PEQUENO MUNDO ANTIGO - s3-sa-east … · 135 Sonata ao luar e às nuvens II 171 Com luvas III 181...

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PEQUENO MUNDO ANTIGO

PEQUENO MUNDO ANTIGO Antonio Fogazzaro

tradução Ivone Benedetti posfác io Ana Nemi

Pr ime ira parte

11 I Risoto e trufas33 II Às portas de uma vida nova47 III O grande passo73 IV A carta de Carlin89 V O bargnìf em ação111 VI A velha dama de mármore

Segu nda parte

121 I Pescadores135 II Sonata ao luar e às nuvens171 III Com luvas181 IV Com garras201 V O segredo do vento e das nogueiras213 VI O ás de ouros dá o ar da graça233 VII Carta na mesa243 VIII Horas amargas287 IX Pelo pão, pela Itália, por Deus315 X Jesusmaria, xiora Lüisa!343 XI Sombra e aurora361 XII Fantasmas375 XIII Em fuga

Terc e ira parte

401 I Com a palavra, o sensato421 II Solene rufar de tambores

445 Posfác io

À caríssima Luisa, que do pequeno mundo de Valsolda conviveu com tantas pessoas e tantas coisas; a você, dedicada e fiel amiga de duas almas queridas que nos esperam na eternidade, em nome delas e em nome de outro morto que lhe é tão caro, ofereço o livro que evoca secretamente essas sagradas memórias, e não só elas.

Antonio Fogazzaro

PRIMEIRA PARTE

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I • Risoto e trufas Sobre o lago soprava a brevaI fria, com uma vontade furiosa de expulsar as nuvens cinzentas que pesavam sobre os cocurutos escuros das montanhas. Na verdade, quando os Pasotti, que desciam de Albogasio Superiore, chegaram a Casarico, ainda não estava chovendo. As ondas rebentavam troando na margem, sacudindo as em-barcações acorrentadas, mostrando aqui e ali, até a austera margem oposta do Dòi, um sobe e desce de espumas brancas. Mas acolá a oeste, nos confins do lago, via-se uma clara, um princípio de calma, certo cansaço da breva; e de trás do so-turno monte de Caprino saíam os primeiros sinais de chuva. Pasotti, de sobretudo preto a rigor, cartola e grande bengala

I Breva é, no dialeto lombardo, o vento periódico característico da região do lago de Como. [Todas as notas são da tradutora.]

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passeio, exageradamente alto, guarnecido de rosinhas ama-relas e renda preta. Dois cachos pretos lhe emolduravam o rosto enrugado no qual se abriam dois olhões meigos, baços, uma boca grande, sombreada por ligeiro buço.

— Oh, Pin — disse ela, unindo as luvas amarelinhas e pa-rando junto à margem, a olhar pateticamente para o barqueiro.

— Precisamos mesmo ir com o lago desse jeito?O marido fez outro gesto mais imperioso, outra expres-

são mais brusca que a primeira. A coitada desceu escorre-gando em silêncio até o barco e foi ajudada a embarcar, toda trêmula.

— Que Nossa Senhora de Caravina me proteja, meu caro Pin — disse ela. — Um lago tão feio!

O barqueiro negou com a cabeça, sorrindo.— A propósito — exclamou Pasotti —, tem vela?— Tenho em casa — respondeu Pin. — Preciso ir pegar?

A senhora aqui vai ficar com medo, talvez. E, depois, aí vem água!

— Vá! — disse Pasotti.A senhora, surda como um badalo de sino, não ouviu coi-

síssima nenhuma da conversa, ficou muito admirada quando viu Pin sair correndo e perguntou ao marido aonde ele ia.

— A vela! — disse Pasotti, gritando junto do seu rosto.Ela ficou ali parada, inclinada, com a boca bem aberta

para recolher algum som, mas em vão.— A vela! — repetiu o outro mais alto, com as mãos em

concha junto à boca.Ela achou que tinha entendido, estremeceu de susto, tra-

çou com o dedo no ar um hieróglifo de interrogação. Pasotti respondeu também traçando no ar um arco imaginário e so-prando dentro dele; depois afirmou com a cabeça, em silên-cio. A mulher, agitada, levantou-se para sair.

de bambu na mão, andava nervoso pela margem, olhava para lá, olhava para cá, parava para bater a bengala no chão com força, chamando o asno do barqueiro que não aparecia.

O pequeno barco preto com almofadas vermelhas, toldo branco e vermelho, assento de luxo removível instalado de través, remos preparados e cruzados na popa, debatia-se atin-gido pelas ondas, entre duas barcaças carregadas de carvão que mal oscilavam.

— Pin! — gritava Pasotti cada vez mais nervoso. — Pin!Só respondiam o troar uniforme e assíduo das ondas na

margem e o entrechoque das embarcações. Parecia até que não havia um único cão vivo em todo Casarico. Somente uma voz velha e débil, uma voz velada de ventríloquo, gemia lá das trevas da alpendrada:

— Vamos a pé! Vamos a pé!Finalmente Pin apareceu pelos lados de San Mamette.

— Ei! — disse Pasotti, erguendo os braços. O outro co-meçou a correr.

— Animal! — berrou Pasotti. — Por algum motivo lhe pu-seram nome de cachorro!

— Vamos a pé, Pasotti — gemia a voz débil. — Vamos a pé!Pasotti continuou brigando com o barqueiro, que, com

pressa, soltava a corrente do barco de uma argola fincada na margem. Depois se virou com expressão imperiosa para a alpendrada e, crispando o queixo, acenou para que alguém viesse.

— Vamos a pé, Pasotti! — gemeu a voz de novo.Ele deu de ombros, fez com a mão um gesto brusco de

comando e desceu para o barco.Então, de um arco da alpendrada surgiu uma velhota,

corpo magro envolto num xale indiano, por baixo do qual emer-gia a saia de seda preta, cabeça encerrada num chapelinho de

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Demorou muito para que dona Barbara, habitualmente chamada de Barborin, compreendesse do que se tratava agora. Não queria entender nem quando o marido lhe enfiou na mão, à força, um maço de cartas asquerosas.

Mas por enquanto não era possível jogar. O barco avan-çava a custo, à força de remos, em direção à foz do rio San Mamette, onde seria possível levantar a vela, e os vagalhões devolvidos pelas margens porfiavam com os que iam che-gando, pondo o barco a dançar em meio à efervescência de cristas espumosas. A mulher chorava. Pasotti xingava Pin por não se ter conseguido ir ao largo. Então o pároco, agarrando dois remos, com o corpanzil bem plantado no meio do barco, pôs os músculos em ação e, com quatro remadas, tirou-os do mau pedaço. A vela foi alçada, e o barco saiu deslizando manso, de vento em popa, com um gorgolejo abafado sob a quilha, um ondular lento e brando. O padre então se sentou sorridente ao lado de dona Barborin, que estava de olhos fe-chados, murmurando esconjuros. Mas Pasotti batia impaciente o maço de cartas na mesinha, e tiveram de jogar.

Enquanto isso, a chuva cinzenta avançava devagarinho, velando as montanhas, sufocando a breva. A mulher ia reco-brando o fôlego à medida que o vento o perdia, jogando re-signada, aceitando em paz as próprias besteiras e os pitos do marido. Mas foi só quando a chuva começou a murmurar so-bre o toldo do barco e sobre as ondas mortas que ainda iam bater quase sem alento nas penhas do Tentiòn, foi só quando o barqueiro achou melhor colher a vela e retomar os remos, que dona Barborin respirou plenamente.

— Meu caro Pin! — disse com ternura, e começou a jogar cartas com um fervor, um brio, uma bem-aventurança no rosto que nada podia perturbar, nem besteiras nem xingamentos.

Muitos dias de breva e de chuva, de sol e de tempes-tade nasceram e morreram sobre o lago de Lugano, sobre os

— Vou sair! — disse, angustiada. — Vou sair! Vou a pé!O marido a agarrou por um braço, puxou-a para o as-

sento e lançou-lhe um olhar em brasa.Enquanto isso o barqueiro voltava com a vela. A coitada

se contorcia, suspirava, estava com os olhos cheios de lágri-mas, lançava olhares patéticos para a margem, mas não fa-lava. O mastro foi erguido, os dois cabos inferiores da vela foram amarrados, e o barco estava para zarpar quando, da alpendrada, mugiu um vozeirão:

— Veja só, veja só, o senhor Inspetor! — e de lá emer-giu um padralhão rubicundo, com uma barriga gloriosa, um chapelão de palha preta, charuto na boca e guarda-chuva de-baixo do braço.

— Oh, o pároco! — exclamou Pasotti. — Ótimo! Vai ao al-moço? Vai a Cressogno conosco?

— Se me levar! — respondeu o pároco de Puria, descendo em direção ao barco. — Ora, ora, dona Barborin também está aí!

O carão ficou amabilíssimo; o vozeirão, meiguíssimo.— Tem no corpo um medo dos infernos, pobre diaba

— troçou Pasotti, enquanto o pároco se voltava reverente e sorridente para a senhora. Esta, que com a ameaça daquele aumento de peso tinha sido tomada por novo pavor, come-çou a gesticular em silêncio como se os outros fossem mais surdos que ela. Apontava para o lago, a vela, o enorme vo-lume do pároco, erguia os olhos para o céu, levava as mãos ao peito, cobria o rosto.

— Não peso tanto assim — disse o pároco, rindo. — Cale a boca, você — acrescentou voltando-se para Pin, que tinha sussurrado irreverentemente: “Uma baita tainha”.

— Sabem o que vamos fazer para acabar com o medo dela? — exclamou Pasotti. — Pin, tem aí uma mesinha e um maço de cartas?

— Meio ensebado, mas tenho — respondeu Pin.

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de remar para deixá-lo entre as cartas e ver como a pobre mulher se sairia de uma situação difícil, o que faria com certa carta perigosa de jogar e perigosa de segurar. O marido tam-borilava impaciente na mesinha, o pároco apalpava com um sorriso beato as próprias cartas, e ela apertava as suas con-tra o peito, rindo e gemendo, olhando com o rabo dos olhos ora um, ora outro parceiro.

— Está com o Louco na mão — cochichou o pároco.— Ela sempre faz isso, quando tem o Louco — disse Pasotti,

e gritou, batendo na mesa:— Descarta esse Louco!— Jogo no lago — disse ela. Lançou um olhar para a proa

e achou a saída ao observar que tocavam Cressogno, que es-tava na hora de parar.

O marido reclamou um bocado, mas depois se confor-mou e vestiu as luvas.

— Truta, hoje, pároco — disse enquanto a humilde es-posa lhe abotoava as luvas. — Trufas brancas, francolinos e vinho de Ghemme.

— Está sabendo, está, está? — exclamou o pároco. — Também estou. Quem me contou foi o cozinheiro, ontem, em Lugano. Que espanto, hem, a senhora marquesa!

— Espanto? Almoço de Santa Úrsula, pois sim; além disso, algumas senhoras convidadas; as Carabelli, mãe e filha; aque-las Carabelli de Loveno, conhece?

— Ah é? — disse o pároco. — Será que há algum plano…? Olhe ali, dom Franco num barco. Ei, que bandeira, ó rapaz! Nunca vi essa.

Pasotti ergueu o toldo do barco para ver. Pouco adiante, um barco com bandeira branca e azul se embalava no mesmo movimento de sobe e desce, na mesma moleza das ondas. Na popa, sob a bandeira, estava sentado dom Franco Maironi, neto da velha marquesa Orsola, que oferecia o almoço.

montes de Valsolda, depois daquela partida de tarôs entre a senhora Pasotti, o marido, inspetor aposentado das aduanas, e o pároco de Puria, no barco que, em meio ao chuvisco, bor-dejava lento os penhascos San Mamette e Cressogno. Quando revejo em lembrança alguma casinhola escura que agora re-flete no lago sua pompa de roceira enriquecida, algum palacete alegre e elegante que agora decai em silenciosa desordem, a velha amoreira de Oria, a velha faia da Madonnina, tombadas com as gerações que as veneravam, tantas figuras humanas rancorosas que se achavam eternas, com argúcias que pare-ciam inesgotáveis, fiéis a hábitos que davam a impressão de só poderem ser quebrantados por algum cataclismo univer-sal, figuras não menos familiares que aquelas árvores para as gerações passadas, e com elas desaparecidas, aquele tempo me parece muito mais distante de nós do que realmente está, tal como para o barqueiro Pin, caso se voltasse para olhar o poente, San Salvatore e os montes de Carona pareciam muito mais distantes do que realmente estavam por trás da chuva.

Era um tempo cinzento e sonolento tal como o aspecto do céu e do lago, amainada a breva que tanto amedrontara a senhora Pasotti. A grande breva de 1848, depois de propi-ciar poucas horas de sol e de lutar muito tempo com nuvens pesadas, extinguida três anos antes, deixava chover e cho-ver dias quietos, foscos, silenciosos, dias pelo quais caminha esta minha humilde história.

Os reis e as rainhas do tarô, o Mundo, o Louco e o Mago, naquele tempo e naquele lugar, eram personagens de impor-tância, poderes diminutos benevolamente tolerados no seio do grande e taciturno império da Áustria, onde as inimizades, as alianças e as guerras entre eles eram o único assunto po-lítico que se podia discutir livremente. Mesmo Pin, remando, metia com avidez o nariz adunco e curioso entre as cartas de dona Barborin e só o tirava a contragosto. De uma vez parou

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por cima da rua do atracadouro. O pároco e Pasotti, entre um suspiro deliciado e outro, farejavam certo odor indistinto e quente que manava do vestíbulo aberto da casa.

— Ei, risoto, risoto — murmurou o padre com um fulgor de cupidez no rosto.

Pasotti, nariz fino, sacudiu a cabeça apertando os olhos, com manifesto desprezo por aquele outro nariz.

— Risoto não — disse.— Como, risoto não? — exclamou o padre, melindrado.

— Risoto sim. Risoto com trufas; não está sentindo o cheiro?Os dois pararam no meio do vestíbulo, farejando o ar

como perdigueiros, ruidosamente.— O senhor, caro pároco, faça-me o favor de dizer pos-

ciandra — disse Pasotti depois de longa pausa, aludindo a certa iguaria rústica de couves e linguiças. — Trufas sim, risoto não.

— Posciandra, posciandra — grunhiu o outro, um pouco ofendido. — Quanto àquele…

A pobre e mansa senhora achou que estavam brigando, assustou-se e começou a apontar repetidamente para o teto com o indicador direito, querendo dizer que lá em cima podiam ouvir. O marido agarrou sua mão no ar, fez-lhe sinal para sen-tir o cheiro e depois lhe soprou na boca escancarada: “Risoto!”.

Ela hesitava, pois não ouvira bem. Pasotti deu de ombros.— Não entende patavina — disse —, o tempo vai mudar. —

E subiu as escadas seguido pela mulher.O gordo pároco quis dar mais uma olhada no barco de

dom Franco. “Que Carabelli que nada!” — pensou. E foi logo chamado por dona Barborin, que lhe recomendou ficar perto dela na mesa. Tanta timidez, pobrezinha.

As exalações das panelas enchiam de tépidas fragrân-cias até a escada. Risoto não — disse baixinho a vanguarda.

— Risoto sim — respondeu no mesmo tom a retaguarda. E as-sim continuaram, cada vez mais baixo, “risoto sim, risoto não”,

Pasotti o viu levantar-se, pegar os remos e afastar-se, remando devagar, em direção ao lago alto, ao golfo selvagem do Dòi; a bandeira branca e azul se desfraldava por inteiro, tremulava sobre a esteira.

— Aonde está indo aquele esquisitão? — disse. E res-mungou entre dentes, com uma rouquidão forçada de gros-seirão milanês:

— Antipático.— Dizem que é cheio de talento — observou o padre.— Péssima cabeça — sentenciou o outro. — Muita soberba,

pouco saber, nenhuma educação.— É meio devasso — acrescentou. — Eu, se fosse aquela

moça…— Qual? — perguntou o pároco.— A Carabelli.— Guarde bem, senhor Inspetor. Se os francolinos e as

trufas brancas forem para a menina Carabelli, estão sendo jogados fora.

— Está sabendo de alguma coisa, o senhor? — disse Pasotti em voz baixa, com uma chama de curiosidade nos olhos.

O padre não respondeu, porque naquele momento a proa deslizou sobre a areia, tocou o atracadouro. Ele saiu primeiro; depois, com uma rápida mímica imperiosa, Pasotti deu não sei que instruções à mulher e também saiu. A coi-tada desembarcou por último, toda embrulhada em seu xale indiano, toda encurvada debaixo do chapelão preto com ro-sinhas amarelas, cambaleando, estendendo à frente as gran-des mãos com luvas amarelinhas. Os dois cachos pendentes nos lados de sua mansa fealdade tinham um jeito caracterís-tico de resignação debaixo do guarda-chuva do marido, pro-prietário, supervisor e cioso guardião de tantas elegâncias.

Os três subiram até a arcada que leva da pequena villa dos Maironi, a oeste, à igreja paroquial de Cressogno, passando

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seus conhecidos milaneses, enquanto Friend, farejando e es-pirrando, dava a volta ao xale canforado da senhora Pasotti, esfregava-se às panturrilhas do pároco e olhava Pasotti com olhinhos úmidos e aflitos, mas sem o tocar, como se perce-besse que o dono do xale indiano, apesar do rosto amável, adoraria torcer-lhe o pescoço.

A marquesa Orsola mantinha ativa sua costumeira voz grossa e sonolenta, enquanto Carabelli, respondendo, se es-merava em tornar amável sua voz grossa e imperiosa, mas não escapou ao olhar penetrante e ao engenho maligno de Pasotti que as duas velhas damas dissimulavam — Maironi mais, Carabelli menos — um mesmo descontentamento. A cada vez que a porta se abria, os olhos apagados de uma e os olhos foscos da outra voltavam-se para lá. De uma vez entrou o vi-gário apostólico do Santuário da Caravina com o baixinho Paolo Sala, vulgo Paolin, e o grandão Paolo Pozzi, vulgo Paolon, companheiros inseparáveis. De outra, entrou, acompanhado da filha, o marquês Bianchi, de Oria, ex-oficial do Reino da Itália, nobre figura de velho soldado correto, ao lado de uma figura sedutora de menina vivaz.

Tanto da primeira quanto da segunda vez, uma sombra de raiva passou pelo rosto de Carabelli. Mesmo sua filha vol-tava depressa os olhos para a porta quando esta se abria, mas depois conversava e ria mais que antes.

— E dom Franco, marquesa? Como está dom Franco? — disse o maligno Pasotti com voz melíflua, estendendo a ta-baqueira aberta para a marquesa.

— Muito agradecida — respondeu a marquesa, inclinan-do-se um pouco e enfiando dois dedões no rapé. — Franco? Para dizer a verdade, estou um pouco preocupada. Hoje de manhã não se sentia bem e agora não o vejo. Não gostaria…

— Dom Franco? — disse o marquês. — Está de barco. Nós o vimos há pouco, remando como um barqueiro.

até que Pasotti empurrou a porta da sala vermelha, habitual local de permanência da dona da casa.

Um cãozinho feio e raquítico correu latindo ao encontro de dona Barborin, que tentava sorrir enquanto Pasotti vestia sua fisionomia mais obsequiosa, e o pároco, entrando por úl-timo com uma caraça afável, no fundo do coração mandava ao inferno o maldito bicho.

— Friend! Aqui! Friend! — disse placidamente a velha mar-quesa. — Cara senhora, caro Inspetor, pároco.

A voz grossa e nasalada falava com a mesma fleuma, com o mesmo tom, aos convidados e ao cão. Levantara-se para receber dona Barborin, mas sem se afastar um passo do canapé, e ficou ali em pé, figura maciça de olhos apagados e parados debaixo da testa marmórea e da peruca preta que se arredondava em dois grandes rolos acima das têmporas. O rosto devia ter sido bonito no passado e, em sua palidez amarelada de mármore antigo, conservava certa majestade fria que nunca mudava, como o olhar, como a voz, fosse qual fosse o estado d’alma. O pároco lhe fez duas ou três mesuras secas, permanecendo a certa distância, mas Pasotti beijou-lhe a mão, e dona Barborin, sentindo-se gelar sob aquele olhar mortiço, não sabia como se mover nem o que dizer. Outra se-nhora se levantara do canapé junto com a marquesa e olhava com sisudez a mulher de Pasotti, pobre amontoado de roupa velha enrolada em roupa nova.

— Senhora Pasotti e seu marido — disse a marquesa. — Senhora dona Eugenia Carabelli.

A senhora dona Eugenia mal inclinou a cabeça. Sua fi-lha, senhora dona Carolina, estava em pé perto da janela, con-versando com uma favorita da marquesa, neta do seu feitor.

A marquesa não considerou necessário incomodá-la para lhe apresentar os recém-chegados e, convidando-os a sen-tar-se, retomou uma prosa pacata com dona Eugenia sobre

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Dom Franco, único herdeiro do nome Maironi, era filho de um filho da marquesa, morto com 28 anos. Perdera a mãe ao nascer e sempre vivera sob a autoridade da avó Maironi. Alto e esbelto, tinha basta cabeleira fulva, hirta, que lhe va-lera o apelido el scovin d’i nivol, o varre-nuvens. Tinha olhos expressivos, de um cerúleo claríssimo, rosto magro e sim-pático, vívido, pronto a corar e a descorar. Aquele rosto si-sudo agora dizia com muita clareza: “Estou aqui, mas vocês me aborrecem muito”.

— Como vai, Franco? — perguntou a avó, e logo acres-centou sem esperar resposta: — Olhe, dona Carolina deseja ouvir aquela peça de Kalkbrenner.

— Ah, não, viu — disse a mocinha, voltando-se para o jo-vem com ar indolente —, eu disse isso, sim, mas é que, afi-nal, não gosto de Kalkbrenner. Prefiro ficar conversando com as moças.

Franco pareceu satisfeito com a acolhida e, sem mais delongas, foi conversar com o pároco sobre um bom quadro antigo que deveriam ir ver juntos na igreja de Dasio. Dona Eugenia Carabelli estava indignada. Tinha vindo de Loveno com a filha depois de uma ação diplomática secreta da qual haviam participado outras potências. Se essa visita devia ou não ser feita, se o decoro da família Carabelli o permitia, se havia mesmo a probabilidade de sucesso que dona Eugenia exigia, essas tinham sido as últimas questões definidas pela diplomacia; porque, apesar da antiga ligação entre mamãe Carabelli e vovó Maironi, os jovens só se tinham visto umas poucas vezes rapidamente, e eram seus envoltórios de ri-queza e nobreza, parentesco e amizade, que se atraíam como se atraem uma gota de água do mar e uma gota de água doce, embora as minúsculas criaturas que vivem em ambas estejam condenadas a morrer caso as duas gotas se unam.

Dona Eugenia abriu o leque.— Muito bem! — disse, abanando-se com pressa e gana.

— É um belíssimo divertimento.Fechou o leque de golpe e começou a mordiscá-lo com

os lábios.— Deve ter sentido necessidade de tomar ar — observou

a marquesa em seu nariz imperturbável.— Deve ter sentido necessidade de tomar água — murmu-

rou o vigário apostólico de Caravina com os olhos brilhando de malícia. — Está chovendo!

— Dom Franco está vindo, senhora marquesa — disse a neta do feitor depois de lançar um olhar ao lago.

— Muito bem — respondeu o nariz ensonado. — Espero que esteja melhor, senão não vai dizer duas palavras. Um ra-paz muito saudável, mas ansioso. Ouça, Inspetor, e o senhor Giacomo? Por que não aparece?

— O sior Zacomo — começou Pasotti, caçoando do senhor Giacomo Puttini, velho solteirão vêneto que fazia trinta anos morava em Albogasio Superiore, perto da casa de Pasotti. — O sior Zacomo…

— Espere — interrompeu a dama. — Não permito caçoada com os vênetos, além disso não é verdade que no Vêneto se diz Zacomo.

Ela nascera em Pádua e, embora morasse em Brescia havia quase meio século, seu linguajar lombardo ainda estava infestado de algumas inflexões patavinas crônicas. Enquanto Pasotti protestava, com horror cerimonioso, dizendo que só tinha pretendido imitar a voz de seu ótimo vizinho e amigo, a porta se abriu pela terceira vez. Dona Eugenia, sabendo muito bem quem estava entrando, não se dignou virar-se para olhar, mas os olhos apagados da marquesa pousaram com toda fleuma sobre dom Franco.

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entre hesitações e comentários horrorizados, que o vigário apostólico de Caravina, numa rodinha de amigos na farmá-cia de San Mamette em que estavam ele, Pasotti, o senhor Giacomo Puttini, Paolin e Paolon, dissera as seguintes inte-ressantes palavras: “Dom Franco se finge de morto até que a velha morra de verdade”. Ao ouvir essa fina argúcia, a mar-quesa respondeu, em seu pacífico nariz, “muito agradecida” e mudou de assunto. Depois ficou sabendo que a senhora Rigey, sempre adoentada, não andava passando nada bem com uma hipertrofia do coração e teve a impressão de que o humor de Franco se ressentia do fato. Exatamente nesse momento lhe propuseram a moça Carabelli. Carabelli talvez não fosse de seu inteiro agrado, mas diante do outro perigo não havia por que hesitar. Falou com Franco. Dessa vez Franco não fi-cou indignado, ouviu distraído e disse que pensaria no caso. Foi talvez a única hipocrisia de sua vida. A marquesa jogou com ousadia uma carta alta, chamou as Carabelli à sua casa.

Agora percebia, o jogo estava perdido. Dom Franco não se encontrava quando as senhoras chegaram e depois se mos-trara uma única vez por poucos minutos. Seus modos, durante aqueles poucos minutos, tinham sido corteses, mas a fisio-nomia, não; a fisionomia, como sempre, falara tão claro que a marquesa, atribuindo uma indisposição ao neto — coisa que fez de imediato —, não conseguiu enganar ninguém. Mas a velha dama não se convenceu de que havia jogado mal. Já desde que se conhecia por gente, empenhara-se em nunca reco-nhecer em si um único defeito, um único erro, em nunca se ferir, voluntariamente, em sua nobre e dileta pessoa. Agora preferia acreditar que, depois de seu sermão matrimonial ao neto, ele tivesse ouvido em segredo alguma palavrinha de mel, insídia e veneno. Se algum leve consolo encontrava a sua decepção, era no comportamento da senhorita Carabelli, que mal escondia a força de seu ressentimento. A marquesa

A marquesa impusera sua vontade, aparentemente em vir-tude da idade, na realidade em virtude do dinheiro; aceitara-

-se o encontro em Cressogno porque, se Franco só tinha de seu o magro dote da mãe, 18 ou 20 mil liras austríacas, a avó, com sua fleumática dignidade, estava sentada em cima de al-guns milhões. Agora dona Eugenia, vendo o comportamento do jovem, estava indignada com a marquesa, com quem a expusera e expusera sua filha a semelhante humilhação. Se, com um sopro, pudesse eliminar ao mesmo tempo a velha, seu neto, aquela casa tétrica e a companhia enfadonha, teria feito isso com alegria; mas convinha dissimular, parecer in-diferente, engolir o vexame e o almoço.

Por fora, a marquesa conservava sua placidez marmórea, embora tivesse o coração cheio de despeito e animosidade para com o neto. Dois anos antes, ele tinha ousado pedir-lhe permissão para se casar com uma mocinha de Valsolda, edu-cada, mas não rica nem nobre. A recusa terminante da avó tornara impossível o casamento e convencera a mãe da moça de que devia deixar de receber dom Franco em casa; mas a marquesa continuou convencida de que aquela gente ainda estava de olho em seus milhões. Por isso, concebera o pro-pósito de casar Franco bem depressa para livrá-lo do perigo; e procurara uma moça rica, mas nem tanto, nobre, mas nem tanto, inteligente, mas nem tanto. Encontrando uma nesses moldes, fez a proposta a Franco, que ficou tremendamente indignado e afirmou que não queria casar-se. A resposta era bem suspeita, e ela passou a vigiar mais que antes os passos do neto e daquela “madama Trampa”, pois era assim gracio-samente que chamava a senhorita Luisa Rigey.

A família Rigey, composta apenas de duas mulheres, Luisa e a mãe, morava em Valsolda, em Castello; não era difícil vigiá-la. Apesar disso, a marquesa não obteve nenhum resul-tado. Mas, certa noite, Pasotti lhe contou com muita hipocrisia,

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pondo no rosto uma expressão de indiferença. “Se nos man-dassem de volta para casa! Que sorte!” Depois de dois minu-tos o criado voltou e fez uma mesura.

— Vamos — disse a marquesa, levantando-se.Na sala de jantar a comitiva encontrou um personagem

novo, um velhote baixinho, encurvado, de olhinhos bondo-sos e nariz comprido tombado sobre o queixo.

— Na verdade, senhora marquesa, já almocei — disse ele, muito tímido e humilde.

— Acomode-se, senhor Viscontini — respondeu a mar-quesa, que sabia praticar a arte insolente da surdez como todos os que querem absolutamente um mundo ajustado às suas comodidades e a seu gosto.

O homenzinho não ousou replicar, mas também não ousava sentar-se.

— Coragem, senhor Viscontini! — disse-lhe Paolin, que estava perto dele. — O que está fazendo aqui?

— Fazendo número — murmurou o vigário apostólico.De fato, o bom senhor Viscontini, afinador de pianos, ti-

nha vindo pela manhã de Lugano para afinar o piano dos se-nhores Zelbi de Cima e o de dom Franco, almoçara à uma em casa dos Zelbi, depois viera para a casa dos Maironi, e agora lhe tocava substituir o senhor Giacomo porque senão os co-mensais seriam treze.

Um líquido escuro fumegava na sopeira de prata.— Risoto não — cochichou Pasotti ao pároco, pondo-se

atrás dele. A caraça tranquila não deu mostras de ter ouvido.Os almoços em casa dos Maironi eram sempre lúgu-

bres, e esse dava sinais de ser mais lúgubre que de cos-tume. Em compensação também era muito mais requintado. Comendo, Pasotti e o pároco se entreolhavam com frequên-cia, para expressarem admiração e como que para se con-gratularem pelo prazer da iguaria, e, se por acaso algum olhar

não gostava disso. O vigário de Caravina talvez só estivesse um pouco errado na forma quando dizia sobre ela, à boca pe-quena: “É uma p… da Áustria”. Tal como a velha Áustria daquele tempo, a velha marquesa não gostava de espíritos fortes em seu império. Sua vontade de ferro não tolerava outras von-tades iguais por perto. Já era demais um lombardo-vêneto indócil como o senhor Franco, e a senhorita Carabelli, que ti-nha jeito de sentir e querer por conta própria, provavelmente acabaria sendo uma súdita incômoda na casa Maironi, uma Hungria turbulenta.

O almoço foi anunciado. No rosto barbeado e no uniforme cinzento, de mau corte, do criado refletiam-se as ideias aristo-cráticas da marquesa, temperadas por costumes econômicos.

— E esse senhor Giacomo, Inspetor? — disse ela sem se mexer.

— Lamento, marquesa — respondeu Pasotti. — Hoje de manhã encontrei com ele e lhe disse: “E então, senhor Giacomo, nos vemos no almoço?”. Foi o mesmo que lhe pôr uma cobra no corpo. Começou a se contorcer e a fungar: — É, acho, sei não, talvez, nem digo, apff, olha, propramente, gentilíssimo Inspetor, sei não, enfim, e apff! — Não arran-quei mais nada dele.

A marquesa chamou o empregado e lhe disse algo em voz baixa. Ele fez uma mesura e retirou-se. O pároco de Puria balançava-se para a frente e para trás, acariciando os joelhos no desejo do risoto, mas a marquesa parecia petrificada no canapé e, assim, ele também se petrificou. Os outros se en-treolhavam mudos.

A pobre dona Barborin, vendo o criado e admirando-se com a imobilidade e as expressões pasmadas de todos, ergueu as sobrancelhas, interrogou com o olhar ora o marido, ora o pároco, ora o vigário, até que um olhar fulminante de Pasotti a petrificou também. “E se o almoço tiver queimado!”, pensava,

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— Não é a Avenida da Porta Renza — disse o marquês —, mas também não é, infelizmente, o chemin du Paradis.

— Isso não! Não mesmo! Eu é que sei! — exclamou Viscontini, lamentavelmente inflamado por demasiadas ta-ças de Ghemme. Todos os olhos se voltaram para ele, e Paolin lhe disse algo em voz baixa. — Se estou louco? — respondeu o homenzinho com o rosto aceso. — De jeito nenhum! Estou dizendo que na minha vida nunca aconteceu aperreação igual.

E então contou que, pela manhã, vindo de Lugano, ti-nha passado um pouco de frio no barco e por isso descera em Niscioree para continuar a viagem a pé; que, entre aque-les dois muros, onde um asno não conseguiria dar meia-volta, tinha dado de cara com os guardas aduaneiros, que o insul-taram porque ele não havia desembarcado na Recebedoria; que o tinham conduzido à maldita Recebedoria; que levava na mão uma partitura manuscrita, e que o animal do Recebedor, tomando colcheias e fusas por correspondências políticas se-cretas, tinha ficado com a partitura.

Silêncio profundo. Depois de alguns momentos, a mar-quesa sentenciou que o senhor Viscontini estava completa-mente errado. Não devia ter desembarcado em Niscioree, pois era proibido. Quanto ao senhor Recebedor, era uma pessoa respeitabilíssima. Pasotti confirmou com expressão severa.

— Ótimo funcionário — disse.— Ótimo canalha — murmurou o vigário entre dentes.Franco, que no começo parecia estar pensando em ou-

tra coisa, mostrou-se perturbado e lançou um olhar de des-prezo a Pasotti.

— Além do mais — acrescentou a marquesa —, acho que com o pretexto da música manuscrita alguém poderia muito bem…

— Claro! — disse Paolin, partidário dos austríacos por medo, enquanto a dona da casa o era por convicção.

de Pasotti escapasse ao pároco, dona Barborin, perto deste, o avisava com um toque tímido do cotovelo.

As vozes que mais se faziam ouvir eram a do marquês e a de dona Eugenia. O narigão aristocrático de Bianchi e seu sorriso fino de cavalheiro galante dirigiam-se com frequência à beleza minguante, mas ainda não extinta, da dama. Milaneses da gema ambos, sentiam-se unidos por certa superioridade não só em relação aos pequeno-burgueses da mesa, como também aos donos da casa, nobres provincianos. O marquês era a afabilidade em pessoa e conversaria amavelmente até com o comensal mais modesto; mas dona Eugenia, em seu humor amargo, em sua repulsa pelo lugar e pelas pessoas, agarrou-se a ele como único ser digno, deixando isso claro, até para fazer desaforo aos outros. Causou certo embaraço ao marquês quando lhe disse em voz alta que não entendia como ele podia gostar da horrível Valsolda. O marquês, que se retirara havia muitos anos para viver tranquilamente na-quele lugar, onde nascera sua única filha, dona Ester, de início ficou um pouco desconcertado com aquelas palavras ofensi-vas a diversos convivas, mas depois fez uma defesa entusias-mada da terra. A marquesa não deu mostras de se perturbar; Paolin, Paolon e o vigário, valsoldenses, mantinham-se em silêncio, amuados.

Pasotti declamou solenemente um pomposo elogio a “Niscioree”, a villa dos Bianchi, perto de Oria. Bianchi, ho-mem leal, que no passado não tivera muitos motivos para ga-bar Pasotti, não pareceu apreciar o elogio. Convidou Carabelli a ir a Niscioree.

— Não a pé, Eugenia — disse a marquesa, sabendo que a amiga morria de medo de engordar. — Precisa ver como é estreita a rua que vai da Recebedoria a Niscioree! Você não passa mesmo.

Dona Eugenia protestou com indignação.

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enquanto Paolin, amoladíssimo com o almoço gorado, res-mungou: “E o que foi que ele alguma vez entendeu?”. O mar-quês, muito carrancudo, calava. Finalmente Pasotti, réu de fato, assumindo expressão de tristeza afetuosa, disse como de si para si:

— Que pena! Coitado de dom Franco! Coração de ouro, boa cabeça e um temperamento desses! Pena mesmo!

— Eita! — exclamou Paolin.E o pároco, muito contrito:

— São grandes desgostos!Espera que espera, as mulheres não voltavam. Então

alguém resolveu mexer-se. Paolin e o pároco aproximaram--se devagar do aparador, com as mãos nas costas, contem-plaram a torta de risoto. O pároco chamou Pasotti baixinho, mas Pasotti não saiu do lugar. Então o pároco, cobrindo seu triunfo de tal modo que o mostrava não mostrando, comentou:

— Só queria lhe dizer que há trufas brancas.— Eu diria que aqui também não faltam trufasIII pretas

— observou o marquês, enfatizando um pouco as duas últi-mas palavras.

I I I Em italiano, trufa se diz tartufo, que também tem o significado de hipócrita. Como se verá, Pasotti será frequentemente chamado de tartufo.

O marquês, que em 1815 tinha abandonado a espada para não servir os austríacos, sorriu e disse com seus botões:

— Là! C’est un peu fort!II

— Mas se todos sabem que aquele Recebedor é uma besta! — exclamou Franco.

— Desculpe, dom Franco — disse Pasotti.— Que desculpe que nada! — interrompeu o outro. —

É uma besta quadrada!— É um homem consciencioso — disse a marquesa —, um

empregado que cumpre seu dever.— Então bestas devem ser seus patrões! — rebateu Franco.— Caro Franco — replicou a voz fleumática —, esse tipo

de conversa em minha casa, não. Graças a Deus aqui não é Piemonte.

Pasotti deu uma gargalhada de aprovação. Franco então, segurando furiosamente com as duas mãos o prato em que comia, com uma pancada espatifou-o contra a mesa.

— Jesusmaria! — exclamou Viscontini, enquanto Paolon, interrompido em suas laboriosas operações de comilão des-dentado, disse:

— Ô!— É isso mesmo! — disse Franco, levantando-se com o

rosto transtornado. — É melhor me retirar!E saiu da sala. Imediatamente, dona Eugenia se sentiu

mal, precisou ser levada para fora. Todas as mulheres, menos a de Pasotti, saíram com ela por um lado, enquanto o criado entrava pelo outro, trazendo uma torta de risoto. O pároco olhou para Pasotti com um sorriso triunfal, mas Pasotti fin-giu não perceber. Todos estavam em pé. Viscontini, réu apa-rente, continuava a dizer “não entendi nada, não entendi nada”,

I I “Aí já é exagero!”

O projeto gráfico deste livro partiu de três conceitos--chave presentes na narrativa: contradição, transição e conflito.

A ideia de contradição está presente na relação en-tre a proporção de suas páginas — aproximadamente 3:4, mais comum na Idade Média — e de suas manchas de texto

— quase equivalente à do chamado retângulo áureo, popular na Renascença.

O conceito de transição se manifesta na escolha das fa-mílias tipográficas Prumo — em textos corridos — e History

— nos títulos. Ambas são baseadas em um esqueleto único so-bre o qual suas variações fazem um passeio pela história a partir de referências tipográficas. Assim, ao longo do livro os tipos vão evoluindo formalmente, do maior ao menor con-traste, ecoando a própria evolução da tipografia.

A ideia de conflito aparece na capa, por meio do re-corte da imagem da tela Il bacio, de Francesco Hayez, de 1859. O corte escolhido transforma a cena original de um beijo em um ato quase violento, rementendo às diferentes visões so-bre o período do Risorgimento, do otimismo e esperança a um ponto de vista mais crítico e realista do processo de uni-ficação da Itália, pano de fundo da história do livro.

O miolo foi impresso em papel Pólen Bold 90 g/m2 em agosto de 2016 na gráfica Ipsis.

Este exemplar é o de número

de uma tiragem de 1.000 cópias.