Pequenos Burgueses Pré Textual0001

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T E A T R O V I V O

M A x I M o G O l m

P E o u E N O s B U R G O E S E S

CCA- SENAC

NC I J SU3110TECA

1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1

012502

Editor

VICTOR CIVIT A



Copyright desta edicao, 1976,

Abril S.A. Cultural e Industrial, Sao Paulo.



M A x i M o G O R K I

(1868 - 1936)

"Elepertence dquela longa e tdo diversa

categoria de espiritos generosos que foram per suadidos de quea Terra e bela e a humanidade e boa. "

(Dumesnil de 'Gramont)



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Defendendo a imensa multiddo de camponeses e operarios marginalizados pela

Revoluciio Industrial, Maximo Gorkifez da literatura uma tribuna

politico. (Detalhe do quadro Trabalhadores Despertai !, do russo V. Serov.)

IV .



Moscou, 1902. Diante do Teatro Artistico de Moscou,

uma pequena multidao se comprimia sob 0 olhar vigilante dos

guardas do czar, fortemente armados. Ninguern sabia, ao certo,

se Pequenos Burgueses chegaria a estrear. 0 texto da peca, edi-

tado alguns meses antes, fora recebido com entusiasmo. Vende-

ramose 60000 exemplares, urn sucesso extraordinario para 'a

epoca. Mas a censura havia feito iruirneros cortes na obra, 0 que

provocara desagrado entre seus milhares de leitores.

Urn ana antes, em 1901, Maximo Gorki fora detido pela ter-

ceira vez e so conseguira sair da prisao gr acas it interferenciade Tolstoi, Eleito membro honorario da Academia de Ciencias,

tivera sua posse impedida pelo czar, 0 que resultara ria dernissao

de dois membros da Academia, Tchekhov e Korolenko, em sinal

de protesto. Assirn, a presenca em massa dos espectadores era

nao so motivada pelo interesse cultural como tam bern pelo desejo

de promover urn desagravo ao autor.

Na plateia, a tensao aumentava it medida que se aproximava

o momenta de se iniciar 0 espetaculo, 0 elenco pediu ao publico

que se mantivesse calrno, para que 0 autor nao Fosse prejudicado

e pudesse continuar escrevendo. Em resposta, alguns espectado-

res mais exaltados gritaram: "Abaixo 0grao-duque".

v



o CONFLITO DE GERA<;C)ES

A representacao de Pequenos Burgueses foi urn enorme su-

cesso e com ela teve inicio a linha politico-social do teatro russo.

Logo no primeiro ato, Gorki aborda de maneira vigorosa 0 con-flito de geracoes, a oposicao entre os poderosos, representantes

de urn modo de vida tradicional, e os grupos sociais emergentes

que a eles se opunham. r

o velho Bessemenov, sua mulher Akoulina, os filhos Pietr

e Tatiana sao personagens contraditorias, ric as, bastante diferen-

ciadas em termos psicologicos, ernbora oriundas do mesmo grupo

social - os meschane.

Os meschane eram individuos que nao pertenciam nema nobreza, nem ao campesinato, nem ao c1ero. Eram os habitan-

tes da cidade (do burgo) e so nesse sentido poderiam ser denomi-

nados "burgueses", ja que, nos tempos modernos, a palavra ga-

nhou outro sentido. Os burgueses ricos eram designados par

outros nomes, de acordo com a ocupacao profissional. No sen-

tido moral, meschanin (no singular) e 0 homem extremamente

As personagens de Pequenos Burgueses vivem num mundo sufocante e

mesquinho, e a impotencia Ii ° elemento comum a todas elas.

. v I



o velho Bessemenov, conservador inflexivel,I ium inconformado: niio conseguever concretizodasalgumas de suas expectativas em relacdo aosfilhos. '

mesquinho, incapaz de apreciar tudo quanto .seja grande e belo.

Acritica aos meschane esta presente em toda a obra deMaximo 'Gorki. Em Vassa Geloznova (1910), diz uma persona-

gem: " ... conheco muito bern a sua classe social. Aqui na Rus-

sia, como no estrangeiro, e uma classe doente; voces vivem ma-

quinalrnente, voces se submetem it forca das coisas que voces

criaram. Voces se detestam uns aos outros; e nunc a se perguntam

por que vivem e quem tern necessidade de voces. Mesmo os me-

lhores, os mais inteligentes entre voces, nao vivem a nao ser por

me do da morte ... "Assim como havia utilizado a prosa para evidenciar os con-

trastes e os antagonismos sociais, Gorki usa 0 teatro como outra

forma de luta. Mesmo asfixiada, a literatura russa era grande tri-

buna politica durante a repressao czarista. Gorki tornara-se 0

defensor dos bessiaki, aquela gente nornade que ele conhecera taobern, marginalizada pela Revolucao Industrial; aquela multidao

que abandonava 0 campo, it procura de empregos nas industrias

das cidades; a massa de desempregados, 0 excesso de mao-de-

V II



obra que fugia dos cortices, das condicoes subumanas, e errava

pelo pais ~ procura de urn lugar.

A metafisica da dor - que na obra de Dostoievski

(1821-1881) atingira suas ultirnas consequencias - e a caridadedo agnosticocciistao-socialista Leon Tolstoi (1828-1910), Gorki

opos a alegria de viver, substituindoa exaltacao do sofrimento

por uma raiva instintiva e umajustificada violencia.

Gorki sente-se irmanado com essa rnultidao de "ex-he-

mens", como os chamaria em Raze (1902), e com os operar ios.

Sua visao do proletariado era, porern, rornantica, apaixonada, e

muitas vezes ele se deixava arrebatar, prejudicando a fluencia da

narracao para vociferar contra os burgueses, vencidos e acaba-

dos, submersos na hipocrisia de uma vida mediocre e mesquinha.

Essa tendencia ao manifesto panfletario tornou-se mais evidente

em sua obra teatral, e Gorki se esforcou por atingir maior auto-

dorninio, passando a considerar detestaveis algumas de suas pe-

cas, como Os Fi/hos do Sol (1905) e Os Veranistas (1905), nas

quais 0 discurso interfere no fluir espontaneo da acao.

UM GRITO DE INDIGNA<;AO

Aleksiei Maksimovitch Pieshkov (era este seu verdadeiro

nome) nasceu em Nijni-Novgorod, cidade que Stalin (1879-1953)

batizaria mais tarde como Gorki. Referindo-se ao nascimento, es-

creveu ele em suas memorias: "No ana de 1868, a 14 do rnes

de marco, as duas horas da madrugada, em consequencia da pre-

dilecao que tern pelas partidas de mau gosto, e ainda para com-

pie tar a soma de absurdos.que tern cometido em diversas epocas,a Natureza fez-me nascer com uma pincelada objetiva. A des-

peito da irnportancia desse fato, nao con servo dele nenhuma re-

cordacao pessoal; mas minha avo disse-rne que logo que me foi

conferido espirito humano soltei urn grito. Quero crer que foi urn

grito de indignacao e protesto".

Filho de artesaos, nascido num meio social muito pobre,

Aleksiei, orfao de pai, foi criado pelo avo materno, urn tintureiro.

Com a morte da mae, em 1878, 0 menino teve de deixar

11casa do avo, para ganhar a vida. Inicia assim uma peregrinacaopelas mais diversas ocupacoes: sapateiro, desenhista, lavador de

pratos num navio que percorre 0 Volga. Nesta ultima atividade,

Aleksiei da seu primeiro passo em direcao a consciencia politica

VIII



Rale trata de "criaturas

que uma vez ja foram

homens ".Apesar de suavisdo amarga, Maximo

Gorki deu-Ihe

uma verdadeira

carga de otimismo.

IX



e a literatura. 0 cozinheiro do navio empresta-lhe alguns livros

e desperta nele 0 interessepelos problemas politicos. Aleksiei co-

meca asentir que seus horizontes se alargarn e, a partir de entao,

nunca mais se separa dos livros. .Por volta de 1884, apaixonado pela cultura, muda-se para

Kazan, onde imagina poder cursar gratuitamente a Universidade.

Mas isso e urn privilegio de poucos, dos que tern dinheiro para

pagar. E Aleksiei nao pertence a esse circulo de eleitos. Acossado

pelas dificuldades economicas, ernprega-se como vigia num tea-

tro. Desiludido com sua vida de privacoes, torna-se pescador no

mar Caspio e vendedor de frutas em Astrakan. Vai para Odessa

com uma turma de marginais nornades que erra de cidade em

cid ade, a procura de emprego. Trabalha como estivador, auxiliar

de escritorio, jardineiro, cantor de coro, padeiro. Percorrc 0Cau-

caso, a Crimeia, a Ucr ania, Sofre a miseria.:o frio, a fome, a

revolta: este e seu curso universitario, batiz ado mais tarde por

ele como Minhas Universidades.

MAxIMO, 0 AM ARGO

Aos 19 anos esta em Kazan, onde tenta 0 suicidio. Sobrevive

a bala que Ihe penetra urn dos pulmoes, mas contr ai uma tubercu-

lose que 0 acornpanhar a para sempre. A propos ito desse gesto,

escreve: "A culpa de minha morte deve ser atribuida ao poeta

ale mao Heinrich Heine; inventou 0 coracao que tern dor de den-

tes. Junto a este bilnete meus documentos de identidade, que tirei

expressamente para essa ocasiao. Quanto aos meus restos mor-

tais, peco que os submetam a autopsia, a fim de descobrirern deque diabo estava eu possesso nestes ultimos tempos". Dessa expe-

riencia, resulta 0 material utilizado em Urn lncidente na Vida de

Makar (1892) e Como Aprendi a Escrever (1912).

Devolta a vida, Aleksiei decide engajar-se na luta politica,

Na Georgia, entra em contato com algumas organizacoes, Ie

Marx e segue os passos de Lenin (1870-1924). Em 1890 e preso

em sua cidade natal, sob a suspeita de exercer atividades subversi-

vas. 0 relatorio policial descreve-o como "urn homem extrema-

mente suspeito; leu muito, maneja bern a pena; atravessou quasetoda a Russia (na maior parte do tempo ape); esteve mais de

urn ano em Tillis, sem ocupacao certa, e saiu de la sem saber

para onde, ir". Posto em liberdade, Aleksiei passa dois anos va-

X



Pequenos BurguesesJoi apresentada pela primeira vez-no Brasil em 1963.

Encenada em Sdo Paulo pelo Teatro Oficina e dirigida par Jose Celso Martinez

Correa. a peca conseguiu grande sucesso, permanecendo urn ano em cartaz.

gando pelas estepes, participando do exodo para 0 sui; caminha

milhares de quilometros com a massa de indigentes, vitimas da

fome de 189'1-92. Ainda em 1892, publica seu prirneiro conto,

Makar Tchudra, na revista Kavkas, usando pela primeira vez 0

pseudonimo de Maximo Gorki (Maximo, 0 Amargo). E saudado

com entusiasmo por Romain Rolland (1866-1944), que ve nele"0 homem que,como Dante, voltou do Inferno, mas nao sozinho,

trazendoconsigo seus companheiros de tormento e seus carnara-

das de salvacao".

Makar Tchudra despertou a atencao dos intelectuais russos

por seu estilo vigoroso. Vladimir Korolenko (1853-1921), que ha-

via acabado de cumprir uma pena na Siberia, interessou-se ime-

diatamente pelo jovem autor. Arranjou-Ihe urn emprego num jor-

nal de Samara, 0 Samarskaia Gazieta, no qual Gorki se projeta

rapidamente como jornalista e escritor. Em 1898, aparecem suas

primeiras coletaneas, os pequenos temas de Ensaios e Narrativas, .que obtem grande exito e 0 colocam entre os melhores escritores

XI



da epoca, Urn ana depois, Gorki publica dois romances: RomdGordieiev e Os Tres. 0 primeiro e a histor ia de urn individuo

exuberante, cuja vitalidade e tolhida pelo ambiente mesquinho de

uma cidade provinciana; 0 segundo consiste na reelaboracao de

Crimo e Castigo, de Dostoievski,

A DESCOBERTA DO TEATRO

Em 1901, depois de se livrar da prisao, it qual havia sido

recolhido par participar de urn movimento estudantil em Kazan,

.Gorki corneca a escrever para 0 teatro. Numa carta a Anton

Tchekhov (1860-1904), diz ele: "Escreverei urn ciclo de dramas,esteja certo. Urn sobre os 'inteligentes'. Urn grupo de pes soas sem

ideais ( ... ) Urn outro com urn operario proletario citadino se-

mi-'inteligente'. Absolutamente aceitavel pela censura ( ... ) Urn

terceiro sobre 0 campo ( ... ) Urn outro ainda: os sem teto, urn

tartare, urn judeu, urn ator, a dona de urn albergue noturno, urn

policial, prostitutas ( ... ) Sera terrivel? escuto as vozes, as falas.

Os motivos sao claros, tudo e claro ( ... )".

Apesar do sucesso de Pequenos Burgueses, a censura proibe

que a peca seja montada em teatros populares ou traduzida para

linguas de· outros povos do Imperio. Mas 0 autor nao se deixa

intimidar e escreve outra peca, A 19 de julho desse mesmo ano,

Gorki recebe uma carta de Tchekhov: "Li sua peca Rate. E nova

e, sem duvida, excelente. 0 segundo ate e muito born: e 0 melhor

e maisforte, e, quando eu lia, especialmente 0 final, quase dancei

de alegria. 0 tema e escuro e opressivo; talvez a plateia, nao acos-

tumada com essas coisas, saia do teatro e voce tenha que dar

adeus it sua reputacao de otimista".A plateia nao abandonou 0 teatro, porque embora a visao

de Gorki seja arnarga.. esta carregada tam bern de otimismo,

mesmo quando trata de "criaturas que uma vez ja foram ho-

mens", como em Rale. Gorki havia cumprido a promessa feita

a Tchekhov de escrever uma peca sobre os "sern teto".

Rale (que no original recebeu 0 titulo de No Fundo) tern

varias tramas que se entrelacarn. A mais evidente e ado romance

entre Vassili e Vaska, a mulher do encarregado do albergue. Vas-sili decide abandonar a amante para fugir com a irma desta, Na-

tasha. Vaska desencadeia sua Furia contra a irma, e Vassili, para

defender Natasha, mata acidentalmente 0marido de Vaska.

XII



A tendencia de Gorki para0

manifesto panfletario tornou-se mats evidente empecas como Os Filhos do Sol. (Nafoto, cendrio projetado por J.Marquet.)

As demais personagens nao sao. menos importantes: Satin,

o ator decadente; Klesh, 0 desempregado, e sua mulher; 0 Barao,

a prostituta Nastia, a verdureira Kvasnia, 0 sapateiro Aliosha.

A esse grupo de esquecidos, junta-se Luka, urn apostolo leigo que

filosofa sobre a condicao humana dos que vivem nos bas-fonds,e que consegue manter-se integro, ernbora massacrado, porquc,

apesar de tudo, tern uma grande esperanca na humanidade. "Os

seres hurnanos", diz ele, "encontrarao 0 que buscam alern." Essas

palavr as, em contraste com a realidade da miseria em que vivem

as personagens de Rale, so poderiam encontrar ressonancia na-

queles que, como Gorki, desejavam uma transforrnacao radical

da sociedade.

Gorki participou ativamente da encenacao de Rale, levada

a cabo pelo grupo do Teatro Artistico de Moscou, sob a direcao

de Stanislavski (1863-1938). Por sugestao do autor, os atores visi-taram 0 mercado de Khitrov, para conhecer mais intimamente

as personagens que iriam encarnar. Gorki sugeriu que se contra-

tasse uma prostituta para auxiliar Olga Knipper, mulher de

XIII



Tchekhov, a compor a personagern de Nastia. 0 papel do ator

Satin foi interpret ado pelo proprio Stanislavski.

Em 1905, Gorki e detido por subversao e encarcerado na

prisao de Sao Pedro e Sao Paulo, em Sao Petersburgo, de ondesai pouco tempo depois, gracas it interferencia de outros intelec-

tuais. Organiza 0' jornal Novaia Jizni (Vida Nova), mas e obri-

gado-a abandonar a Russia logo apes 0 malogro da rebeliao ope-

raria de dezembro.

Vai para os Estados Unidos, onde sua perrnanencia edificul-

tada pelo embaixador russo. Gorki tent a levantar fundos para a

revolucao sovietica, mas Randolph Hearst, dono de uma grande

cadeia de jornais, dificulta-Ihe os passos, acusando-o de imorali-

dade publica, pelo fato de Gorki ter se casado pela terceira vez.

o escritor refugia-se com sua mulher, Maria Budberg, em Staten

Island, on de escreve 0 romance A Mae (1907), e uma peca de

teatro, Os Inimigos (1906).Pouco tempo antes, em Filhos do Sol, cle denunciara a fac-

cao da intelectualidade russa que nao se alinhava na luta revolu-cionaria, Em Os Inimigos, Gorki aborda 0 problema da relacao

entre patroes e empregados.

o romance A Mae, consider ado urn de seus trabalhos maisimportantes, e tido como a primeira obra do realismo socialista.

Esta impregnado de humanismo, como toda a obra de Gorki.

Para Gorki, 0 homem que vincula sua sorte it sorte de seu

povo esta vivo; aquele que, rnesquinhamente, so pensa em sua

propria tranqiiilidade, mesmo que isso implique estagnacao, esta

morto. Gorki nao sente a menor cornpaixao pelo mundo dos pe-

quenos burgueses, que v e como uma multidao cinza e entediada.

"Alguns deles", considera 0 escritor, "tee em vagos sonhos sobrea beleza da vida ha duzentos anos atr as, mas ninguem se coloca

a simples pergunta: 0 que a tornar a bela se nos limitarmos apenas

a sonhar?"

Em fins de 1906, G6rki fixa residencia em Capri, onde

funda uma escola para imigrantes revolucioriarios, que funciona

ate 1914. Durante 0 exilio, escreve Os Barbaros (1906), Os ina-

mos (1908), Gente Esquisita (1910), Vassa Aheleznova (1911),

Os Kykov (1912) e a trilogia autobiografica: Infdncia, Ganhando

Meu Pdo e Minhas Universidades (1912-13).Os Ultimos, uma das pecas escritas durante 0 exilio, retrata

o conflito entre pais e filhos, e a ruin a de uma familia burguesa

nos 'ultimos anos do czarismo. Ivan Kolornnitzev, 0 chefe da

XIV



"0 homem e a unica maravilha sabre a terra, todas as outras sao 0produto

de sua imaginaciio, de sua inteligencia, de sua vontade criadora ': (Gorki)

xv



familia, e urn policial corrupto que nao hesita em prender urn

jovem suspeito de cometer urn atentado contra a vida do czar,

apesar de sua evidente inocencia, No conflito, seus filhos Pietr

e Vera tomam 0 partido da justica contra 0 pai, que e apoiado

pelos outros filhos, Nadia e Alexandre. 0 alvo de Gorki, nessa

pee a, e aquele tipo de sociedade que estimula a corrupcao e a

existencia de pessoas venais, como Kolomnitzev. No final do ul-

timo ato, so resta it mae - a impotente Sofia - pedir perdao

aos filhos por te-los colocado no mundo.

Com 0 .inicio da Grande Guerra, em 1914, Gorki retorna

it Russia. Dirige urn jornal rnensal, Lietopis (Cronica), e se alinha

com Lenin e os bolcheviques, ajudando a preparar a revolucao.

Quando esta triunfa, em 1917, Gorki e considerado heroi, Res-suscita 0 diario Novaia Jizni e escreve urn ensaio sobre Tolstoi

(1919). Em 1921 adoece gravemente dos pulrnoes e vai para a

Italia, permanecendo em Sorrento durante varies anos, Ali es-

creve Recordacoes sobre Lenin (1924), Os Artamonov (1925) e

corneca uma grande epopeia, A Vida de Klim Samgin (1927-36).

Em 1933, Gorki decidiu estabelecer-se na Uniao Sovietica,

apesarde sua saude precaria, Escreve entao Yegor Bolychov, re-tratando ofim da classe media por meio da histor ia de urn comer-

ciante. Em 1935 concluiu Dostygayev e ainda estava escrevendo

A Vida de Klim Samgin, quando morreu de. pneumonia, em 18

de junho de 1936. F oi sepultado com todas as honras oficiais

e seu feretro acornpanhado por Stalin e Molotov.

CENAS EM CASA DOS BESSEMENOV

Pequenos Burgueses foi concebida em 1900 e Gorki tr abaIhou algum tempo na peca, ate que ela atingisse uma forma satis-

fat aria. No inicio , tinha 0 titulo de Cenas em Casa dos Besseme-

nov, Esboco Dramatico em Quatro Alos. Na verdade, a peca nao

segue uma linha de acao unica, mas e antes urn mosaico de situa-

coes e personagens representativas da vida russa da epoca,

Numa carta a Stanislavski, Gorki diz que as personagens

principais sao Nil e Po lia, mas ha uma evidente predominancia

da situacao: a lenta deter ior acao da pequena burguesia. As reflexoes de Gorki sobre 0 mundo pequeno-burgues, em todos os.seus

r aspectos - vida, expectativas, psicologia, contradicoes, etc.-,

denotam grande acuidade em relacao it "rnultidao cinza e ente-

XVI



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A caridade agnostico-cristd de seu contempordneo Tolstoi (nafoto), Gorki

opos a alegria de viver, a raiva instintiva e umajustificada violencia.

diad a", bern mais rica e profunda que suas observacoes sobre 0proletariado. Sua visao do proletario e ideal, linear e did atica:

urn ser sem contradicoes, que sabe 0 que quere rnarcha decidido

para a vitoria final.

As personagens de Pequenos Burgueses vivem num meio

mesquinho, revelando-se quase sempre impotentes para veneer as

barreiras desse rneio, A impotencia, em varies niveis, e 0 unicoelemento cornum a todas elas. 0 velho Bessemenov ja nao tern-

autoridade para se impor junto a familia; a dedicacao da velha

Akoulina e insuficientepara impedir os choques entre os variesmembros da familia; Tatiana e Pietr, cada urn por seus motivos,

nao conseguem romper 0 asfixiante circulo familiar.

XVII



.Na refer ida carta .a. Stanislavski, Gorki assinala esse pro-

Jjl~ma na familia Besserrienov: "Akoulina esta toda no amor aos

filhos ": ao marido, no desejo.de ver os que a rodeiam amarem-se

uns a~s outros ... " Ela faz qualquer coisa para evitar as discus-

soes fafF)iliart;:s.'Adotimdo a 'pelitica dos "panos quentes", colo-ca-se entre . o s ' demais 'para receber todos os golpes. Mas, no seu

amor It familia, e profundamente egoista, Marginaliza os "de

fora" e-nao 'hesita em se comportar de maneira vii e injusta

quando se trata de defender os seus. Contudo, apesar de sua von-

tade de impedir rupturas, nao consegue qualquer uniao no seio

da familia. Afinal, todos estao sozinhos, isolados por urn muro

de falsos deveres e obrigacoes,

o velho Bessernenov "esta numa situacao absurda, desola-dora. Viveu 0 diabo sabe quanto, trabalhou sem descanso, trap a-

ceou para reforcar 0 resultado do trabalho e, de repente, vc que

tudo foi em vao !" Ele niio cornpreende seu tempo, nem as novas

geracoes com seus habitos e cornportamento, Encara tudo como

desacato, irnoralidade, sinal deapocalipse. E 0 mais distante de

todos, por ser 0 rnais conservadore .inflexivel, 0 patriarca frus-

trado, 0 chefe de familia falido, que nao consegue, apesar de todo

"sacrificio" pelo bern-estar da familia, ver concretizadas algumasde suas expectativas em relacao aos filhos: Pietr esta suspenso

da Universidade, por suas atividades politicas, e se apaixonou por

Elena, a quem 0 velho atrib~cVurria' conduta imoral; Tatiana, com

28 anos, e uma solteirona que ele desejaria ver casada, pelo me- ~

nos para evitar as insinuacoes dos amigos.

Bessemenov incornoda-se com a opiniao alheia sobre seu

fracasso como pai. Mas nao consegue obter de Pietr senao vagas

promessas de que urn dia far a qualquer coisa; e, afinal, Pietr

acaba por feri-Io profundamente quando opta pela vida. com

Elena, deixando-o estupefato com esse gesto atrevido, De Ta-

tiana, ele recebe apenas a presenca. Ela perrnanece corn os velhos

por algum sentimento' de devocao familiar, do qual e incapaz de

fugir, apesar de the amargar a vida .

. Bessemenov e Akoulina, condenados a vida e a solidao, afer-

ram-se aos antigos valores e culpam 0 mundo inteiro pela 'dissolu-

r;ao de sua familia. Negam-se a admitir que sao mortos-vivos,

enclausurados em sua morbidez e incompreensao, na mesquinhezde suas vidas e de seu carater, prontos a responsabilizar todosquantos se oponham as suas ideias,

o bode expiatorio mais proximo e Nil, 0 filho adotivo, ope-

XVlII /



Nil ama P6lia e acredita

que com ela serafeliz:

"N_6svamos viver muito

bern; voce vai ver. Voce

Iiuma boa companheira ".

rario, com0

qual Tatiana alimenta uma certa esperanca de secasar. "Nil", escreveu Gorki, "6 um homem tranqiiilamente con-

victo de sua forca e do seu direito de reconstruir a existencia de

acordo com sua propria compreensao das coisas ( ... ) Irritan-'

do-se, fala firme e distintamente, como quem da machadadas. A

indignacao, a ira, tudo nele 6 firme, sadio ... "

Nil arna Polia, que 6 uma igual, com quem ele acredita ser

feliz. Nil Ihe diz: "Nos vamos viver muito bem; voce vai ver.

Voce 6 uma boa companheira. Voce nao tem medo da pobreza".

Gorki descreve Polia como uma pessoa "simples, modestae capaz de qualquer heroismo, sem nenhuma ostentacao. Se ama

6 para a vida toda; se acredita em algo, tambern", Teteriev 6 0

filosofo vagabundo. Em seu niilismo, 6 incapaz de fazer algo por

si mesmo. Prefere 0 papel de espectador.' "Eu sou um homem

um pouco estranho", diz a Tatiana; "nao participo muito dos

acontecimentos terrenos ... Vivo por pura curiosidade ... "

Teteriev admira Nil, inveja-lhe a vitalidade, a alegria de vi-

ver , .esta certo de que0

mundo Ihe pertence. Ama Polia, apreciaElena na sua exuberancia e generosidade; 6 condescendente com

Chichkin, mas sugere a Tatiana que era esta enterrada viva" de-

testa os velhos e nao tern quaisquer ilusoes em relacao a Pietr,

XIX



Lula, personagern de Rale, e urn ap6stolo leigo que filosofa sobre a condiciio

hurnana e que consegue rnanter-se integra, apesar de rnassacrado pela vida.

No fim da peca, ele diz ao velho Bessemenov, desesperado com

o filho que esta indo embora com Elena, que Pietr voltara: "E

sera, com 0 tempo, tao avarento quanto voce, tao seguro de si

mesmo como voce ... Tao mau como voce ... "

"Teteriev", diz Gorki, "quis ser heroi mas a vida 0 alque-

brou, amassou-o e ele a odeia por isso. Considerando-se muito

dotado, trata as pessoas de cima para baixo ( ... ) Odeia profun-

damente os pequenos burgueses, considerando-os, com toda ra-

zao, como inimigos dos homens que pensam e sentem livremente,como destruidores da vida."

Elena e 0 sal da existencia naquela casa. Viuva e livre, "ela

sorri com clara alegria, tern muitos gestos vivos, gosta de que

lhe facam a corte e de que a vida, em volta dela, ferva de alegria

e de risos. Ama Pietr por cornpaixao, ou melhor, nem 0 ama,

por ern quer contamina-lo com a felicidade da existencia, quer que

ele ria".

Elena, Pertchikin, Chichkin, Tzvetaieva, Nil e Polia fazemparte daquela multidao dos que sentem e pensam livremente, dos

que se opoern aos pequenos burgueses, aquilo que e velho e falido.

Para Maximo Gorki, eles serao os herdeiros da Terra.

xx



GOm

Peca em quatro atos

Traducao deFernando Peixoto

e

Jose Celso Martinez Correa

Pequenos Burgueses Pré Textual0001

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