte

superior ou lateral dos quadros.

Na abordagem das falas houve a influência de Cirne (1970), através de seu livro “A Explosão

Criativa dos Quadrinhos”. Segundo o autor:

Figura 1 Figura 2

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“O balão pode, igualmente, ultrapassar a sua realidade específica,

tornando-se um elemento estrutural, abandonando as palavras dos

personagens para ir contornar o próprio quadro “Ou seja , usar a

imagem do quadro pode ser tão informativo como um balão. “uma

instigante visualização espacial do som, assim como também o é a

onomatopéia. Criador de um novo espaço gráfico, [o balão]

redimensiona o quadro” (CIRNE, 1970, p.16).

No Capítulo 3 ”Amiga , te conheço” há um exemplo de utilização de onomatopeia como

recurso. Isto significa um avanço comunicativo, uma tentativa de alargamento de fronteiras e

de interações de linguagem, para além de balões. Este uso se deu para descrever uma situação,

em que as personagens se encontram. Houve a inserção de um quadro na diagonal para o

público acompanhar a história. Como exemplo, apresentamos a mostra da figura 3, referente a

página 3, do capítulo citado.

Um dos pontos fulcrais, sobre o qual também repousa, o desenrolar da saga de Maria

Valentina, seus amigos e conhecidos, é o discurso claro e direto, sobre o que se passa entorno

das bonecas. Se tentássemos usar um dos jargões da cultura jovem brasileira moderna, seria o

termo “papo reto”.

Estas opções princípio lógicas sobre HQ’s influenciam em todo o aspecto visual e linguístico

da obra. Em alguns momentos são prezados muito mais o conteúdo, do que aspectos detalhados

Figura 3

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ou realísticos, como os encontrados na maioria das Comics, como as clássicas personagens da

Marvel ou DC. Estas indústrias têm em suas estórias, o apelo visual de personagens ou heroínas

voltadas aos interesses e gostos do público jovem masculino.

Assim, o que se espera estar evidente a esta altura, é que a imagem da “mulher” para a mídia

proposta neste trabalho ganha novas indagações, a partir da reformulação de papéis de gênero.

Questionamentos de gênero

Diante do conteúdo discutido até aqui, consideramos penteia meu fiapo de lã uma das obras

pioneiras na Região Amazônica, que busca registrar, discutir e entender, as diversas

manifestações culturais e midiáticas sobre gênero. Penteia meu fiapo de lã inclui estes debates,

em meio a um setor de criação, cuja existência é marcada de uma destacada maioria de homens,

como observado no documentário “VHQ – Uma breve história dos quadrinhos paraenses”

(SOUZA, 2015). Neste documentário há o resgate, da história pouco documentada dos amantes

das HQ’s, acerca da criação da gibiteca, ponto de encontro dos quadrinistas de Belém. Adriana

Abreu, quadrinista é a única representante do time das mulheres no vídeo. Assim como Adriana,

há Samantha Ranny com sua página “Erva de Gata”, na qual encontra-se uma linguagem

direcionada às questões feministas.

Cabe ressaltar, acerca da representação feminina, na área de criação da mídia de massa dos

quadrinhos, a afirmação de Barcellos (2000), em seu artigo “O feminino nas histórias em

quadrinhos. Parte I: A mulher pelos olhos dos homens”:

“Dos cenários aos enredos, passando pelos personagens, tudo nas

histórias em quadrinhos pode ser visto como uma apropriação

imaginativa de conceitos, valores e elementos que foram, são ou

podem vir a ser aceitos como reais” (BARCELLOS, 2000).

A autora em comento realça a importância de se questionar a mensagem que será

apresentada aos leitores e leitoras, a relatividade das personagens femininas em relação às

personagens principais, suas personalidades e vestimentas. Para esta pesquisadora, tudo tem

um porque, e uma mensagem para aqueles a quem se destinam as ideias centrais.

No caso do Penteia, existe a intenção objetiva de mostrar existem problemas de gênero, os

quais são estabelecidos pela simples definição do sexo. Como fundamento para esta

asseveração, apresentamos aquilo que resume Butler (2010), uma pensadora de referência

nesta área da filosofia:

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“O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição

cultural de significado num sexo previamente dado, (...) tem de

designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os

próprios sexos são estabelecidos” (BUTLER, 2010; p. 25).

Como podemos observar lendo os quadrinhos descritos neste trabalho, todas as personagens

principais são bonecas (Figura 4), do gênero feminino, por certo preconceito da mãe de Maria

Valentina. Esta personifica a postura tradicional, esta mesma que se deseja questionar, acerca

dos objetos “de menino” e aqueles “de menina”. Embora estes conceitos calcados na moral

estabelecida, não constituam obstáculos do ambiento do entorno, para o desenrolar das histórias

imaginativas da menina Maria, estes conceitos tradicionais dão ensejo a diversas situações que

conduzem a reflexão e questionamento por parte da “dona” das bonecas.

Figura 4

A situação descrita é exemplificada na Figura 5, na página 05, do Capítulo 5, “Maria

Valentina não sabe o que ela é”.

Figura 5

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Nos desenhos e falas, de Penteia meu fiapo de lã, visa busca-se refletir sobre enunciados dos

papéis de gênero, cujo conceito para Scott (1994 ;12) significa,

“(...) saber a respeito das diferenças sexuais. Uso saber, seguindo

Michel Foucault, com o significado de compreensão produzida pelas

culturas e sociedades sobre as relações humanas, no caso, relações

entre homens e mulheres. Tal saber não é absoluto ou verdadeiro,

mas sempre relativo. (...) O saber não se relaciona apenas a ideias,

mas a instituições e estruturas, práticas cotidianas e rituais

específicos, já que todos constituem relações sociais. O saber é um

modo de ordenar o mundo e, como tal, não antecede a organização

social, mas é inseparável dela.”

Além das personagens serem totalmente inspiradas no real, a reflexão entre as entrelinhas,

as linhas tortas e desenhos manuais com edições finais, convida para o campo acadêmico,

escolar e social sobre o uso das novas mídias para um tema complexo, digno de uma vertente

do campo da antropologia.

A Brincadeira inspirada no Real

Neste item serão apresentadas as descrições das bonecas, que personificam a protagonista e

demais personagens da Saga de Maria Valentina. As descrições seguirão a ordem estabelecida

das bonecas que compõem as personagens da Saga de Maria Valentina , de acordo com a Figura

6 e, se darão da direita para a esquerda.

Figura 6

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As bonecas foram adquiridas pela autora deste trabalho, em meados de 2015, na Feira de

Caruaru, localizada a 130 Km da Cidade de Recife, Capital do Estado de Pernambuco.

Na Região Nordeste do Brasil estas bonecas, popularmente possuem o nome de bruxinhas.

Elas são produtos dos costumes históricos, uma vez que, em um passado não muito distante, as

mães costuravam retalhos de tecidos, criando bonecas de diversos tamanhos e cores, para

presentear as suas filhas (TUREK, 2010).As bonecas físicas do Penteia meu fiapo de lã têm

características sortidas, e foram feitas manualmente por uma artista desconhecida. Elas medem

em torno de 5 centímetros e, possuem cabelos feitos de lã desfiado. A única exceção trata-se de

Miriam, que é uma boneca russa materializada em madeira.

1. Miriam (Figura 7)

É a melhor amiga de Maria Valentina. Trata-se de uma tradicional boneca

russa, com o nome original Kurotz, loira e de pele branca. A Primeira crítica,

com qual é percebida esta personagem, encontra-se no capítulo 4: Amiga, te

conheço (Volume 1). Nesta parte da narrativa, a Miriam, na vida real da Maria

Valentina, tem cabelo crespo, deixando subentender que ela é negra.

Figura 8

A expressão cabelo ruim é um auto rejeição do cabelo pela personagem, figura 8, na

realidade, e a representante na brincadeira de Maria.

O objetivo, nesta altura da narrativa do quadrinho, foi a proposição de uma reflexão, que

contribuísse para um enfrentamento da cultura preconceituosa, da beleza eurocêntrica. A

opinião acerca do cabelo bom e do cabelo ruim, não raras vezes, é eivada de conteúdo da

endogenia racista. A tradução dessa expectativa é, por muitos, o posicionamento negativo, com

relação ao cabelo afro.

Figura 7

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Assim, uma outra possibilidade de realidade, fundamentada em visão crítica, é apresentada

através do quadrinho, mediante a comparação do cabelo crespo entre os fiapos de lã.

Na história, Maria Valentina reage contestando a expressão “Cabelo Ruim”, utilizada pela

amiga, ao tempo em que revela que se sente deslumbrada pela forma de seus fios, sentindo-se

realizada com os mesmos. Esse confronto, no mundo das opiniões, justifica a escolha de uma

boneca, com cabelos crespos e cheios, para protagonizar Maria, uma vez que, no “mundo real”,

a personagem principal da saga possui o cabelo liso e longo.

A Segunda crítica a ser analisada é a escassez de bonecas Afro. Este aspecto pode ser

verificado, pela fala exibida na figura 9. Em resumo, o que se perseguiu aqui, é que a

personagem Miriam conferisse ênfase, a uma pauta dedicada as representações e enunciados

culturais, referentes à afro descendência.

2. Maria Valentina (Figura 10)

Protagonista do volume um da Saga e, elo entre as apresentações das

estórias posteriores. Maria Valentina é entre as bonecas, a menor e com saia

de poá. Personagem que inicia as discursões, sobre imposições a um corpo

que se encontra transitando, para outro que se atribui a “mulher”. Neste

episódio nos deparamos com a indagação do Capítulo 1: Tamanho PP, no que

se refere ao primeiro sutiã. Que simbolicamente traduz uma passagem da

infância para a adolescência, visto no trecho da figura 11.

Figura 10

Figura 9

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Figura 11

Aqui vale a menção a possibilidade da crítica, que um instrumento como o Quadrinho, pode

patrocinar. O episódio “Tamanho PP” é exatamente o oposto, em todos os sentidos, a mídia

aplicada e cognição proposta, no celebrado vídeo da W Brasil de 1987, cujo cliente foi a

Valisere, cujo título é “O Primeiro Sutien a Gente Nunca Esqueçe” (ALEXANDRE, 2012).

Uma comparação entre os dois, é aqui estimulada, para que se constatem as diferenças radicais,

entre o mesmo tema, com personagens até mesmo muito parecidas.

Correlacionando a imagem e o texto podemos justificar a finalidade do sutiã, para o corpo

de uma menina que não necessariamente precisa, mas que a imposição de gênero define suas

vestimentas. Aqui cabe a reflexão de Simone de Beauvior (apud BUTLER, 2010; p. 194),

mediante a transcrição de sua icônica frase: “Não se Nasce Mulher, torna-se mulher”, fato este

que se dá, através da interpretação dos significados culturais do corpo sexuado e gênero.

3. Regininha ( figura 12)

Personagem que ingressa na saga, a partir do Segundo Volume. Nesta

ocasião, Maria Valentina convida a sua mãe, para entrar em sua brincadeira,

e com isso revela mais sobre sua história e as justificativas de seus atos.

Regininha é retratada inicialmente, como uma mãe rigorosa, desde sua

primeira aparição, no capítulo 2: Menarca. Na oportunidade, demonstrou

estar aparentemente constrangida, por ter que explicar acerca da

menstruação, exemplo do trecho retirado na figura 13.

Figura 12

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Figura 13

4. Antônio ( Figura 14 )

Antônio é o Pai de Maria Valentina. Ele é representado por uma

boneca colorida, que é a sua versão Drag Queen, Chamada Tônia

L’amour .

No Volume três há todo um discurso, no qual se apresentam os

dilemas, de se revelar homossexual depois de casado, além dos

preconceitos de uma sociedade homofóbica e machista, do seu ambiente

de trabalho.

Conclusão

As seguintes conclusões obtidas neste trabalho desde a estreia do quadrinho, em setembro

de 2015 , até final do primeiro semestre de 2016.

As discussões de gênero acerca da receptividade dos leitores e leitoras tem sido muito

bem engajada. Desde comentários e compartilhamentos no Facebook, visualizações e

comentários no site até em encontros fornecidos em locais públicos para leitura e

discursão dos capítulos e volumes posteriores.

Especificamente, do público juvenil de 10 a 16 anos em relação ás diferentes famílias

e equidade de gênero. A reprodutibilidade do diferencial desta HQ entra em conflito

com o público adulto- idoso, que rejeitam questionamentos de gênero entre novas e

tradicionais mídias.

Figura 14

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Quanto aos encontros sugeridos pela autora para debates em livrarias e bibliotecas

públicas, a aparição dos leitores e leitores ainda se encontra escassa, mas com

diversificação de faixa etária, gênero, cargo ocupado e orientação sexual, cujo o

principal objetivo que transcende a barreira virtual, a se juntar em prol deste projeto é

de intrínseca humanização e representatividade nas produções de entretenimento.

De acordo com a consulta pública de Pacto Nacional Universitário pela promoção do

respeito à Diversidade e da Cultura de Paz e Direitos Humanos , promovido pelo

Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (CNEDH) , no qual tem como

objetivo ,o desenvolvimento e a implementação da Educação em Direitos Humanos no

âmbito da Educação Superior, buscando, assim, superar a violência, preconceito e

discriminação no ambiente acadêmico. Trabalhos com mídias independentes retratando

de temas referentes à pluralidade e direitos individuais podem se encaixar

perfeitamente neste âmbito. Penteia meu fiapo de lã inicia-se com simplicidade , mas

com impulso que é consideravelmente notável se tratando de conteúdo reflexivo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LIPOVETSKY, Gilles . 2004 .OS TEMPOS HIPERMODERNOS . Disponível em:

https://pt.scribd.com/doc/17062062/Os-Tempos-Hipermodernos-Gilles-Lipovetsky Acesso em : 24 de

agosto .2016

______.2000 A Terceira Mulher. Coleção Epistemologia e Sociedade do Instituto Piaget,

Lisboa.

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CAVASIN , Sylvia . 2015 . Entrevista ao site ebc. Disponível em

<http://www.ebc.com.br/educacao/2015/07/entenda-por-que-e-importante-discutir-igualdade-

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EISNER , Will . 1985. Quadrinhos e Arte Sequencial . Tradução Luí Carlos Borges. 1° Ed,

Editora Martins fontes.

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