Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário. · 2012-03-13 · 6 O verdadeiro...

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0 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA UNESP. FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS FFC CAMPUS DE MARÍLIA. MÁRCIO RICARDO DE CARVALHO Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário. Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário. Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário. Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário. Um estudo sobre as evidências sócio-espaciais e as sociabilidades em Marília-SP. Marília 2007

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP. FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS – FFC

CAMPUS DE MARÍLIA .

MÁRCIO RICARDO DE CARVALHO

Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário. Um estudo sobre as evidências sócio-espaciais e as sociabilidades em Marília-SP.

Marília 2007

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C P

Carvalho, Marcio Ricardo de Percepção espacial, crime e medo: entre o real e o imaginário: um estudo sobre

as evidências sócio-espaciais e as sociabilidades em Marilia-SP. / Marcio Ricardo de Carvalho. – Marilia, 2007.

174 f,: 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, 2007

Bibliografia: f. 155-164. Orientadora: Profª. Drª. Sueli Andruccioli Felix.

1. Percepção espacial. 2. Crime. 3. Medo. 4. Sociabili dades. 5. Marília/SP. I

Autor. II Titulo.

CDD

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA – UNESP. FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS – FFC

CAMPUS DE MARÍLIA .

MÁRCIO RICARDO DE CARVALHO

Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário. Um estudo sobre as evidências sócio-espaciais e as sociabilidades em Marília-SP.

Texto apresentado como Dissertação de Mestrado junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista -UNESP “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Marília. Orientadora: Dra. Sueli Andruccioli Félix

Marília 2007

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MÁRCIO RICARDO DE CARVALHO

Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário.Percepção Espacial, Crime e Medo: entre o real e o imaginário. Um estudo sobre as evidências sócio-espaciais e as sociabilidades em Marília-SP.

Dissertação de Mestrado junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista - UNESP “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de Marília sob avaliação da Banca Examinadora:

__________________________ Drª. Sueli Andruccioli Felix

Orientadora __________________________

Drª. Maria Teresa Miceli Kerbauy

__________________________ Prof. Drª. Lívia de Oliveira

Suplentes: _________________________

Drª. Noêmia Ramos Vieira

_________________________ Dr. Paulo Ribeiro Rodrigues da Cunha

Marília, 08 de Agosto de 2007.

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DedicatóriaDedicatóriaDedicatóriaDedicatória

Dedico este trabalho a todos os homens e mulheres que se enveredam

na luta por uma vida livre de constrangimentos em meio à

igualdade e à solidariedade de todos, para todos.

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AgradecimentosAgradecimentosAgradecimentosAgradecimentos

Neste momento, de encerramento do trabalho desenvolvido, rememoramos as agruras desse

caminho sinuoso da universidade pública paulista, em face de tantos constrangimentos e

determinações que transcendem comer, morar, vestir-se, manter-se. Alcançar cada etapa na

vida acadêmica exige de todos nós um esforço brutal de mediação severa contra os

imperativos e as possibilidades do vir-a-ser. Porém, não fazemos quase nada sozinhos.

Necessitamos de cada um daqueles que permanecem em nossas linhas, em cada pensamento

que contribui para construir esse texto. Relembro-me de todos que compartilharam meus dias.

De tantos nomes, seria exaustivo citá-los aqui. Suas consciências sabem o quanto lhes

agradeço. Todos, amigos, colegas da Moradia Estudantil, do movimento estudantil, da

biblioteca da faculdade, do laboratório de informática, do bar do Kanashiro, do trailer do

Oswaldão, do Clube de Cinema de Marília, do Teatro do Sesi, dos cafezinhos do saguão, dos

cigarros e cigarros – e mais cigarros... –, das viagens, de muitos lugares, que conseguiram

trocar alguma experiência nestes anos de convivência e tentativa de construção de laços de

solidariedade. Agradeço, em particular,

aos colegas do G.U.T.O. que tanto me auxiliaram e souberam demonstrar a importância do

esforço coletivo em meio aos caminhos tão solitários da vida universitária;

ao Escritório de Pesquisa que sempre nos auxilia, apoiao e acompanha as expectativas de

bolsas, relatórios e pareceres;

à Banca Examinadora do Exame de Qualificação da Dissertação, Dr. Paulo Ribeiro

Rodrigues da Cunha e Drª Maria Teresa Micele Kerbauy pelas valiosas contribuições;

à Banca Examinadora do Exame Geral de Defesa da Dissertação, Drª Maria Teresa Micele

Kerbauy e Drª Lívia de Oliveira pela avaliação profunda, crítica e generosa deste trabalho;

e e à FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pela bolsa de

pesquisa concedida trazendo algum conforto material por nesses momentos, afinal, nem só de

elogios vivemos. Ao Escritório de Pesquisa que sempre nos auxilia com toda a atenção que a

[minha] miopia burocrática necessita.

Por fim, devo sincera gratidão à Drª Sueli Andruccioli Félix por continuar me orientando

apesar das ousadias “pueris” que denunciam nossa formação profundamente humanas, éticas

e necessárias. À admiração e respeito dedicados, encontrei, nessa relação de paciência,

seriedade e confiança, todos os elementos para torná-la emum verdadeiro “padrão de

qualidade” em pesquisa.

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O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou

pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não

poupariam ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso,

tivesse gritado aos seus semelhantes: “Defendei-vos de ouvir esse impostor;

estareis perdidos se esquecerdes que os grandes frutos são de todos e que a terra não

pertence a ninguém!”

(ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os Pensadores. Discurso sobre a origem e os fundamentos

da desigualdade entre os homens. Volume II. Nova Cultural, 1999. p. 87)

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RESUMO

Percepção espacial, crime e medo: entre o real e o imaginário. Um estudo sobre as evidências sócio-espaciais e sociabilidades em Marília-SP.

Como a cidade nos aparece na experiência cotidiana? É possível entender a flagrante segregação sócio-espacial e os receios e temores que advém da assim chamada “escalada da violência” sob a ótica dos moradores das cidades? Essas questões têm sido objeto de análise de uma série de estudiosos, da geografia à sociologia, da arquitetura à antropologia e orientaram nossa pesquisa sobre a percepção espacial – em especial, do crime e medo – nos diversos bairros de Marília/SP. Nosso objetivo foi apreender as condições sócio-espaciais – conforme os dados do IBGE – e dinâmica criminal – proveniente dos estudos do Grupo de Pesquisa e Gestão Urbana de Trabalho Organizado – GUTO/UNESP – e, finalmente, as percepções de moradores por meio de entrevistas semi-estruturadas gravadas. À luz do arcabouço teórico de Yi-Fu Tuan e seus conceitos de “topofilia” – de afeição e familiaridade com o lugar – e “topofobia” – de recusa ou temor de determinados lugares da cidade – e demais teóricos que se dedicam a apreender as sociabilidades que se tecem nas cidades, buscamos o confronto das diversas percepções apreendidas. No conjunto, as percepções se revelaram de maneira múltipla e relativas às experiências, na cidade em particular e no urbano em geral, demonstrando a apreensão de uma espacialidade desigual. No entanto, quando se referiram a “outros” espaços da cidade, distante da experiência propriamente dita, contrariaram os dados criminais ao se alinharem aos preconceitos, estigmas e estereótipos correspondentes à tese pobreza e criminalidade. Assim, este trabalho aponta a percepção espacial como uma ferramenta que recupera os sujeitos e suas experiências na cidade ao mesmo tempo em que dota de complexidade a análise e crítica dos diversos fenômenos da realidade urbana.

PALAVRAS-CHAVE: Percepção Espacial, Crime, Medo, Sociabilidades, Marília/SP.

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RÉSUMÉ

Perception spatiale, crime, peur: entre le réel et l'imaginaire. Un étude sur les caractéristiques socio-spatial et sociabilités dans la ville de Marília-SP

Comment percevons nous la ville à travers nos expériences quotidiennes? Pouvons nous comprendre les mécanismes de ségrégation socio-spatiale ainsi que les craintes liées à une supposée “escalade de la violence” par la vision qu’en ont les propres habitants des villes ? Ces questions ont fait l’objet d’une série d’études, où la géographie et la sociologie autant que l’architecture et l’anthropologie ont orienté nos recherches sur la perception de l’espace – et en particulier sous les aspects liés au crime et à la peur qu’il inspire– dans plusieurs quartiers de la ville de Marilia, dans l’état de São Paulo. Notre objectif a été d’appréhender à la fois les conditions socio-spatiales – d’après des données de l’IBGE – la dynamique criminelle – à travers les données provenant des études du Grupo de Pesquisa e Gestão Urbana de Trabalho Organizado GUTO/UNESP – et enfin les perceptions des habitants au travers d’entretiens semi dirigés et enregistrés. En nous appuyant sur la charpente théorique de Yi-Fu Tuan et ses concepts de “topophilie” – désignant une affection et une certaine familiarité avec un lieu – et de “topophobie” – le rejet et la crainte liés à certains espaces urbains – ainsi que sur d’autres travaux théoriques tendant à appréhender les liens sociaux qui se nouent dans les villes, nous chercherons à confronter les diverses perceptions qui se dégagent de ces entretiens. De cet ensemble, ces différentes perceptions apparaissent multiples et très liées aux expériences particulières, de la ville en particulier et l’urbain en général, démontrant ainsi une inégalité dans l’appréhension des espaces. Cependant, quand on se réfère aux espaces “autres” de la ville, c'est-à-dire déconnectés de toute expérience propre, les perceptions s’éloignent des conclusions des données criminelles pour s’aligner sur les préjugés et les stéréotypes correspondant à la thèse comme quoi la criminalité serait le fait des pauvres. Ainsi, cette étude utilise la perception spatiale comme un outil, et prend comme objet d’étude l’expérience de la ville vécue par ses habitants, celle-ci venant questionner et enrichir l’analyse critique et théorique des divers phénomènes de la réalité urbaine.

MOTS CLES: Perception Spatiale, Crime, Peur, Sociabilités/Lien Social, Marília/São Paulo.

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ÍNDICE DE FIGURAS. Figura 01: População da micro-região de Marília, sua sede e alguns de seus municípios vizinhos ...............................................................................................................................

73

Figura 02: Origem dos entrevistados .................................................................................. 73

Figura 03: Evolução da mancha urbana de Marília - anos de 1970, 1980 e 1990 .............. 74

Figura 04: Escolaridade dos entrevistados........................................................................... 84

Figura 05: Índice geral de exclusão social de Marília, 2001................................................ 86

Figura 06: Índices de ocorrências atendidas pela Polícia Militar de Marília, por mil hab/ano, entre 1981-1991. ...................................................................................................

89

Figura 07: Índices de ocorrências atendidas pela Polícia Militar de Marília, por mil hab/ano, entre 1981-1991.....................................................................................................

89

Figura 08: Bairros com mais ocorrências, por mil habitantes/ano, atendidas pela Polícia Militar de Marília: períodos 1970-1980 e 1981-1991..........................................................

91

Figura 09: Divisão em setores de bairros de Marília - ano de 1996; Marília: criminalidade geral, por mil hab. (1985-1993); Crimes contra o patrimônio, por mil hab (1985-1993); e Crimes violentos (contra o patrimônio), por mil hab. (1985-1993)............

93

Figura 10: Total de BO’s por setores de bairros – 2001...................................................... 96

Figura 11: Total de BO’s por setores de bairros – 2002...................................................... 97

Figura 12: Concentração dos estudantes de 3º Grau nos Setores de bairros de 2001 ......... 98

Figura 13: Setores de bairro, população e entrevistas (1/5.000 hab)................................... 105

Figura 14: Entrevistados e respectivos setores de bairro (por gênero)................................ 106

Figura 15: Faixas etárias dos entrevistados.......................................................................... 107

Figura 16: Avaliação das condições do bairro pela oferta de serviços................................ 114

Figura 17: Participação ou freqüência nos equipamentos urbanos e eventos sociais ......... 115

Figura 18: Resposta à questão: “se pudesse mudar de residência, para qual bairro gostaria de ir? – I .................................................................................................................

121

Figura 19: Modelo de incivilidade e vizinhança de Herbert................................................ 125

Figura 20: Resposta à questão: “o seu bairro é perigoso?” – I ............................................ 129

Figura 21: Resposta à questão: “o seu bairro é perigoso?” – II .......................................... 130

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Figura 22: Resposta à questão: “já sofreu ou ouviu falar de algum tipo de violência no bairro” – I.............................................................................................................................

131

Figura 23: Resposta à questão: “já sofreu ou ouviu falar de algum tipo de violência no bairro” – II............................................................................................................................

132

Figura 24: Resposta à questão: “se pudesse mudar de residência, para qual bairro gostaria de ir? – II ...............................................................................................................

138

Figura 25: Resposta à questão: “se pudesse mudar de residência, para qual bairro gostaria de ir? Por quê?”......................................................................................................

138

Figura 26: Resposta à questão: “se pudesse mudar de residência, para qual bairro não gostaria de ir?” – I................................................................................................................

140

Figura 27: Resposta à questão: “se pudesse mudar de residência, para qual bairro não gostaria de ir?” – II...............................................................................................................

141

Figura 28: Resposta à questão: “se pudesse mudar de residência, para qual bairro não gostaria de ir? Por quê?”......................................................................................................

141

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ÍNDICES DE TABELAS. Tabela 01: População do Estado de São Paulo, da Micro-Região de Marília/SP, sua sede e alguns de seus municípios vizinhos...................................................................................

72

Tabela 02: Equipamentos e serviços urbanos por mil hab. em Marília/SP, 2001................ 78

Tabela 03: Rendimento dos chefes de família em Marília/SP, 2001................................... 83

Tabela 04: Escolaridade dos chefes de família em Marília/SP, ano 2001........................... 83

Tabela 05: Abastecimento de água em Marília/SP, ano 2001............................................. 84

Tabela 06: Escoadouro de esgoto em Marília/SP, ano 2001............................................... 85

Tabela 07: Bairros de Marília agrupados em setores, ano de instalação e índice, 1996...... 92

Tabela 08: Criminalidade geral por setores de bairros – ano 2001...................................... 94

Tabela 09: Setores e respectivos bairros em Marília/SP (2001-2002)................................. 95

Tabela 10: Avaliação geral das condições do bairro pela oferta de serviços em Marília.... 114

Tabela 11: Marília: Índice de participação ou freqüência nos equipamentos urbanos e eventos sociais......................................................................................................................

115

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SUMÁRIO Introdução ......................................................................................................................... 13

Capítulo 1 – Percepção Espacial, Crime e Medo: Por uma breve reflexão desses temas da realidade urbana ................................................

14

1.1. Percepção espacial: da Geografia Humanística às Ciências Sociais ....................... 19

1.2. Sobre a conceituação de crime e a assim chamada “escalada da violência”.......... 34

1.3. Medo urbano: sobre o novo (ou velho) “espectro” que ronda a cidade ................... 47

Considerações do Capítulo 1 ............................................................................................ 63

Capítulo 2 – Os lugares da cidade: Aspectos históricos, sócio-espaciais e criminais de Marília/SP ........................................

66

2.1. Gênese e devir da “Capital da Alta Paulista”............................................................ 68

2.2. Sobre as desigualdades e segregações sócio-espaciais ............................................. 76

2.3. A geografia do crime: elementos para uma análise da dinâmica criminal ............... 88

Considerações do Capítulo 2 ............................................................................................ 100

Capítulo 3 – Percepções em confronto: Uma análise das percepções apreendidas em Marília/SP .................................................

102

3.1. Notas metodológicas sobre as agruras e descobertas na pesquisa de campo ........... 104

3.2. Topofilia: sentimentos positivos em relação ao espaço ............................................. 111

3.3. Topofobia: sentimentos negativos na relação sujeito-espaço.................................... 124

3.4. Percepções sobre outros lugares da cidade ............................................................... 135

Considerações do Capítulo 3 ............................................................................................ 147

Breves Considerações ....................................................................................................... 152

Referências ........................................................................................................................ 155

Bibliografia Consultada .................................................................................................... 162

Anexos ............................................................................................................................... 165

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Introdução

Eu classifico São Paulo assim. O Palácio é a sala de visita. A prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos (JESUS, 1960, p. 33).

Essas são as palavras de Carolina Maria de Jesus, moradora de uma das muitas favelas

de uma próspera cidade de São Paulo na década de 50. Essa escritora expôs em diários e

livros os pensamentos de sua trajetória urbana em todos os sentidos – sobre o trabalho, seus

filhos, as ruas, a favela, o preconceito. No trecho acima está a cidade tal como Carolina

compreende. É seu relato/retrato ao percorrer ruas e avenidas da cidade em busca dos restos

urbanos e retornar à sua moradia em uma favela no bairro do Canindé. Desde a iniciação

científica temos nos inspirado em percepções dessa natureza, não somente de Carolina, mas

de tantos outros sujeitos, em metrópoles como São Paulo ou em cidades médias como Marília,

a 450 quilômetros da capital.

Essas cidades, guardadas as devidas proporções, apresentam uma enorme variedade de

formas no que se referem a todos os elementos que as constituem. Conhecer as historicidades

que as conformam sempre nos pareceu uma tarefa inadiável, afinal, por que moramos em

cidades com tais formatos razoavelmente diferentes, mas sempre desiguais? Além disso,

como os sujeitos que nelas vivem, percebem as disparidades e explicam para suas próprias

razões o fato de morar em um determinado bairro ou outro? Como os fenômenos são

entendidos pelos sujeitos como, por exemplo, a violência e a criminalidade na cidade, quando

o medo do crime urbano se coloca tão presente nos meios midiáticos e nas políticas urbanas a

partir do receio de vitimização e da sensação crescente de insegurança? Captar o que pensam

homens e mulheres sobre as cidades em que vivem tem nos parecido fundamental para

entender as compreensões sobre os diversos aspectos da realidade urbana, pois entendemos

que os lugares onde se vive e os espaços que se percorre dotam de significados nossas

percepções sobre o mundo e sobre a própria história individual e coletiva.

É por essa razão que escolhemos a percepção espacial como o aporte necessário para

adentrar nesses sentidos que os sujeitos atribuem à experiência urbana vivida. Neste aspecto, à

formação das ciências sociais, agregamos os conceitos e o arcabouço teórico de Yi-Fu Tuan

(1980, 1982, 1983 e 2005) de maneira que pudéssemos reunir as ferramentas imprescindíveis

para chegar aos sujeitos que moram nesta cidade de Marília, nosso campo de pesquisa mais

imediato. Na iniciação científica realizamos uma pesquisa em três regiões da cidade com base

em 254 questionários e seus resultados justificaram a continuidade dos estudos na pós-

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graduação1. Naquela pesquisa, o grande número de questionários exigia uma investigação a

partir de “entrevistas” rápidas e dirigidas (pesquisa direta) sendo que, sem o uso de gravador,

as respostas dos entrevistados, muitas vezes reveladoras, ficaram nos limites da memória e do

bloco de anotações. Assim, os resultados foram compreendidos como um “espectro” da

percepção, portanto, uma idéia da percepção espacial. Um “espectro” que nos levou a novas

investidas em torno da percepção e dos conflitos urbanos relativos à relação sujeito-espaço, de

porte do gravador, com uma amostragem menor e que alcançasse todos os bairros de Marília.

Neste aspecto, a pesquisa aqui apresentada teve por horizonte a percepção espacial,

crime e medo, buscando realizar a relação entre as evidências sócio-espaciais organizadas nos

trabalhos do Grupo de Pesquisa e Gestão Urbana de Trabalho Organizado – GUTO/UNESP e

as sociabilidades na cidade de Marília, identificadas por meio de entrevistas semi-estruturadas

gravadas. Os escritos de Tuan (1980), Felix (1996) e outros autores com pesquisas e reflexões

correlatas compuseram o quadro de análise fundamental para a pesquisa de campo e,

finalmente, dos capítulos que se seguem.

Em razão da necessidade de estabelecer os apontamentos teóricos que circunscrevem

os temas percepção espacial, crime e medo, reunimos as reflexões no primeiro capítulo como

uma maneira de apresentar os pressupostos exigidos para a pesquisa de campo. Desse modo,

abordaremos: a percepção espacial da geografia humanística de Tuan (1983) como

possibilidade teórico-metodológica de estudo da relação entre os sujeitos e a cidade; uma

análise crítica do crime e da “escalada da violência” que explicita estigmas e criminalizações,

as quais estão sempre presentes nas instituições estatais dessa sociedade de classes; e,

finalmente, o medo urbano como a caracterização mais corrente da relação desses temas,

percepção espacial e crime/violência, na formatação das cidades e nas sociabilidades vividas.

Em seguida, apresentamos a cidade de Marília em aspectos históricos, sócio-espaciais

e da dinâmica criminal a partir dos estudos de Felix (1996 e 2003) e do GUTO/UNESP. Esse

segundo capítulo compreende: os principais elementos que conformaram a organização do

espaço da cidade; sua caracterização sócio-espacial marcada por uma flagrante fragmentação

e segregação dos sujeitos nos diversos bairros e regiões; e a dinâmica criminal em uma

processualidade histórica e o diagnóstico sobre os anos mais recentes, fundamentais para o

confrontamento com as percepções da violência ou criminalidade.

1 Para não nos determos nos resultados apresentados na iniciação científica, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq e que compôs nosso trabalho de conclusão de curso, sugerimos o acesso em um dos artigos produzidos: http://www.espacoacademico.com.br/061/61carvalho.htm

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O terceiro e último capítulo contém a pesquisa de campo nos termos da percepção

espacial, crime e medo. Inicialmente, as notas metodológicas que demonstram os passos da

pesquisa na consecução deste trabalho e, a partir disso, o contato com as percepções dos

sujeitos conforme: o sentimento de “topofilia” de Tuan (1980), tendo em vista as percepções

positivas na relação com bairros da cidade; a “topofobia” ou “paisagens do medo”, também de

Tuan (2005) relacionados aos dados criminais; e, finalmente, as idéias sobre outros espaços da

cidade, colocando em confronto as diversas percepções captadas na cidade.

De maneira geral, todos esses capítulos oferecem uma possibilidade de análise da

realidade urbana, tendo em vista a construção de alguns nexos entre: as diversas

compreensões de cidade que se impõem; e a necessidade cada vez mais premente de se

evidenciar a maneira como os sujeitos sentem, percebem e compreendem os espaços em que

vivem. Almejamos, com isso, demonstrar que as percepções dos sujeitos, advindas da

experiência na cidade com todos os seus imperativos, podem contribuir para uma crítica

necessária ao modelo de cidade vigente e às políticas urbanas que se colocam em todos os

níveis, desde a organização desigual do espaço às políticas de segurança que insistem em

agravar as contradições econômicas dessa sociedade. Estamos convencidos de que não é

possível pensar a cidade e qualquer projeto político, social, econômico ou de segurança

pública, sem a explicitação e confronto das diversas e antagônicas relações que os sujeitos

estabelecem com a cidade e seus bairros – pautadas por diferentes condições de moradia e

trabalho – dotando de complexidade todo e qualquer fenômeno que constitui isto a que

chamamos mundo.

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Capítulo 1

Percepção Espacial, Crime e Medo

Por uma breve reflexão desses temas da realidade urbana

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Enquanto sujeitos que vivenciam o mundo, observamos e sofremos todas as suas

feições e meandros, a partir do lugar onde se mora, se trabalha, se relaciona, por espaços

urbanos ou rurais, pequenas cidades, metrópoles, bairros, vilas, favelas, como pedestres ou

ocupantes de veículos (carros ou transportes coletivos), em casas térreas ou apartamentos,

enfim, em toda a diversidade contraditória que este mundo nos oferece. Um hieróglifo social

com cores, relevos e texturas diferenciados. Lugares distintos, diminutos ou suntuosamente

amplos. Humildes ou requintados. Vivenciados ou inacessíveis. Uma multiplicidade

aparentemente caótica, mas para muitos um todo estruturado – coerentemente contraditório,

mas cognoscível. Uma realidade que se revela para nós em paisagens e sociabilidades que nos

provocam a questionar: é possível apreender suas evidências mais perceptíveis e organizá-las

em algo razoável? Qual pode ser o ponto de partida para uma análise profunda da realidade de

maneira que possamos esboçar alguma compreensão crítica e, quiçá, propositiva às demandas

e necessidades que nos são apresentadas?

Essas são algumas inquietações que afloram nas ciências sociais e nas que se propõem

a pensar a cidade, o urbano ou o lugar, especialmente em apreender tais conceitos para além

das formas mais aparentes e alcançar as relações sociais que produzem e reproduzem essas

mesmas formas. O desafio é problematizar essa paisagem urbana à luz das sociabilidades que

se tecem e que, por vezes, explicam ou obscurecem o trágico e complexo mundo vivido.

Aqui, neste texto, temos a preocupação, portanto, de inscrever as reflexões que

buscam as razões humanas que se revelam nas sociabilidades, em especial, aquelas pautadas

nos problemas sempre referenciados como a violência ou a criminalidade e, finalmente, o

medo urbano como a caracterização mais corrente da relação desses temas com a realidade

urbana. A discussão sobre a percepção espacial em torno do crime e do medo é o que norteia

nosso texto e é, neste aspecto, que apresentamos as proposições de Tuan (1980 et al) enquanto

redirecionamento da produção geográfica às relações humanas no espaço. Dessa maneira,

relacionamos, ainda que timidamente, as teses desse geógrafo humanista às proposições não

menos humanistas da análise marxista sobre a produção do espaço e as apropriações humanas

de um espaço de conflitos nos marcos do capitalismo. Não se trata, portanto, de um tratado

sobre as aproximações entre a produção fenomenológica que orienta os escritos de Tuan e as

formulações marxistas, mas um ensaio dessas possibilidades teórico-metodológicas.

Além desse preâmbulo que inscreve essa razão humanista por meio da percepção

espacial na apreensão da realidade e dos conflitos teóricos presentes, nos preocupamos em

situar as conceituações correntes de crime e violência nos termos consagrados das ciências

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sociais. Isso significa considerá-los enquanto conceitos partícipes de um fenômeno social

mais abrangente que incorpora os aspectos políticos e culturais que permeiam a produção

acadêmica dedicada a compreendê-los. É desse modo que orientamos nossos escritos na

tentativa de entender a percepção do crime tal como historicamente tem sido tecida e,

particularmente, na necessidade de evidenciá-la como um campo de análise possível,

sobretudo pelo fato de circunscrever o terceiro e último tema desse primeiro capítulo: a

percepção do medo ou o medo urbano propriamente dito.

Assim, apontaremos algumas das reflexões sobre o medo na cidade apresentadas sob o

quadro de “paisagens do medo”, “ecologia do medo”, “arquitetura do medo” ou “estetização

cultural do medo” que, no conjunto, adensam as compreensões sobre a violência e a

criminalidade. Ao incorporar as percepções dos sujeitos e suas vivências na cidade, propomos

uma complexização teórica de tais fenômenos dirigindo-nos ao assim chamado “medo

urbano”: um novo (ou velho) “espectro” que ronda a cidade.

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1.1. Percepção espacial: da Geografia Humanística às Ciências Sociais

De que maneira um geógrafo contribui para o bem estar humano como, por exemplo, no projeto de um meio ambiente físico melhor? Seu colega científico pode sugerir um sistema de transporte mais eficiente, ou localizações ideais para novas indústrias ou para as estações de esgoto. O que pode fazer o humanista? [...] a competência de um humanista repousa na interpretação da experiência humana em sua ambigüidade e complexidade. Sua principal função como geógrafo é esclarecer o significado dos conceitos, dos símbolos e das aspirações, à medida que dizem respeito ao espaço e ao lugar (TUAN, 1983, p. 162).

A percepção espacial, uma perspectiva íntima da relação sujeito-espaço, na análise

sobre o urbano como o aporte conceitual, teórico e metodológico nos provoca a ampliar o

espectro da análise dos fenômenos que compõe o nosso mundo e, no nosso caso específico, as

cidades em seus diversos aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais. A percepção

espacial, conceitualmente, nos remete à dimensão de como os sujeitos apreendem e se

apropriam de tudo aquilo que se observa, vivencia e transforma. Isso significa dizer que, em

busca de agregar elementos para uma perspectiva que se proponha crítica e necessariamente

pungente sobre o modo como nossas vidas são orientadas em nossos países, cidades e bairros,

nos dirigimos à reflexão sobre a maneira como os sujeitos se apropriam dessas realidades de

modo a traduzi-las às suas cruciais necessidades e aspirações.

Nesse sentido, a análise pautada na percepção espacial exige uma apreensão de

múltiplos aspectos imperativos às experiências que se tecem nos contextos sociais

identificando as perspectivas dos sujeitos sobre esses próprios imperativos. Dessa maneira, a

percepção espacial necessita, enquanto categoria de análise, de uma vigilância epistemológica

conseqüente capaz de nos orientar para uma relação fidedigna às reflexões que detalharam

essa dimensão afetiva correspondente à percepção espacial e, se possível, que estabeleceram

análises dos imperativos sociais presentes nas diversas percepções.2

2 Para Bourdieu (1999, p. 17), quando uma ciência como a sociologia se utiliza de conceitos emprestados de outras ciências sociais, é necessária uma conseqüente vigilância epistemológica: “é necessário submeter a prática científica a uma reflexão que aplica-se não à ciência já constituída, mas à ciência em vias de se fazer”. No entanto, para não recair em uma sociologia espontânea, deve-se compreender que “a pesquisa científica organiza-se em torno de objetos construídos que não tem nada em comum com as unidades separadas pela percepção ingênua” (BOURDIEU, 1999, p. 45). Portanto, para Bourdieu (1999, p. 11), “é necessário submeter as operações da prática sociológica à polêmica da razão epistemológica para definir e, se possível, inculcar uma atitude de vigilância que encontre no conhecimento adequado do erro e dos mecanismos capazes de engendrá-lo um dos meios de superá-lo” e, ainda, acrescenta que a utilização de conceitos como “relativismo cultural” por determinados sociólogos da “cultura popular”, buscando outras “culturas” em uma mesma sociedade, esquece que: “diferentes culturas que se encontram na mesma sociedade estratificada estão objetivamente situadas umas em relação às outras porque os diferentes grupos se situam uns em relação aos outros, em particular, quando se referem a elas; pelo contrário, a relação entre culturas que fazem parte de sociedades diferentes pode existir

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Tal como se apresentam as palavras iniciais deste texto, Tuan (1983) nos questiona

sobre o papel que se revelava quase técnico do geógrafo, esse estudioso das relações humanas

sobre o espaço. “Esclarecer o significado dos conceitos, dos símbolos e das aspirações, à

medida que dizem respeito ao espaço e ao lugar” nos parece uma máxima antropológica, tal

como diversos antropólogos que Tuan (1983, 1982, 1983 e 2005) recorre para pensar a

relação sujeito-espaço sob uma perspectiva cultural, histórica e humanista.

Antes de tudo, é necessário considerarmos a origem das preocupações de Tuan ao

propor tal perspectiva humanista na história da Geografia, seus desdobramentos e

ramificações. Segundo Christofoletti (1982, p. 12), “embora lançando raízes históricas ao

longo dos séculos, foi somente no século XIX que a Geografia começou a usufruir do status

de conhecimento organizado, penetrando nas universidades”. Desde então, a Geografia se

caracterizou por uma fase tradicional e, a partir de 1950, surgiram movimentos que

questionaram suas formulações, entre eles a Geografia Humanística e a Geografia Radical.

Conforme um “texto-manifesto” da Geografia Humanística, publicado inicialmente

em junho de 1976, Tuan (1982) descreve a urgência da ciência geográfica em ampliar o raio

de análise dos fenômenos e temas humanos sobre o espaço, propondo um viés centrado nas

ações, sentimentos e pensamentos humanos. Para ele, os estudos geográficos que se

restringiam às ferramentas oriundas das ciências exatas e naturais reduziam, por sua vez, o

papel dos homens na apreensão dos fenômenos espaciais, naturalizando-o. Sua orientação

fundava-se em uma necessidade inadiável aos geógrafos humanistas: dirigir-se à filosofia de

modo a buscar exemplificações no mundo real às grandes questões filosóficas e,

principalmente, delimitar seu ponto vista fundamental.3

As perspectivas humanistas de Tuan correspondiam às demandas expostas por

Edmund Husserl (1859-1938) que, quase um século antes, estabeleceu uma crítica severa às

ciências humanas como a psicologia. De acordo com a fenomenologia de Husserl, ao observar

os homens e suas vicissitudes a partir de um empirismo pragmático e sem o devido

questionamento das categorias e conceitos utilizados, a psicologia “matematizava” a vida

humana de acordo com os propósitos e imperativos de uma sociedade que se industrializava e

a tudo “objetificava”. Para Husserl, era necessário negar essas análises e “voltar às coisas

unicamente na e pela comparação operada pelo etnólogo” (BOURDIEU, 1999, p. 63). Neste caso, os conceitos de “percepção espacial”, devem ser verificados constantemente em seus limites e possibilidades de utilização na análise da realidade urbana. 3 Segundo Tuan (1982, Nota 24, p. 161), sua afiliação epistemológica refere-se aos fenomenologistas e filósofos preocupados com o símbolo, particularmente Merleau-Ponty, Cassirer, Susanne Langer e Nelson Goodman.

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mesmas” [züruck zu dem Sachen selbst] sem desconsiderar os avanços empíricos e, tampouco,

retornar aos sistemas filosóficos (DARTIGUES, 1973).

Segundo Dartigues (1973, p. 19), Husserl negava os apriorismos da psicologia

experimental ao fazer suas análises do comportamento humano e não se indagando sobre o

que significava cada um dos seus conceitos primordiais, como por exemplo: o que é

consciência, inteligência, percepção, sensação, memória. O naturalismo característico desse

psicologismo confundia a “descoberta das causas externas de um fenômeno com a natureza

própria deste fenômeno”. Assim, somente o estudo do fenômeno superaria essa proposição

empiricista sem cair nas concepções filosóficas do passado, pois, para Dartigues (1973, p. 20):

[...] o caminho que Husserl busca e que comandará até suas últimas obras a concepção da fenomenologia é uma via média entre esses dois escolhos: como pensar a sua natureza e em cada uma de suas nuanças – e, portanto, sem jamais ultrapassá-los – os dados da experiência em sua totalidade. Todo fenômeno e nada mais que o fenômeno, poder-se-ia dizer. O postulado que funda tal empresa, é que o fenômeno está mais penetrado no pensamento, do logos, e que por sua vez, o logos se expõe e só se expõe no fenômeno. Apenas sob essa condição é possível uma fenomenologia.

Isso significava refundar as ciências dos homens a partir dos fenômenos – por isso,

“fenomeno-logia” – em que a experiência humana, o “ser” no “mundo na vida” [Lebenswelt],

se revelaria enquanto categoria primeira de compreensão da realidade.

Dessa maneira, tratava-se de romper com a dualidade sujeito-objeto, propalada pela

filosofia cartesiana com reverberações nas ciências humanas por meio do positivismo.

Segundo alguns autores, a fenomenologia e o marxismo se propuseram a realizar tal tarefa, de

maneira que, para Smart (1978, p. 150), ao buscar entender o nível em que a ciência

predominante no século XIX encerrava o homem,

Husserl empenha-se numa análise radical, “de uma maneira rigorosamente histórica e crítica”, semelhante à afirmação e prática de Marx, de que para ser radical é necessário retornar às raízes do problema, às origens. Tanto no caso da análise da ciência em geral por Husserl, como da crítica da ciência da economia política em particular, por Marx, o entendimento só se materializa pela revelação da realidade que existe sob a aparência, pela revelação de que a experiência e o estudo científico de um “mundo objetivamente verdadeiro” se fundamentam e são produto da base intersubjetiva das relações entre os membros de um determinado mundo.4

4 Nas relações que Smart (1978) encontram-se um conjunto de pensadores notadamente considerados seguidores da fenomenologia de Husserl e daqueles consagrados como teóricos do marxismo do século XX. O raciocínio do autor obedece às análises de membros do grupo Telos, que se dispuseram a revisar a análise marxista, trabalhando na área geral da fenomenologia e marxismo, sendo estes Rovatti, Marcuse, Kosik, Piccone, Miller e O’Neill. Um conjunto de autores que se amplia quando somados a Paci, Labriola, Gramsci e Lucács, incorporados aos temas que Smart (1978) considera comuns entre as duas correntes.

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A aproximação dessas duas correntes, fenomenologia e marxismo, é de difícil

mediação, mesmo a partir dessa recusa dos apriorismos e da dualidade sujeito-objeto, sob um

viés histórico e crítico que recupera as ações humanas como a centralidade no devir histórico

e na definição do que seja a realidade5. Assim sendo, Kosik (1969, 23) aponta que:

Os problemas estudados pela fenomenologia sob a denominação de “intencionalidade para alguma coisa”, “intenção significativa para alguma coisa” ou então de vários “modos de percepção” foram justificados por Marx sobre pressupostos materialistas, como diversos aspectos de apropriação do mundo pelos homens (grifo nosso).

Dessa maneira, cabe salientar que as nossas preocupações podem assim serem

descritas: diante de uma série de fenômenos existentes no mundo, suas conexões e

complexidades, está o homem. Logo, na relação com as coisas da realidade, os homens ao

“perceberem-nas” ou delas se “apropriam”, também se “fazem” enquanto homens e, portanto,

estabelecem todas as relações entre si e o mundo.

Se, nas acepções de Marx (1963) os estudos devem se pautar na relação primeira que

constitui a “qualidade de homem” é o “trabalho” (compreendendo ser o “trabalho” a

capacidade do homem em se realizar enquanto “humano” ao transformar as coisas do

mundo)6; na Geografia Humanística, a “experiência” é o ponto de partida de observação e

investigação das relações entre o homem e o espaço e, decorrentemente, de explicação dos

inúmeros fenômenos que compõem a vida dos homens.

Segundo Tuan (1983) na “experiência” no espaço, ao vivenciarem o meio ambiente os

homens sentem, percebem e tomam consciência do mundo vivido. Logo, é necessário captar

5 É importante notar a afirmação de Kosik (1969, p. 11) de que, tal como o marxismo, a fenomenologia de Husserl se propôs a romper com a pseudo-concreticidade, compreendida por “o complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera comum da vida humana que, com a sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural”. Além disso, Kosik (1969, Nota 05, p. 17) discorre em uma extensa nota sobre o confronto entre marxismo e fenomenologia elaborado por Tran-Duc-Thao em “Phenomenologie et materialisme dialectique” (1951), considerando que este autor descobriu “o sentido autentico do método fenomenológico husserliano e toda a conexão do seu núcleo racional com a problemática do século XX” e termina por afirmar que: “o autor [Thao] define expressivamente o caráter paradoxal e rico da destruição fenomenólogica da pseudo-concreticidade”. 6 Nas palavras de Marx (1963, 161-165), “A economia política esconde a alienação na natureza do trabalho porquanto não examina a imediata relação entre o trabalhador (trabalho) e a produção. [...] A relação imediata do trabalho aos seus produtos é a relação do trabalhador aos objectos de sua produção” (p. 161). Essa imediaticidade na relação “trabalhador-produto”, “sujeito-objeto” é que deve ser o ponto de partida para a compreensão do homem em sua “genericidade”, pois, “[é] precisamente ao trabalhar o mundo objectivo que o homem primeiro se prova de maneira efetiva como um ser genérico. Tal produção é a sua vida genérica activa. Através dela, a natureza aparece como a sua obra e a sua realidade. Por conseguinte, o objecto do trabalho é a objectivação da vida genérica do homem: ao reproduzir-se não só intelectualmente, como na consciência, mas activamente, ele duplica-se de modo real e intui o seu próprio reflexo num mundo por ele criado. Pelo que, na medida em que o trabalho alienado subtrai aos homens o objecto de usa produção, furta-lhe sua vida genérica, a sua objectividade real como ser genérico, e transforma em desvantagem a sua vantagem sobre o animal porquanto lhe é arrebatada a natureza, o corpo inorgânico”.

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os sentidos atribuídos aos fenômenos de modo a apreendê-los cada qual em seu contexto sob

o percurso de conhecimento do mundo proposto por Tuan (1983, p. 09) que, gradativamente,

se elabora entre a emoção e o pensamento:

Experiência

sensação, percepção, concepção

EMOÇÃO emoção

pensamento PENSAMENTO

É através da “experiência” que “uma pessoa conhece e constrói a realidade”, desde os

sentidos mais diretos como o olfato, paladar e tato até a percepção visual e os modos de

simbolização. Para tratar da “experiência”, Tuan (1980 e 1982) se apóia, primeiramente, em

uma perspectiva que contempla as condições físicas e psicológicas dos corpos humanos com o

mundo afirmando a existência de diferentes percepções conforme a idade – fases infantil,

adulta e velhice – e o sexo, quando da diferença entre os papéis de masculino e feminino.

Num segundo momento, Tuan (1980) demonstra que as relações dos homens com o espaço se

baseiam em simbolismos e esquemas cosmológicos a partir das “oposições binárias”,

estudadas por Levi-Strauss (1970) como céu/terra, claro/escuro, esquerda/direita, novo/velho

etc.; do etnocentrismo; e, finalmente, da delimitação entre “sagrado” e “profano”; do

conhecimento meramente estético, para visitantes, ou familiar, para nativos. Valores que, no

conjunto, compõem em grande medida o sentimento de “topofilia”, um elo afetivo do homem

com o espaço propriamente humano: espaço como “produção”, “meio ambiente” e “habitat”

dos homens para os homens; meio de defesa das hostilidades da natureza; ou, ainda, de

expressão humana sobre a natureza.

Os textos e proposições de Tuan (1983), nesse sentido, orientavam os estudos

geográficos para os modos como os homens apreendem o mundo e fazem dele uma

compreensão organizada. Assim, tal como nas correntes que romperam com o positivismo nas

ciências sociais ou o funcionalismo no tratamento da cidade e do urbano, esse geógrafo

dotava de um sentido eminentemente humano, ou humanista, às relações sócio-espaciais.

É preciso ressaltar que essas considerações não significam um redirecionamento dos

estudos geográficos ou das relações entre o homem e o mundo para um “subjetivismo”, mas

uma ciência social fundada em pressupostos distintos das projeções das ciências naturais

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sobre as ciências humanas7. Vale citar, neste aspecto, que a fenomenologia de Husserl

pretendia uma “nova racionalidade” a partir dos eventos propriamente humanos, como

considera Leoncini (2003, p. 150):

O objetivo [...] foi fundar uma nova base racional para a ciência, buscando captar a essência das coisas por meio da compreensão que nega o subjetivismo e o relativismo, afirmando o mundo vivido como possibilidade de viver a experiência sensível e de simultaneamente poder pensá-la de forma racional.

Contemplando essa preocupação, Buttimer (1982), outra geógrafa que inscreve suas

reflexões na perspectiva humanista, mostrou que a apreensão do mundo vivido não se limita a

uma compreensão meramente subjetivista, mas a uma “intersubjetividade” das experiências8.

Segundo Buttimer (1982, p. 175),

[...] enquanto o modo subjetivista concentra-se na experiência individual única, e o modo objetivista procura a generalização, o modo “intersubjetivo” ou o modo fenomenológico esforçar-se-ia para elucidar um diálogo entre as pessoas individuais e a “subjetividade” do seu mundo.9

De um lado, a perspectiva de Buttimer rejeita o positivismo que ignora a experiência

humana ao separar o observador daquele que é observado e, por outro, o idealismo que afirma

existir um mundo real fora da consciência (JOHNSTON, 1986)10. Assim, a fenomenologia

seria o caminho para uma compreensão,

7 Do ponto de vista da fenomenologia na sociologia, Schutz propõe a Sociologia do Conhecimento que, em crítica severa de Bastos (1984), faz um elogio exagerado às “coisas” da realidade do senso-comum. Para Bastos (1984), a Sociologia Fenomenológica de Schutz, ao considerar o mundo do senso comum o limite da participação social, “permitiria o conhecimento de uma parte bastante restrita do mundo social”. 8 Os pressupostos filosóficos de Buttimer (1982. p. 166) percorrem os raciocínios de Martin Heidegger e o conceito de dwelling – traduzido por “habitação” que significava compreender que “habitar implica mais que morar, cultivar ou organizar o espaço. Significa viver de um modo pelo qual se está adaptado aos ritmos da natureza, ver a vida da pessoa como apoiada na história humana e direcionada para um futuro, construir um lar que é o símbolo de um diálogo diário com o meio ambiente ecológico e social da pessoa”; Tuan; Merleau-Ponty, Husserl; T. Hägerstrand; Kierkegaard; Schutz, entre outros. Schutz, citado na nota anterior, é criticado por Buttimer (1982, Nota 51, p. 182) ao sugerir o conceito weberiano de verstehen como uma forma de conhecimento, quando, para a autora, Weber afirma que verstehen [compreender] abarcava tanto os significados atribuídos por um ator à sua própria conduta quanto o significado atribuído a ele por um observador externo. Para Buttimer (1982), após definir a “apreensão” – ou compreensão – como “empatética” ou “racional”, Weber não procedeu fenomenologicamente ao enfatizar o modo racional, por meio do “tipo ideal”, como uma condição “pura”, deixando de examinar “as suposições tácitas ou subjacentes de sua posição teorética ou metodológica”. 9 Uma das indicações nesse sentido é posta por Capalbo (1987, p. 30) quando afirma que: “O problema que surge para a fenomenologia é o de saber como essas vivências podem ser não só válidas para mim, mas válidas para qualquer pessoa. Como se dá a comunicação das vivências?”. 10 Segundo Buttimer (1982, p. 174), embora os positivistas tivessem argumentado que suas noções científicas do espaço estavam assentadas na experiência, a generalização da experiência no espaço por meio de categorias científicas, lógicas e matemáticas reduzia as experiências sobre o espaço em relações geométricas. Dessa maneira, essa geógrafa, então, que “do ponto de vista fenomenológico, entretanto, o ‘espaço é um conjunto contínuo dinâmico, no qual o experimentador vive, desloca-se e busca um significado. É o horizonte vivido ao longo do qual as coisas e as pessoas são percebidas e valorizadas’”.

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[...] mais clara das questões dos valores, que envolvem o modo de vida normal de qualquer pessoa, e uma apreciação sobre os tipos de educação e socialização que seriam apropriados para pessoas cujas vidas podem oscilar entre vários ambientes (BUTTIMER,1976 Apud JOHNSTON, 1986, p. 214).

É desse modo que ao se investir no desafio de compreender a realidade a partir das

percepções, como “um retorno às coisas mesmas” como diria Husserl, e tal como sugere a

análise antropológica de Tuan, busca-se uma relação com os diversos autores que consideram

essa perspectiva na análise de fenômenos sociais “sensíveis” como a violência, o crime e o

medo na cidade. Não se trata de uma revelação da percepção do mundo como a explicação

mais razoável dos fenômenos da realidade, mas, antes de tudo, a possibilidade de utilizá-la

como aporte para uma reflexão das sociabilidades que se engendram nas cidades, quem sabe

com a intensidade que a tarefa fenomenológica sugere, na leitura de Dartigues (1973, p. 29):

[...] analisar as vivências intencionais da consciência para perceber como aí se produz o sentido dos fenômenos, o sentido desse fenômeno global chamado mundo.11

E é, nesse aspecto, que chamamos a atenção para as alterações sugeridas por Tuan

(1982) no que se refere aos temas tratados pela Geografia Humanística:

1) o “conhecimento geográfico” não poderia se limitar às compreensões acadêmicas do

espaço geográfico, pois o espaço não é apenas um espaço medido e quantificado, mas também

apreendido e organizado a partir da experiência vivida, se assim podemos considerar os

“mapas mentais” que os homens elaboram a partir de suas vivências.

Esse questionamento dos limites do conhecimento geográfico predominante na

academia acompanha as pretensões dos geógrafos do período em que Tuan escrevia seu

“texto-manifesto”, em 1976. Em 1977, Lacoste (1997) publicava uma crítica radical à

geografia acadêmica afirmando que “a geografia, isso serve, em primeiro lugar, para fazer a

guerra” e, por essa razão, provoca o aparecimento do termo Geografia Radical, onde se

concentraram os estudos marxistas sobre o espaço geográfico – por muito tempo foi

considerada pejorativa a nomeação de “radical” para essa nova interpretação da geografia.

Assim, o “conhecimento geográfico” antes de qualquer pretensão cientificista, continha um

conteúdo superior ao modelo fragmentário e disciplinar ensinado nas escolas e universidades,

quando pensado por exércitos e empresas em suas estratégicas sobre o espaço geográfico.12

11 No mesmo sentido, para Capalbo (1987, p. 39) a fenomenologia se volta “para os problemas da constituição, i. é, os modos pelos quais meu corpo, a existência dos outros e do mundo aparecem em minha experiência”. 12 Para Lacoste (1977), tratava-se, portanto de transcender as cisões metodológicas da “geografia dos professores” (aspectos sociais, físicos, climáticos, cartográficos, econômicos, urbanos, rurais) e estabelecer uma

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Além disso, esse contexto questionador sobre a própria produção do conhecimento

geográfico exigia a fundamentação em etnologias, etnografias e até mesmo na literatura para,

conforme as preocupações de Tuan (1982, p. 147), observar que:

Algumas pessoas têm falta de um senso formalizado de espaço e lugar, elas podem achar seu caminho no seu mundo, mas esta habilidade não é transformada em conhecimento que possa ser passado adiante verbalmente e ou em mapas e diagramas.

2) “lugar e território”, por sua vez, merecem outras definições na medida em que, para Tuan

(1982 e 1983), “lugar” é um “ponto de parada” que ultrapassa as necessidades fisiológicas

quando se vincula à referência aos espaços de morte e de vida.

Segundo os etologistas, os animais vivem em seus nichos ecológicos, “ponto de

parada”, território que varia de animal para animal, mas se compõe do lugar onde pode

satisfazer necessidades como acasalar, descansar, comer ou beber, além de se defender de

intrusos. Para os homens, isso é até aplicável, desde que se questione o papel da emoção e do

pensamento na ligação ao lugar. A peculiaridade humana encontra-se na significação de

nascimento e morte, o que justifica o nascimento das cidades ao redor dos santuários. Além

disso, o sentido de lugar para os homens, tem se complexizado em todos os âmbitos da vida

social, de tal maneira que o colo da mãe é o primeiro lugar do homem, mas o Estado-nação

também se configura por meio da língua e território comum, numa abrangência que

transcende a capacidade individual de apreciar suas grandezas.13

3) “modo de vida e economia” devem ser entendidos para além dos mesmos pragmatismos

fisiológicos relativos ao raciocínio de conservação da espécie, incompatível com uma

economia que coloca em risco não apenas a espécie humana.

Nesse tema, Tuan (1982, p. 151-152) considera que “todos os animais são quase

exclusivamente econômicos”, compreendendo que economia signifique “atividades de

sustentação da vida”. Contudo, o mundo humano, em seu “modo de vida”, dispensa pouco de

sua energia para essas atividades mais preocupadas com a vida biológica, na medida em que,

“até mesmo para os povos mais primitivos, o ganhar a vida é colorido por objetivos e valores

não zoológicos”. Na sociedade moderna e industrial, “a produção de armamento, p. e., é um

geograficidade, na medida em que a apreensão do espaço em diferentes ordens escalares de grandeza ampliaria o “conhecimento geográfico” para uma análise crítica do espaço como “totalidade”. Sumariamente, deve-se fazer juz ao precursor dessa concepção de espaço: Élisée Reclus, socialista libertário do começo do século XX que atentava sobremaneira para os aspectos geopolíticos, mas esquecido no processo de cisão da geografia humana e geografia física, cisão característica da geografia tradicional, até ser lembrado por Lacoste (1997). 13 Tuan (1982 e 1983) faz menção às obras de Suzanne Langer que critica o modelo etológico aplicado ao comportamento humano e à obra de Edward Relph: “Place and Placelessness”, de 1976.

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empreendimento econômico que proporciona meio de vida para muitos operários, mas está

em dúvida a sua contribuição para a sobrevivência da espécie”.14

4) a “religião”, no espaço geográfico, não deve ser pensada apenas a partir da localização dos

templos e dos locais considerados sagrados, que na especialização das disciplinas estaria

restrita à geografia da religião. Para Tuan (1982), “religião” é um “impulso por coerência e

significação” e uma “compreensão de mundo”, tal como a ciência e as ideologias, tendo por

função reunir as coisas – no sentido de religare – e estruturar a vida social15; e, finalmente,

5) “aglomeração humana e privacidade” tema que mais se aproxima de nosso objeto: a recusa

da premissa de que o adensamento populacional como explicação quantitativa dos conflitos

sociais como a violência. Para Tuan (1982, p. 150), não é possível se pautar nesta assertiva

quando Los Angeles tem baixa densidade, mas elevados índices criminais e, em contrapartida,

as apinhadas aglomerações urbanas orientais, por sua vez, não são mais propensas ao crime

que as cidades americanas. Para ele, a sensação de aglomeração e a necessidade de

privacidade, embora sejam temas presentes em diversas sociedade e situações espaciais, “o

modo como a cultura é medianeira entre a densidade da população e o comportamento é um

desafio para o cientista social e como para o humanista”. Mais do que isso, Tuan (1983, p. 67)

considera a importância das relações entre as pessoas para caracterizar um determinado lugar

em “espaciosidade” e “apinhamento” que até a sensação de solidão traz:

A solidão é uma condição para adquirir a sensação de imensidade. A sós, nossos pensamentos vagam livremente no espaço. Na presença de outros, os pensamentos recuam devido ao fato de que outras pessoas projetam seus próprios mundos na mesma área. O medo do espaço muitas vezes vai junto com o medo da solidão. A companhia de seres humanos – mesmo de uma

14 Aqui nos remetemos às contribuições de Mauss (2003) e Malinowski (1978) sobre o “modo de vida” a partir das dávidas presentes nas relações entre os diversos grupos sócio-culturais da polinésia meridional: a relação do Kula entre os tro’biandeses. Estes autores expõem a complexidade das trocas de bens e mulheres entre os grupos como uma relação social, que não se equivale às trocas comerciais entre as sociedades ocidentais, por assim dizer, mercantilizadas. Outros valores e significados estariam presentes nestas trocas de maneira que a recorrência das dádivas, atribuídas e retribuídas, ordenava e reorganizava as relações sociais, econômicas, religiosas e políticas entre os diversos grupos. 15 Essa concepção de “religião” parece corroborar com a concepção de Durkheim (1996) ao desmitificar a religião de misticismos e apreendê-la a partir da análise do totemismo como uma forma de organizar o mundo concretamente, entre sagrado e profano, como pensamento científico pretérito. Outra abordagem interessante é a de Levi-Strauss (1970) sob a máxima de que o mito presente nas sociedades “primitivas” não se trata de uma criação sem parâmetro na realidade vivenciada por elas, mas uma forma de estruturar o mundo conforme a apreensão das evidências da natureza como uma “ciência do concreto”. Segundo Levi-Strauss (1970), para alcançar esse nível de compreensão do pensamento mítico, é fundamental que o antropólogo entenda de botânica e zoologia, uma vez que a realidade vivida pelos grupos que analisa, pode não ter sido apreendida pela ciência moderna e que, portanto, as classificações dos fenômenos da natureza – que encontram sua organização nos mitos conforme outra organização, como uma bricolage – estão diretamente atreladas às experiências dos grupos que percebe as mínimas diferenças entre os fenômenos. Munido dessas ferramentas da botânica ou zoologia, o antropólogo poderia inclusive contribuir para uma classificação do meio ambiente, nos termos das ciências modernas, e captar o pensamento selvagem, não como exoticamente rico, mas dotado de complexa taxinomia.

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única pessoa – produz uma diminuição do espaço e ameaça a liberdade. Por outro lado, à medida que as pessoas penetram no espaço, para cada uma chega um ponto em que a sensação de espaciosidade para ao seu oposto – apinhamento. O que é apinhamento? Podemos dizer que uma floresta está apinhada de árvores e um quarto está apinhado de bugigangas. Mas são basicamente as pessoas que nos apinham; elas mais do que as coisas, podem restringir nossa liberdade e nos privar de espaço.16

No conjunto, esses apontamentos de Tuan (1982), recorrentes em suas demais obras na

formulação e descrição de suas perspectivas, demonstram sua compreensão de que todos os

fenômenos que compõem isso que chamamos mundo, embora existam compreensões parciais

dadas às técnicas disciplinares que parcelarizam e especializam os conhecimento, devem

todos serem mediados pela cultura. Isso significa dizer que, tudo o que compreendemos como

sendo simplesmente expressão de uma natureza dada, só pode ser entendido quando

relacionado aos valores e sentimentos, história e cultura, daqueles que sob determinado

fenômeno vivenciam.17

Portanto, o “espaço”, o “lugar”, a “cidade”, o “crime”, o “medo”, tantos e tantos

outros conceitos merecem ser realinhados sob a compreensão de que depende de onde se fala,

de quem se fala, ou ainda, de qual relação social se trata. Isso não significa relativizar, mas

historicizar, sempre, evidenciando-os a partir das relações sociais tidas como predominantes,

sem desconsiderar as que nem sempre são perceptíveis. A cidade e a sociabilidade que se vive

neste momento de supremacia do capital e da organização do espaço às vicissitudes da

acumulação estratégica e de sua produção de mercadorias, define uma espacialidade sempre

confrontada com as intempéries relativas à sociedade de classes.18

É claro que a percepção dos sujeitos, conforme a possibilidade aventada por Tuan

(1982), pode encontrar seus limites nas características de uma paisagem programada e, por

vezes, com a aparência caótica. Neste aspecto, Santos (1988), nos termos marxistas,

caracteriza a percepção como um ponto de partida, mas também como um limite na apreensão

16 Tuan (1982) faz referências aos escritores existencialistas, particularmente Sartre em “Being and Nothingness” (1966), para a análise do problema da existência dos outros. 17 Kosik (1969, p. 240), de maneira similar, depreende os fenômenos “simples” que se colocam aos olhos de cada homem, após afirmar que a “práxis” objetiva da realidade é por onde se conjugam cada grau de conhecimento humano sensível ou racional, cada modo de apropriação da realidade, ligada a todos os vários modos. Em suas palavras: “O homem sempre vê mais do que aquilo que percebe imediatamente. A casa diante da qual me encontro, não a percebo como um conjunto de formas geométricas, de qualidades físicas do material de construção, de meras relações quantitativas; dela tomo consciência antes de tudo como habitação humana e como harmonia, não claramente percebida, de formas, cores, superfícies, etc”. 18 As análises de muitos geógrafos e urbanólogos acerca deste espaço característico de nossa sociedade, em constante conflitualidade espacial, merecem a devida atenção ao afirmarem, tal como considera Carlos (2001, p. 15) que: “[...] o espaço produzido assume a característica de fragmentado (em decorrência da ação dos empreendedores imobiliários e da generalização do processo de mercantilização do espaço), homogêneo (pela dominação imposta pelo Estado ao espaço) e hierarquizado (pela divisão espacial do trabalho)”.

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da paisagem, caso outras inferências não sejam alcançadas. Porém, é válido afirmar que, na

vida cotidiana, as determinações da totalidade se efetivam em níveis diferenciados e,

inclusive, para Santos (2000a, p. 114) encontram resistências:

O território tanto quanto o lugar são esquizofrênicos, porque de um lado acolhem os vetores da globalização, que nele se instalam para impor sua nova ordem, e, de outro lado, neles se produz uma contra-ordem, porque há uma produção acelerada de pobres, excluídos, marginalizados. Crescentemente reunidas em cidade cada vez mais numerosas e maiores, e experimentando a situação de vizinhança (que, segundo Sartre é reveladora), essas pessoas não se subordinam de forma permanente à racionalidade hegemônica, por isso, com freqüência podem se entregar a manifestações que são a contraface do pragmatismo. Assim, junto à busca da sobrevivência, vemos produzir-se na base da sociedade, um pragmatismo mesclado com a emoção, a partir dos lugares e das pessoas juntos. Esse é, também, um modo de insurreição em relação à globalização, com a descoberta de que, a despeito de sermos o que somos, podemos também desejar ser outra coisa.

Nessa concepção de território e lugar como “esquizofrênicos”, Santos (2000b, p. 63)

considera que neles estão conjugadas as potencialidades não somente do que “está-aí”, mas

também do “vir-a-ser”, pois “no local tem-se a obediência e a revolta. Há sempre as duas

coisas”. Por isso, em outra passagem Santos (2000a, p. 114) afirma que:

Nisso, o papel do lugar é determinante. Ele não é apenas um quadro de vida, mas um espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que permite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a indagação sobre o presente e o futuro. A existência naquele espaço exerce um papel revelador sobre o mundo.19

Igualmente fundado nas inquietações marxistas, Lefebvre (2001) cunha a categoria de

“usadores”20 para encontrar os sujeitos da cidade, longe da conceituação de “consumidores”,

consagrada por políticos e urbanistas “planejadores”.21

Para Lefebvre (2001, p. 04), a cidade se forma como um centro de vida social e

política onde não se acumulam apenas as riquezas, mas também conhecimentos, técnicas e

obras. Neste sentido, a própria cidade é uma obra que contrasta com o dinheiro e a

19 Sobre o mundo se realiza no lugar, em Santos (2000b, p. 52) encontramos novamente essa reflexão: “[...] o mundo não existe em si, o mundo existe para os outros. É o lugar que da conta do mundo. Há nele uma empiricização do mundo [...] que o geógrafo precisa] conhecer para reformular o conhecimento”. 20 O termo utilizado por Lefebvre (1967, Apud CARLOS, 2001) para contrapor a concepção de cidadão “consumidor” é o do cidadão “usador” que categoriza os homens e mulheres que se apropriam do espaço, mas que nem sempre, quase nunca, detém o controle da produção e organização do espaço em que vivem. 21 Para Tuan (1980, p. 243), a distância entre o planejador e aquele que “usa”, “habita” ou “mora” aparece neste trecho: “[a] idéia de bairro do planejador dificilmente coincide com a do morador. Um distrito bem definido de acordo com as suas características físicas e denominado no plano da cidade com um nome proeminente pode não ter realidade para os habitantes locais. As palavras ‘bairro’ e ‘distrito’ tendem a evocar na mente dos estranhos, imagens de formas geométricas simples, quando de fato os canais de atos amistosos, que definem o bairro, podem ser extremamente complexos e variam entre os pequenos grupos que vivem muito próximos”.

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mercantilização dos produtos: “a obra é valor de uso e o produto é valor de troca. O uso

principal da cidade, isto é das ruas e das praças, dos edifícios e dos monumentos, é a Festa

[...]”. Tendo Lefebvre (2001) como referência, Carlos (1999, p. 184) afirma que o uso da

cidade parte do corpo do sujeito:

O uso enquanto forma de apropriação realiza-se enquanto expressão do corpo, isto é, o espaço é vivenciado pelo corpo com o emprego dos sentidos, dos membros, que forma a base prática da percepção do mundo exterior.

Nesta relação espaço-corpo, Carlos (1999) se fundamenta em Lefebvre, de maneira

que nos lembra o raciocínio de Tuan (1982) sobre a “experiência”, exposto acima:

“a prática social tomada globalmente supõe o uso do corpo, emprego das mãos, membros, órgãos sensoriais, gestos do trabalho e das atividades fora do trabalho (...) o corpo é um elemento espacial (...) o espaço foi produzido antes de ser lido e não é produto para ser lido, mas para ser vivido por pessoas que tem um corpo e uma vida no contexto urbano (...) O homem prova o espaço com todo o seu corpo, o cheiro, as pernas, o ouvido, que percebe os ruídos com o olho que vai vendo (...) é a partir do corpo que o homem se percebe e vive o espaço, isso significa que há uma relação imediata entre o corpo e o seu espaço, entre o deslocamento no espaço e a ocupação do espaço (...); antes de se produzir e se reproduzir, cada corpo vivo é um espaço, o corpo com suas energias disponíveis, o corpo vivo que cria e produz seu espaço. A produção do espaço, inicialmente, aquela do corpo vai até a produção do habitar que serve ao mesmo tempo de instrumento e meio, compreende relações e movimentos, seguem-se para o corpo os lugares fundamentais, os indicativos do espaço são inicialmente qualificados pelo corpo, corpo em ato objeto de um dispêndio de energia, agressão ou desejo”. (LEFEBVRE, 1974 Apud CARLOS, 1999, p. 185).

É nesse sentido que, sob as conceituações marxistas, se revela o “estranhamento”,

“distanciamento” ou “desencontro” entre o sujeito e a obra, quando a cidade “se produz como

exterioridade em relação ao sujeito” (CARLOS, 2001, p. 329) como “desconhecido e do não

identificado”22. Essa concepção dialética que expõe a cidade enquanto “obra” e “produto” e,

consequentemente, o uso/apropriação por parte dos sujeitos em “encontro” e “desencontro”,

confirma o campo de possibilidades que reside no lugar, como vimos em Santos (2000a):

O topos é o lugar de possibilidades e potencialidades. Os usos da rua são permeados por relações determinadas pela articulação espaço-temporal, sendo submetidos à lógica capitalista que impõe o produtivismo transforma o tempo em quantificação (uma quantidade abstrata) e o espaço numa distância a ser percorrida. As relações de propriedade criam os limites do uso, com a tendência à destruição do espaço público ou espaço acessível. Com isso limitam, pelo exercício do poder, uma ação que destrói o espaço da

22 Conforme a exposição de Carlos (2001, p. 331), “como produto social, a cidade se opõe ao sujeito, que surge na relação imediata como estranhamento, o desencontro entre a vida como modo de apropriação e a cidade como produto, condição e produto da reprodução do capital”.

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sociabilidade e proximidade, substituindo-o por aquele dos interditos em nome da lei e da ordem (CARLOS, 1999, p. 185). 23

Dessa maneira, mesmo de matizes teóricas distintas, as preocupações humanistas de

Tuan (1982) e outros geógrafos, particularmente os marxistas, caminham para essa

particularidade na totalidade da experiência humana: o “lugar”. Em sua tentativa de relacionar

as diferentes acepções do “lugar” geográfico, Leite (1998, p. 18)24 afirma que, Carlos (1996),

ao acrescentar uma dimensão histórica, sob o viés marxista, “diz respeito à prática cotidiana,

ou seja, às concepções que surgem do plano do vivido, e neste sentido é bastante similar à

percepção humanística”25. Além disso, essa geógrafa considera a relevância cada vez maior

dos “lugares” na análise de Santos (1988), conforme vimos acima, especialmente quando este

afirma que “quanto mais os lugares se mundializam, mais se tornam singulares e específicos,

isto é, únicos” (LEITE, 1998, p. 34).

Para nos aproximarmos do fim desse tópico, a concepção de “lugar” cada vez mais

“único” nos remete aos chamados “não-lugares” de Augé (1994), que colorem todos os

apontamentos feitos até agora, a partir de Certeau e Merleau-Ponty. Certeau estabelece uma

diferença entre “lugar” e “espaço” afirmado que “espaço” é o “lugar praticado” – o que nos

parece uma inversão dos termos de Tuan (1982), mas igualmente interessante: “O espaço,

[para Certeau], é um ‘lugar praticado’, ‘um cruzamento de forças motrizes’: são os passantes

que transformam em espaço a rua geometricamente definida pelo urbanismo como lugar”

(AUGÉ, 1994, p. 75). Por sua vez, Merleau-Ponty, em sua “Fenomenologia da percepção”,

compreende o “espaço geométrico” como sendo distinto do “espaço antropológico”: um

espaço “existencial”, “lugar de uma experiência de relação com o mundo de um ser

essencialmente situado ‘em relação ao meio”’ (AUGÉ, 1994, p. 75).

Outra referência que define “lugar” e “espaço”, a partir de Merleau-Ponty, está na fala

e no ato de locução. Idéia presente também na acepção de Certeau que, ao refletir sobre os

23 Em Lefebvre (1991, p. 39), o lugar enquanto potencialidade que se revela na vida cotidiana aparece nos seguintes termos “A vida cotidiana se define como um lugar social desse feedback. Um lugar desdenhado e decisivo que aparece sob um duplo aspecto: é o resíduo (de todas as atividades determinadas e parcelares que podemos considerar e abstrair da prática social) e o produto do conjunto social. Lugar de equilíbrio é também o lugar em que se manifestam os desequilíbrios ameaçadores. Quando as pessoas numa sociedade assim analisada, não podem mais continuar a viver sua cotidianeidade, então começa uma revolução. Só então. Enquanto puderem viver o cotidiano, as antigas relações se reconstituem”. 24 As formulações de Leite (1998) compreendem Tuan (1982 e 1983), Buttimer (1982), Relph (1976) e Mello (1990) no campo da fenomenologia; e Harvey (1992), Corrêa (1997), Carlos (1996) e Santos (1988), no campo marxista. 25 E continua Leite (1998, p. 18), falando sobre Carlos (1999): “[para] ela, pensar o lugar ‘significa pensar a história particular (de cada lugar), se desenvolvendo, ou melhor, se realizando em função de uma cultura/tradição/língua/hábitos que lhe são próprios, construídos ao longo da história e o que vem de fora, isto é, que se vai construindo e se impondo como conseqüência do processo de constituição do mundial”’.

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nomes próprios dados aos diversos lugares, como aqueles observados nos mapas e estradas,

compreende que se coloca aí uma “qualidade negativa” ao transformá-los em “passagens”. Ao

mesmo tempo em que em que “praticado”, o “lugar”, ao ser repleto de nomes próprios,

distante de um caráter identitário, relacional e histórico, torna-se um “não-lugar”. A idéia de

Augé (1994) passa a se compor então no entorno da experiência dos viajantes, aqueles que

vivenciam uma homogeneização cada vez maior dos lugares, aeroportos, estradas, shoppings.

A expressão mais interessante que se sobressai neste movimento que constrói os “não-

lugares”, é manifestação de diversas cidades que recorrem a serem “capitais” ou “centros” de

algo singular para chamar a atenção dos passantes/viajantes.26

Tuan (1980), neste aspecto, aborda os “rótulos de urbano” que são muito

característicos e atrativos e as cidades brasileiras, como Marília, também não se furtam em

construir os seus próprios cognomes27. Assim, os cognomes, embora pareçam ser uma

identidade de “lugar” (em alguns casos, pode até ser mesmo), quando se trata de um

fenômeno recorrente no capitalismo da “supermodernidade”, como afirma Augé (1994, p. 74),

parece-nos a necessidade cada vez mais premente da consagração de uma identidade que se

escorre na homogeneização característica dos “não-lugares”, “prometido à individualidade

solitária, à passagem, ao provisório e ao efêmero [...] como uma polaridade fugidia”.28

Finalmente, depois todas essas relações expostas neste primeiro tópico, aproximamos

de Caldeira (2000) e seu ponto de partida para compreender a cidade, sua espacialidade, os

sujeitos e as relações com a história da violência e da criminalidade, tendo em vista as “falas

do crime” como o substrato simbólico, jurídico ou ideológico que garante a configuração de

São Paulo em “cidade de muros”. Caldeira (2000) se fundamenta na concepção de que a arte

26 Augé (1994, p. 65) faz referências às diversas placas e dizeres “seja bem-vindo” e “volte sempre” nas estradas, atentando à particularidade significativa da cidade: “[se] Lyon, que é uma metrópole, reivindica, entre outros títulos, o de ‘capital da gastronomia’, uma cidade pequena como Thiers pode se dizer ‘capital da cutelaria’, [...] Digouin, ‘capital da cerâmica’, [...] e Janzé, ‘berço do frango caipira’”. 27 São diversos os pretextos identitários que se forjam sobre as cidades. Tuan (1980) cita vários exemplos que se apóiam na localização (São Francisco, a “Rainha do Oeste”); nos fatos históricos (relativos aos processos migratórios: nos Estados Unidos muitas cidades chamadas de “portal” ou “porta” para o oeste), nas vantagens ambientais (Hawaí como “Paraíso” e Las Vegas, “A cidade abençoada com um clima ideal o ano todo”, além da farta utilização do “orgulho pelas façanhas industriais, identificando a cidade às suas indústrias e produtos (“Cidade do automóvel”, “Cidade da Cerveja”, “Cidade do Preitzel”, “Cidade do Sapato”). Esses cognomes encontram equivalentes nas cidades brasileiras e Marília, nosso objeto em questão, atualmente se apóia na “Capital Nacional do Alimento”. Se Tuan (1980, p. 234) afirma que nem sempre esses títulos atrativos tem base material, natural ou social – “Nevada e Arizona não tem nenhum problema de água se acreditarmos nas imagens auto-construídas de suas cidades” –, sobre Marília, a pesquisa de Ribeiro (1996), se auto-explica pelo título: “Na Capital Nacional do Alimento há fome”, inclusive entre os próprios trabalhadores de suas indústrias. 28 É importante considerar que, para Bauman (2003), até os “viajantes”, executivos de empresas multinacionais e demais sujeitos que podem acessar a “hipermodernidade” e os “não-lugares”, também necessitam de “lugares”, homogêneos, sim, mas onde possam pairar: seus enclaves ou condomínios altamente vigiados e segregados.

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do falar é “ela própria uma arte de agir e uma arte de pensar” de Certeau (1984, p. 77 apud

CALDEIRA, 2000, p. 28). É a partir disso que ela busca as “narrativas do crime” como um

tipo específico de conhecimento que permite recuperar as experiências de violência e, ao fazer

isso, reorganizar e dar novo significado não somente àquelas propriamente individuais, mas

também ao contexto social no qual elas ocorrem. É, dessa maneira, que Caldeira (2000, p. 28)

compreende as “narrativas do crime”:

[...] Essas narrativas e práticas impõem separações, constroem muros, delineiam e encerram espaços, estabelecem distâncias, segregam, diferenciam, impõem proibições, multiplicam regras de exclusão e de evitação e restringem movimentos. Em resumo, elas simplificam e encerram o mundo [...;] elaboram preconceitos e tentam eliminar ambigüidades.

Nossa perspectiva não é exatamente a mesma, embora equiparável, em particular,

quando, em muitos momentos, encontramos suas referências teóricas e, até mesmo na

pesquisa de campo, tivemos por respaldo suas sugestões metodológicas (ver Capítulo 3). No

entanto, não acreditamos serem as “narrativas do crime” que necessariamente constroem os

muros, na medida em que outras narrativas também se colocam no espaço urbano.29

Portanto, conforme as relações expostas neste tópico mais epistemológico, nosso

quadro de análise considera a percepção espacial (logo, não narrativas, mas valores

espontâneos sobre a realidade urbana) e a apreensão subjetiva do mundo pelos homens e

mulheres de suas realidades, materiais, culturais, políticas etc., como um ponto de partida

necessário para atingir não somente as “negatividades” da relação sujeito-espaço, mas os seus

aspectos positivos e negativos, mesmo que sumariamente, nesta cidade média do interior

paulista.

29 Aqui não se trata de resolver quem vem primeiro: o ovo ou a galinha – as “narrativas do crime”, fundadas em experiências de vitimização ou calcadas em estereótipos sociais, como sendo promotoras de uma espacialidade desigual e segregadora; ou seu inverso: uma espoliação urbana com base nas condições necessárias para a reprodução e acumulação do capital que, ao produzir uma relação social “estranhada”, “objetificada” ou “matematizada”, encontra nas esferas da subjetividade coletiva e individual suas explicações. Não nos parece que Caldeira (2000) se apóia exclusivamente em alguma dessas assertivas. No entanto, para nós, tal complexidade, se revela na relação histórica entre as experiências coletivas e individuais em uma sociedade de classes e as necessidades ideológicas de justificá-las com respaldo urbanístico, público ou privado, reproduzindo uma segregação sócio-espacial mais complexa e ampliada, como um fantasmagórico círculo vicioso, sem aparente dissolução. Essa realidade “caótica” parece encontrar exceção somente na luta urbana que se engendra nas cidades, ao propor outras compreensões de espacialidade a ser gerada. O problema é que, de modo geral, essa luta urbana sempre é identificada sob o “espectro” do medo, como veremos nos tópicos adiantes.

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1.2. Sobre a conceituação de crime e a assim chamada “escalada da violência”.

A violência é definida e entendida em função de valores que constituem o sagrado do grupo de referência. Apesar da diversidade dos grupos humanos, alguns valores recebem uma adesão mais ampla, mais isto não pode dissimular a divergência e a heterogeneidade das convicções. (MICHAUD, 1989, p. 14).

Embora seja relativa e sinuosa a definição dos conceitos de crime e violência, é

inegável a existência de uma consensualidade, especialmente entre estudiosos da década de

1970, de forte correspondência entre criminalidade e urbanização, mais especificamente

metropolização, como resultado do processo de industrialização (FELIX, 1996, p.36).

Primeiramente, como fio condutor, passaremos pelas reflexões de Enzensberger

(1991) em sua definição de crime30. Este poeta, tradutor e ensaísta alemão publicou um artigo

no qual dissertava desde a parábola do “primeiro crime” (a partir da definição antropológica)

até a relação entre crime (na concepção de assassinato) com a política e o Estado31.

Enzensberger (1991) atribui a hipótese do “primeiro crime” a Freud, baseado na “horda

primitiva” de Darwin. Citando Freud (1913):

“Um pai violento, ciumento, que conserva para si todas as fêmeas e caça os filhos adolescentes, nada mais![...] Um dia os irmãos caçados se reuniram, mataram e comeram o pai, o que deu fim à horda paterna. Uma vez reunidos, eles se tornaram empreendedores e conseguiram realizar o que cada um deles, tomado individualmente, teria sido incapaz de fazer. O avô violento era certamente o modelo invejado e temido por todos os membros dessa associação fraternal. Ora através do ato de absorção, realizavam sua identificação com ele, cada um apropriando-se de uma parte da sua força. A refeição totêmica, que é talvez a primeira festa da humanidade, seria a reprodução e uma espécie de festa comemorativa deste ato memorável e criminoso que constitui o ponto de partida de tantas coisas, organizações sociais, restrições morais, religião” (ENZENSBERGER, 1991, p. 10).32

30 A partir da máxima “O que é um crime, nós sabemos sem o saber”, Enzensberger (1991, p. 09) cita: a Enciclopédia Britânica: “crime [... é uma] designação geral das infrações e legislação criminal. [...] um desprezo ou recusa das normas de comportamento que, de outro modo, a coletividade considera como obrigatórias”; Sir James Stephen: “ação ou omissão pela qual a pessoa a quem se inculpa pode ser punida pela lei”; Hobbes: “um crime é um pecado que comete aquele que, por atos ou palavras, faz o que a lei proíbe ou se abstém de fazer o que ela ordena”; e o Código Alemão: “Um ato punido com a prisão ou com um encarceramento de mais de cinco anos é crime”. Para há uma ampla e variada definição, mas correntemente tautológica ao afirmarem que “o que é punido é um crime e o que é um crime é punido; tudo o que é passível de ser punido e vice-versa”. 31 A idéia de crime como “assassinato” deve-se ao fato de que é muito difícil conceitualizar o que seja o crime. Para Enzensberger (1991, p. 09), a melhor maneira seria sair à rua e questionar as dez primeiras pessoas que encontrar: em geral, atribuiriam ao crime a definição direta de assassinato. Essa concepção corresponde até mesmo a expressões aparentemente não relacionadas com atos criminosos, como, p. e., as ações políticas. 32 É necessário considerar que, segundo Jurandir Freire Costa (1986), essa compreensão de Freud utilizada por Enzensberger (1991) tem inúmeros problemas teóricos na medida em que busca justificar a origem do poder e da cultura em uma origem violenta. Para Costa (1986) essa assertiva é hobbesiana, pois afirma que a lei surgiria de uma concorrência fratricida entre os filhos decorrente da morte do pai tirano. Além disso, esse pai tirano seria,

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As expressões políticas, segundo o Enzensberger (1991, p. 11-13), refletem ofensivas

criminais, “um dos candidatos ‘bate’ o outro (o que na realidade significa que o abate, mata-

o)”. A soberania do Estado se faz de acordo com esse poder acima dos direitos jurídicos,

“internamente e em suas relações com o indivíduo, a pena de morte; externamente e em suas

relações com outros Estados, é a guerra”. No limite deste raciocínio, na emergência de

tecnologias como a arma nuclear, haveria, para o autor, uma tendência a suspender os direitos

do homem e preparar genocídios na função imperialista dos Estados.33

Esses apontamentos orientam a reflexão de que a violência é intrínseca à constituição

do Estado se considerarmos o processo de monopolização da violência tanto nos termos de

Elias (1993) quanto de Weber (1968). O fato é que o decurso histórico longínquo que garantiu

a “pacificação dos costumes” para Elias e a “racionalização” para Weber, concorreu para a

constituição do Estado a partir da força, por assim dizer, da legitimidade de uso da violência

no controle de seus dominados como “instrumento normal do poder”. A assertiva de Weber

(1968, p. 56) sobre isso ilustra bem essa caracterização do Estado:

“Todo Estado se funda na força”, disse um dia Trotsky a Brest-Litovsk. E isso é verdade. [...] Em nossos dias, a relação entre o Estado e a violência é particularmente íntima. Em todos os tempos, os agrupamentos políticos mais diversos – a começar pela família – recorreram à violência física, tendo-a como instrumento normal do poder. Em nossa época, entretanto, devemos conceber o Estado contemporâneo como uma comunidade humana que, dentro dos limites de um determinado território – a noção de território corresponde a um dos elementos essenciais de Estado – reivindica o monopólio legítimo da violência física. É, com efeito, próprio de nossa época o não reconhecer, em relação a qualquer outro grupo ou aos indivíduos, o direito de fazer uso da violência, a não ser nos casos em que o estado o tolere: o Estado se transforma, portanto, na única fonte do “direito” à violência.

No entanto, essa concepção de Weber (1968) sobre o “direito” do uso da violência

legítima do estado, merece ser pensada enquanto um “direito” e não a uma arbitrariedade sem

mais. Para Adorno (2002, p. 275),

antes de mais nada, já uma lei, o que invalidaria o raciocínio de Freud e, por conseqüência, de Enzenberger (1991), mesmo que esse tenha revelado o caráter tautológico do raciocínio de Hobbes. 33 Para demonstrar a contradição do discurso do Estado pelo uso de seu poder para proteger ao mesmo tempo em que para matar, Enzensberger (1991, p. 15-22) comparou decretos nazistas profundamente preocupados com a proteção dos animais que, no limite, no caso de serem mortos, deveriam receber uma morte não muito sofrível, enquanto consideravam a morte de milhares de judeus na II Guerra Mundial como algo trivial e enaltecedor da história alemã. Como a crítica se dirige aos Estados de um modo geral, o autor comparou os discursos dos mesmos nazistas aos discursos de importantes figuras norte-americanas na concepção depreciativa e desejosa da morte de milhares de judeus e russos, respectivamente. Completou sua crítica ao afirmar que, conforme a constituição dos Estados e a justificativa do uso da força, o destino certo pareceria a “solução final”, já usada no passado, mas podendo ainda ser usada, dependendo apenas dos planejadores da última guerra.

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É preciso considerar que, quando Max Weber está falando em violência física legítima, ele não está, sob qualquer hipótese, sustentando que toda e qualquer violência é justificável sempre que em nome do estado. Fosse assim, não haveria como diferenciar o Estado de direito do poder estatal que se vale do uso abusivo e arbitrário da força. Justamente, por legitimidade, Weber está identificando limites ao emprego da força [...] Na sociedade moderna, a violência legítima é justamente aquela cujos fins – assegurar a soberania de um Estado-nação ou a unidade ameaçada de uma sociedade – obedece aos ditames legais.

Diante dessa “legitimidade” do Estado em se utilizar da violência de modo exclusivo,

é necessário considerar as transformações do que seria a violência e o crime e de que maneira

a vida social passa a ser estruturada a partir das instituições disciplinares, se assim podemos

compreender as formulações de Foucault (1977 e 2002). Neste aspecto, a concepção de

violência e criminalidade alcança as necessidades de uma sociedade industrial e urbanizada

que aos olhos de Foucault (1977), configuram a “sociedade disciplinar” em que os indivíduos

passaram a ser constantemente esquadrinhados, disciplinados, vigiados e punidos.

Em torno de sua análise de instituições como a prisão, Foucault (1977) considera que

o crime deixa de ser uma afronta do indivíduo contra a figura do rei para dar ênfase à pessoa –

o que justificava a punição de toda a força do Estado contra o indivíduo através dos

espetáculos públicos dos suplícios – para haver maior relevância do crime contra os bens, ao

atingir o precioso e mais característico emblema da ascensão da burguesia: a propriedade

privada. Dessa maneira escreve Foucault (1977, p. 72),

[...] a passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude faz parte de todo um mecanismo complexo, onde figuram o desenvolvimento da produção, o aumento das riquezas, uma valorização jurídica e moral das relações de propriedade, dos métodos de vigilância mais rigorosos, um policiamento mais estreito da população, técnicas mais bem ajustadas de descoberta, de captura, de informação: o deslocamento das práticas ilegais é correlato de uma extensão e de um confinamento das práticas punitivas (p. 72).

Assim, Foucault (1977) sugere ser um indício, dessa alteração na concepção de crime,

a mudança do caráter de punição dos criminosos. Em menos de setenta anos, da passagem do

século XVII ao século XVIII, o suplício público dos corpos passou à reclusão resguardada e

vigiada em grandes instituições com pleno controle do sujeito no tempo e no espaço, em um

processo de “docilização dos corpos” – leia-se manipulação – e “mitigação das penas”.

O Estado e a burguesia, para garantir um modo de conter os sujeitos enquanto

“massa”, necessitava enquadrá-los, hierarquizando-os e impondo sobre os seus corpos a

“disciplina”, que Foucault (1977, p. 128) interpretou por “uma anatomia política do detalhe”,

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tecnologia de poder peculiar da “sociedade disciplinar”. Os corpos tornaram-se o espaço em

que o poder político passava a se efetivar cerceando ao cerceá-lo minuciosamente.34

O resultado dessa política disciplinar estava de acordo com os interesses da burguesia

industrial: uma sociedade de massas, fragmentada, hierarquizada, disciplinada física e

ideologicamente, vigiada de modo macro, pelas instituições disciplinares e punitivas como a

polícia e, de modo micro, por parte da arquitetura em “sistemas do tipo panóptico”35, pelo

exército de fiscais da burocracia da escola, da fábrica, do hospital, da prisão etc., e até mesmo

do próprio indivíduo reprimindo-se a si mesmo. Uma série de mecanismos de vigilância e

exercício do poder que, esparsos e descontínuos, reuniam um sistema de controle

supostamente para re-socialização – prisional –, garantindo um acúmulo de possibilidades de

efetivação do poder. Acúmulo, esse, ou “mais-poder” que, segundo Foucault (1977), deveria

ser observado, pois todo poder, uma vez criado, migraria para as demais instituições sociais.

Nessa perspectiva, por meio de Foucault (1977), deduz-se o crime enquanto conceito

que se relativiza historicamente de acordo com os interesses das sociedades, das classes

dirigentes e dos Estados constituídos, como é na sociedade ocidental, industrializada e de

orientação capitalista e de controle disciplinar.

Na mesma perspectiva de que o crime é relativo e está em função dos interesses de sua

respectiva sociedade, encontramos formulações da violência propostas por Michaud (1989),

expondo várias definições de violência, mas, de modo geral, relacionando-a à política do

Estado, da sociedade e de seus sujeitos36. Ou seja, a partir do entendimento de que a violência

passa necessariamente por uma compreensão da própria sociedade, Michaud (1989, p. 18)

focalizou a relação direta entre a problemática da violência e estruturas do poder, enfocando 34 Para Foucault (1977, p. 26) “[...] não se trata de cuidar do corpo, em massa, [...] como se fosse unidade indissociável, mas de trabalhá-lo, detalhadamente, de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de mantê-lo ao mesmo nível da mecânica – movimentos, gestos atitude, rapidez: poder infinitesimal sobre o corpo ativo”. 35 Apresentando o “sistema panóptico” de Benthan, Foucault (1977, p. 78) formulou a figura arquitetural do novo tipo de instituição de vigilância e controle total. Diferente da escuridão das masmorras, os presos passaram a ser colocados em “jaulas” particulares com janelas vazadas, dispostas perifericamente em forma de anel e voltadas para o centro em que, em uma torre, um funcionário a todos observa sem se permitir identificar pelo próprio formato da panorâmica vigilante. “O panóptico é uma máquina de dissociar [...] sem ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto”. 36 Orientado pela relação fatos e ações versus maneiras de agir, Michaud (1989, p. 8) apresentou, inicialmente, a violência a partir de definições retiradas de dicionário francês, tais como: coerção (força ou intimidação); ato através do qual se coage; disposição natural (sentimentos); força irresistível e caráter brutal de ação. Enfim, com certo caráter relativo marcado por uma variedade de significados e normas. Diante dessa variação na definição, Michaud (1989, p. 16) aponta os fatores que se garantem enquanto obstáculos em qualquer tentativa de conhecimento da violência: a diversidade normativa, quando “a maioria das sociedades comporta subgrupos cujo nível médio de violência é incompatível com o da sociedade global ou, de qualquer modo, com as avaliações em vigor na sociedade global”; a desconfiança dos dados apresentados pelas sociedades sobre sua própria violência; e a não neutralidade da apreensão, registro e avaliação da violência por parte das sociedades, tendo-se em vista que as classes dominantes tendem a controlar as informações, documentos e versões em seu benefício.

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os Estados e os grupos organizados da sociedade na luta pelo domínio e controle por parte de

seus sujeitos. As guerras, nesse sentido, seriam a “manifestação da violência internacional

direta” que, em uma perspectiva macro, passaram a se constituir em mecanismo utilizado

pelos Estados em uma militarização cada vez mais cara e mortífera. É nesse aspecto que

Michaud (1989) relaciona a violência à crescente militarização que se fundamenta na

propaganda de “escalada da violência”.

Segundo Michaud (1989), a exigência de militarização e a sofisticação das políticas de

contenção da violência se projetam no aprimoramento dos mecanismos de sua própria

efetivação, em um processo em que a violência política se torna central na constituição do

poder e que setores da sociedade urgem pelo seu controle.37

Com base em Elias (1993), Michaud (1989) levantou uma polêmica interpretação da

“escalada da violência”, questionando a não objetividade das estatísticas pelos seus vieses e a

“falseação” dos níveis de violência. Na mesma perspectiva, J-C. Chesnais (1981 apud

ADORNO; LAMIN, 2006, p. 158-160) destaca quatro fatores que influenciam a ampliação

dos sentimentos de insegurança e medo:

1) Aumento da delinqüência, relativo ao “alargamento” das práticas que passaram a ser

penalmente classificadas como delitos, a alta incidência dos crimes contra a propriedade como

furtos e roubos em uma sociedade na qual a propriedade privada emerge como um bem

valioso, individual e “extensão” do corpo, e – acrescentaríamos – à capacidade estatística cada

vez mais crescente de registrar as ocorrências, cobrindo as chamadas “cifras obscuras”;

2) A racionalização dos dispositivos de segurança, como uma “necessidade quase obsessiva

de se proteger contra tudo” nestas “sociedades de segurança”;

3) O progresso do espírito democrático, que, de acordo com o “processo civilizador” de Elias

(1994), na medida em que a própria diminuição da violência coopera para o sentimento de

insegurança, uma vez que “quanto mais um fenômeno desagradável diminui, mais ele se torna

insuportável”, ou seja, se vive cada vez mais um discurso alarmista e catastrófico, um bom

apelo para a segurança privada nos termos do “venda bem o medo”; e,

37 A violência do poder é mais ampla quando vem do Estado que a utiliza para afirmar a supremacia e o monopólio do poder sobre a sociedade, através de empresas de terror tal como o suplício e o genocídio, e um terror mais contemporâneo: o “esquadrinhamento” da sociedade, através da organização da delação e da promoção de uma indústria de eliminação dos adversários (MICHAUD, 1989, p. 25).

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4) Finalmente, a própria redução das taxas de violência, de modo que, para Adorno e Lamin

(2006, p. 161), “interpretar o impulso do sentimento de insegurança em termos de um

crescimento da violência objetiva é não somente ilusório como mistificador”.

Portanto, o “processo civilizador” teria instaurado e difundido “boas maneiras” e

“polidez” que “amenizaram a agressividade”, o que permite Michaud (1989, p. 38) concluir:

[que] tal processo tem como contrapartida uma gestão cada vez mais restritiva da vida social e ascensão dos controles sociais. Em todo caso, se há um aumento da violência, ela não se encontra do lado da criminalidade, ou então é porque nos tornamos extraordinariamente suscetíveis a uma insegurança que nunca foi tão fraca.

Para Michaud (1989, p. 48), a insegurança é ideológica, propagandeada e banalizada

pela mídia sensacionalista e pelo Estado em seu anseio de ampliar o controle sobre a

sociedade e sobre outras nações e mercados. As imagens se tornaram a “parada da batalha”

em que atuam e disputam espaço o Estado e todos aqueles que se utilizam da violência para

questioná-lo. Ao Estado, particularmente, parece salutar incitar o sentimento de insegurança

nos cidadãos para receber destes a exigência de controle da violência e, conseqüentemente,

exercer-lhes maior domínio.

Entretanto, Souza (2000, p. 109) afirmou que a idéia de “processo civilizador de longa

duração” de Elias (1994) merece ser desafiada, pois mesmo que tal autor assumisse a

possibilidade de recuos temporários, com relaxamentos dos costumes, se observados no

século XX elementos de Auschwitz à “limpeza étnica” na Bósnia “torna[ria]-se difícil

continuar insistindo sobre a interpretação de meros recuos localizados em meio a um processo

teleológico de longuíssimo prazo”.

Para finalizarmos essa polêmica sobre o processo civilizador, Caldeira (2000, p. 372)

acredita que o “repertório da modernidade”, marcado pela “circunscrição do corpo” e

“civilização dos costumes”, aconteceu em espaços restritos como nos países centrais, Estados

Unidos, França, Inglaterra, mas não da mesma maneira nos países por eles colonizados. Com

uma concepção etnocêntrica, enquanto a Europa vivia um processo pacificador, ao mesmo

tempo ainda eram colocados em marcha a violência colonial e o genocídio na América Latina

e na África. Quer dizer, para ela, o processo civilizador existe e existiu, mas sua penetração e

consolidação passam por especificidades sociais, históricas, culturais e políticas.

Essa compreensão parece concordar com a caracterização de Velho (1991) acerca

desses temas, poder, violência e direitos humanos, nos termos que se apresenta na sociedade

brasileira. Seguindo a linha de opressão, Velho (1991) destaca uma contradição interna

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característica das classes dominantes, a partir da seguinte subdivisão social: in-groups

(“incluídos”) e out-groups (“excluídos”, a maioria da população), com suas alternâncias de

concepções e discursos da violência, conforme suas conveniências. Discursos e práticas se

alternam entre humanitários e repressivos, na medida em que a violência rompe os limites dos

“excluídos” e alcança os “incluídos”.

A dinâmica da violência, segundo Velho (1991), determina mudanças nos discursos e

atitudes dos in-groups. Mudanças, essas, que legitimam as ações das instituições do Estado.

Conscientes de que a violência aflige mais os pobres e excluídos, os in-groups tendem a

propor políticas de segurança com grande enfoque nos direitos humanos, calcada no

policiamento comunitário e em penas de tipo alternativo. No entanto, em momentos que a

criminalidade ultrapassa os limites dos out-groups e compromete a sua qualidade de vida, os

“incluídos” abandonam imediatamente as bandeiras mais humanitárias e promovem

campanhas de guerra contra a violência, clamam por políticas rígidas de controle social

dirigidas aos out-groups. Estes, que sempre sofreram com a violência, vêem intensificada a

violência do Estado, orientada pela proteção dos in-groups.

Essa situação exposta por Velho (1991) é verificada sempre que esses setores da

sociedade se sente acuados diante de acontecimentos muito explorados pela mídia,

especialmente os que envolvem personalidades ou atingem grandes grupos, como as guerras

urbanas que assistimos entre os órgãos de segurança e organizações criminosas, ou em casos

de comoção nacional.38

Em momentos assim, corre-se o risco de ver uma sociedade ansiosa pela violência

legitimada do Estado, em proporção direta com os seus medos e receios de ver comprometida

a ordem estabelecida. Fazendo um paralelo com a História recente do Brasil, o que se

verificou foi o recrudescimento de uma sociedade em busca da ordem capaz de produzir

ditaduras e, como Pinheiro (1991) considerou, de transmitir as práticas próprias daquele

regime ao sistema político democrático39.

38 O caso da criança que morreu em decorrência de um assalto no Rio de Janeiro, no começo desse ano tomou proporções gigantescas pela violência, arrastada por quarteirões, e reacendeu a discussão sobre a lei da maioridade penal, em razão da participação de um “menor”, chegando, nos limites da imediaticidade da grande mídia (RIBEIRO, 2007). 39 Segundo Pinheiro (1991, p. 364), as práticas de tortura, de autoritarismo e de violência irrestrita por parte do Estado às classes populares se mantiveram na transição democrática brasileira da década de 1980. Como o quadro de funcionários instalado nas instituições não se alterou e as políticas de contenção da criminalidade não se orientaram para a perspectiva democrática de modo imediato, o que se verificou foi a continuidade da repressão incontida. É nessa sociedade de controle autoritário que, segundo Velho (1980), explicita que “o exercício da cidadania é constantemente identificado como subversão, com desconfiança e discriminação”.

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Para Pinheiro (1991), o que “alimentou” tais práticas, após a transição para a

democracia, foi a incapacidade da “Constituição de 1988” em ampliar a cidadania e garantir

os direitos dos sujeitos. De composição sócio-econômica assimétrica historicamente, a grande

maioria dos brasileiros vive sob estigmas e torna-se suspeita da sociedade do controle.

Continua Pinheiro (1991, p. 111): “[...] a maioria da população, composta de miseráveis,

pobres e indigentes, especialmente os mulatos e negros, continua a constituir as classes

suspeitas”. Neste aspecto, segundo Vieira (1991, p. 90), o Estado brasileiro, no que se refere

às políticas de segurança pública, tem se expressado como “autoritário e violento para a

grande maioria da população; dócil e transigente aos interesses da elite”.

É nesse contexto que Caldeira (2000) expõe sua tese sobre a “democracia disjuntiva”,

segundo a qual o processo de redemocratização e a Constituição de 1988 garantiram a

“cidadania política”, mas ao mesmo passo em que houve a resistência e inviabilidade de

efetivação da “cidadania civil”. A liberdade política foi aparentemente conquistada, mas a

recusa de amplos setores da sociedade aos direitos humanos, estigmatizado como “direitos de

preso” (no contexto dos grupos defensores dos direitos humanos terem migrado da denuncia

dos abusos da ditadura militar sobre os presos políticos para a defesa da integridade das

massas carcerárias) comprometeu o que Caldeira (2000, p. 343) chama de “repertório da

modernidade” – civilização dos costumes, circunscrição e respeito ao corpo e avanço da

própria democracia política e econômica na sociedade brasileira.

Nos estudos sociológicos e criminológicos, os preconceitos que instrumentalizam as

instituições de segurança contra determinados segmentos da sociedade tornam-se alvo na

crítica da relação pobreza-criminalidade. Estes preconceitos, por sua vez, associam as classes

populares à idéia de que são “marginais”: diante da vida social e economicamente

desfavorecida, se explicaria a tendência à delinqüência40. Muitos foram os trabalhos que

pulverizaram tal perspectiva. Entre eles é preciso citar Coelho (1980, p. 378):

40 Esses mitos sobre a “marginalidade” foram fartamente estudados por inúmeros autores vinculados à DESAL (Centro para Desenvolvimento Econômico e Social para a América Latina) que atestavam “disfuncionalidades” do sistema frutos da incapacidade de sujeitos em assimilar o modo de vida urbano e capitalista, devido a fatores psicológicos, culturais e sociais. Kowarick (1977) e Perlman (1977) trataram, em seus estudos, de desconstruir esses mitos afirmando: por um lado, que os sujeitos que vivem em espaços como as favelas não estão na condição de “marginais” na medida em que se inscrevem no mercado de trabalho capitalista e possuem uma capacidade de apreensão dos seus imperativos respondendo-os de acordo com suas possibilidades, apropriadamente; e, por outro, que para o modelo social vigente estes sujeitos não estão à “margem” uma vez que são parte necessária ao funcionamento do capitalismo. Nas palavras de Kowarick (1977, p. 55), o componente populacional que se considera “às margens” do sistema produtivo são, em verdade, uma garantia de manutenção da exploração, o que se exige compreender, portanto, a “marginalidade” não como uma “disfunção, mas como uma contradição”. Atualmente, Wacquant (2001, p. 187) utiliza o conceito de “marginalidade avançada” para tratar dos espaços pauperizados na cidade pós-fordista que, segundo este autor, tornaram se

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Versões epidérmicas e popularizadas desta proposição convencional tem desaguado entre nós em retórica sobre o “crime como reação às condições de pobreza”, ou sobre o “crime como estratégia de sobrevivência”. Mas a despeito das aparências em contrário, a tese é metodologicamente frágil, politicamente reacionária e sociologicamente perversa. E por razões muito simples (grifo nosso).

Como Michaud (1989), Coelho (1980, p. 379) criticou os vieses das estatísticas, a

maneira como são dispostos os dados e seus resultados, sempre orientados pelos interesses de

quem as realizou. Além disso, o autor afirmou que os sociólogos, quando fazem a relação

entre o nível sócio-econômico baixo e a criminalidade, tendem a criminalizar as classes

populares. Por fim, Coelho (1980, p. 383) denuncia a pobreza e a marginalidade enquanto

violação dos direitos fundamentais do homem e que “jamais serão as causas do crime pelo

simples fato de que são o crime do Estado e da sociedade contra os despossuídos de poder”.41

Em Felix (1999), percebemos que, embora possam ser encontrados casos de sujeitos

de classes populares utilizando-se da prática criminal para superar sua condição sócio-

econômica de modo imediato, não se justifica a prática criminal motivada somente por

frustração, pois, se assim fosse, tal sentimento também se aplicaria à classe média desejosa de

pertencer aos altos estratos sociais e, assim, sucessivamente. Segundo Felix (1999, p. 98),

É importante que não se radicalize o processo de desvio social, violência e criminalidade ao estado de pobreza e não transmitir a famosa relação única e inequívoca entre sintomas de desorganização social (crime) e situação de miséria. Embora a relação exista, não é absoluta.

Utilizando-se de Coelho (1978 apud FELIX, 1996, p. 63), a autora denuncia a

“criminalização da marginalidade” que é reforçada pela existência de uma grande

“delinqüência encoberta” em nossa sociedade. Segundo “surveys” de vitimização as infrações

cometidas e não detectadas desmascaram as teorias que se referem à capacidade de per si da

desigualdade social gerar a criminalidade. Assim, jovens de status socioeconômico mais alto

“guetos”, nos Estados Unidos e na França, sob distinções de “cor e de classe” nos dois lados do atlântico. Entretanto, esse conceito de “marginalidade avançada”, aparece em outras passagens sob outra nomenclatura, deveras próxima: “novo regime de marginalidade urbana”. São conceitos que necessitam, ainda, serem precisados em face das inúmeras discussões que os rejeitaram. 41 Uma consideração que demonstra que a estigmatização dos “pobres” e “marginais”, relacionada diretamente às ocorrências criminais, não é um privilégio do Estado brasileiro, mesmo que neste se apresente decisivamente mais pungente. Notamos, por meio de Foucault (1977, p. 70-72), a transformação da delinqüência como um processo subseqüente à mudança na concepção de crime: “[desde] o fim de século XVII, com efeito, nota-se uma diminuição considerável dos crimes de sangue e, de um modo geral, das agressões físicas; os delitos contra a propriedade parecem prevalecer sobre os crimes violentos; o roubo e a vigarice sobre os assassinatos, os ferimentos e golpes; a delinqüência difusa, ocasional, mas freqüente das classes mais pobres é substituída por uma delinqüência limitada e ‘hábil’; os criminosos do século XVII são ‘os homens prostrados, mal alimentados, levados pelos impulsos e pela cólera, criminosos de verão’; os do XVIII, ‘velhacos, espertos, matreiros, que calculam’, criminalidade de ‘marginais’”.

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podem violar as leis até com mais freqüência e com maior gravidade que os de outros estratos

sociais. Porém, a diferença do registro pode “demonstrar” que as pessoas de classe mais baixa

não possuem as “imunidades institucionais” das classes média e alta, o que as tornam mais

suscetíveis às penalidades: são mais detectadas, detidas, processadas e condenadas.

Logo, ao pensarmos na criminalização dos “pobres” ou “marginais”, consideramos o

fato de que, com o crescimento dos bens e do poder dos proprietários, ocorre a criminalização

dos delitos de propriedade que incorpora as ações daqueles que se insubordinavam face aos

imperativos dessa sociedade. Para Foucault (2002), no processo de proletarização da vida

social, a burguesia encontrou como mecanismo político, ideológico e jurídico, a devassa de

um conjunto de sujeitos, compreendidos como “plebe não-proletarizada” e vistos como

“perigosos” aos olhos do “proletariado”. Na passagem em que discute o sistema penal francês,

Foucault (2002, p. 50) nos apresenta um longo raciocínio que fundamenta essas

considerações:

[...] a repressão das revoltas populares tinha sido até então sobretudo tarefa militar. Foi em seguida assegurada ou melhor, prevenida, por um sistema complexo justiça−polícia−prisão. [...] Por um lado ele é um fator de “proletarização”: tem por função coagir o povo a aceitar o seu estatuto de proletário e as condições de exploração do proletariado. É perfeitamente claro que, desde o fim da Idade Média até o séc. XVIII, todas as leis contra os mendigos, os ociosos e os vagabundos, todos os órgãos de polícia destinados a expulsá−los os coagiam [...] a aceitar no próprio lugar onde viviam as condições extremamente más que lhes eram impostas.[...]. Por outro lado, esse sistema penal dirigia−se especialmente aos elementos mais móveis, mais agitados, os “violentos” da plebe; os que estavam mais prontos a passar à ação imediata e armada; [...] e, enfim, os que nos dias de motim nas cidades ou nos campos traziam armas e fogo [...]. Eram estas pessoas “perigosas” que era preciso isolar (na prisão, no Hospital Geral, nas galés, nas colônias) para que não pudessem servir de ponta de lança aos movimentos de resistência popular. Esse medo era grande no século XVIII, foi maior ainda depois da Revolução e na ocasião de todas as agitações do séc. XIX. Terceiro papel do sistema penal: fazer com que a plebe não proletarizada aparecesse aos olhos do proletariado como marginal, perigosa, imoral, ameaçadora para a sociedade inteira, a escória do povo, o rebotalho, a ‘gatunagem’; trata-se para a burguesia de impor ao proletariado, pela via da legislação penal, da prisão, mas também dos jornais, da “literatura”, certas categorias da moral dita “universal” que servirão de barreira ideológica entre ela e a plebe não proletarizada; toda a figuração literária, jornalística, médica, sociológica, antropológica do criminoso (de que tivemos exemplos na segunda metade do séc. XIX e começo do XX) desempenha este papel. Enfim, a separação que o sistema penal opera e mantém entre o proletariado e a plebe não proletarizada [...], permite à burguesia servir-se de alguns desses elementos plebeus contra o proletariado; ela os usa como soldados, policiais, traficantes, pistoleiros e utiliza-os na vigilância e na repressão do proletariado (e não somente os fascismos deram exemplos disso) (grifo nosso).

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O problema é que esses “elementos mais móveis” da plebe, não-proletarizados

correspondiam naquele momento à categoria clássica de “lumpemproletariado”. É nesse tema

que Souza (2000) questiona a criminalização dos “mais pobres dos pobres”, sobretudo na

definição de “rebotalho do proletariado” ou “rebotalho de todas as classes” tratado por Marx e

Engels, sob uma depreciação moral de “mendigos, vagabundos, criminosos, prostitutas...”.

Essa compreensão de “lumpemproletariado”, para Souza (2000), merece ser

rediscutida na medida em que parece ocorrer sua ampliação quantitativa no contexto da

fragmentação, terceirização e precarização do mundo do trabalho42. Não se trata de considerar

os “mais pobres dos pobres” sujeitos revolucionários, mas as categorias marxistas devem ser

revistas, uma vez que aqueles que se enveredam pelo crime, tendem a ter uma ação

“parasitária” e “simbiótica” para o capital. Para Souza (2000, p. 199),

[...] o crime, mesmo organizado, ameaça, de certo modo a democracia, não tanto as instituições da democracia representativa per se, mas, sobretudo, a vivência democrática e as possibilidades de conquista de mais autonomia. A criminalidade, porém, não ameaça o capitalismo, nem intencionalmente, tampouco efetivamente. E é nesse sentido específico que, ao se considerar a sobrevivência de um mínimo de vida democrática efetiva, que se constata um novo “espectro” que ronda e preocupa: o de uma exacerbação das tensões sociais e de coerção estatal na esteira de crescente repressão contra o lumpemproletariado em armas – embora não tanto contra seus corruptores, manipuladores e financiadores.43

Mesmo assim, o raciocínio de Souza (2000, p. 192) recusa a relação “pobreza-

criminalidade” quando prefere se utilizar da relação “injustiça social-criminalidade”, para não

estabelecer uma relação simplista e desconsiderar as implicações estruturais sobre o fenômeno

de “territorialização” das favelas pelo tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Para o autor,

42 Souza (2000) aponta alguns teóricos do marxismo que tem empreendido nesta tarefa de se repensar o proletariado nesta virada de milênio. Dentre as diversas perspectivas, optamos pela compreensão de Antunes (1999, p. 233), que se pauta pelo “[aumento] acentuado do “novo proletariado”, das inúmeras formas de subproletarização ou precarização do trabalho, da expansão do trabalho parcial, temporário, subcontratado, terceirizado, que tem se intensificado em escala mundial, tanto nos países do 3º mundo como também nos países centrais”. Esse “novo proletariado” para Antunes (1999, p. 233) deve ser compreendido nos termos da “classe-que-vive-do-trabalho” ou “a totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda da sua força de trabalho e que são despossuídos dos meios de produção, não tendo outra alternativa de sobrevivência senão o seu assalariamento. Fariam parte dela os trabalhadores da indústria, agricultura, comércio e serviços, os que trabalham no setor privado e público, os precarizados e os desempregados”. 43 Misse (1995, p. 03) aborda as dificuldades das análises sociológicas, no que se refere a essa correlação “crime-pobreza” dadas as ambivalências da correlação e aos propósitos aos quais estão comprometidos os sociólogos: estabelecer à critica ao capital: “A abordagem marxista tradicional ou influenciada pelo marxismo reteve a correlação herdada do socialismo, mas encontrou dificuldades em desenvolvê-la, seja porque a questão criminal não sucumbia a uma análise de classes, seja porque ela resultaria, em seus principais aspectos, de uma estrutura social inteira que sucumbia em suas próprias contradições internas. Nesse caso, preferiu investir nas diferentes formas assumidas por essas contradições, alertando para os crimes do capital e para os dispositivos de violência do Estado, um campo que se mostrou fecundo e inovador. Desse ângulo, a própria correlação entre crime e pobreza servia às classes dominantes e precisava ser desmascarada”.

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análises despojadas de fatores estruturais seriam insuficientes para compreender o fenômeno

da criminalidade nas grandes cidades.

Neste sentido, as estigmatizações e relações diretas entre “pobreza-marginalidade-

criminalidade” constituem um repertório que explicaria as desigualdades sociais e a

criminalidade para, final e conseqüentemente, subsidiar as políticas repressivas contra os

subalternos ou no sentido de dividi-los face aos imperativos e constrangimentos relativos à

sociedade industrial. Raciocínio esse, que nos remete a Bauman (1997, p. 95) quando se

refere à máxima “dividir para reinar”, estratagema político necessário na contenção dos

“desesperados”, categoria atribuída aos sujeitos que não usufruem das benesses econômico-

sociais. Num contexto de “desengajamento”, a pulverização dos “desesperados” em conflitos

inter-étnicos seria a garantia da estrutura social vigente.44

No entanto, segundo alguns autores, aqui referenciados, estaríamos vivendo um “novo

paradigma da violência”, apontado por Wierviorka (1997, p. 04) como uma necessidade das

ciências sociais em alterar os seus modos de abordagem para apreender a violência, “no

interior de um espaço teórico complexo, capaz de integrar o campo do conflito e o da crise”.45

Wierviorka (1997, p. 05-07) justifica seu raciocínio afirmando que a “violência não é

a mesma de um período a outro” e que, portanto, ela se alterou desde o final dos anos 1960,

acompanhando as mudanças estruturais, políticas e econômicas marcadas pela globalização.

Nesse sentido, é preciso compreender as manifestações de violência em face de um paradigma

da contemporaneidade, se consideradas as características e significados que o autor identifica:

1) Regressão da violência política e do terrorismo de extrema-esquerda que, importantes nas

décadas de 1970 e 1980, estariam esgotados em praticamente todo o mundo do mesmo modo

que a ameaça de tomada do poder do Estado pela extrema direita;

2) Diminuição da importância das lutas de libertação nacional de 1950 a 1970 e o caráter

nacionalista ter corporificado manifestações nos países mais potentes pela extrema direita;

44 Neste aspecto, Perlman (1977, p. 292) na década de 60, já considerava dessa maneira a relação entre as estigmatizações e a necessidade do Estado em conter esses espoliados ao afirmar que: “os mitos [da marginalidade] atuam de tal maneira que isolam um segmento da classe trabalhadora dos outros; eles lutam entre si, ao invés de se unirem” e “os mitos da marginalidade facilitam a aceitação e justificam a implementação de qualquer política oficial que se refira direta ou indiretamente aos setores populares da sociedade urbana”. 45 Tal perspectiva de Wierviorka (1997, p. 14), teria o sentido de levar em consideração o “sujeito, impossível, frustrado ou que funcione fora de qualquer sistema ou de normas e condutas que seriam reveladoras de uma verdadeira desestruturação ou de desvios capazes de levar ao caos e à barbárie”.

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3) Declínio do movimento operário e a perda do lugar central das relações de produção

industriais têm demonstrado que a violência deixou de ser um conflito estrutural de classe

enquanto luta contra a exploração e dominação; e, por fim,

4) Caracterização da violência como manifestação dada pelas referências crescentes a uma

identidade étnica ou religiosa.

Aqui, não tomamos suas caracterizações como parte de nosso entendimento, uma vez

que as suas assertivas merecem ser desafiadas pelos fatos, tal como todas as formulações que

se revelam como “novo paradigma”. Mesmo, assim, consideramos importante apontar que, de

uma maneira geral, Wierviorka (1997) tem sido um dos principais interlocutores daqueles que

se dedicam ao tema da violência. Além disso, sua compreensão de que houve transformações

no plano da violência concreta e objetiva, seu caráter subjetivo no plano das percepções e

representações, contribui à nossa pesquisa sobre a percepção com ferramentas teóricas que,

para ele, se aplicam não somente à França, mas também a países como o Brasil.46

46 Para Wierviorka (1997, p. 16), “[a] violência mudou também, pois se considera não mais o fenômeno no que ele apresenta de mais concreto, de mais objetivo, mas as percepções que sobre ele circulam, nas representações que o descrevem. No interior dos países ocidentais, a começar pela França, a violência subjetiva, tal que é sentida, apresenta como primeira característica fundamental a de parecer ter perdido sua legitimidade no espaço público, quase a ponto de significar o mal absoluto, ela é o que a sociedade, unânime, deve proscrever e combater completamente, tanto em seu interior como em seu exterior”.

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1.3. Medo urbano: sobre o novo (ou velho) “espectro” que ronda a cidade.

Para o poder, há mais de um século, qual é a essência da cidade? Cheia de atividades suspeitas, ela fermenta delinqüências; é um centro de agitação. O poder estatal e os grandes interesses econômicos só podem então conceber apenas uma estratégia: desvalorizar, degradar, destruir a sociedade urbana (LEFEBVRE, 2001, p. 78).

Como podemos caracterizar o assim chamado medo urbano em nossas cidades? Que

“repertório” é esse de receio, temor ou medo vinculado à violência nas cidades com

implicações objetivas capazes de alterar profundamente o plano urbanístico e as políticas

sociais voltadas ao controle das mazelas urbanas e seus fenômenos mais aparentes como a

criminalidade? É possível historicizar este fenômeno nos limites da sociedade industrial,

compreendendo suas mudanças e permanências no que se referem aos diversos espaços e

sujeitos da cidade? Expressões como “paisagens do medo”, “ecologia do medo”, “arquitetura

do medo”, “comunidades do medo” e “nova estetização cultural do medo”, entre outros, têm

pululado nas compreensões sobre o espaço urbano vivido, o que nos fazem, por sua vez,

inquirir sobre as “mediações” que foram elaboradas e continuam a explicar, caracterizar e

conceituar essas nossas “cidades do medo”.

Para aqueles que se dedicam às condições sócio-espaciais, criminalidade ou violência

na cidade e à percepção do espaço ou do crime, é recorrente a constatação dos sentimentos de

aversão, temor ou receio ao “outro”, “estranho”, “estrangeiro”47. Conforme sugeria na

Geografia Humanística, colocando as relações entre as pessoas e, portanto, a cultura como

“medianeira” dos diversos fenômenos, Tuan (2005, p. 14) afirma sobre o medo que:

As pessoas são nossa maior fonte de segurança, mas também a causa mais comum de nosso medo. Elas podem ser indiferentes às nossas necessidades, trair nossa confiança ou procurar diligentemente nos fazer mal. São fantasmas, bruxas e assassinos, ladrões, assaltantes, estranhos e agourentos, que assombram nossas paisagens, transformando o campo, as ruas das cidades, o pátio do recreio da escola – planejados para o desenvolvimento das pessoas – em lugares amedrontadores.

Assim, de acordo com as condições históricas e culturais, cada sociedade apresenta

suas “paisagens do medo”, que demonstram, de um lado, os receios e temores e, de outro, os

47 Para Enriquez (2004, p. 57), o outro ou estrangeiro, sempre foi tratado com desconfiança, uma vez que “[...] incomoda. E ele não pode deixar de incomodar, mesmo que não seja essa sua intenção. Pois um estrangeiro é sempre um ‘exotista’ (alguns mais que outros) e um ‘exotista’ [...] é aquele que interroga, com sua própria existência, as normas, os usos e costumes da sociedade que o ‘acolhe’”. Sobre os enigmas da violência no Brasil, Zaluar (1998, p. 249) afirma que os “[o] o caráter ideológico dos discursos fica ainda mais claro quando o adjetivo violento é utilizado sistematicamente para caracterizar o ‘outro’, o que não pertence ao seu estado, cidade, raça, etnia, classe social, bairro, família ou grupo. Em algumas cidades, o crime e a violência são como um artifício ou um idioma para se pensar sobre o ‘outro’”.

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mecanismos de defesa em relação às ameaças externas, sejam ambientes hostis, relações com

grupos inimigos ou disputas internas entre os subgrupos de interesses que a compõe. O outro

e o campo, desconhecidos, sempre compuseram as “paisagens do medo”, mas é preciso alertar

que, neste aspecto, não cabe naturalizações uma vez que Tuan (2005) demonstra a existência

de sociedades que não necessitam do medo em suas mediações com o mundo desconhecido.48

Tratando das cidades ocidentais, Tuan (1980 e 2005) analisou as percepções do medo

advindas da concentração de grandes contingentes populacionais. Desde a Roma Imperial, a

concentração populacional nas cidades caracterizava um elemento significativo de medo nas

cidades. Porém, essa percepção exibia diferentes colorações e até sentimentos contraditórios.

Até a Revolução Industrial esse elemento identificava fatores positivos e negativos no espaço

urbano em que, por meio dele, a “cidade simbolizava ordem, liberdade e glória, mas também

mundanismo, corrupção das virtudes naturais e opressão” (p. 288).

A partir desse momento, séc. XVIII, os aspectos negativos se sobressaíram. Além das

catástrofes provocadas por incêndios, epidemias e outros malefícios decorrentes de

instalações precárias que caracterizavam os medos nas cidades medievais apinhadas, outros

medos se agregaram: os “riots” por pão e trabalho ou projetos revolucionários. Gestadas,

como “paisagens do medo”, a tortura pública e a morte nos suplícios ou forcas – de tamanha

presença nas cidades européias que se tornaram pontos de referência urbanos – foram,

posteriormente substituídas por “artes mais refinadas – diabólicas ou redentoras, dependendo

do ponto de vista de cada um – de exílio ou reclusão” (TUAN, 2005, p.278), técnicas

devidamente descritas por Foucault (1977).49

48 Tuan (2005, p. 71) apresenta sociedades em que o medo não é uma necessidade inerente à vida social. Os exemplos saltam através dos estudos sobre os povos em florestas úmidas: os pigmeus Mbut do Congo; os Tasadai de Mindanau, Filipinas; os Semang do interior da Malásia; e, não apenas de povos que vivem lugares pouco hostis: os boxímanes !Kung do deserto do Calaári. Suas conclusões referem-se a um cenário natural, nem sempre exuberante, mas com variedade de alimentos e, em especial, a traços sociais e culturais igualmente importantes: “uma economia na qual as pessoas não impõem suas vontades ao meio ambiente, mas se arranjam com o que está disponível; um grupo social pequeno, que necessita não apenas de cooperação, mas de uma genuína preocupação com o bem-estar de cada um dos seus membros; enraizamento em determinado lugar” e, finalmente, por se caracterizarem como sociedades igualitárias, sem distinções entre os papéis sociais de homens e mulheres, jovens e velhos. Para não se deter nas sociedades menos complexas, Tuan (2005, p. 37) faz observações sobre a República Popular da China, na qual as crianças não apresentaram o sentimento de medo a espaços como a escola (de acordo com pesquisadores americanos), medo comum no mundo ocidental e no início da China moderna. A mudança nesta relação com a escola deveu-se a eliminação da necessidade de se sobressair na sala-de-aula à custa dos outros: “na recente filosofia educacional as palavras-chave tem sido ‘cooperação’ e ‘sucesso’: as duas idéias são inseparáveis, porque sucesso é a superação de dificuldades com o apoio – moral, se não, material – dos colegas; e o objetivo do sucesso não é glória pessoal, mas a felicidade das pessoas”. 49 Neste aspecto, os suplícios apresentados por Foucault (1977), em Tuan (2005, p. 298) aparecem com um relevo trágico ao se tornarem pontos de referência nas cidades descritas do século XVIII: [citando John Ogilby e seu Itinerariun Angliae] “passe as Forcas e três Moinhos de Vento, entre no subúrbio de York... Além dos subúrbios (Durhan), uma pequena subida, entre as Forcas e Crokehal... Atravesse a rua Hare, e na altura de 13’4

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Segundo Lefebvre (2001, p. 14), neste momento, coloca-se em xeque a cidade

enquanto “obra”. A indústria, enquanto novo modo de produção, surge nas proximidades de

fontes de matéria-prima e, tão logo, acossa a cidade, despe-a da condição de expressão

máxima da “obra” humana, “substituindo a opressão pela exploração”50. Com a burguesia

industrial, a cidade é transformada em “produto” a ser assimilado pelas necessidades e

vicissitudes da produção capitalista. Nos espaços da cidade pululavam problemas de toda

ordem, sociais, de classe, e de saúde pública. Lefebvre (2001, p. 78) afirma que, a partir de

então, passou-se a produzir uma resposta, estratégica, às sublevações que teceram a trama

urbana no século dezenove: “degradar e destruir a sociedade urbana”.

Assim, com a complexização da vida social, crescimento das cidades em razão das

indústrias, advento do automóvel, ampliação dos percursos e localizações dos homens nas

cidades, foram alteradas significativamente as relações entre os sujeitos e a cidade nas suas

diferentes condições de vida. Na descrição de Tuan (2005), as ruas da cidade tinham se

tornado espaços de encontro e conflito entre as classes e grupos urbanos a tal ponto que, no

século dezoito, se exigiu a construção das calçadas para separar os que trafegavam nas

carroças e cavalos e que, por ventura, atropelavam e matavam crianças e demais pedestres51.

Acentuada essa distinção no uso dos espaços, tráfego de carros e de pedestres nas calçadas, as

começa a Floresta de Epping, uma Forca à esquerda... suba uma pequena colina, um cadafalso à direita... saindo de Frampyton, Wilberton e Sherbeck à direita, e depois de passar um cadafalso à esquerda cruzar uma ponte de pedra... de Nothinghan, suba um morro, e passe ao lado uma ponte e de uma Forca”. 50 Lefebvre (2001, p. 13) explicita que, “[a] indústria nascente tende a se implantar fora das cidades. Esta não é, aliás, uma lei absoluta. Esta implantação das empresas industriais, inicialmente esporádicas e dispersas, depende de múltiplas circunstâncias, locais, regionais, nacionais. Por exemplo, as gráficas parecem ter passado de maneira relativamente contínua, no contexto urbano, do estado artesanal para o de empresa. O mesmo já não acontece com a tecelagem, com a extração mineral, com a metalurgia. A indústria nascente se instala perto das fontes de energia (rios, florestas, depois carvão), de meios de transporte (rios e canais, depois estradas de ferro) de matérias primas (minerais), de reservas de mão de obra (o artesanato camponês, os tecelões e os ferreiros fornecem uma mão de obra já qualificada)”. 51 De acordo com Tuan (2005, p. 243), as carruagens apareceram nas cidades européias no século XVI. Umas poucas vielas foram alargadas e endireitadas para facilitar a passagem, “o que teve como efeito benéfico a melhoria da circulação e permitiu a entrada de mais luz e ar. Porem, logo se acrescentaram as ruas seu próprio tipo de caos e perigo. Pela primeira vez, nas ruas, os ricos foram separados dos pobres. Os fregueses das carruagens desfrutavam de privacidade e segurança, enquanto seus veículos colocavam em perigo os pedestres. Para proteger a vida e os membros (braços e pernas) dos pedestres, assim como as fachadas das lojas, foram colocados postes nos lados das ruas para limitar a área que as carruagens podiam usar. Esse foi o começo das calçadas”. Mas os acidentes nem por isso desapareceram, bem como a indignidade dos pedestres serem salpicados por sujeiras fedorentas quando passavam as carruagens. Tuan (2005, p. 244) cita uma descrição dessa confusão e riscos nas ruas numa cidade dos Estados Unidos colonial: “o ir e vir nas ruas percorridas por cavaleiros, cavalheiros em caleches e carruagens, uma variedade de carretas, carroças, carros de carga, carroças grandes e cobertas que eram puxadas por um e até oito cavalos ou bois e grande número de bestas de carga, e ainda inúmeros trabalhadores empurrando carrinhos de mão e um sem-número de carregadores levando pacotes grandes e pequenos. Em toda parte morriam crianças embaixo dos cascos dos cavalos e das rodas; nem os adultos escapavam dos cavaleiros a galope, dos carroceiros imprudentes, ou dos cavalheiros que corriam e de suas bagagens que se espatifavam contra os outros veículos nas ruas”.

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ruas tornaram-se enormes vias de circulação de sujeitos em suas individualidades limitadas às

suas cápsulas metálicas, de tal modo que as calçadas em determinadas vias são desabitadas.

Aqueles “homens livres como os pássaros”, dos quais Marx (1984) falava, disputavam

nas ruas do século XIX trabalho, comida e moradia, eram impelidos à tal disputa pelas

inúmeras leis contra a vadiagem ou o “residuum” e pelos mecanismos de assistência social

como as “workhouses” inglesas52. Ruas pestilentas, tráfegos difíceis, ausência de provimentos

básicos para a sobrevivência desses “pássaros”, doenças, pedintes, fome, desesperos dos

miseráveis, configuraram, nos primórdios do capitalismo, em Londres e Paris, o que Bresciani

(1990) e muitos literatos denominaram por “o espetáculo da pobreza”.53

Revoltados, os desesperados lançaram-se contra as máquinas como o luddismo de

1812, movimento que recebeu o nome de seu líder Ned Ludd; organizaram os “riots” ou

motins por pães; e outros, ainda, reivindicaram associações de trabalhadores que terminariam

por organizar os germes dos partidos proletários, como o cartismo.54

Em “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, Engels (1989) mostrou as

iniciativas da burguesia para “sanear” os efeitos da contradição entre o capital e o trabalho

refletido nos espaços de trabalhadores e capitalistas, “ricos” e “pobres”, entre outros sujeitos.

A construção das “gardens” foi o modelo encontrado para edificar avenidas e parques que

levassem burgueses e nobres de suas mansões arborizadas aos escritórios, bancos e fábricas,

sem perder os olhos em habitações múltiplas e precárias dos operários pauperizados.

Entretanto, os becos que cruzavam as belas ruas das cidades inglesas levavam aos pardieiros

aonde residiam os trabalhadores: estábulos usados como residências, quartos acomodavam

famílias inteiras, enfim, diminutos espaços aproveitados para descansar corpos de homens,

mulheres e crianças em uma lógica de horror.55

52 O residuum inglês, segundo Bresciani (1990, p. 44), seria os: “[...] pobres [que] não se encaixavam na figura de maus elementos, [mas] eram [...] pessoas que por suas fraquezas físicas e sobretudo morais não haviam respondido ao chamamento do trabalho” e as Workhouses ou Casa de trabalho eram instituições de caridade que se utilizavam de métodos nada suaves, pois “[...] deviam ser lugares pouco atraentes para que seus ocupantes procurassem sair de lá o mais rápido possível”, com rotinas rígidas de tal modo que a vida na indústria fosse considerada um privilégio. 53 East End, dos muitos bairros pobres londrinos, foi assim definido por Artur Morrinson Apud Bresciani (1990, p. 26): “[...] um lugar chocante, um diabólico emaranhado de cortiços que abrigam coisas humanas arrepiantes, onde homens e mulheres imundos vivem de dois tostões de aguardente, onde colarinhos e camisas limpas são decências desconhecidas, onde todo cidadão carrega no próprio corpo as marcas da violência e onde jamais alguém penteia os cabelos”. 54 Movimento que surgiu a partir da “Carta ao Povo” em 1832, resposta ao Parlamento inglês que aprovara o “Reform Act”, lei eleitoral que privou os operários do direito ao voto (THOMPSON, 1987). 55 No prefácio de 1892, Engels (1977, p. 214) confirma suas observações de 1845: “[... as] repetidas epidemias de cólera, tifo, varíola e outras enfermidades indicaram ao burguês britânico a necessidade urgente de proceder ao saneamento básico de suas cidades, a fim de que ele e suas famílias não se tornassem também vítimas dessas

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Neste aspecto, Tuan (2005) corrobora as reflexões de Foucault (1977) sobre a

“sociedade disciplinar” e suas técnicas particulares de normatizar a vida social. Seguindo este

autor, podemos apreender como as técnicas e o esquadrinhamento dos corpos garantiram o

controle precioso sobre os citadinos, de acordo com as expectativas da produção industrial. As

“paisagens do medo” urbano, desse modo, contribuíram à segregação da cidade moderna a

partir das “gardens” londrinas e das “boulevares” parisienses que separaram os “bem-

aventurados” da mixórdia urbana relegada aos trabalhadores.

Além disso, as cidades européias se tornaram um cenário de martírio das almas a

ponto de Toulose, França, em razão de inúmeras mortes de trabalhadores nas máquinas do

século XIX, ser conhecida por “cidade devoradora de homens” (SANTOS, 1982, p. 52).

Deixar os campos e se dirigir à cidade significava acessar a morte certa e inevitável.

Dessa maneira, em busca de contornar tais problemas, sob o signo da “medicina social

urbana”, ascendia as tentativas de controle do morbo urbano que assolava “ricos” e “pobres”.

Foucault (2002, p. 94-95) assim compreende como os pobres passaram a se tornar no “perigo

médico” do séc. XIX:

1º) Razão política. Durante a Revolução Francesa e, na Inglaterra, durante as grandes agitações sociais do começo do século XIX, a população pobre tornou-se uma força política capaz de se revoltar ou, pelo menos, de participar de revoltas. 2º) No século XIX, encontrou-se um meio de dispensar, em parte, os serviços prestados pela população com o estabelecimento, por exemplo, de um sistema postal e um sistema de carregadores, o que produziu uma série de revoltas populares contra esses sistemas que retiravam dos pobres o pão e a possibilidade de viver. 3º) A cólera de 1832, que começou em Paris e se propagou por toda a Europa, cristalizou em torno da população proletária ou plebéia uma série de medos políticos e sanitários. A partir dessa época, se decidiu dividir o espaço urbano em espaços pobres e ricos. A coabitação em um mesmo tecido [...] foi considerada um perigo para a cidade [...]. O poder político começou então a atingir o direito de propriedade e da habitação privadas. Foi esse o momento de grande redistribuição, no II Império Francês, do espaço urbano parisiense.

A região de Paris, a partir dos diversos cinturões demarcados pelas antigas muralhas

medievais, se caracterizaria por regiões de “ricos” e “pobres”. A urbanização propalada pelo

Barão de Haussmann nas ruas de Paris quando prefeito de 1851 a 1870, tornou-se

epidemias. [...] realizaram-se obras de canalização ou melhoraram-se as já existentes, amplas avenidas cruzam agora muitos dos piores ‘bairros ruins’, desapareceu a ‘Pequena Irlanda’ [um dos mais miseráveis bairros operários de Manchester, 1840/1850] e agora chegou a vez dos ‘Sevens Dials’ [bairro operário do centro de Londres]. Mas que importância pode ter tudo isso? [...] a burguesia continuou progredindo na arte de esconder a miséria da classe operária [...] medidas policiais tornaram-se tão abundantes quanto as amoras, mas limitam-se a isolar a miséria dos operários: não podem acabar com ela”.

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emblemática no planejamento urbano que, em um só tempo, “modernizava” a cidade e

garantia a inviabilidade de bloqueios das vias públicas por possíveis sublevações populares e

suas barricadas56. De acordo com as palavras de Lefebvre (2001, p. 15),

Depois de 1848, solidamente assentada sobre a cidade (Paris), a burguesia francesa possui aí os meios de ação, bancos do Estado, e não apenas residências. Ora, ela se vê cercada pela classe operária. Os camponeses afluem, instalam-se ao redor das “barreiras”, das portas, na periferia imediata. Antigos operários (nas profissões artesanais) e novos proletários penetram até o próprio âmago da cidade; moram em pardieiros mas também em casas alugadas onde pessoas abastadas ocupam os andares inferiores e operários, os andares superiores. Nessa “desordem”, os operários ameaçam os novos ricos, perigo que se torna evidente nas jornadas de junho de 1848 e que a Comuna confirmará. Elabora-se então uma estratégia de classe que visa ao remanejamento da cidade, sem relação com sua realidade, com sua vida própria. É entre 1848 e Haussmann que a vida de Paris atinge sua maior intensidade: não a “vida parisiense”, mas a vida urbana da capital. Ela entra então para a literatura, para a poesia, com uma potencia e dimensões gigantescas. Mais tarde isso acabará.

E a vida urbana em Paris, que Lefebvre (2001, p. 16) caracteriza como a vida dos

encontros e confrontos das diferenças, se rompe com o Barão de Haussmann ao substituir “as

ruas tortuosas, mas vivas, por longas avenidas; os bairros sórdidos, mas animados, por bairros

aburguesados”. A segregação se coloca em marcha por meio dos projetos pavillionaires e dos

“grandes conjuntos” no que se referia às residências na cidade, incluindo aqueles desprovidos

de condições para tanto.

Segundo Stébé (2003, 29), a preocupação do Estado com a moradia social ascende

lentamente, marcada basicamente pelas “cidades-jardins”, experiência do entre-guerras que

tentaria “résoudre les nombreux problèmes sociaux, d’hygiène publique et d’urbanisme qui se

posent à cette époque dans l’aglomération parisienne” até os projetos dos modernos

“ immeubles coletifs” e “grands ensembles” das ZUP e ZAC (zones à urbaniser en priorité e

zones d’aménagement concerté). Estes projetos, revisados, terminariam no modelo de “villes

urbaines”, “ cités” e ZUS (zones urbaines sensibles) que garantem uma variedade na

“banlieue” parisiense em que “il n’y a pas une banlieue mais des banlieues”.57

56 No prefácio de 1895 de “As lutas de classe em França de 1848 a 1850”, Engels (1977, p 106) afirma que s reformas empreendidas pelo Barão de Haussman, realizadas a partir da segunda metade do século XIX, impossibilitaram os operários de usar a rua como campo de batalha, como afirma: “Finalmente, os bairros construídos a partir de 1848 nas grandes cidades tem ruas longas, retas e largas e parecem ser feitos de encomenda para o uso dos novos canhões e fuzis. Seria insensato o revolucionário que escolhesse os novos bairros operários do norte e do leste de Berlim, para um combate de barricadas”. 57 Esses projetos ZUP, ZAC e ZUS compõem os modelos que povoaram a cidade de Paris no século XX, significando novas compreensões sobre a organização sócio-espacial da Île de France e incorporando as ondas migratórias que viriam a caracterizar a composição étnica desses “quartiers sensibles” (STÉBÉ, 2003, p. 37).

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Para tratar dessas regiões, Wacquant (2001, p. 187) fala de “marginalidade avançada”

nos espaços pauperizados da cidade pós-fordista como “guetos”, sob distinções de “cor e de

classe”, correspondente à: fragmentação e precariedade no mundo assalariado; deterioração

dos bairros mesmo no contexto de crescimento macroeconômico; fixação e estigmatização,

sentimento de vergonha e de culpa dos moradores (ocultando o endereço ou justificando-se

por morar em local abominável); alienação territorial ou dissolução do “lugar”, em que não se

identificam mais com o lugar58; impossibilidade de sobrevivência a partir do próprio bairro; e

fragmentação social e simbólica cada vez mais acentuada. Para Wacquant (2004, p. 160),

“gueto” significa “confinamento espacial com fechamento social” ou, ainda, “confinamento e

imobilização”:

[...] todos os guetos são segregados, mas nem todas as áreas segregadas são guetos. Os bairros seletos do Oeste de Paris, os subúrbios exclusivos da classe alta de Boston ou de Berlim, as “comunidades cercadas” que cresceram muito em cidades globais como São Paulo, Toronto e Miami, são todos iguais em termos de riqueza, renda, ocupação e em muitos casos etnia, mas nem por isso são guetos. A segregação neles é inteiramente voluntária e eletiva e por isso não são inclusivos ou perpétuos. [...] Essas ilhas de privilégio servem para aumentar, e não deprimir, as oportunidades de seus residentes, assim como para proteger seus modos de vida. Elas irradiam uma aura positiva de superioridade e não uma sensação de infâmia ou de pavor.59

Como expôs Wacquant (2004), é importante ressaltar que essa caracterização

predominante de segregação espacial que se coloca pelas classes médias não se configuram

em “guetos” propriamente.60

58 Para Wacquant (2001), o “gueto” e a “banlieue” parisienses se modificaram de ‘“lugares’ comunais plenos de emoções compartilhadas, de significados conjuntos, de práticas e instituições de reciprocidade transformaram-se em ‘espaços’ indiferentes de mera sobrevivência e luta” (p. 173). 59 Um processo de segregação que articula segregação espacial com imobilidade dos sujeitos, como podemos observar, conforme Bauman (2003) “[essa] característica do gueto torna a política de exclusão incorporada na segregação espacial e na imobilização de uma escolha duplamente segura e a prova de riscos numa sociedade que não pode mais manter todos os que podem jogar ocupados e felizes, e acima de tudo obedientes” (p. 111). 60 As ressalvas sobre o termo “gueto” são colocadas por Guerra (2003), inclusive, concordando com Wacquant (2001, p. 77): “[contudo], pensamos que o uso dessa palavra não pode ser generalizado nem amplificado a toda a realidade urbana, sob pena de reproduzirmos um discurso mediático e comum acerca desses espaços. Tal como alude Wacquant ‘a temática do ghetto, alimentada por clichês importados do outro lado do Atlântico (Chicago, Bronx, Harlem...), impôs-se como um dos lugares comuns do debate público sobre a cidade’”. Ao abordar o “gueto étnico” de um lado do Atlântico, os Estados Unidos, Tuan (2005, p. 277) alerta que “[um] gueto étnico pode dar impressão enganosa de unidade. As casas, ruas, pessoas e atividades têm uma marca própria. Desses sinais um forasteiro pode inferir uma comunidade de interesses, uma grande ligação que não existe. As características de um gueto nos Estados Unidos são a fragmentação social e uma difusa sensação de precaução que pode ser transformada em hostilidade aberta entre os diferentes grupos fragmentados”. Por sua vez, ao abordar a França, Stébé (2003, p. 75) faz a mesma menção de Guerra (2003) ao caráter fantástico ao qual os políticos de direita e esquerda, mídias e pesquisadores das ciências sociais, recorrem para falar dos “quartiers sensibles” como “guetos”: “[...] à faire usage d’images chocs. Le terme ‘guetto’ est alors apparu pour designer les quartiers d’habitat social dégradé des périphéries urbaines et, par amalgame, l’espace désormais discrédité de la ‘banlieue’. À chaque problème de délinquence signalé dans telle ou telle cité, les quartiers difficilles de New York, de Los Angeles ou de Chicago sont evoqués, et avec eux le spectre du guetto noir américain”.

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Nesta mesma linha de crítica, Mike Davis (2001) falando das cidades norte-

americanas, após abordar a caracterização de Los Angeles em suas “free-ways” que lhe valem

o título de “a cidade do automóvel”, descreve seu subúrbio segregado étnico-socialmente

como a alternativa encontrada pelas classes médias. Tal “alternativa” se cunhou face ao medo

dos contingentes populacionais pauperizados que expuseram seus infortúnios na rebelião em

Watts de 1965, transpondo os limites dos bairros negros e suas péssimas condições de vida e

descontentamento com a nação americana (DAVIS, 2001, p. 246; TUAN, 2005, p. 278).

Assim, há um processo corrente de suburbanização, por meio de uma série de

imagens que compõem a “ecologia do medo” de Davis (2001), tal como as paisagens do

medo, a partir de riscos naturais como terremotos ou queimadas ou de uma “invasão” negra

ou hispânica, sustentados pelos “riots” de 1992 – marcados por forte violência policial contra

“rebeldes” negros, latinos e asiáticos.

Essa “ecologia do medo” de Davis (2001) seria uma representação construída sobre o

espaço urbano da Califórnia meridional, por meio de um espetáculo de catástrofes naturais e

sociais, onde Los Angeles poderia ser alçada ao título de “Blade Runner” 61. Neste aspecto,

com vistas a aprofundar tal processo de segregação em razão do investimento em subúrbios

elitizados, aumentam a distância social e os níveis de criminalidade e, em um círculo vicioso,

as estratégias de controle como os “vigilantes da vizinhança” de tal maneira que Davis (2001)

lança o desafio “preciso explicar por que o medo consome o coração de Los Angeles?”.62

Nas cidades brasileiras, as cidades que se produziram a partir da experiência da

urbanização acelerada no século XX, como no restante da América Latina, poderiam ter

ofertado condições melhores aos sujeitos, graças aos avanços da medicina e das técnicas

industriais. Porém, apesar de se verificar um crescimento demográfico assombroso (logo, não

seriam “cidades da morte” como as européias de outrora), as políticas urbanas sempre

61 Segundo Davis (2001, p. 341), no Plano Estratégico de Los Angeles de 1988, intitulado “Los Angeles 2000: Uma cidade para o futuro”, que ousava orientar a cidade à categoria de “encruzilhada do Mundo”, trazia em seu epílogo o que poderia acontecer se a cidade deixasse de criar um “novo establischment dominante” para administrar sua extraordinária diversidade étnica: “há é claro, o cenário de Blade Runner: a fusão das culturas individuais num poliglotismo popular de maus presságios, com hostilidades não resolvidas”. Imaginemos, pois, o que se vislumbra em uma cidade quando se lança como seu “plano diretor estratégico”, ao equivalente “cidade global”, “big apple” ou “capital nacional do alimento”, o codinome de “Blade Runner” (sic)? 62 Davis (2001, p. 345-346) sugere como resposta à questão: “Somente o pavor que a classe média tem dos impostos progressivos excede a obsessão com a segurança pessoal e o isolamento social. Diante da incontrolável pobreza urbana e da população de sem-teto, um consenso bipartidário insiste em que todos os orçamentos devem ser equilibrados e os direitos reduzidos. Sem esperança de novos investimentos governamentais para melhorar as condições sociais fundamentais, somos forçados, em vez disso, a fazer crescentes investimentos públicos e privados em segurança física. A retórica persiste, mas a essência está extinta. ‘reconstruir L.A.’ significa simplesmente acolchoar o bunker” [Bunker Hill, novo distrito financeiro].

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estiveram vinculadas ao controle do morbo urbano, nos processos de modernização da cidade.

E é, desse modo, que as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo emergem na bibliografia sobre

o medo com as diversas revoltas que coloriram o final do século XIX.

No Rio de Janeiro, a modernização, além das “boulevares”, ruas e avenidas abertas

para compor a capital nacional à la mode française, compreendia “botar-abaixo” as moradias

precárias do sítio urbano original – e, portanto, expropriar seus moradores – e terminou por

ser coroada com a revolta da população em 1904 quando a política sanitarista, instaurada para

conter uma crise epidemiológica, constrangia os sujeitos e seus corpos aos olhos alheios de

agentes sanitários, conhecida como “revolta da vacina obrigatória” (CHALHOUB, 1996).63

Em São Paulo, é sintomático o esforço dos gestores do espaço urbano em conter os

“perigosos” – nesse caso, conflitos que paralisariam a cidade como a greve operária de 1917,

lembrada por Arantes (2006a)64 –, compromisso verificado nas palavras de Vitor da Silva

Freire, diretor de obras da cidade por 27 anos (entre 1899 e 1926):

[...] o que elles devem ter em vista pois, esses códigos sanitários e municipaes é um duplo objetivo: primeiro – positivo, de protecção e amparo – proporcionar à parte da população que aspira viver n’um ambiente sadio e decente, e educar a sua prole em condições de dignidade, disposições que facilitem realizar essa tão legitima ambição; segundo – negativo, de repressão e polícia – impedir que a parte restante, a qual pouco se importa com tudo isso, ou é incapaz de tentar o esforço necessário para o alcançar, possa crear situações que venham a constituir ameaça para os visinhos, para a communidade e para a civilização (ROLNIK, 1997, p. 43).

Segundo Caldeira (2000, p. 216), essa legislação urbana inicial teve por efeito

estabelecer a “disjunção” entre um território central para a elite (o perímetro urbano), “regido

63 Batista (2003, p. 06), ao analisar as revoltas daquele período, afirma que reportar a elas é necessário para uma análise do que se enfrenta no Rio de Janeiro, especialmente no que se refere aos morros cariocas e as políticas que se engendram: “[compreender] as permanências desta memória do medo na cidade do Rio de Janeiro hoje, pressupõe dar-se conta de alguns processos contemporâneos ligados ao capitalismo tardio: primeiro, uma estetização radical da cultura, colando o simbólico no econômico, produzindo uma realidade cotidiana, que entra pelos olhos, que naturaliza uma rígida e hierarquizante ordem social. Segundo, a luta pela ordem, contra o caos, que passa hoje pela criminalização e desqualificação da pobreza, dos não-consumidores, dos novos impuros. Terceiro, esses processos, no Brasil, se reforçam com a herança escravocrata na implantação de um sistema penal que tem tradição genocida, seletiva e hierarquizadora. Por fim, para perpetuar um sistema penal de extermínio, é necessário um discurso moral sobre o crime. 64 Arantes (2006a, p. 01) assim descreve: ‘“São Paulo é uma cidade morta: sua população está alarmada, os rostos denotam apreensão e pânico, porque tudo está fechado, sem o menor movimento. Pelas ruas, afora alguns transeuntes apressados, só circulavam veículos militares (...) com tropas armadas de fuzis e metralhadoras. Há ordem de atirar sobre quem fique parado na rua’. Esta cidade esvaziada pelo medo [... é] uma cidade ainda provinciana, mesmo na condição de principal aglomeração industrial do país, para o qual o sistema de fábricas da primeira revolução industrial era uma engrenagem recente a se juntar aos tradicionais mecanismos de esbulho numa economia de matriz colonial. E, no entanto, uma cidade alarmada e acuada por uma outra sublevação, por assim dizer de corte europeu clássico, nada mais nada menos do que uma greve geral operária, que no mês de julho de 1917 paralisou São Paulo durante alguns dias”.

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por leis especiais que eram sempre cumpridas” de um lado e, por outro, manter “regiões

suburbanas e rurais habitadas pelos pobres e relativamente não legisladas”.

Essa “disjunção” fomentou o fim do que Caldeira (2000) considera o primeiro padrão

de segregação na cidade: centro apinhado de todas as classes sociais, conforme os primórdios

da ocupação e urbanização, equivalente às formulações de Tuan (2005) e Lefebvre (2001).

A partir do receio daquele centro apinhado e repleto de problemas, São Paulo entrava

para o segundo padrão: centro-periferia, em que, com o advento da energia elétrica e dos

meios de transporte coletivos, tornou-se possível colocar em curso o processo de periferização

dos trabalhadores subsidiado pelas garantias de moradias populares distantes do trabalho e do

centro das cidades, que Kowarick (1979) viria a chamar de “espoliação urbana”.65

Por fim, após o regime militar, São Paulo vivenciaria a “fuga” das classes média e alta

para os condomínios fechados nos subúrbios, sob o discurso de maior segurança e maior

qualidade de vida, nos enclaves fortificados que Caldeira (2000, p. 09) discute:66

A violência e o medo combinam-se a processos de mudança social nas cidades contemporâneas, gerando novas formas de segregação espacial e discriminação social. [...] Os discursos sobre o medo que simultaneamente legitimam essa retirada e ajudam a reproduzir o medo encontram diferentes referências. Com freqüência, dizem respeito ao crime e especialmente ao crime violento. Mas elas também incorporam preocupações raciais e étnicas, preconceitos de classe e referências negativas aos pobres e marginalizados. [...] No entanto, as formas de exclusão e encerramento sob as quais as atuais transformações espaciais ocorrem são tão generalizadas que se pode tratá-las como parte de uma fórmula que elites em todo o mundo vêm adotando para reconfigurar a segregação espacial de suas cidades.

São novos espaços públicos e bairros bem vigiados e com preciso controle de entrada

e saída por parte de seus exércitos particulares de vigilância, além dos instrumentos

eletrônicos que redimensionam a utilização de diversos estabelecimentos públicos e privados,

distante dos bolsões de pobreza67. Enquanto estratégia urbana – que pouco resolve, mas oferta

65 Kowarick (1979, p. 39), assim, conceituou o processo de espoliação urbana: “[...] espoliação urbana: é o somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência e que agudizam a dilapidação que se realiza no âmbito das relações de trabalho”. 66 De acordo com Caldeira (2000, p. 258), os enclaves fortificados: “[...] são propriedade privada para uso coletivo e enfatizam o valor do que é privado e restrito ao mesmo tempo que desvalorizam o que é público e aberto na cidade. São fisicamente demarcados e isolados por muros, grades, espaços vazios e detalhes arquitetônicos. São voltados para o interior e não em direção à rua, cuja vida pública rejeitam explicitamente. São controlados por guardas armados e sistemas de segurança, que impõem regras de inclusão e exclusão. 67 Em verdade, nem tão distantes assim, afinal, as classes médias e altas não conseguem dispensar seus serviçais, particularmente, pagando bem pouco por eles. Carlos (1986) estudou o desenvolvimento industrial da cidade de Cotia, no entorno da cidade de São Paulo, e identificou as investidas do capital imobiliário na formação da Granja Vianna, região de bairros destinada a chácaras e condomínios para a classe média e alta, pioneiras na fuga da cidade de São Paulo para o “verde”, longe de trânsito, poluição e pobreza. Porém, em meio a seus

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a falsa sensação de segurança – é ilustrativa a fala de um morador de um dos residenciais

“fortificados” de Alphaville à Caldeira (2000, p. 278), quando inquirido sobre a violência: “O

que mais nos atinge é a segurança interna, são nossos filhos. A questão da segurança externa

já foi resolvida há muito tempo”. Neste caso, parecem sintomas da nova forma de ocupação

urbana, onde o perigo não é mais o outro, mas dos mesmos, intramuros, daqueles

considerados como iguais.68

Neste aspecto, as cidades se redimensionam, se fragmentam, as tensões se ampliam e

as manifestações de descontentamento se revelam de todos os modos. A fuga da classe média

para os condomínios fechados revela a negação da cidade em troca do “subúrbio idílico”,

tendo como maior exemplo Los Angeles de Davis (2001), mas expressivo na região

metropolitana de São Paulo como Alphaville e em Marília com condomínios denominados por

“Vale do Canaã”69. Contudo, essa “fuga” ou “escapismo” corresponde a ampliação ou

diversificação da periferia caracterizada pelos esses empreendimentos fechados receosos de

uma cidade cada vez mais violenta conforma o que Bauman (1997, p. 55) alerta,

Os medos contemporâneos, os “medos urbanos” típicos, ao contrário daqueles que outrora levaram a construção das cidades, concentram-se no “inimigo interior”. Esse tipo de medo provoca menos a preocupação com a integridade e a fortaleza da cidade como um todo – como propriedade coletiva [...] – do que com o isolamento e a fortificação do próprio lar dentro da cidade. Os muros construídos outrora em volta da cidade cruzam agora, a própria cidade em inúmeras direções. Bairros vigiados, espaços públicos com proteção cerrada e admissão controlada, guardas bem armados no portão dos condomínios e portas operadas eletronicamente – tudo isso para afastar concidadãos indesejáveis, não exércitos estrangeiros, salteadores de estrada, saqueadores ou outros perigos [...].70

loteamentos, foram distribuídos lotes populares, tanto para aproveitar a valorização dos terrenos “ruins” quanto para garantir uma população disposta a oferecer sua força-de-trabalho em amplos serviços por preços módicos. 68 Jacobs (2001, p. 30), em certa passagem, nos apresenta a percepção de um amigo, morador desses bairros residenciais exclusivos: “[...] moro num residencial maravilhoso, tranqüilo’”, me diz um amigo que está procurando outro local para morar. ‘O único barulho desagradável durante à noite, de vez em quando, são os gritos de alguém sendo assaltado’”. 69 Delicato (2004) pesquisou as investidas do capital imobiliário em Marília na promoção de condomínios horizontais que, com o apoio e investimento do poder público, acentuam ainda mais a segregação sócio-espacial. As justificativas para comprar ou vender os lotes em tais enclaves se referiam à visão negativa dos bairros pobres, mesmo desconhecendo pessoalmente tais bairros. Morar num condomínio horizontal devia-se, inicialmente, pela segurança, mas, o que se percebe nas imagens reveladas nas entrevistas com os moradores é a necessidade do status que alimenta o mercado dos sonhos: casa própria em uma comunidade forjada, idílica, em que todos possam se conhecer e se vigiar: similar ao emblemático sistema panóptico. Sobre o “subúrbio idílico” que colore tais sonhos, Tuan (1980, p. 171) aponta que, enquanto recusa da cidade, em verdade, se faz de espaços urbanizados, sob toda a plasticidade que se percebe “no gramado na frente e o jardim nos fundos” e, ainda, nos “traços indesejáveis” da “cidade” que aos poucos vão compondo a realidade suburbana. 70 Elias (1993, p. 196) se aproxima dessa leitura de Bauman (1997), monstrando a alteração do perigo na cidade: “Pensemos nas estradas interioranas de uma sociedade simples de guerreiros, [...] há pouco tráfego; o principal perigo é um ataque de soldados e salteadores. Quando as pessoas olham em volta, [...] fazem isso principalmente porque precisam estar sempre preparadas para um ataque armado [...]. A vida nas estradas principais dessa

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Por meio da noção de cidadão privado, Kowarick (2000, p. 114) abordou esses

aspectos que parecem predominar nas sociabilidades em nossas cidades, compreendendo que

esta noção privativa é paradoxal à cidadania, enquanto “destinos e projetos historicamente

compartilhados e [...] conquista de direitos obtidos através de lutas coletivas”. Para o autor, a

incompatibilidade calcada na diferenciação entre público e privado na contraposição da

segurança do espaço privado – a casa – à violência do espaço público – a rua – “é das

principais características do dia-a-dia de nossas cidades: nelas, o espaço público se traduz na

banalidade da violência cotidiana [...] O espaço público é também sinônimo de desrespeito,

sentimento de derrota e medo”.71

São remodelações que acentuam um processo de fragmentação da vida cotidiana e de

fuga dos espaços públicos que, segundo Souza (2000, p. 217), põe em risco a própria

concepção de cidade ao advertir que:

Pode-se arriscar mesmo a tese de que o que está em jogo, na esteira da fragmentação do tecido sociopolítico-espacial é a própria cidade em seu sentido usual – ou seja, como uma unidade na diversidade, em que as contradições de classe, as tensões de fundo étnico e a segregação residencial daí decorrente não eliminam a percepção da cidade como uma identidade geográfica coerente. A fragmentação, como o nome sugere, relativiza ainda mais e decisivamente uma unidade desde sempre relativizável à luz da diversidade (grifo nosso).72

Igualmente preocupada com o medo do crime nos espaços urbanos, Felix (2003) alerta

que essas estratégias individualistas, limitadas ao espaço residencial, podem inibir ações

cooperativas que partam de compreensões coletivas e favorecerem as apropriações político-

eleitoreiras e os interesses imobiliários. Para Felix (2003, p. 129),

sociedade exige uma prontidão constante para a luta, e dá livre rédea às emoções, em defesa da vida ou das posses contra o ataque físico. Já o tráfego nas ruas principais de uma grande cidade na sociedade complexa de nosso tempo exige uma remodelação inteiramente diferente do mecanismo psicológico. Neste caso, é mínimo o perigo de ataque físico”. Além disso, Elias (1993, p. 197) arremata: o maior perigo das pessoas é a perda do autocontrole, pois “[uma] regulação constante e altamente diferenciada do próprio comportamento é necessária para o indivíduo seguir seu caminho pelo tráfego. Só a tensão desse autocontrole constante torna-se grande demais para ele, isso é suficiente para colocar os demais em perigo mortal”. 71 E arremata Kowarick (2000, p. 114): “medo de ficar doente, desempregado, acidentar-se ou ser atropelado, humilhado, extorquido, espancado, preso ou torturado”. 72 Em sentido análogo à Souza (2000), Guerra (2003, p. 76) parte da concepção de “obra” de Lefebvre (2001) e sugere: “A cidade como lugar de realização humana, e, acima de tudo, como centralidade simbólica, parece uma fórmula do passado. É neste sentido que muitas das políticas urbanas, [...], estão mais preocupadas com a qualificação plurifacetada do espaço urbano, ou mais concretamente, com o ‘fazer cidade por toda a cidade’. Indo mais longe, [...], muitos questionam mesmo a própria cidade e os seus limites e, no extremo, a própria pertinência do termo. A questão é a de estarmos perante uma cidade ou várias cidades, ou perante nenhuma cidade. Questão relevante, neste eixo, será o próprio reequacionamento das funções urbanas tradicionais, pois há partes da cidade que têm sido votadas a uma monofuncionalidade forçada através de operações de zoneamentos funcionalistas e minimalistas, o que leva a questionar o seu próprio papel enquanto partes de um todo urbano que se quer plurifuncional numa pluriformidade de manifestações de urbanidade”.

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[...] a utilização de animais em residências, o design de certas construções (grades de proteção, muros altos, vitrôs pequenos e altos, etc), a criação de guardas particulares, a manutenção de luzes acesas no interior das casas, o surgimento de bairros fechados etc., são positivamente relacionados com o medo do crime. A exploração deste medo e a ansiedade da população é visível em diversos setores e explorado das mais diversas formas, [...] desde o marketing político (eleitoreiro) até o financeiro (imobiliário).

Essas técnicas garantem hegemonia em toda a sociedade, exigindo ações repressivas

do Estado por meio de políticas de “tolerância zero” e acentuando a segregação sócio-espacial

com os condomínios fechados, mesmo que o problema da segurança não apresente soluções

por essas vias, arriscando agravá-lo ainda mais.73

Em suma, de modo geral, com o processo de modernização a là industrialização e

crescimento acelerado, as cidades, européias e americanas, tiveram seus espaços alçados à

“obra” no sentido de Lefebvre (2001), sobretudo pela possibilidade histórica de demonstrar a

supremacia dos homens na organização do espaço e seus diversos símbolos, representados por

praças, museus, edifícios da administração pública, teatros etc. suntuosos ou singulares. Todas

as cidades, mesmo aquelas que surgem mais recentemente, por meio de seu espaço e desses

elementos, almejam representar o que há de mais inovador da criação humana (um bom

exemplo é Brasília e outras cidades planejadas).

Porém, após a conjugação das conflitualidades próprias das contradições da sociedade

industrial sobre a cidade, revelando os antagonismos na apropriação destes mesmos espaços, a

cidade deixa de ser a expressão da “diversidade” e transmuta-se no “caos maldito” a ser

negado. Os centros históricos passaram a ser abandonados pelas residências burguesas ou

“saneado”, distanciando “jardins” “elísios” e “higiênicos” de baixadas e morros, repletos de

cortiços e pardieiros, ainda mais quando se torna possível alocar os trabalhadores distantes do

centro da cidade previamente (novamente Brasília ilustra bem com seu “plano piloto” e

“cidades satélites”). Na formação de novos centros, “mais modernos”, a cidade e seu centro

(histórico e pretérito) foram relegados aos pobres, como um lugar “profano”, “no go areas”.

73 Preocupação, essa, presente, particularmente, na crítica de Wacquant (2001, p. 47) à moda em voga de se buscar compreender as atividades delitivas a partir das análises comportamentais, fundadas nas experiências norte-americanas que deságuam na política de “tolerância zero” promovida pelo então prefeito de Nova York, Rudolphi Giuliani. As propostas de Giuliani concentraram-se em garantir uma pretensa “qualidade de vida” ao detectar, apreender e punir qualquer delito banal, o que impunha às classes subalternas, imigrantes e negros uma opressão ainda mais dirigida. Articulada a isso, veicula-se a proposta de redução do papel assistencial do estado, exigindo o controle preciso de seus beneficiados, com o lema “a melhor resposta à pobreza é dirigir a vida dos pobres”. Com enormes financiamentos, essas idéias atravessaram o atlântico e foram acatadas por entusiasmados políticos ávidos pela novidade norte-americana de combate ao crime atrelada à redução do Estado-social, ignorando, evidente e propositadamente, a aparência fantástica dos resultados ora apresentados e as negativas inclusive de setores policiais nova iorquinos em prosseguir a nova doxa punitiva.

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Mas essa concepção negativa da cidade enquanto “mal” a ser evitado por meio da vida

suburbana, parece ser lentamente redefinida no processo de revitalização urbana ou

recuperação de elementos da antiga “obra”. Essa revitalização urbana se pautou na

recuperação dos patrimônios históricos da “cidade luz”, na ocasião dos preparativos da

comemoração de dois séculos da Revolução Francesa. Os promotores da revitalização,

batizada de “gentrification”, encontraram nos patrimônios históricos e culturais de Paris a

razão de uma nova estratégia urbana que se sagraria no conceito de “marketing urbano”. Nos

Planos Estratégicos Urbanos, cunhados a partir da bem sucedida “gentrification” em

Barcelona, o mote é o de que a “mercadotécnica da cidade, vender a cidade, converteu-se [...]

em uma das funções básicas dos governos locais”.74

Paris e Barcelona inauguraram o “city marketing” e recuperaram seus museus e

igrejas, além de colocar em curso tantas e tantas outras obras para embelezar a cidade e atrair

investimentos, mediante, entre outros quesitos a “[..] venda de imagem de cidade segura e/ou

atrativa”75. Parece ter havido nesta experiência o reencontro de todos os sujeitos no entorno

de uma só conquista: revalorizar a cidade degradada pela “crise urbana” dos anos anteriores

por meio de uma “pacificação planejada”.76

O “patriotismo cívico” da experiência em Barcelona encontrou correspondência em

Nova York, Berlin, Lisboa, Bilbao, entre outras, tendo como sucesso sua estratégia: para

Arantes (2000), uma “estratégia fatal”. Porém, a renovação urbana que anima tais

74 Conforme Borja & Forn (1993, p. 33 Apud VAINER, 2000, p. 78), componentes do “grupo dos catalães” ou Tecnologias Urbanas Barcelona S.A. (TUBSA), grupo de urbanistas que realizaram a mesma experiência de recuperação de Paris, por meio da “cultura”, na cidade de Barcelona, inaugurando a cidade como sede de grandes espetáculos mundiais, na ocasião das Olimpíadas de 1992, que, diante do resultado positivo de tal estratégia, passaram a fazer consultorias às demais cidades que anseiam trilhar os passos de Barcelona. 75 Como proclama Borja & Castells (1997, p. 192 Apud VAINER, 2000, p.81). Em nota de rodapé, Vainer (2000, Nota 7, p. 81) avisa que “[nunca] é demais lembrar que a oferta de uma imagem de cidade segura, não necessariamente depende, de fato, segura para aqueles que nela habitam; sempre é possível criar cordões de isolamento e áreas de segurança para os visitantes. Em citação anterior à menção a hotéis de luxo com segurança adequada é uma evidente sugestão de que se deve oferecer aos visitantes (de luxo) uma taxa de segurança superior à taxa de segurança média oferecida aos habitantes da cidade e aos visitantes (sem luxo)”. 76 É importante ter-se em conta que, dos consultores catalães, consta Castells (1996) que, após tratar da questão urbana compreendendo suas lutas populares na década de 1970, inicia os anos 1990 com uma nova questão urbana: responder às crises urbanas próprias do capitalismo, segregação estratégica do espaço, com a união estratégica em um “patriotismo cívico”, denominado por Dreifuss & Marchand (1995, p. 100 Apud VAINER, 2000, p. 97) de um “bonapartismo urbano”: “Monpellier, cuja população saiu principalmente das camadas médias, encontrou em seu prefeito um porta voz e lhe confiou o futuro da cidade [...] A escolha do prefeito se fez assim de fora de toda consideração partidária do candidato. Ela se apóia sobre a capacidade de ‘homem providencial’ para representar o futuro da cidade, o melhor possível seus interesses, em face das apostas locais e nacionais”. Tal figura “heróica” encontra paralelo no conceito de “cezarismo”, de Gramsci (19[--], p. 63-4): “o cezarismo, [...] exprime sempre a solução “arbitral”, confiada a uma grande personalidade, de uma situação histórico-política caracterizada por um equilíbrio de forças de perspectiva catastrófica, não tem sempre o mesmo significado histórico. Pode haver um cezarismo progressista e um cezarismo reacionário [...] Trata-se de ver se na dialética “revolução-restauração” é o elemento revolução ou o elemento restauração que prevalece”.

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gentrificações é a “revanche do capital [...] à deterioração provocada pela primeira onda de

desregulamentações e cortes nos programas sociais” segundo Neil Smith (1996 apud

ARANTES, 2000, p. 37). Assim, a “cidade revanchista” é a:

[...] expressão de uma escalada mais extensa e profunda na guerra social contemporânea, cristalizada, entre outras patologias da atual hegemonia global, numa espécie de novo senso comum penal – criminalização da pobreza e normalização do trabalho precário –, cuja manifestação urbana pode ser identificada numa sorte de princípio da inviolabilidade do espaço público, por isso mesmo submetido à uma vigilância privada. Uma “nova doxa punitiva” alimenta a progressiva substituição do Estado Social pelo Estado Penal [...], tanto quanto à estetização cultural do medo, induzida pela atual fase de gentrificação.

Ora, algo curioso se revela aos asseclas de tais “gentrificações”. Após forjar a

recuperação da cidade enquanto “obra”, negando e recriando o medo na cidade ao ampliar

seus “enclousures”, enclaves, “guetos”, favelas etc., Paris sofre uma explosão de violência no

outono de 2005. Nesse sentido, a queima de mais de 28.000 carros em razão da morte de Zyed

Benna e Bouna Traoré (jovens de origem árabe e africana) que explodiram em Clichy-sous-

Bois ou “zone urbaine sensible – ZUS 93” e se espalharam por todas as “banlieues” do

hexágono, colocam em xeque essa “gentrification” como modo de revitalização urbana e

segregação ampliada contra o medo na cidade.

Segundo Arantes (2006b), essas “comunidades do medo” (752 ZUS catalogadas) têm

protagonizado eventos dessa natureza há alguns anos77. Stébé (2003, p. 59), antes dos

“émeutes” de novembro de 2005, afirmava que essa historicidade de queimas de carros nos

“quartiers sensibles” franceses coroa um processo de exclusão e desorganização social

“alimentée par la pauvreté et la dégradation [...], mais surtout par des rapports sociaux faits

de méfiance, d’hostilité et de tensions”.78

77 Segundo dados de Arantes (2006b, p. 08), “[em] 2003, foram incendiados nos subúrbios franceses 21.500 carros, 60 em média por noite; antes das revoltas do último outono, as cifras anunciavam 28.000, média diária de 90. Com a explosão dos motins, o pico foi atingido na noite do domingo 7 de novembro para segunda: 1408 veículos. Era a décima-primeira noite de tumulto. A partir daí a curva começou a baixar, chegando enfim a 271 na décima-oitava noite. Quem fornece as cifras e raciocina nesses termos de altos e baixos de uma curva malsã de temperatura é um observador francês menos cínico do que sugere sua conclusão publicada quando os números da noite anterior já permitiam respirar: ‘estamos enfim nos aproximando aos poucos da média estatística de 90 veículos sacrificados todas as noites às chamas nos quatro cantos da França’”. 78 Esses apontamentos foram confirmados pelo Centre d’Analyse Stratégique (2007, p. 10) em pesquisas em Seine-Saint-Dennis e Aulnay-sous-Bois, dois lugares emblemáticos para as rebeliões de novembro de 2005. Tendo por objetivo compreender: “pourquoi les émeutes ont-elles émergé? Comment se sont-elles développées [...] et pourquoi se sont-elles arrêtées?” foram entrevistados jovens, adultos, profissionais, políticos “sur leurs perceptions des émeutes”. As percepções dos entrevistados demonstraram a desconfiança dos jovens nas instituições públicas, particularmente na polícia que, segundo os relatos de pais e vizinhos, constrangem esses jovens atribuindo-lhes individualmente os problemas sociais que se revelam sob a marca da violência ou da ameaça. Conclui o relatório: “[comprendre] les émeutes de novembre 2005 nécessite de prendre en compte, au-

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Se Wierviorka (1997) considera que estamos em um “novo paradigma da violência”

no qual preponderam as preocupações não mais no que o fenômeno apresenta de mais

concreto e “objetivo, mas as percepções que sobre ele circulam, nas representações que o

descrevem”, faz-se necessário verificar as mudanças dos medos que se manifestam nas

cidades. Para Adorno e Lamin (2006, P. 169) “o medo, que antes era associado aos

comunistas, com o crescimento do crime urbano, se estendeu para todas as pessoas; qualquer

um pode ser o inimigo”.

Portanto, é necessário pensar que, tal como vimos no segundo tópico, o medo tem sido

utilizado ao longo da história para manter um controle precioso sobre a sociedade, até por

meio criminalização dos “pobres” e demais estigmatizados sociais em razão da sorte de suas

condições sociais e históricas, imigrantes, migrantes e, ainda, movimentos sociais –

especialmente aqueles que negam a cidade em sua segregação espacial cada vez mais

ampliada para outra espacialidade. No Brasil, como vimos, essa criminalização dos “pobres”

sob os diversos estereótipos correspondem a uma estratégia social que não alcança o

“repertório da modernidade”, mas se efetiva histórico-espacialmente da produção desigual do

espaço e na política-penal ostensiva do Estado.

delà des logiques d’acteurs, les dimensions structurelles qui les contraignent et les poussent à agir. Autrement dit, ces logiques sont inséparables d’une triple crise sociale, politique et institutionnelle. [...] Il est aujourd’hui essentiel de reconnaître la profondeur de cette triple crise, sociale et institutionnelle, sans chercher à régler ce que l’on appelle, depuis près de vingt-cinq ans, le “problème des banlieues” par un traitement univoque – tantôt social, tantôt sécuritaire –, calqué sur des considérations politiciennes. Faute de prendre en compte ces divers aspects, on se borne à stigmatiser les classes populaires habitant ces quartiers et à faire de la violence une donnée, là où elle est produite et reproduite socialement et politiquement” (CENTRE..., 2006, p. 130)

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Considerações do Capítulo 1

De qual maneira podemos construir um arcabouço teórico sobre percepção espacial,

crime e medo que contemple aspectos espaciais, históricos e sociológicos para a apreensão da

relação sujeito-espaço em uma cidade media como Marília? Neste capítulo buscamos

introduzir tais aspectos na tentativa de construção desse arcabouço tendo por referência a

Geografia Humanística de Tuan (1980, 1982, 1983 e 2005), na medida em que esses temas da

realidade urbana estão, direta ou indiretamente, presentes. Isso nos revela que sua perspectiva

de análise em torno dos sentimentos sobre o espaço abrangem um quadro amplo e rico sobre a

experiência na cidade. E mais, aponta importantes possibilidades de análise dos fenômenos,

em especial, quando suas proposições são relacionadas aos demais teóricos das diversas

disciplinas que se dedicam a estudar esses temas.

Como vimos, a perspectiva de Tuan (1983) nos idos da década de setenta do século

passado, fundada na fenomenologia de Husserl, contribuiu para uma mudança fundamental

nos paradigmas geográficos de modo correspondente ao marxismo. Os enfoques mais

candentes que nortearam tal alteração se referiram no redirecionamento das análises espaciais

à concepção de que o espaço é um lugar dos homens e, dessa maneira, se deveria

compreender as razões humanas que fazem com que os espaços naturais sejam dotados de

significados necessariamente históricos, políticos e culturais.

Nesse sentido, as críticas de Husserl e Marx, como outros pensadores citados neste

capítulo, contribuíram às distintas correntes geográficas, fenomenológicas ou marxistas, no

que concerne à superação do caráter ontológico predominante no final do século XIX e

prevalecente nos pressupostos positivistas que carregavam as ciências sociais, particularmente

a geografia. Para essas correntes, era necessário superar a cisão “sujeito-objeto”, “homem-

espaço” característica da sociedade capitalista que “objetifica” a vida de homens e mulheres.

Tratava-se de conceber a experiência humana na qualidade cultural, econômica, política e

social, como uma condição peculiar aos homens de construção do mundo material e subjetivo.

As perspectivas de Tuan (1983), neste aspecto, aferiam à percepção espacial e

sentimentos humanos como a “topofilia” a possibilidade de alcançar as relações que os

homens estabelecem entre si e com o mundo. A “percepção” fenomenológica constituía-se

enquanto ferramenta de análise tal como a “apropriação” marxista que coloria os escritos de

filósofos como Lefebvre (2001) e geógrafos como Carlos (2001 e 1999) e Santos (2000a,

2000b). Essas formulações alteraram as concepções geográficas ao trazer à tona a concepção

de “lugar” e reverberaram nos estudos de sociólogos, antropólogos e cientistas políticos.

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É por essa razão que nos utilizamos de Tuan (1983) e dos demais autores que se

preocuparam com as questões humanas no/sobre o espaço. Em nossa pesquisa, nos

preocupamos em realizar uma investigação que elevasse as percepções ao quadro analítico de

problemas como a criminalidade e, neste sentido, nos relacionamos diretamente com os

teóricos que têm o medo urbano como objeto central de análise.

Nesse aspecto, fizemos referências sobre a concepção de crime e violência tendo em

vista apresentar a maneira como esses fenômenos sociais estão relacionados com a

constituição do Estado moderno e que, por isso, se configuram em suportes necessários para o

controle precioso dos sujeitos nesta sociedade de classes. Sob inúmeros elementos, o crime e

a violência se relacionam diretamente à maneira pelas quais as sociedades modernas se

organizam. Ampliados nos termos jurídicos e estatísticos – com a crescente importância da

propriedade privada e, conseqüentemente, das condenações de delitos a ela relacionados; e

com a capacidade técnica, disciplinar e científica de detecção, ficalização e controle jamais

alcançada anteriormente – o crime e a violência se evidenciam sob a condição de uma

“escalada” incontrolável que anima todas as resoluções e propagandas estatais ou

empresariais. Estas, ao serem pautadas no crime e violência, apenas colocam em risco a

democracia ao restringir os espaços sociais dos sujeitos.

Muitos foram os autores que criticaram essa “escalada da violência” quando ela

focaliza e discrimina “pobres”, “estrangeiros” e demais “estranhos” (minorias étnicas ou

grandes parcelas da classe trabalhadora). De maneira alguma esses autores envidaram seus

esforços em negligenciar ou minorar os problemas de violência ou criminalidade, mas tratá-

los como fenômeno político-social de envergadura sensivelmente complexa. A concepção de

“escalada da violência”, via políticas discriminatórias sustentadas pela tese pobreza-

criminalidade, esboroa qualquer possibilidade de resolver a violência conforme o caso e a

necessidade de cada lugar, cidade ou país, expondo, tão somente, os “desesperados” e

“desvalidos” dessa sociedade de poucos ao ampliar de modo planejado a sensação de

insegurança na vida cotidiana por meio de “estigmas” e “estereótipos”.

Com essas reflexões re-encontramos as reflexões de Tuan (2005) e a “estratégia” de

degradação da realidade urbana, relatada em diversos autores como Lefebvre (2001), Arantes

(2006a e 2006b) e Arantes (2000). A experiência urbana, múltipla e repleta de

potencialidades, se vê subsumida ao medo naturalizado que se evidencia em projetos

urbanísticos e “enclousures” cada vez mais presentes na paisagem urbana.

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A concepção de que o medo é uma relação social que, como todos os sentimentos

humanos, partilha de uma historicidade e que, portanto, não pode ser naturalizado, nos

permite compreender na cidade moderna, industrial e de classes, as caracterizações históricas

do medo. De tempos em tempos, diante da ameaça de rebeliões, motins ou revoluções, a

burguesia e seus asseclas inscrevem nas trincheiras da cidade a sua revanche.

Ao se apossar da cidade, a burguesia transformou a cidade para atender as

necessidades de localização estratégica de suas indústrias, mas muito mais que isso, segregou

e fragmentou o espaço urbano de modo a se distanciar das ameaças advindas das necessidades

e organização da classe trabalhadora. Esse processo de segregação urbana na sociedade

capitalista concorreu com a instalação da burguesia e dos trabalhadores, “livres como

pássaros”, na convivência conflituosa dos princípios da urbanização atrelada à

industrialização. Transformada em perigo, a cidade teve parte de seus espaços abandonada

pela burguesia na conformação de uma espacialidade diferenciada. Subúrbios “pobres” e

“ricos” terminaram por tecer a “colcha de retalhos” que se percebe na paisagem urbana.

Nos dias atuais, a acentuação das contradições e antagonismos de classe se conforma

sobre a cidade no modelo de “gentrification” que se propõe ao resgate da cidade tornando

seus patrimônios culturais em mercadorias e a própria cidade como um grande produto. Trata-

se de vender uma imagem positiva em um contexto de acentuação da fragmentação e da

pauperização dos trabalhadores.

As experiências desse começo de milênio tendem a demonstrar que em todas as

cidades que seguem esse processo, o confrontamento social é inevitável. O que resta aos

sujeitos é a propaganda massiva de tornar tais experiências nos novos (ou velhos) “espectros”

do medo na cidade? Assim, lembramos Santos (2002, p. 124) ao afirmar que a cidade,

especialmente a cidade grande, “é o lócus de todas essas confrontações, por ser também o

lugar essencial do afrontamento das forças desencadeadas do processo violento de mudança”

() e, tal como consideram Tuan (2005) e Foucault (1977 e 2002), Santos (2002) arremata: “o

maior medo é, sem dúvida, o medo da pobreza e o medo dos pobres. Isso é grave, porque

acabamos sendo mais medrosos das vítimas e mesmo das causas da miséria”.

Desse modo, após essa digressão introdutória de temas tão candentes à experiência

urbana, passaremos a historicidade desses mesmos termos na cidade de Marília, englobando

seus aspectos históricos, sócio-espaciais e da dinâmica criminal para, por fim, chegarmos à

percepção espacial, do crime e medo apreendida nos bairros da cidade.

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Capítulo 2

Os lugares da cidade

Aspectos históricos, sócio-espaciais e criminais de Marília/SP

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[...] na relação criminalidade/espaço, é importante a identificação dos lugares de ocorrência dos crimes e de residência dos criminosos, suas características etc., mas, acima de tudo, parece importante considerar como as pessoas lêem e sentem o ambiente urbano e como ele se fragmenta, tanto do ponto de vista social como o do espacial, principalmente através de processos desorganizadores da sociedade como o crime, o desemprego, a circulação de drogas, a falência das instituições da comunidade etc. (FELIX, 1996, p. 32 – grifo nosso).

A realidade sócio-espacial das nossas cidades se compõe de um fenômeno assaz

complexo e, por essa razão, necessário de ser analisado, sobretudo quando nos preocupamos

em entender seus diversos problemas tão aclamados como a criminalidade e a violência em

nossos bairros e ruas. Por esse motivo, antes de nos dirigirmos às percepções propriamente

ditas – o que é possível ser verificado no terceiro capítulo – devemos fornecer algumas das

ferramentas utilizadas como suporte para a nossa pesquisa de campo. Essas ferramentas, por

assim dizer, são os aportes histórico e sócio-espacial, além dos aspectos da dinâmica criminal,

conforme diversas pesquisas que tiveram a cidade de Marília como objeto de estudos.

Dessa maneira, neste capítulo, estão reunidos os elementos históricos que apontam a

cidade de Marília em seu contexto regional e na condição de mais uma cidade que se estrutura

espacialmente sob a égide dos imperativos do capital e seus desdobramentos. Nosso olhar

recupera os enfoques sobre os aspectos políticos e econômicos que caracterizaram a “Nova

Califórnia”, além da especulação imobiliária como vetor da economia mariliense.79

Esse enfoque histórico nos permite considerar as formatações sócio-espaciais de

Marília nos dias atuais, de tal maneira que a cidade dos “itambés” atinge fragmentações de

seu espaço que superam o sítio urbano polarizado e configura uma segregação sócio-espacial

que concilia aspectos de relevo com os interstícios próprios da vida social. Assim, as

caracterizações sócio-espaciais organizadas pelo GUTO/UNESP permitem visualizar a

distribuição dos sujeitos e suas distintas condições sócio-econômicas e dos equipamentos

urbanos nos espaços desiguais da cidade. 80

Por fim, temos os aportes sobre a dinâmica criminal, em uma processualidade histórica

realizada por Felix (1996) e o diagnóstico elaborado pelo GUTO/UNESP sobre os anos mais

recentes, fundamentais para o confrontamento com as percepções, em especial, os valores

sobre os espaços da cidade vistos sob o prisma da violência ou criminalidade.

79 “Nova Califórnia” é uma referência, formulada por Faleiros (1983), à propaganda promovida para o avanço do homem branco no “imenso faroeste à americana” da Alta Paulista (p. 22). 80 Segundo o Dicionário Aurélio, monte agudo ou escarpado, precipício, despenhadeiro. O original, Itaimbé, palavra Tupi que significa I´tá = pedra, Ai´b = afiada, cortante. No Anexo E pode-se ver uma imagem de um dos Itambés de Marília.

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2.1 Gênese e devir da “Capital da Alta Paulista”

Marília surge no bojo da expansão do comércio de terras que utiliza o café como pretexto das vendas. (FALEIROS, 1983, p.80).

Considerando o processo de urbanização típico do capitalismo tardio, Balestriero

(1984, p. 84) afirma que a cidade de Marília se inscreve na expansão do modo de produção

capitalista, “sendo sua vida econômica a reprodução da divisão internacional do trabalho sob

o capitalismo”. Desse modo, em Marília, o café, algodão, seda etc. representaram nos seus

primórdios, desde as primeiras décadas do século XIX até os anos sessenta, o “setor dinâmico

que determina o ritmo da expansão e funcionamento da economia como um todo”. Em suma,

para este autor, a economia de base agrícola-rural produziu nesta cidade as condições

necessárias para a economia caracteristicamente urbana marcada pelas indústrias, comércio e

serviços, marcadamente a partir dos anos cinqüenta do século passado.

Corroborando essas considerações e agregando outras formulações em torno da

organização do espaço nas cidades, Faleiros (1983) considerou as origens e a trajetória de

Marília norteadas, sobremaneira, nos termos do capitalismo, em especial, da alteração do

valor da terra urbana. Ou seja, a “Nova Califórnia” do Estado de São Paulo não elegeu,

necessariamente, o café e o algodão como seus determinantes econômicos de maneira que

promovesse seu desenvolvimento urbano enquanto pólo comercial, mas, em verdade, teve

essa economia agro-exportadora evidenciada a pretexto das vendas de terras.

Para entendermos melhor essas ponderações devemos remontar à promulgação da Lei

de Terras de 1850 e à alteração profunda do uso do solo no Estado brasileiro, quando várias

frentes pioneiras passaram a desbravar as regiões “desconhecidas” ao oeste, entre elas, a que a

cidade de Marília se localiza, aonde chegaram em 1905. Para Faleiros (1983), essa ocupação

partia de interesses do Governo do Estado em utilizar o solo para exploração comercial.

Dessa maneira, a chegada da ferrovia construída pela Companhia Paulista de Estrada

de Ferro, com seu tronco partindo de Pirassununga à Marília, trouxe a cafeicultura já em

momento de declínio, em decorrência da quebra da Bolsa de Nova Iorque em 1929 81. Neste

aspecto, Faleiros (1983) lembra que a plantação de pés de café só foi possível porque o solo

era novo e, por isso, seria mais rentável a sua cultura nesta região do que em outras com solo

mais desgastado e que exigiriam tratamento com maior custo e tempo. 81 Com o crash na Bolsa de Nova Iorque em 1929, caíram vertiginosamente os valores do café e, conseqüentemente, perecem as plantações de café no Estado de São Paulo que tinham como destino a exportação, no modelo agro-exportador (FALEIROS, 1983, p. 26).

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Porém, esse processo de uso descartável do solo levou os cafeicultores, mais

precisamente na década de 30, a abandonar a região e transferir suas lavouras para o norte do

Estado do Paraná. A partir deste momento, houve o fracionamento da terra em pequenas

propriedades familiares, onde a produção de algodão, amendoim e outras culturas para o

pequeno mercado urbano, por meio de um sistema “oligopsônico”, seriam mais adequadas.82

Mesmo assumindo a relativa importância de tais produtos – café, algodão e seda – na

vida econômica da cidade, para Faleiros (1983) o que efetivamente moveu a economia

mariliense desde a sua gênese foi a “especulação imobiliária”.

De acordo com Carlos (1999 e 1992), Faleiros (1983), Kowarick (1979), e Lefebvre

(2001), entre outros autores, podemos, assim, considerar que a lógica da especulação

imobiliária seja: transformar o espaço em mercadoria. Ao fazê-lo, promove a organização do

espaço voltada para a troca, portanto, produção e reprodução de valor independente da

utilidade da terra urbana. Dessa maneira, há atribuição de valores diferenciados e,

conseqüentemente, uma segregação dos homens de acordo com suas capacidades em financiar

a especulação.

Projetada a lógica de mercadoria nas cidades – de subjulgação do valor de uso pelo

valor de troca – é possível explicar os processos empreendidos que especulam e,

subseqüentemente, segregam o espaço. A cidade, em todas as dimensões, através da divisão

social do trabalho e “complexização” e fragmentação da vida social, passa a ser organizada de

modo a garantir a transformação de seus espaços em mercadorias. Organizados conforme o

lugar onde se mora, onde se trabalha, onde se diverte, onde se faz as compras, onde se medita

etc., os espaços são acossados segundo as necessidades e imperativos próprios ao

funcionamento do capitalismo na cidade, o lugar da fábrica, do setor de serviços, dos bairros

residenciais, do centro administrativo, do centro econômico etc.

O resultado é de múltiplos lugares qualitativamente diferenciados a partir das

estratégias do capital em se alocar em espaços que facilitam sua acumulação, criando valores

para os terrenos, manipulando-os e especulando-os.

Entretanto, é necessário compreender que a terra urbana, em verdade, não possui valor

algum. O seu valor somente pode ser auferido a partir de sua utilização ou localização, pois

dependendo de onde o terreno está próximo seu valor é superestimado ou, por outras

82 De acordo com Pereira (1994, p. 13), o sistema “oligopsônico” caracteriza-se por poucos ou único comprador e grande número de pequenos vendedores. Em geral, os primeiros são beneficiados diante dos demais ditando as metas e valores da produção.

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circunstâncias, reduzido. Estar próximo a uma localidade com infra-estrutura adequada e de

status elevado pode garantir ao terreno valores correspondentes aos valores dos seus vizinhos.

O mesmo ocorre no processo contrário: se desvaloriza os terrenos em razão da proximidade

de espaços depreciados como favelas e outras formas de habitação pauperizadas.

Em síntese, sem maiores e mais profundas digressões, essa é a economia política da

especulação imobiliária sobre a cidade, como assim define Faleiros (1983, p. 02):

A região surge e se desenvolve em função da privatização das terras e sua transformação em equivalente a mercadoria, processo que segue em curso no país até os dias de hoje.

Era necessário transpor o enfoque da economia promovida pelo café e pelo algodão

em Marília, uma vez que a produção agrícola havia perdido sua relativa importância na

economia após a Lei de Terras de 1850 quando a atividade em torno da propriedade

territorial, atividade não-produtiva, passou a agregar valor mais rapidamente que outras

relativas à produção.

Na análise de Faleiros (1983), com a terra urbana transformada em mercadoria e

acossada pelos empreendedores imobiliários, a cidade viveu uma seqüência crescente de

loteamentos e ampliação do perímetro urbano além das necessidades reais de crescimento no

período de 1971-1980. Nas palavras de Faleiros (1983, p. 54),

[...] esse é o período áureo do crescimento da área urbana da cidade, sem que o aumento verificado demonstre, per se, a necessidade real de tal expansão.

O interesse por investimentos através dessa atividade improdutiva, continuou Faleiros

(1983, p. 54), marcou as inúmeras investidas das empresas relacionadas ao setor com apoio do

Executivo e do Legislativo que determinaram, a partir da década de 1970 e 1980, um

crescimento da área urbana “real”, marcada pelo perímetro urbano e grande número de

loteamentos triplicando a área urbana da cidade 83. Como a necessidade era menor que a

oferecida no mercado imobiliário, verificou-se nos vários bairros da cidade grandes

porcentagens de terrenos vazios.

Faleiros (1983, p. 83) chegou a afirmar que, em Marília, a especulação imobiliária

conseguiu ser mais expressiva que em outras cidades. Nesta “Nova Califórnia”, o processo

parecia ser mais vigoroso ao constatar que, em 1980, 51% dos imóveis estavam ociosos a

83 Contrariando a lógica normal – crescimento da cidade em função das necessidades e legitimação do perímetro urbano, posteriormente –, o último processo de ampliação da área urbana sofrido pela cidade até 1983 foi a aprovação de um perímetro maior do que a realidade urbana até então existente. A participação do poder público, silenciada, é assim revelada por Faleiros (1983, p. 78): “não se detecta, também da parte da Prefeitura quanto da Câmara Municipal nenhuma discussão no sentido de uma correção das distorções verificadas no desenvolvimento urbano, o que poderia vir a ferir interesses envolvidos no mesmo”.

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espera de valorização, que normalmente atinge de 10% a 20% nas outras cidades, “além de

haver uma área sem lotear do mesmo tamanho da cidade já declarada urbana”.

Portanto, essas assertivas se entrecruzam com as perspectivas de outros autores que

estudaram o processo de desenvolvimento mariliense84. Muitos atestam a história dos

primórdios a partir das disputas entre os três primeiros patrimônios que, juntos, fundaram a

cidade e demarcaram a sua organização sócio-espacial, em particular no que hoje são suas

áreas centrais. Os três patrimônios iniciais, Marília, Alto Cafezal e Barbosa, produziram seus

espaços com dimensões e formas adversas entre si em razão de cada qual representarem as

elites locais formadas por “pequenos tiranos” segundo Balestriero (1984, p. 26) ou os muitos

“Dirceus” na interpretação de Pereira (1990, p. 57).85

Mesmo não sendo grandes coronéis, esses “pequenos tiranos” concorriam entre si e

viciavam todo o sistema político, com típicas práticas de coronelato, por meio de doações

como formas de aumentar a própria riqueza. Como exemplo, tem-se o caso de Bento de Abreu

Sampaio Vidal e a doação das terras para Companhia Paulista de Estradas de Ferro,

garantindo assim a hegemonia política na cidade e na região, mas segundo Pierre Mombeig

(Apud BALESTRIERO, 1984) “[...] sua atividade tinha ainda maiores conseqüências quando

ele intervinha nos negócios da renda de terras”. Completa o Balestriero (1984, p. 27):

É sempre por seu intermédio que a cidade consegue um serviço mais moderno de abastecimento de água, construção de um hospital ou de uma escola, enfim, um melhoramento público de qualquer natureza [...] Se para ele são todos os privilégios da cidade, é porque atrás disso podem vir numerosas compensações. 86

84 Bizelli (1995), Busseto (1992), Felix (1996), Pereira (1990) e Pereira (1994) e Ribeiro (1996) 85 Com Balestriero (1984) temos a caracterização das origens políticas de Marília: “[...] é no espaço que cerca a prestação de serviços religiosos, da justiça e da administração pública que voltamos a nos encontrar com as figuras mais destacadas do ponto de vista econômico: os coronéis” (p. 26). Para Pereira (1990), “o patrimônio Alto Cafezal [Bento de Abreu Sampaio Vidal] desabrochava vertiginosamente, e seus fundadores, pelo fato de serem apenas especuladores de terras, haveriam de procurar um político de grande influência sob cuja ‘proteção’ pudesse a povoação ascender na hierarquia judiciária e político-administrativa do estado, a começar pela criação dos distritos policial e de paz” (p. 58). Esse político de grande influencia apareceu, mas adquirindo o patrimônio vizinho ao Alto Cafezal, Cincinatina renomeado Marília, e acirrando a disputa entre os patrimônios. Sobre este aspecto, Bizelli (1995, p. 39) aborda a maneira como as oligarquias se reproduzem historicamente de uma modernização conservadora, na medida em que se baseiam em uma agro-indústria (produtos agrícolas como o café, amendoim, algodão e óleos vegetais, além do arroz e feijão, baratos para a indústria nascente) articulada com as redes de ferrovias que rearranjam o interior paulista e organizam seus espaços urbanos. 86 Caracterizam-se, enfim, como os benfeitores da cidade a ponto de no patrimônio de Alto Cafezal, de propriedade de Antônio Pereira da Silva, ser construída uma capela em referência a Santo Antônio e, no patrimônio Marília, propriedade de Bento de Abreu Sampaio Vidal, ser construída uma capela em referência a São Bento, propositadamente. Fenômenos que explicitam a conveniência entre poderes transcendentes ou religiosos e aqueles seculares ou políticos.

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Com a criação da 11ª Região Administrativa do Estado de São Paulo se deu origem à

Micro-região Homogênea da Alta Paulista e, segundo Balestriero (1984), estava confirmada a

centralidade e liderança de Marília, “resultantes de um jogo de reivindicações e influência

política” (p. 93)87. Para Felix (1996), neste momento ocorreu uma aceleração na economia

mariliense atraindo sujeitos de outras regiões e de outros Estados:

O crescimento acelerado no setor de prestação de serviços retrata o intenso processo de urbanização e o seu adensamento nos grandes centros urbanos e capitais regionais. Mesmo considerando-se que os problemas de urbanização são menores nas cidades de porte médio, quando comparados aos grandes centros urbanos, Marília tem sofrido um pouco as conseqüências desse processo, com carência de empregos e habitação, o que originou alguns aglomerados subnormais na periferia” (p. 197).

Em uma análise demográfica, Felix (1996) constatou que a cidade de Marília cresceu

em ritmo inverso ao município (constituído pelas zonas rural e urbana) e à Micro-Região da

Alta Paulista. Na Tabela 1, acompanhada da Figura 1, estão esses dados da dinâmica

demográfica de 1940 a 2005:88

TABELA 01: POPULAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO, DA MIC RO-REGIÃO DE MARÍLIA, SUA SEDE E ALGUNS DE SEUS MUNICÍPIOS VIZIN HOS.

Fontes: Censos do IBGE (1940-1991) (FELIX, 1996, p. 166), a Fundação SEADE (2000 e 2005) e b Fundação SEADE (1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e 2005) Org.: M.R.Carvalho.

A observação do número total da população das cidades da Micro-Região deixa

transparecer a diminuição no contingente populacional, recuperando-se nos últimos anos.

Entre 1980-91, a taxa de crescimento absoluto da população foi de –51.894 habitantes para a

Micro-Região, 39.375 habitantes para o Município e 40.283 habitantes para a cidade.

87 Essa Micro-Região se compõe dos municípios: Álvaro de Carvalho, Bastos, Gália, Garça, Herculândia, Iacri, Lupércio, Marília, Ocauçu, Oriente, Pompéia, Queiroz, Quintana, Tupã, Ubirajara e Vera Cruz. 88 Como não encontramos os dados do IBGE referentes aos anos de 2000 e 2005 relativos à Micro-região de Marília, agregamos os dados encontrados no SEADE (Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados). Além, disso, as informações referentes ao Município de Tupã também foram retirados do SEADE para compor o quadro das principais cidades da Micro-região de Marília.

ANOS ESTADO DE SÃO PAULO

MICRO-REGIÃO DE MARÍLIA

CIDADE DE MARÍLIA

MUNICÍPIO DE MARÍLIA POMPÉIA GARÇA GÁLIA TUPÃ b

1940 7.180.316 242.755 41.856 69.173 55.930 33.410 18.232 35.583 1950 9.134.423 307.881 48.129 78.175 32.789 42.912 18.076 56.682 1960 12.974.699 333.941 62.806 90.884 37.738 46.554 16.379 55.769 1970 17.771.948 296.987 80.990 98.176 18.156 37.625 12.808 52.443 1980 25.040.712 323.030 108.083 121.774 16.257 39.939 11.793 56.508 1991 31.588.925 271.136 148.366 161.149 17.236 41.492 10.497 61.229 2000a 36.909.200 313.408 189.357 196.965 18.162 43.145 7.862 63.288 2005a 40.442.795 338.191 211.477 217.987 18.996 43.926 7.629 63.193

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1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000a 2005a

0

50.000

100.000

150.000

200.000

250.000

300.000

350.000

Micro-regiãode Marília

Cidade deMarília

Município deMarília

Pompéia

Garça

Gália

Tupã b

FIGURA 01: POPULAÇÃO DA MICRO-REGIÃO DE MARÍLIA, SU A SEDE E ALGUNS DE

SEUS MUNICÍPIOS VIZINHOS. Fonte: Censos IBGE (1940-1991); Fundação SEADE (2000 e 2005) Org.: S.A. Felix e M.R.Carvalho.

Nos últimos anos, os índices de crescimento demográfico da cidade de Marília

estão menos acentuados, embora ainda continuem em ascensão, e que em termos absolutos é

inegável. De acordo com esses mesmos dados, todas as demais cidades da Micro-região

exibem um insignificante crescimento absoluto e uma flagrante redução relativa (índices de

crescimento), sendo que Gália e Tupã sofreram redução até em números absolutos nos

últimos anos, considerável mesmo que a variação tenha sido sensível. Para finalizar essa

discussão sobre a dinâmica demográfica na região de Marília, vale apresentar as cidades de

origem dos entrevistados em nossa pesquisa:

RM de São Paulo4%

cidade de Marília

48%

Outros estados13%

Estado de São Paulo11%

Região de Marília24%

FIGURA 02: ORIGEM DOS ENTREVISTADOS.

Fonte e Org.: M. R. C.

De acordo com a Figura 02 quase um quarto dos entrevistados afirmaram terem

nascido nas cidades da região de Marília: Tupã, Pompéia, Oriente, Quintana e Garça. É bem

provável que entre aqueles que afirmaram ser da cidade de Marília, alguns sejam de outras

cidades, uma vez que, no decorrer das entrevistas, isso nos foi revelado – nesses casos,

registramos a informação indicada posteriormente. Mas, no conjunto, o que se apresenta é que

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a população entrevistada reflete a dinâmica indicada por Felix (1996), com poucas distorções

próprias da adoção de Marília como a cidade de referência.

Nos mapas elaborados por Felix (1996), Figura 03, “Setores censitários de Marília –

anos de 1970, 1980 e 1991”, o crescimento da área urbana da cidade, particularmente os

loteamentos abertos se acentuaram a partir da década de 1970. Referentes aos censos do IBGE

de 1970, 1980 e 1991, esses mapas demonstram como, ao longo das últimas décadas, a cidade

tem explorado os espaços vazios que existiam entre a região central (sítio da cidade original) e

os novos bairros próximos aos “Itambés” (seus limites físicos) ou às margens dos eixos

rodoviários (nas pontas norte e sul, estão os bairros Santa Antonieta e Nova Marília e, no

limite oeste, está o Campus Universitário).

FIGURA 03: EVOLUÇÃO DA MANCHA URBANA DE MARÍLIA - A NOS DE 1970, 1980 E 1990 Fonte: Fundação IBGE Org.: S. A. Felix e Desenho: Gustavo H. A. Felix.

Essa característica de extensos bairros populares para além da rodovia e campus

universitário, não é particularidade da cidade de Marília. Bizelli (1995) ao estudar a

urbanização no interior paulista, particularmente das regiões “novas” mais ao oeste,

Araçatuba, São José do Rio Preto, Bauru, Presidente Prudente e Marília, aponta aspectos já

citados em Faleiros (1983) e Félix (1996), porém, a partir da ótica dessas regiões que se

urbanizaram sob características equivalentes.

Além do primórdio dessas cidades se sustentar na economia agro-exportadora que,

décadas mais tarde, é substituída por manufaturas originadas no excedente do cultivo do café,

amendoim, algodão e outros produtos, essas cidades tiveram seus espaços urbanos acossados

face à especulação imobiliária e à segregação sócio-espacial decorrente.

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Neste aspecto, Bizelli (1995, p. 44) aponta a instalação de complexos industriais que

industrializou a agricultura e provocou a concentração de terras. O resultado disso é o afluxo

de mão-de-obra para as cidades principais das respectivas regiões e uma demanda cada vez

maior por moradia. É assim que se explicam nestas cidades do interior paulista os “bairros-

dormitórios” localizados do “outro lado da rodovia”, instalados pelas prefeituras locais ao

arrecadarem mais impostos – em razão do aumento populacional e da área urbana especulada

– e promoverem, de um lado, seus distritos industriais, e de outro, projetos de reurbanização

nos moldes de conjuntos habitacionais populares periféricos.

Outro aspecto verificado por Bizelli (1995, p. 43) nestas cinco regiões é o avanço dos

serviços, em especial, de “pólos de atração” para a formação profissional universitária. Por

isso, nestas cidades que se tornaram “pequenas capitais”, estão diversos campi universitários

regionais, que caracterizam toda uma região da cidade, seja para o deslocamento definitivo ou

provisório de estudantes – fixação temporária ou viagens diárias, “quando a distância e

facilidades de transporte permitem”.

Esses apontamentos, sobre a história da cidade e a maneira como seu espaço urbano se

redimensiona social, política e econômica, são necessários, uma vez que os elementos

apresentados tornarão a ser vistos nas páginas que se seguem sobre as condições sócio-

espaciais dos períodos mais recentes e a dinâmica criminal da cidade, trabalhada no

GUTO/UNESP.

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2.2. Sobre as desigualdades e segregações sócio-espaciais

Segundo as informações aqui, os moradores que moram aqui para os lados do Aeroporto, que pegam essa baixada do “buracão”, não falam “buracão”, falam que aqui é o “vale”, “que mora na beira do vale”, sendo que as pessoas que moram do outro lado, Jânio Quadros, Vila Nova, Palmital, eles falam “buracão”. Eu acho que é um pouco desprezível por parte das pessoas... Eu acho que é o mesmo vale de fato. Por que “buracão” para o lado das pessoas pobres e “vale” para as pessoas ricas? Técnico em telefonia, 48 anos, casado, 5 anos morador no Jardim Aeroporto (Leste).

A partir da reflexão sobre a formação sócio-espacial de Marília, demarcada por uma

profunda especulação imobiliária denunciada por Faleiros (1983) e por uma caracterização de

“Capital da Alta Paulista” que atraiu sujeitos das cidades vizinhas que estavam em declínio

populacional, apresentaremos alguns dos seus aspectos sócio-espaciais, a partir dos estudos de

Felix (1996) e das pesquisas desenvolvidas pelo GUTO/UNESP. De acordo com a percepção

do morador do Jardim Aeroporto (setor Leste), acima, nota-se a distância não apenas física,

mas simbólica que os espaços da cidade representam para os diversos habitantes. Uma cidade

que apresenta uma configuração sócio-espacial limitada por “Itambés” que, neste aspecto,

limita não apenas os lugares pauperizados dos espaços em que residem as camadas médias da

cidade, mas, inclusive, valorações distintas dos aspectos físicos comuns (ver Anexo 05). A

perspectiva da produção de uma cidade diferente para “ricos” e “pobres” está presente

também nas falas dos moradores dos bairros populares. Uma senhora do Jardim Marajó, nos

limites do setor Sul, assim, exprime sua perspectiva:

O que falta na cidade para ser melhor? Ah, p’ra eles está “tudo” bom. “Pros” bairros não. Eles fazem uns edifícios por aqui e por ali e os bairros abandonados... Pelo menos se a gente não tivesse pagado, mas eu paguei. Para os bairros eles não fazem benefício. Mandam conta para eu pagar... Mulher “do lar”, 68 anos, 12 anos moradora no Jardim Marajó (Sul).

No mesmo sentido, no outro lado da cidade, um morador do bairro Vila Nova (setor

Norte) nos revela a mesma percepção sobre a assimetria entre a produção de “obras bonitas”

entre o “centro” e o “bairro”, conforme atesta seu comentário ao final da entrevista:

Então, eu gostei de vir para cá. Apesar de todos os problemas é uma cidade boa para se viver. Só que como todas as cidades tem esses problemas, né, eu acho que eles vêem mais “central”, igual as obras bonitas que eles fazem lá no centro da cidade. Porque não fazem nos bairros também [...]. Metalúrgico, casado, 31 anos, 9 anos morador da Vila Nova (Norte).

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Mas partamos para uma análise da região central de Marília, que denominamos de

setor Centro. Podemos subdividi-la sócio-espacialmente de acordo com suas delimitações

iniciais, características da divisão entre os três primeiros patrimônios (Marília, Barbosa e Alto

Cafezal). Não é apenas uma região antiga, mas mantém algumas características originais em

suas diversas áreas residenciais. Entretanto, por ser o centro administrativo e comercial da

cidade, além de ruas residenciais, reúne uma série de estabelecimentos que compõem algumas

de suas principais vias, a Avenida Sampaio Vidal (que dividia inicialmente os patrimônios

Alto Cafezal e Marilia), Avenida Nove de Julho, Avenida São Luís (principal rua comercial) e

Avenida Rio Branco (rua que dividia os patrimônios Alto Cafezal e Barbosa).

De acordo com Felix (1996, p. 262), considerando apenas a região central (setor

Centro, Figura 5, p. 74), é possível fazer um recorte Norte-Sul. Essa divisão mostrará

condições sócio-espaciais bem distintas: a porção mais a leste se caracteriza como uma região

comercial com a maior parte dos restaurantes e agências bancárias, com estabelecimentos

públicos administrativos como Prefeitura e Câmara Municipal; de serviços como Correios,

DAEM (Departamento de Água e Esgoto de Marília) e CPFL (Companhia Paulista de Força e

Luz); e culturais como Biblioteca, Teatro Municipal e Espaço Cultural. A porção mais ao

oeste, por sua vez, se caracteriza por residências de médio e baixo padrão que inclui uma

região deteriorada que abrigou a “Zona do Meretrício” até a década de 50, conhecido como

“Bairro do Querosene”.89

Nos dias atuais, a porção norte da região central, onde se concentram antigos galpões

que abrigavam parte das indústrias, está passando por um processo de recuperação das vias e

dos prédios. A Avenida das Indústrias, nova via de acesso a essa região, ocupou espaço nos

jornais da cidade, chamando a atenção para o novo olhar das empresas comerciais e da

Prefeitura, conforme a manchete “Comércio alavanca corredor de crescimento” (2005, p.3-A):

O centro comercial de Marília está vivendo uma revolução. A instalação de novas concessionárias de veículos, ampliação de empresas, revitalização de prédios, a inauguração da FATEC e a complementação de obras públicas criam uma bolha de crescimento e desenvolvimento sem precedentes.90

Caracterizando-se por ser extensão da região central, o setor Centro-Leste apresenta

inúmeros estabelecimentos comerciais; órgãos públicos municipais; além de locais de alta

89 Neste aspecto, Felix (1996, p. 262) verificou que “enquanto os chefes de domicílio da parte leste da área central recebiam em média 9,2 salários mínimos, os chefes de domicílio da parte oeste auferiam por volta de 3 salários, bem abaixo da média da cidade” (4,6 salários/ chefe de família). 90 Para salvaguardar esses investimentos, uma das festividades mais importantes da cidade – o Carnaval de Rua – foi transferida da principal avenida, a Sampaio Vidal, para a nova passarela do comércio: a mesma Avenida das Indústrias, segundo o jornal Diário, “Samba é aqui [avenida das Indústrias]” (CARNAVAL..., 2006, capa).

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concentração populacional, especialmente a mais popular, como a antiga Estação Ferroviária,

que teve o seu pátio ocupado na década de 1990 pelo “camelódromo” e pelo Terminal de

Ônibus Urbano, com diversos serviços assistenciais nas imediações: farmácia popular, Centro

Dia Anos Dourados (atendimento ao idoso), entidades assistenciais que distribuem alimentos

e roupas como a FUMARES (Fundação Mariliense de Recuperação Social – órgão de

assistência aos indigentes) e os “marianos”, vinculado à Igreja Católica (FELIX, 1996).

Na Tabela 02, temos a distribuição dos equipamentos urbanos de tal modo que se

vislumbra a caracterização dos diversos setores de bairros da cidade. Primeiramente,

destacamos os que apresentam os menores índices de equipamentos urbanos por mil

habitantes: setores Oeste e Nordeste, seguidos pelos setores Norte, Noroeste, Leste e Sul.

TABELA 02: EQUIPAMENTOS E SERVIÇOS URBANOS POR MIL HAB, MARÍLIA, 2001.

Fontes: a Secretaria Est. de Educação de SP. b Prefeitura de Marília. (TEIXEIRA, 2002) Org.: M.R.C.

O setor Oeste, com o menor índice de equipamentos, se compõe de diversos conjuntos

habitacionais populares e até um condomínio fechado, o “San Remo” no Jardim Califórnia,

que apresenta condições sócio-espaciais superiores ao próprio bairro em que se insere; bairros

mais pauperizados como o Chico Mendes e Jardim Argolo Ferrão, onde se localiza uma

favela homônima; bairros próximos ao campus universitário, Jardim Cavalari e Universitário,

que se compõem das repúblicas estudantis, condomínios residenciais verticais e uma favela.

Além desses bairros, existem dois bairros formados por loteamentos populares e

chácaras de recreio: o Jardim Flamingo e o Jardim Morumbi. O Jardim Flamingo compõe a

ponta oeste da expansão da área urbana mariliense, como loteamento popular vizinho de

condomínios horizontais de classe média-alta, ambos recentes, limitados pela rodovia SP –

133 (Marília – Assis). Aqui, vale citar a visão de um morador do Jardim Flamingo que, em

EDUCAÇÃO a CULTURA E LAZER b SETORES PÚBLICO PRIVADO PÚBLICO PRIVADO

SAÚDE TOTAL DE SERVIÇOS

Centro 0,17 0,52 0,26 0,35 0,35 1,64 Centro-Norte 0,50 0,30 0,20 0,10 0,20 1,29 Centro-Oeste 0,61 - 0,15 0,15 0,15 1,07 Centro-Leste 0,36 0,36 0,12 0,24 0,36 1,43 Centro-Sul 0,37 0,92 - - 0,18 1,47 Noroeste 0,36 0,12 - - 0,12 0,60 Nordeste 0,36 0,11 - - 0,07 0,53 Sudoeste - 0,67 0,67 1,35 0,67 3,37 Sudeste 0,35 0,52 0,17 0,17 0,17 1,39 Norte 0,26 0,03 0,1 - 0,20 0,59 Oeste 0,17 - 0,08 - 0,17 0,42 Leste 0,40 - - - 0,20 0,60 Sul 0,36 0,02 0,12 0,04 0,15 0,69

MARÍLIA 0,33 0,13 0,12 0,07 0,18 0,83

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nossa pesquisa, aborda as agruras e necessidades próprias dos moradores de seu bairro – um

loteamento novo – e apresenta sua visão sobre os condomínios vizinhos chamados “Vale do

Canaã” e “Serra Dourada” (extremo do setor Sudoeste):

Há quanto tempo mora no bairro? Seis anos. Sabe como surgiu o bairro? Conheço razoável. Você pode contar um pouco? Olha, aqui antes era uma fazenda e eles dividiram o terreno em casas e depois de seis anos que eu estou aqui, tem melhorado o bairro. Até o momento, estamos lutando para melhorar ainda mais. Estamos montando a Associação de Moradores. Vamos brigar para que o bairro cresça ainda mais. Aqui tem bastante terreno vazio. Por quê? É porque as pessoas não vendem ou às vezes não tem condições para construir. Mas o Flamingo era para ser um bairro modelo. O que você acha do “Vale do Canaã” e “Serra Dourada”, dois bairros vizinhos, condomínios fechados? Ah, é bom, para dar mais visibilidade ao nosso bairro. São bairros mais falados. Traz uma visão bem ampla para esse lado da cidade. Segurança, 33 anos, solteiro, seis anos morador do Jd Flamingo (Oeste).

Nesta entrevista, marcam as passagens em que se refere à necessidade de “lutar” e

“brigar” pelos equipamentos urbanos do bairro (como escola e poliesportivo) ou deficitários

como iluminação pública na rodovia que serve de acesso. Membro da Associação dos

Moradores no bairro, este morador apresentava uma perspectiva otimista em relação ao futuro

do bairro, especialmente ao atrelar o “sucesso” deste à promoção dos empreendimentos de

“maior visibilidade”, “mais falados”, como se pudessem “dar maior visibilidade” para aquele

lado da cidade com condomínios fechados vizinhos a um bairro popular.91

Seguindo os setores com os índices mais baixos de equipamentos urbanos por mil

habitantes encontramos o setor Nordeste. Este setor, por sua vez, se caracteriza por ser uma

região de moradias populares, inclusive com a presença de uma das favelas mais conhecidas

da cidade, a favela Vila Barros e loteamentos populares acompanhando os limites do relevo

mariliense. Neste setor, a maioria dos chefes de família (51,8%) conta com rendimentos na

91 Já foram citadas no primeiro capítulo a pesquisa de Delicato (2004) sobre aos condomínios horizontais em Marília e a tese de doutorado de Carlos (1986). Nestes trabalhos, os empreendimentos imobiliários para classe média-alta, em regiões distantes do centro da cidade, são destacados: de um lado, o estereótipo sobre outras regiões da cidade, desconhecidos; e, de outro, a necessidade indispensável dos exércitos de serviçais que, por sua vez, se tornam moradores de áreas vizinhas, desvalorizadas, nos confins dessas periferias. A esses sujeitos desses bairros populares, como fortemente presente na fala do morador do Jardim Flamingo (Setor Oeste), inscritos ou no entorno de regiões supervalorizadas, restariam a mesma longa luta que Kowarick (1979), Carlos (1992), Rodrigues (1988), Castells (1980) e Jacobi (1989). Esses autores discutiram o papel coadjuvante dos moradores da vasta periferia formada sem quaisquer condições de habitabilidade e, durante anos a fio, empenharam suas energias para terminar o projeto da “casa própria”, da creche, do posto de saúde, do asfalto, etc. que, no conjunto, terminam por revalorizar os espaços para a especulação imobiliária circunvinzinhos e conformar a “espoliação urbana”, também já citada no tópico anterior a partir de Kowarick (1979).

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faixa de sem rendimentos a três salários mínimos (de acordo com a Tabela 3, p. 71) que, junto

com os setores Norte (54,9%), Centro-Norte (55,3%), Oeste (47,1%) e Sul (56,7%), formam

um grupo de setores com predominância de chefes de família com rendimentos bem abaixo da

média da cidade (45,7%).

O setor Norte acompanha os limites do setor Noroeste e compõe uma das duas regiões

industriais da cidade92. Está no extremo norte da cidade e contém favelas em suas

extremidades, como a favela do Parque das Nações e Figueirinha. A região de bairros é

conhecida no conjunto da cidade como a região do bairro Santa Antonieta e caracteriza-se por

ser “região de terrenos mais baratos” e, mesmo assim, “apenas 20% [são] ocupados”93. Vale

considerar, em termos das condições sócio-espaciais, as reclamações dos moradores dessa

região de bairros, no jornal Diário (10/12/2005), preenchendo o editorial intitulado

“Iraquianos da Zona Norte”, aludindo ao fato de, em três dias, os moradores terem listado 512

buracos em 62 ruas do bairro94. Além disso, na mesma edição, membros da Associação de

Moradores pedem mais segurança no bairro Santa Antonieta:

“Gostaríamos de um efetivo maior no final-de-ano para evitar a violência” [reivindica o presidente da associação de moradores, e continua] “falta apoio do poder público, os adolescentes não tem nada para fazer no bairro. Aqui moram 30 mil pessoas, não existe um centro comunitário, o poliesportivo está abandonado. Não há cursos profissionalizantes, bibliotecas. Tentamos desenvolver algumas ações, mas falta apoio” (ASSOCIAÇÃO...2005,p.5-A).

Por outro lado, dos setores citados, com baixo índice de equipamentos urbanos, o setor

Leste é o único que não apresenta características sócio-espaciais equivalentes aos demais

setores, embora também seja uma região nova e periférica da cidade. No entanto, apresenta

92 Segundo demonstrativo de empresas que aportaram em Marília no mês de setembro de 2005, apresentado em reportagem do jornal Diário, houve uma concentração das indústrias nos dois extremos da cidade, Zonas Sul e Norte, onde se localizam os dois distritos industriais da cidade. As 71 empresas ficaram distribuídas em: 29 na Zona Norte, 23 na Sul, 21 no Centro, 13 na Leste e 14 na Oeste. (CIDADE..., 2005, p. 7-A). 93 Em “Cidade tem 1.129 novas construções” (2006, p. 7-A) e “Ociosidade: apenas 20% das áreas do distrito industrial, Zona Norte, foram ocupadas” (2006, p. 11-A). Neste contexto, parte dessas terras ociosas foram doadas para empresas, conforme a matéria “doação de lotes vai gerar 300 empregos no distrito industrial” (2005, p. 03): “uma área total de 442 mil metros quadrados foi disponibilizada para instalação de indústria no distrito industrial, Santo Barion, o terceiro a ser lançado na cidade”. Segundo promotores da doação: “Em breve vamos desapropriar outra área e criar espaço para investimento de empresários em nossa cidade”. 94 Neste editorial, temos uma idéia do tratamento dado pelo jornal às tentativas dos moradores de bairros populares na luta por suas demandas, primeiramente reconhecendo-as, posteriormente atacando uma suposta passividade nacional que, se tomarmos o esforço dos moradores da região em contar os buracos de suas ruas, parece ser uma crítica incompatível com o argumento: “Representa o desespero dos moradores com o descaso do município. Representa também a criatividade da população que precisa chamar a atenção para os problemas a que é submetida, já que apenas reclamar aos órgãos competentes não adianta. Reclamações que, em teses, nem deveriam ser feitas. Não porque são improcedentes, mas porque viver em ruas asfaltadas e sem buracos é um direito básico. [...] Moradores da Zona Norte dizem que algumas vias parecem com as ruas do Iraque. Alguns inclusive, vivem como os iraquianos, mas ainda não sabem disso ou não querem saber. Fica a passividade do brasileiro, marca registrada da Nação” (IRAQUIANOS... 2005, p. 2-A).

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níveis sócio-econômicos elevados, inclusive concentrando a maior parte dos condomínios

horizontais de classe média e alta e o aeroporto da cidade, de onde entrevistamos o sujeito da

epígrafe deste tópico. Os condomínios nesse setor são inúmeros, sendo que os informes

publicitários dos jornais locais os apresentam vendendo especialmente as vantagens de um

condomínio em área verde. Na “coluna social” do jornal Diário (06/12/2005, p. 4-B), o

condomínio “Portal da Serra” aparece, assim:

O loteamento ecológico Portal da Serra comemora sucesso de vendas. Confira o centro de lazer do residencial, salão de festas e quiosque para churrasqueiras, voltados para o vale [grifo nosso].95

O setor Sul, seguindo os setores Norte e Nordeste, compõe-se dos bairros periféricos e

apresenta o maior contingente populacional quando comparado aos demais setores. São

52.126 habitantes, ou 28,1% da população mariliense, que vivem em uma série de bairros

populares que se denominam Nova Marília, Continental, Nacional, Jardim Marajó, Monte

Castelo, Vila Real, Parque dos Ipês, entre outros. São loteamentos populares, conjuntos

habitacionais do CDHU e algumas favelas em suas extremidades, a saber, próximas aos

“buracões” ou “Itambés”.

De acordo com Felix (1996), a região do bairro Nova Marília sofreu um incremento

populacional de novas 3.000 moradias no final de 1982, agregando à Zona Sul sujeitos

egressos de diversos bairros da cidade, particularmente os que desejavam fugir dos aluguéis

no centro e regiões próximas para conquistar a “casa própria”. Esse afluxo populacional,

concretizado em pouco tempo e sem os equipamentos urbanos necessários, criou um espaço

de conflito que demarcou percepções sobre o bairro até os dias atuais.

Ainda sobre a Tabela 02, o setor Sudoeste se apresenta como a região de bairros com o

maior incremento de equipamentos e serviços urbanos da cidade, com uma média duas vezes

superior à média apresentada pelo segundo colocado, o setor Centro, (3,37‰ habitantes para

1,67‰), seguido dos setores Centro-Sul (1,47‰), Centro-Leste (1,43‰), Sudeste (1,39‰) e

95 O sucesso é tamanho que, dias antes, 04 de dezembro de 2005, o condomínio apresentava em capa do mesmo jornal, a venda de um dos lotes para um casal de médicos, tratava-se do segundo lote vendido (sic). Neste aspecto, em outra matéria propaganda, o residencial Portal da Serra apresenta as comodidades de um condomínio fechado, mas com “preço baixo em lotes de alto padrão” (2005, p. 04) com fácil acesso à cidade: “localizado à cinco minutos do centro da cidade, o Portal da serra está ligado a um dos maiores corredores comerciais de Marília, a avenida Brigadeiro Eduardo Gomes, proporciona acesso fácil, rápido e seguro”. No mesmo sentido, o residencial “Vila Flora” apareceu nos jornais fazendo propaganda enquanto “ótima opção de vida” (RESIDENCIAL... 2005, p. 08): “a união desta data tão importante para as famílias de Marília e de todo o território brasileiro, reflete o espírito do residencial Vila Flora, que fica na Zona Leste de Marília, e conta com fácil acesso pela rua Santa Helena. [...] Uma reserva natural composta por mais de mil e duzentas mudas de arvore é um privilégio dos moradores [...] O espaço destinado ao lazer contemplará as pessoas de todas as idades, favorecendo a convivência harmoniosa entre as famílias”.

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Centro-Norte (1,29‰). Vale notar que o setor Sudoeste sempre se caracteriza por possuir os

maiores e melhores índices, tal como o setor Centro e bairros limítrofes deste (setores Centro-

Sul, Centro-Leste, Centro-Norte e Centro-Oeste). Todavia, esses elevados índices merecem

ressalvas, em razão de sua “população flutuante”, ao que superestimar tais índices (sócio-

espaciais e criminais) pelo fato de os universitários estarem ausentes nos censos do IBGE.

Com o campus universitário, o setor Sudoeste se apresenta como uma região muito

promissora, uma vez que os estudantes, tanto em termos de moradia quanto de consumo,

representam o maior e mais proclamado “consumidor”96. Os estudantes das três universidades

situadas no campus universitário garantem faturamentos não apenas nos períodos letivos, mas

especialmente nos momentos de vestibulares e formaturas, com a presença de um número

ainda maior de candidatos a calouros para as provas, juntamente com seus familiares.97

Na notícia abaixo, podemos ter uma idéia do furor que as faculdades e seus estudantes

provocam no comércio local:

Quem sente a diferença são as empresas próximas às universidades, como os estabelecimentos da Rua Manuel Santos Chieira, no jardim Araxá, ao lado da Unimar. [Segundo dona de restaurante:] “essa região do Araxá vive praticamente dos estudantes. No bairro moram praticamente alunos [...] quando eles saem de férias precisamos fechar e dar férias coletivas, pois eles representam quase 100% dos clientes das empresas da região (FACULDADES..., 2006, capa e p. 4-A).

A região do campus é preferida pelos estudantes universitários, mas segundo as

próprias imobiliárias, são os calouros que mais procuram, pois os veteranos, após um período

de adaptação à cidade, se estabelecem em outras regiões como o centro:

Estudantes recém aprovados no vestibular são maioria dos clientes do campus universitário, dizem imobiliárias. Já os chamados veteranos, [...] movimentam outra fatia do mercado e procuram imóveis em regiões mais afastadas e centro (LOCAÇÃO..., 2005, p. 10-A).

Entretanto, apesar dos estudantes não estarem nas informações do IBGE, o setor

Sudoeste apresenta os mais altos níveis da cidade nos quesitos renda dos responsáveis das

famílias (64,7% acima de 10 salários para 14% na cidade) e escolaridade (55,2% somados

aqueles com graduação e pós-graduação para 12,2% na cidade) nas Tabelas 03 e 04.

96 Embora uma majoritária concentração esteja na região do campus universitário (Sudeste), na cidade há outras faculdades (Faculdade de Medicina e Enfermagem de Marília/FAMEMA e Faculdade João Paulo II/FAJOPA. 97 Reportagens “Vestibular da Unimar cria bolha de turismo e consumo no campus universitário” e “Vestibular lota hotéis e trânsito” (2005, p. 10-A).

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TABELA 03: RENDIMENTO DOS CHEFES DE FAMÍLIA EM MARÍ LIA/SP, 2001.

Fonte: Fundação IBGE – Censo de 2000. (TEIXEIRA, 2002) Org.: M.R.Carvalho TABELA 04: ESCOLARIDADE DOS CHEFES DE FAMÍLIA EM MA RÍLIA/SP – ANO 2001.

Fonte: Fundação IBGE – Censo de 2000. (TEIXEIRA, 2002) Org.: M.R.Carvalho

Além disso, as informações das Tabelas 03 e 04 ilustram sobremaneira a

predominância, nos bairros Salgado Filho, Acapulco e Campus Universitário – que compõem

o setor Sudoeste – de chefes de família com renda superior a 20 salários mínimos (37,5%) e

com elevadíssima escolaridade (10% com Pós-Graduação), os melhores índices da cidade,

seguidos apenas pelo setor Sudeste, região dos bairros Maria Isabel e Esmeralda (30,1%

auferindo renda superior a 20 salários mínimos e 43,6% com graduação ou pós-graduação).

Setores Sem

rendimento Até 1 S.

M. + 1 até 3

S. M. + 3 até 5

S. M + 5 até 10

S. M. + 10 até 15 S. M.

+ 15 até 20 S. M.

Mais de 20 S. M.

Centro 1,8% 9,1% 19,8% 16,7% 22,3% 9,5% 7,1% 13,7% Centro-Norte 6,0% 15,5% 33,8% 18,6% 15,5% 4,1% 3,0% 3,5% Centro-Oeste 3,1% 8,8% 17,5% 16,0% 25,9% 11,1% 8,1% 9,5% Centro-Leste 3,4% 10,7% 18,7% 16,9% 24,2% 8,8% 7,6% 9,7%

Centro-Sul 2,7% 5,0% 10,9% 11,5% 26,7% 15,2% 12,9% 15,1% Noroeste 3,5% 9,8% 27,9% 22,8% 24,5% 5,8% 3,8% 1,9% Nordeste 6,1% 14,0% 31,7% 21,6% 19,8% 4,0% 1,6% 1,3% Sudoeste 1,5% 4,1% 6,4% 7,3% 16,0% 12,8% 14,4% 37,5% Sudeste 1,3% 4,3% 10,3% 9,1% 20,6% 11,0% 13,3% 30,1% Norte 6,2% 9,3% 39,4% 26,6% 15,8% 1,5% 0,7% 0,5% Oeste 5,9% 9,7% 31,4% 23,8% 21,6% 4,2% 2,0% 1,4% Leste 3,4% 4,6% 12,8% 12,8% 29,8% 12,6% 10,1% 13,9% Sul 7,5% 12,2% 37,0% 22,5% 16,0% 2,5% 1,5% 0,8%

MARÍLIA 5,3% 10,6% 29,8% 20,7% 19,6% 5,2% 3,8% 5,0%

Setores Nenhum

curso 1º grau

incompleto 1º grau

completo 2º grau incomp.

2º grau completo

3º grau incomp.

3º grau completo

Pós-Grad.

Centro 5,6% 35,1% 9,4% 2,8% 15,4% 6,9% 21,9% 2,9% Centro-Norte 5,6% 35,7% 9,2% 2,8% 17,4% 7,7% 20,7% 0,9% Centro-Oeste 11,2% 51,0% 9,7% 3,9% 11,1% 2,9% 9,2% 1,0% Centro-Leste 4,9% 35,5% 9,7% 2,7% 16,0% 7,1% 22,6% 1,5% Centro-Sul 3,6% 18,1% 9,2% 2,7% 18,0% 10,5% 34,3% 3,6% Noroeste 7,5% 47,1% 11,0% 4,6% 16,4% 4,6% 8,2% 0,6% Nordeste 11,1% 50,7% 11,7% 3,6% 14,7% 3,0% 5,1% 0,1% Sudoeste 1,4% 14,0% 5,7% 2,0% 12,8% 8,9% 45,1% 10,1% Sudeste 3,1% 19,4% 6,4% 2,2% 17,3% 8,0% 40,0% 3,6% Norte 7,6% 53,7% 15,0% 5,4% 14,1% 1,5% 2,7% - Oeste 6,9% 43,0% 12,0% 4,8% 17,5% 4,9% 10,2% 0,7% Leste 2,0% 21,1% 8,0% 4,0% 21,7% 10,6% 30,7% 1,9% Sul 9,5% 53,3% 11,7% 4,4% 14,4% 2,3% 14,3% 0,1%

MARÍLIA 7,8% 45,3% 11,3% 4,0% 15,2% 4,2% 11,2% 1,0%

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0%

20%

40%

60%

80%

100%

esco

larid

ade

dos

entrev

ista

dos

Centro

Centro

-Nor

te

Centro

-Oes

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Centro

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Centro

-Sul

Noroe

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Norde

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Sudoe

ste

Sudes

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Norte

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teLe

ste

Sul

Mar

ília

setores de bairros

Ensino Superior Completo

Ensino Superior Incompleto

Ensino Médio Completo(Antigo 2º Grau)

Ensino Médio Incompleto(Antigo 2º Grau)

Ensino FundamentalCompleto (Antigo 1º Grau)

Ensino FundamentalIncompleto (Antigo 1º Grau)

Nenhum Grau de Instrução

FIGURA 04: ESCOLARIDADE DOS ENTREVISTADOS.

Fonte e Org.: Márcio R. Carvalho

Na Figura 04, tem-se a distribuição do nível de escolaridade dos entrevistados nos

respectivos setores de bairros. Para o total de entrevistados, há uma distribuição eqüitativa,

com destaque para o ensino médio completo. Os entrevistados dos setores Centro, Centro-Sul

e Sudeste se destacam por níveis de escolaridade mais elevados, enquanto, os dos setores Sul,

Oeste, Leste e Nordeste e Norte têm níveis de escolaridade mais baixos, se aproximando da

distribuição dos dados apresentados pelo IBGE.

Considerando as Tabelas 05 e 06, “abastecimento de água” e “escoadouros de esgoto”,

torna-se complexa a análise sobre os setores Sudoeste, Sudeste e Centro-Sul. Enquanto na

cidade, mesmo nos bairros populares, o abastecimento de água e os escoadouros de esgoto

sejam providos de rede geral, os dados referentes a esses setores com os melhores indicadores

socioeconômicos, como vimos até agora, se distanciam dos demais setores:

TABELA 05: ABASTECIMENTO DE ÁGUA EM MARÍLIA/SP – AN O 2001. SETORES REDE GERAL POÇO OU NASCENTE OUTRA FORMA

Centro 99,06% 0,92% 0,03% Centro-Norte 99,93% 0,03% 0,03% Centro-Oeste 99,89% 0,05% 0,05% Centro-Leste 99,27% 0,73% - Centro-Sul 91,79% 8,21% - Noroeste 96,79% 3,17% 0,04% Nordeste 99,65% 0,22% 0,12% Sudoeste 87,41% 12,59% - Sudeste 94,58% 5,42% - Norte 99,19% 0,59% 0,22% Oeste 97,33% 2,48% 0,19% Leste 95,95% 3,98% 0,07% Sul 99,05% 0,72% 0,23%

MARÍLIA 98,49% 1,37% 0,14% Fonte: Fundação IBGE – Censo de 2000 (TEIXEIRA, 2002) Org.: M.R.Carvalho.

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TABELA 06: ESCOADOURO DE ESGOTO EM MARÍLIA/SP – ANO 2001.

Fonte: Fundação IBGE – Censo de 2000. (TEIXEIRA, 2002) Org.: M.R.Carvalho.

Com os mais elevados índices de rendimentos por chefe de família e escolaridade, o

setor Sudoeste tem o menor índice de abastecimento de água relativo à rede geral (87,41%) na

cidade (que tem uma média de 98,5%). O setor Sudeste e Centro-Sul têm 94,6% e 91,79%,

respectivamente, com presença de poços ou nascentes para o restante das residências. No que

se refere à rede geral de esgoto (Tabela 6), os setores Sudoeste (90,60%) e Sudeste (94,69%)

apresentam condições próximas a setores como o setor Oeste (90,03%) e Noroeste (91,39%),

regiões de bairros populares. Fenômeno, esse, que salta aos olhos apesar de, neste caso, os

dados não serem muito distantes da média da cidade (96,86%).

A utilização de outras fontes de abastecimento de água e a presença de outros

escoadouros de esgoto nesses setores Sudeste e Sudoeste que, aparentemente, nega as

condições sócio-espaciais apresentadas pelos demais índices se justifica nestes casos, em

parte, por essas regiões terem chácaras de recreio, em especial no segundo setor.

SETORES REDE

GERAL FOSSA

SÉPTICA FOSSA

RUDIMENTAR VALA RIO

OUTRO ESCOADOURO

Centro 99,90% 0,05% 0,03% 0,02% - - Centro-Norte 99,90% 0,03% 0,07% - - - Centro-Oeste 99,57% 0,27% 0,11% - - 0,05% Centro-Leste 99,62% 0,19% 0,15% - - 0,04% Centro-Sul 98,77% 0,12% - 1,05% 0,06% - Noroeste 91,39% 3,00% 0,04% 0,80% 0,40% 4,37% Nordeste 96,71% 0,05% 0,07% 1,02% 0,55% 1,60% Sudoeste 90,60% 8,94% 0,46% - - - Sudeste 94,69% 4,78% 0,53% - - - Norte 97,47% 1,67% 0,17% 0,68% 0,00% 0,01% Oeste 90,03% 1,45% 3,54% 2,70% 1,99% 0,29% Leste 96,50% 1,89% 0,70% 0,42% - 0,49% Sul 96,92% 0,71% 0,68% 1,31% 0,09% 0,29%

MARÍLIA 96,86% 0,99% 0,49% 0,86% 0,25% 0,55%

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FIGURA 05: ÍNDICE GERAL DE EXCLUSÃO SOCIAL DE MARÍL IA – 2001

Fonte: GUTO/UNESP. Orgs.: Alam G. Teixeira e Marcel S. Silva

Por fim, para a análise espacial das condições socioeconômicas pode-se observar a

Figura 5, “Índice Geral de Exclusão Social” (de acordo com a distribuição de bairros e setores

de bairros presentes na Tabela 09, p. 95), no qual os dados sócio-espaciais se confirmam. Os

setores que apresentaram as condições mais desfavoráveis em 2001 foram: setores Norte,

Nordeste, Centro-Oeste, seguidos pelos setores Sul, Noroeste e Oeste.

Por outro lado, as regiões que apresentaram melhores condições em termos sócio-

espaciais foram as que compõem os setores Sudeste, Sudoeste e leste, seguidos dos setores

Centro e Centro Sul. Isso confirma que as regiões periféricas da cidade se compõem de uma

população mais pauperizada ou, pelo contrário, são espaços típicos de camadas médias, como

a região do Jardim Aeroporto (setor Leste) e Campus Universitário (setor Sudoeste).

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Essas considerações, de uma flagrante fragmentação sócio-espacial que caracteriza os

diversos setores de bairros da cidade, com condições sociais assimétricas poderão, ainda ser

confrontadas com a dinâmica criminal, observada por Felix (1996 e 2002) e as demais

pesquisas empreendidas no GUTO/UNESP, como veremos na “geografia do crime” urbano

de Marília, no próximo tópico.

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2.3. A geografia do crime: elementos para uma análise da dinâmica criminal

Encantam-se os primeiros habitantes de Marilia, ao recordar os anos de 1924 e 1928, quando o champanhe corria a rodo, quando se jogava pra valer. Em 653 edifícios, somente três eram casas exclusivamente de moradia; 650, locais de comércio, dos quais 87 casas de tolerância. (MOMBEIG, 1952, p. 331, Apud PEREIRA, 1994, p. 07).

Esse registro de Marília por Mombeig (1952) concorda com Levis-Strauss (1957, p.

117) para quem cerca de 100 das 600 residências existentes eram “casas de tolerância” na

frente pioneira, às vésperas da elevação a município em 1929. Esses primórdios da “Nova

Califórnia” não se tratava de uma novidade no que se refere às cidades marcada pela atração

de homens adultos e sem família por uma nova fronteira de ocupação.

A “Nova Califórnia” atraía homens adultos, fato que justificava não apenas as “casas

de tolerância”, mas também as tipologias criminais da época, como constatado por Felix

(1996). As “casas de tolerância” se localizavam nos limites da região central chamada “Morro

do Querosene”, uma região que, mesmo após mais de 40 anos da transferência da “zona do

meretrício” para o então extremo oeste da cidade, ainda permite imagens e representações de

um lugar perigoso, em especial pela ocupação que se seguiu, marcadamente pauperizada.98

Segundo Felix (1996, p. 14), a “zona do meretrício” foi desativada a partir da década

de 50, quando se iniciou uma campanha de remoção e até de sua extinção, através da

imprensa e de discussões na Câmara Municipal. Esses debates se iniciaram em razão das

inúmeras notícias de ocorrências de homicídios e lesões corporais dolosas na região, mesmo

nem todas se relacionando com as atividades desenvolvidas na “zona do meretrício”.

Do bairro Alto Cafezal, das ruas que se avizinham aos fundos da Igreja Santo Antônio,

na parte oeste do centro, as casas foram removidas para o bairro do Realengo e Jardim

Coimbra (atualmente, estes bairros compõe o setor Oeste). Neste aspecto, na década de 1970

esses dois bairros figuravam entre os bairros com os mais altos índices de ocorrências

registradas pela Polícia Militar em Marília, conforme a Figura 06:

98 Felix (1996 e 1997) nos mostra que essa característica da cidade não encontrava equivalência nos espaços rurais, ocupados por famílias de imigração japonesa, de sorte que a primeira escola existente na cidade foi para esses imigrantes. Neste aspecto além das “casas de tolerância” no espaço urbano, uma série de conflitos relativos aos preconceitos que se reservavam aos japoneses compôs esse passado pioneiro da cidade. Em 1934, os japoneses representavam 16,6% da população do Município e 61,61% dos estrangeiros na cidade. Além disso, eles eram predominantes nas propriedades rurais compondo 42% dos proprietários agrícolas, para 28% de proprietários brasileiros (FELIX, 1997, p. 90). Como não sabiam falar português e pela cultura, os japoneses foram discriminados pelas autoridades e imprensa locais, tendo suas atividades vinculadas a organizações “criminosas” ou “terroristas” (FELIX, 1997, p. 93).

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FIGURA 06: ÍNDICES DE OCORRÊNCIAS ATENDIDAS PELA PO LÍCIA MILITAR DE

MARÍLIA, POR MIL HABITANTES/ANO, ENTRE 1970-1980. Fonte: Registros da Polícia Militar e Fundação IBGE – Censo de 1980. Org.: S. A. Felix

FIGURA 07: ÍNDICES DE OCORRÊNCIAS ATENDIDAS PELA PO LÍCIA MILITAR DE

MARÍLIA, POR MIL HABITANTES/ANO, ENTRE 1981-1991. Fonte: Registros da Polícia Militar e Fundação IBGE – Censo de 1991. Org.: S. A. Felix

A partir dessas figuras, têm-se as alterações dessa relação entre os boletins de

ocorrências criminais dos anos de 1970-1980 para os anos 1981-1991, em termos sócio-

espaciais. A região dos bairros Realengo e Coimbra, com a “zona do meretrício”, novamente

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removida, perde espaço no quadro criminal mariliense 99. Neste momento, ganham destaque

os novos espaços de ocupação localizados na “Zona Sul”, compostos pelo bairro Nova

Marília e os contíguos (“Jardim Planalto/Vila Real”, “Continental/Costa e Silva/Monte

Castelo”), perdendo apenas para a região central. Entretanto, é necessário observar que, na

Figura 07, eles se apresentaram abaixo da média.

Como vimos no tópico anterior, com a construção de 3.000 novas moradias, em 1982,

o bairro Nova Marília surgiu em curtíssimo espaço de tempo e sem os equipamentos urbanos

necessários. Dessa maneira, neste bairro se criou um espaço de conflitos que ficou impresso

nos índices criminais no período que se seguiu (mesmo havendo certa redução desses

registros com o passar dos anos) e, em particular, nas percepções de pessoas externas ao

bairro face ao passado “violento” e à segregação sócio-espacial provocada, de maneira que,

muitas vezes, é considerado “quase uma outra cidade”, tanto positivo quanto negativamente.

Porém, em relação à dinâmica criminal, Felix (1996, p. 209) aponta,

[que] analisando ano-a-ano, é evidente a redução de suas taxas ao longo do tempo, passado o primeiro momento de sua ocupação, evidenciando uma certa acomodação dos seus habitantes.

Os bairros Planalto, Vila Real, Continental, Costa e Silva e Monte Castelo (setor Sul),

por sua vez, são de ocupação anterior ao bairro Nova Marília, foram ocupados na década de

1970, mas somente a partir de 1985 passaram a apresentar problemas significativos,

acompanhando a dinâmica criminal que começava a sofrer o bairro Nova Marília.

Ainda pela Figura 07 o bairro Realengo e Jardim Coimbra (setor Oeste), quase

desapareceram do quadro, ao mesmo tempo em que surgiu um bairro vizinho, o Jardim

Marília, conhecido por “Vila Jardim”. Para Felix (1996, p. 210), isso se deve a possíveis

incompatibilidades entre os setores de bairros e dados da época trabalhados pela Polícia

Militar. O bairro conhecido como Vila Jardim está muito próximo dos bairros Realengo e

Coimbra e por muito tempo foi usado como referência de destino (ponto final) das linhas de

ônibus urbanos.

99 Segundo Felix (1996, p. 206), a “zona do meretrício” começou a ser desativada em meados da década de 70, praticamente desaparecendo do rol de bairros com maior criminalidade por volta de 1977. Após esse período, surgiu nos registros criminais um bairro próximo, Vila Coimbra, que absorveu parte da população do primeiro que ficou entre os de criminalidade mais intensa até 1982.

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FIGURA 08: BAIRROS COM MAIS OCORRÊNCIAS, POR MIL HA BITANTES/ANO, ATENDIDAS PELA POLÍCIA MILITAR DE MARÍLIA: PERÍODOS 1970-1980 E 1981-1991. Fonte: Registros da Polícia Militar e Fundação IBGE – Censos de 1980 e 1991. Org.: S. A. Felix

A Figura 08 demonstra essas variações da dinâmica criminal dos anos 1970-1980 e

1981-1991, com a permanência da região central entre os mais altos índices, inclusive de

modo crescente; o aparecimento de bairros da região Sul da cidade, acompanhando o

loteamento do bairro Nova Marília; e a diminuição dos dados relativos aos bairros Realengo,

Coimbra e Jardim Marília.

De acordo com as pesquisas de Felix (1996), no período de 1986-1993, a dinâmica

criminal em Marília apresentou algumas variações. A partir dos dados da Prefeitura Municipal

de Marília, Registros da Polícia Militar e Fundação IBGE, a pesquisadora compôs uma

setorização que espacializava os índices sócio-espaciais e criminais para uma comparação

entre os períodos de 1986, 1991 e 1993.

A setorização utilizada em 1996 para o período 1985-1993, encontra-se em anexo a

Tabela 07 (p. 92) acompanhada pela Figura 09 (p. 93), que contém quatro mapas do perímetro

urbano de Marília: um que apresenta os bairros nos 24 setores de bairros definidos na época,

além de três outros mapas de criminalidade: geral, contra o patrimônio e violentos (contra a

pessoa) referentes a este período.

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TABELA 07: BAIRROS DE MARÍLIA AGRUPADOS EM SETORES, ANO DE INSTALAÇÃO E ÍNDICE (número correspondente ao bairro nos Mapas da Figura 09), 1996.

Fonte: Prefeitura Municipal de Marília Org.: S. A. Felix e Desenho: Gustavo H. A. Felix.

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FIGURA 09

Mapas organizados por Sueli A. Felix e Desenhados por Gustavo Henrique A. Felix

DIVISÃO EM SETORES DE BAIRROS DE MARÍLIA - ANO DE 1996.

Fonte: Prefeitura Municipal de Marília.

CRIMINALIDADE GERAL, POR MIL HAB., EM MARÍLIA (1985-1993).

Fonte: Registros da Polícia Militar e IBGE.

CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO, POR MIL HAB. (1985-1993).

Fonte: Registros da Polícia Militar e IBGE

CRIMES VIOLENTOS (CONTRA A PESSOA), POR MIL HAB. (1985-1993).

Fonte: Registros da Polícia Militar e IBGE.

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Nos mapas referentes à criminalidade nos anos 1985-1993, produzidos por Felix

(1996, p. 259-261), destaca-se a região central com os mais altos índices criminais da cidade.

Isso corresponde à tese, desenvolvida por Felix (1996), de que os centros das cidades são os

lugares dos mais altos índices criminais pelo fator oportunidade (comércio, entretenimento,

sistema bancário) e pela alta densidade demográfica flutuante, mesmo em determinados

horários do dia apenas, e baixa densidade demográfica de moradores. Este é outro aspecto a

ser considerado nessa linha de análise, pois os índices criminais são calculados pelo número

de habitantes (nºs relativos) e na região central há mais comércio que moradias, o que

superlativa a relação crime por habitante. Nesses mapas, os bairros contíguos ao centro

acompanharam os elevados índices, dos bairros nas imediações do bairro Nova Marília.

Em 2001, foi utilizada uma primeira setorização nas pesquisas desenvolvidas pelo

GUTO/UNESP de onde resultaram os dados exibidos na Tabela 08: 100

TABELA 08: CRIMINALIDADE GERAL POR SETORES DE BAIRR OS – ANO 2001.

Fonte: Registros da Policia Militar. Org.: GUTO/UNESP.

Dados, esses, que apresentaram o setor Cascata/Maria Isabel (atual setor Sudeste) com

índices elevados, por vezes superando os dados do setor Alto Cafezal, que compreende a

região central da cidade. Outro setor que se destacava era o setor Salgado Filho/Cavalari

(atuais setores Oeste/Sudoeste), em todos os tipos de ocorrências criminais, “contra a pessoa”,

“contra o patrimônio” e “entorpecentes” (tráfico e uso).

Em 2001, foi produzida uma nova setorização pelo GUTO/UNESP e a Tabela 09,

contém os setores e respectivos bairros das Figuras 05, 10, 11 e 12 (p. 86, 96, 97 e 98),

respectivamente (no próximo capítulo explicaremos a utilização dessa nova setorização). 100 No Anexo A, podemos ver a 1ª setorização organizada pelo GUTO/UNESP.

SETORES DE BAIRROS CONTRA O

PATRIMÔNIO CONTRA A

PESSOA ENTORPECENTES (TRÁFICO E USO)

Alto Cafezal 827 20,4% 75 9,6% 26 7,9% Cascata / M. Izabel 802 19,8% 98 12,6% 33 10,1% Salgado filho / Cavallari 475 11,7% 65 8,4% 44 13,4% Palmital / São Miguel 325 8,0% 93 12,0% 40 12,2% Costa e Silva 305 7,5% 48 6,2% 6 1,8% Nova Marília 206 5,1% 65 8,4% 25 7,6% Monte Castelo / Planalto 202 5,0% 98 12,6% 44 13,4% Castelo Branco / Aquarius 200 4,9% 43 5,5% 25 7,6% Santa Antonieta 187 4,6% 59 7,6% 31 9,5% Jóquei Clube 123 3,0% 47 6,0% 7 2,1% J.k. / Prol. Palmital 120 3,0% 27 3,5% 13 4,0% Bandeirantes 109 2,7% 24 3,1% 5 1,5% Califórnia 91 2,2% 24 3,1% 18 5,5% Aeroporto 49 1,2% 7 0,9% 8 2,4% Altaneira 37 0,9% 5 0,6% 3 0,9% MARÍLIA 4058 100,0% 778 100,0% 328 100,0%

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TABELA 09: SETORES E RESPECTIVOS BAIRROS DE MARÍLIA (2001-2002) BAIRROS BAIRROS BAIRROS BAIRROS

DIST. IND. STO BARION AMALIA ALTO CAFEZAL ALTOS DA CIDADE

ADOLPHO BIM ANTONIO C. N. DA S. BARBOSA AEROPORTO

ALCIDES MATEUZZI A. DA S. PENTEADO BOA VISTA CECAP AEROPORTO

ALCIR RAINERI APARECIDA NASSER BOSQUE CHAC. VIUDES

ANIZ BADRA AZALEIAS DIRCEU COLIBRI

CAMELIAS BANCARIOS MARILIA ESTORIL

CESAR DE ALMEIDA CHAC. DOS LARANJAIS RODOLFO DA S. COSTA EUROPA

PQ. DAS NACOES CONQUISTA RODRIGUES ITAMARATI

PQ. DAS PRIMAVERAS CONTINENTAL SALGADO FILHO JEQUITIBA

DIST. INDUSTRIAL COSTA E SILVA SALIOLA LUCIANA

EDISOM DA S. LIMA DAMASCO SANTA OLIVIA NOVO HORIZONTE

IPANEMA DOMINGOS DE LEO

SE

TO

R C

EN

TR

O

SAO GERALDO RECREIO

JANIO QUADROS ELIANA DIAS MOTA AMERICA PROL RES. STA GERTRUDES

JULIETA ESPLANADA AMERICA ROMANA

LILIANA S. GONZAGA GUARUJA ANA CARLA SANTA GERTRUDES

CERQUEIRA CESAR HELENA BERNARDES AQUARIUS SAO DOMINGOS

NAZARETH HIPICA PAULISTA BASSAN ST. REC. NASCIMENTO

VILA NOVA ALMEIDA PARQUE DOS IPES CAVALIERI

SE

TO

R L

ES

TE

ST. REC. STA GERTRUDES

NUCLEO JK J. BATISTA TOFFOLI CECAP POLON FLAMINGO

PRESIDENTE JOQUEI CLUBE HERMINIO F. POLON ARGOLLO FERRAO

SANCHO F. DA COSTA L. HOMERO ZANINOTTO LORENZETTI CALIFORNIA

SANTA ANTONIETA MARAJO LORENZETTI B CAVALARI

SANTA ANTONIETA III MARIA ANGELICA MATOS MARAJA CHICO MENDES

SE

TO

R N

OR

TE

SASAZAKI MONTE CASTELO MARIA MARTHA COMERCIARIOS I

BELA VISTA NACIONAL OHARA COMERCIARIOS II

AMERICA NOVA MARILIA POLON HIGIENOPOLIS

BANDEIRANTES OPERARIA ALIMENT. II RIVIERA JOSE C. A. FERREIRA

CAVALIERI PAULO L. NOGUEIRA SANTA TEREZA J. TERUEL MARTINEZ

CAVALIERI II PLANALTO SAO FRANCISCO MARIA

D'ITALIA REAL SAO MIGUEL MIRANTE

ELDORADO REGINA

SE

TO

R C

EN

TR

O N

OR

TE

SOMENZARI MORUMBI

OLINDA SANTA CLARA JARDIM MARÍLIA PARAISO

OPERARIA ALIMENT I SANTA PAULA CHAC. SAO CARLOS POLYANA

PEROLA SAO JORGE COIMBRA REALENGO

PORTAL DO VALE SAO V. DE PAULO ELIANA RIO BRANCO

SE

TO

R N

OR

OE

ST

E

VIRGINIA TEOTONIO VILELA FONTANELLI SOUZA

EDSON JORGE JUNIOR VISTA ALEGRE IV CENTENARIO ST. REC. CEU AZUL

ACACIAS

SE

TO

R S

UL

VITORIA MONTOLAR ST. REC. PANAMBI

BARROS MARILIA SALGADO FILHO UNIVERSITARIO

CANAA ALTANEIRA SE

TO

R C

EN

TR

O O

ES

TE

SAO JOSE

SE

TO

R O

ES

TE

VIVENDAS

CASCATA ALVORADA CASADEI ACAPULCO

CASTELO BRANCO AMARANTE CHAC. ROSEIRAS ARAXA

FERNANDO MAURO BANZATO DAS INDUSTRIAS CAMPUS UNIVERSITARIO

FLORESTA BETANIA FRAGATA SALGADO FILHO

JOSE A. DA S. RIBEIRO BETEL FRAGATA C SAO GABRIEL

LAVINIA CRISTO REI FRAGATA D

SU

DO

ES

TE

SERRA DOURADA

LIRIOS FLORA RICA ITAIPU MARIA IZABEL

MARAMBAIA MARAJOARA PARATI DAS ESMERALDAS

MARIANA PROGRESSO PORTAL DO SOL DAS ESMERALDAS II

MARILIA SANTA LOURDES

SE

TO

R C

EN

TR

O S

UL

PORTAL DO SOL II ST. REC. MARIA IZABEL

PALMITAL

SE

TO

R C

EN

TR

O L

ES

TE

SAO JOAO TANGARA

SE

TO

R N

OR

DE

ST

E

SAO PAULO

SU

DE

ST

E

TROPICAL

FONTE: GUTO Org.: M D. Toigo.

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As informações do ano de 2001 são confirmadas em 2002, conforme as Figuras 10 e

11, em todas as pesquisas que se seguiram101. Na nova setorização, o setor Salgado

Filho/Cavalari foi dividido nos setores Sudoeste e Oeste que apresentaram índices superiores

a média da cidade, particularmente o setor Sudoeste, onde está o Campus Universitário.102

FIGURA 10: TOTAL DE BO’s POR SETORES DE BAIRROS – 2001

Fonte: GUTO/UNESP. Orgs.: Marceu D. Toigo, Leandro R. Laiter e Marcel S. Silva.

101 No Anexo B estão as classificações de ocorrências referentes às pesquisas de 2001-2002. 102 Essa região do campus universitário tem aparecido nos jornais com casos de homicídios que foram manchetes no jornal Diário: rapaz baleado e vigia morto na UNIMAR em “Rapaz...” (2006) e “Vigia...”(2006). Além disso, essa região tem apresentado problemas como o divulgado na reportagem “130 quilos de maconha apreendidos na saída para Assis” (2005, p.04), que por ventura é a região oeste da cidade: “a droga de péssima qualidade seria distribuída na região na região, embora eles [os presos] tenham afirmado que seria para uso próprio”.

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FIGURA 11: TOTAL DE BO’s POR SETORES DE BAIRROS – 2002

Fonte: GUTO/UNESP. Orgs.: Marceu D. Toigo, Leandro R. Laiter e Marcel S. Silva

O setor Sudoeste permanece nos dois mapas com os mais altos índices criminais,

mesmo quando se observam variações em outros setores de bairros, exceto os setores Centro e

Centro Sul que mantiveram os altos índices; e os setores Sul, Norte, Leste e Noroeste que

mantiveram índices baixos em relação à média da cidade. No entanto, essas variações não

foram significativas, com exceção do setor Centro-Leste, que passou de 8,8 ocorrências/1000

hab. para 56,8 ocorrências/1000 hab. entre os anos de 2001 e 2002.103

103 Essas variações do setor Centro-Leste podem ser explicadas por fazer parte da região central e possuir inúmeros estabelecimentos públicos.

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Os bairros próximos, também freqüentados pelos estudantes universitários,

particularmente aqueles que residem nas imediações, também apresentaram índices

correspondentes, o que torna a análise desse segmento da população local um objeto em

particular dos fenômenos criminais e de suas sociabilidades. A Figura 12 é uma mera

ilustração que destaca os espaços de concentração de estudantes e que, como já lembrado, por

não serem computados, maximizam os índices criminais.

FIGURA 12: CONCENTRAÇÃO DOS ESTUDANTES DE 3º GRAU NOS SETORES DE

BAIRROS. Fonte: GUTO/UNESP. Org.: Alam G. Teixeira.

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Não se trata de criminalizar os estudantes, uma vez que, devido ao fato de não serem

computados nos censos do IBGE, podem ter os dados criminais superestimados. Não é

possível fazer uma análise precisa de quanto se superestima os dados. Sabe-se que este é um

lugar “à parte” da cidade, com uma “comunidade flutuante” difícil de ser mensurada – até

mesmo para o IBGE – e, por essa razão, qualquer afirmação sobre o campus universitário

merece uma pesquisa atenta a esses diversos aspectos, sobretudo por evidenciar um problema

tão candente. Algumas hipóteses podem ser aventadas: o fato de não se constituir um bairro

“comum”, nem espacialmente, em razão da quase exclusividade de prédios e casas térreas

para as “repúblicas”; tampouco temporalmente os períodos de férias são marcados pelo

deserto humano em meio a tantos prédios, que contrasta com o grande adensamento ao longo

dos demais meses, o que torna alvo fácil para roubos e arrombamentos das residências.

Porém, os diversos aspetos sócio-culturais que envolvem a questão devem ser

pautados a partir da importância da especulação imobiliária no bairro dirigida a esses

estudantes, demonstrada nos jornais citados e, também, do papel das universidades

particulares na política – e imprensa – local que, de alguma maneira, podem minorar os

problemas relativos a esses “lugares dos estudantes”. Ao demonstrar a propaganda pautada no

discurso de violência e segurança dos condomínios horizontais fechados em Marília, Delicato

(2004, p. 48) apresenta a fala de um corretor de um desses condomínios:

[...] o condomínio é uma tendência mundial, não vou falar que lá fora não presta, eu moro lá fora ainda, (...) hoje em dia é mais calmo, mas Marília já é uma mini-capital, infelizmente é rota de drogas, as universidades com 15 mil alunos são mercados consumidores prá tudo...

Depreende-se dessa citação que a questão do campus universitário não é simples,

afinal, envolvendo interesses diversos e, portanto, tratados ambiguamente pelo capital

imobiliário: dependendo do que se quer vender, os universitários são aclamados como

consumidores “prá tudo”, hotéis e repúblicas (p. 82), mas também para a “rota das drogas”.

Mas o que fica de significativo nestes dados gerais sobre as ocorrências criminais de

2001 e 2002 é o fato de os setores Norte e Sul, regiões que freqüentam os noticiários

criminais, no conjunto da cidade apresentarem dados comparativamente baixos. Algo que

parece justificar tal exposição nos jornais locais é, além das estigmatizações desses bairros

populares, o fato de a relação apresentada no mapa ser computada por mil habitantes (juntos,

têm 44,62% da população total da cidade ou 82.672 de 185.275 habitantes), enquanto as

notícias de ocorrência, além do sensacionalismo midiático, não trabalham com informações

relativas ao número de habitantes. Fato que, sem as devidas proporções, podem fornecer a

idéia de que sejam as regiões mais perigosas da cidade, embora os dados atestem o contrário.

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Considerações do Capítulo 2

Para rememorar os principais aspectos abordados neste capítulo, deve-se considerar a

dificuldade em lidar com as diversas setorizações apresentadas sobre a cidade de Marília e,

portanto, o esforço em reunir um quadro de elementos sob as dimensões históricas, sócio-

espaciais e da dinâmica criminal que, no conjunto, nos permitisse o melhor tratamento das

informações estudadas, quanto a apreciação dos leitores. Podemos, assim, apontar os aspectos

mais relevantes tratados:

A cidade de Marília se conforma histórico e espacialmente no oeste paulista a partir

das condições econômicas e políticas do início do século XX calcadas na produção agrícola

em torno do café, algodão e amendoim. Assim, a formação da cidade esteve marcada pela

industrialização relativa a esses produtos e à caracterização de “pequena capital” regional.

Mas, além disso, foi consubstanciada por uma nova concepção de terra, característica ao

capitalismo: a “terra-mercadoria” que, nos espaços urbanos, se releva nos termos da

especulação imobiliária, ampliando e segregando o espaço urbano. Em Marília, a expressão

desses processos está na formação de bairros populares nos limites norte e sul – bairros Santa

Antonieta (setor Norte) e Nova Marília (setor Sul), também os distritos industriais – e de

bairros característicos para o seu pólo de “serviços” nos limites oeste – o Campus

Universitário (setor Sudoeste) – respeitando o eixo rodoviário no entorno da cidade.

Esse détour histórico de Marília parece ter imposto a caracterização dos tempos mais

recentes de suas condições sócio-espaciais verificadas nas pesquisas do GUTO/UNESP. A

cidade se apresenta uma segregação sócio-espacial que, para a nossa sorte ou desespero,

facilita a análise dos aspectos econômicos e demográficos de seus bairros. A setorização feita

pelo GUTO/UNESP demonstra que, como vimos, as regiões de bairros mais “sensíveis” no

que se refere à acessibilidade dos bens urbanos são aqueles que se localizam em suas

periferias – Santa Antonieta, Parque das Nações (setor Norte), Castelo Branco, Vila Barros

(Nordeste), Jardim Bandeirantes (Noroeste), Argolo Ferrão, Califórnia, Cavalari e Flamingo

(Oeste) e Nova Marília, Jardim Marajó, Parque dos Ipês e CDHU (Sul), com exceção das

regiões “abastadas”, com forte presença de bairros estritamente residenciais e condomínios

fechados horizontais – bairros Esmeralda (Sudeste), Aeroporto (Leste), Salgado Filho e

Acapulco (Sudoeste) e Parati e Itaipu (Centro-Sul).

Entretanto, a dinâmica criminal percebida na cidade colore sobremaneira as idéias que

se produzem sobre o crime e a violência em Marília. A dinâmica criminal de Marília revela

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101

que, embora alguns bairros populares tenham aparecido durante certo tempo nas estatísticas

criminais de maneira elevada, em sua maioria não constituem espaços exclusivos de

problemas criminais, mesmo nos termos estatísticos – se considerarmos as críticas feitas no

primeiro capítulo aos vieses estatísticos (nos estudos do GUTO/UNESP foram estabelecidos

de maneira diversa das demais estatísticas) em especial aquelas que querem demonstrar a

causa do crime e da violência na pauperização dos bairros.

Pelo contrário, ao apresentar a dinâmica criminal versus dinâmica demográfica, tem se

a elevação dos bairros mais “abastados”, citados acima, como sendo os lugares com maiores

índices criminais, não somente de crimes contra o patrimônio, como normalmente é aventado,

mas de todos os tipos de crime. Essa expressiva incidência de eventos criminais parece estar

relacionada diretamente: às relações que os sujeitos estabelecem nestes espaços em que a vida

privada e a discrição em seus “enclaves” parece ser tão aclamada (particularmente os bairros

que compõem os setores Sudoeste, Centro-Sul e Sudeste); ou ainda, em “lugares à parte da

cidade” que ao segregar uma região “que vive praticamente dos estudantes” parece ofertar

uma condição sócio-espacial que se evidencia em índices criminais e na “emigração” dos

estudantes “veteranos” para outras regiões, como é o caso do campus universitário (Sudoeste).

Os bairros populares, igualmente citados acima, não aparecem sob grande destaque na

dinâmica criminal, senão pela característica de serem bairros com índices criminais abaixo da

média da cidade. A exceção somente ocorre no momento em que eles são forjados

abruptamente conforme as políticas urbanas que os alojam de acordo com as expectativas de

venda da terra de novos loteamentos e de expulsão dos “pobres” das áreas centrais sob o signo

de projetos de moradia social que oferta a realização do “sonho da casa própria”, como foi o

caso do bairro Nova Marília (setor Sul) e pode ser, ainda, a experiência a ser vivida nas novas

“fronteiras” urbanas demarcadas por novos loteamentos populares.

Esses aportes históricos, sócio-espaciais e da dinâmica criminal, aqui apresentados,

conferem uma caracterização dos “lugares da cidade” em Marília, mas precisam ser

confrontados com as percepções apreendidas pelas entrevistas realizadas nos diversos setores

de bairros. Assim, no próximo capítulo, vislumbraremos algumas relações possíveis entre

esses múltiplos aspectos, com as percepções em uma relação que inscreve os aspectos

positivos (nos termos “topofílicos”) e negativos (em relação à “topofobia” ou “paisagens do

medo” urbano) sobre o próprio bairro, de outros bairros ou da própria cidade.

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Capítulo 3

Percepções em confronto

Uma análise das percepções apreendidas em Marília/SP

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103

Para compreender o que se passa em lugares [...] como os “conjuntos habitacionais” ou os “grandes conjuntos” [...], não basta dar razão de cada um dos pontos de vista tomados separadamente. É necessário também confrontá-los como eles o são na realidade, não para os relativizar, deixando jogar até ao infinito o jogo das imagens cruzadas, mas, ao contrário, para fazer aparecer, pelo simples efeito de justaposição, o que resulta do confronto de visões de mundo diferentes e antagônicas: isto é, em certos casos, o trágico que nasce do confronto sem concessão nem compromisso possível de pontos de vista incompatíveis, porque igualmente fundados em razão social (BOURDIEU, 1997, p. 11).

Como empreender uma pesquisa em uma cidade média do interior paulista como

Marília em busca do que chamamos de percepção espacial – em particular, do crime e medo?

Nosso objeto de pesquisa é uma cidade apreensível aos olhos, se tomarmos seus limites

físicos a partir de seus pontos mais altos – com exceção de suas tantas favelas que ficam nas

“beiradas” dos “buracões” e, diversamente dos condomínios horizontais fechados, novos

empreendimentos imobiliários na “beira do vale”, visíveis sempre pela abrangência de seus

terrenos e altos muros. Porém, quando nos dirigimos a uma pesquisa que teria a totalidade de

seus moradores por objeto – sob uma amostragem, é claro – nosso intento tornou-se complexo

e dificultoso de tal maneira que, aqui, não podemos caracterizar nossa pesquisa como tendo

sido de um “extenuante esforço”, mas apresentar seus passos, no primeiro tópico, como notas

metodológicas fundamentais para quaisquer pesquisas dessa natureza.

Em seguida estão os tópicos referentes aos resultados da pesquisa de campo. Cada um

deles apresenta as percepções apreendidas nos diversos setores de bairros de Marília,

conforme a divisão de temas que estabelecemos a partir das discussões apresentadas nos

capítulos anteriores e do conteúdo das entrevistas aplicadas:

1) No segundo tópico apresentaremos as percepções que se referem ao sentimento de

“topofilia”, cunhado por Tuan (1980), tendo em vista as percepções positivas dos sujeitos em

relação aos bairros em que residem, demonstrando como essas percepções se inscrevem nos

termos sócio-espaciais apresentados pelos dados trabalhados no capítulo anterior;

2) No terceiro tópico, por sua vez, os temas relativos à “topofobia” ou “paisagens do medo”,

também de Tuan (2005) serão discutidos em relação às percepções e aos dados criminais;

3) No tópico sobre outras percepções, terceiro tópico, tanto as percepções positivas quanto

negativas dos sujeitos serão apresentadas, porém, estarão selecionadas aquelas que se referem

aos outros espaços da cidade, tendo em vista o confronto entre as “percepções externas” e as

percepções dos moradores dos respectivos bairros citados.

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3.1. Notas metodológicas sobre as agruras e descobertas na pesquisa de campo.

À tentação sempre renascente de transformar os preceitos do método em receitas de cozinha científica ou em engenhocas de laboratório, só podemos opor o treino constante na vigilância epistemológica que, subordinando a utilização das técnicas e conceitos a uma interrogação sobre as condições e limites de sua validade, proíbe as facilidades de uma aplicação automática de procedimentos já experimentados, e ensina que toda operação por mais rotineira ou rotinizada que seja, deve ser repensada, tanto em si mesma quanto em função do caso particular. (BOURDIEU, 1999, p. 14).

Essa epígrafe de Bourdieu (1999) nos impele a fazer o exercício sempre necessário de

apresentação dos procedimentos e razões metodológicas que imperam no processo de

construção de uma pesquisa de campo. Para ele, o “fazer sociológico” requer, nos termos da

“vigilância epistemológica”, uma reflexão rigorosa da utilização dos conceitos e

“ferramentas” referendados em qualquer pesquisa que não se proponha uma “sociologia

espontânea” – como vimos no primeiro capítulo (nota 02, p. 19) – mas, também, uma reflexão

igualmente rigorosa das “ferramentas” e procedimentos empreendidos por meio dos métodos

e técnicas de pesquisa. É evidente, como poderá ser apreciado, que não realizaremos

apontamentos teórico-metodológicos na profundidade que eles merecem, mas apresentaremos

os procedimentos utilizados e, sobretudo, as dificuldades encontradas nesta tentativa de

alcançar as percepções do espaço – do crime e medo – nesta cidade média do interior paulista.

Apresentamos, no projeto inicial enviado à FAPESP, que teríamos como amostragem

para a cidade de Marília, de 200 mil habitantes, 1 (uma) entrevista para cada 5.000 (cinco mil)

habitantes, respeitando a setorização do GUTO/UNESP – deixamos para falar da setorização

adotada neste tópico por achar mais conveniente colocá-las nesta discussão metodológica. Tal

como apresentada nas tabelas, gráficos e mapas presentes no capítulo anterior, Marília tem

sido dividida em diversas regiões, nas pesquisas de Felix (1996) e dos demais membros do

GUTO/UNESP, de acordo com os dados socioeconômicos, buscando agrupar bairros com

evidencias sócio-espaciais equivalentes de tal sorte que os mapas desenvolvidos expressassem

um “retrato” fiel das condições sócio-espaciais distribuídas na cidade.104

104 Os diversos dados que compõem a setorização trabalhada pelo GUTO/UNESP, se originam das evidências sócio-espaciais (equipamentos urbanos e serviços públicos, condições de habitação, renda, escolaridade e outros) de acordo com as fontes fornecidas pela Fundação IBGE e pelas Secretarias Municipais do Planejamento Urbano, Bem-Estar Social e Saúde, além do Comitê Gestor de Segurança e Qualidade de Vida e da Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano EMDURB.

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105

Como foi possível ver na Tabela 07, “Setores e respectivos bairros de Marília (2001-

2002)” (p. 92), são 205 bairros na cidade, muitos dos quais minúsculos, com alguns se

compondo de apenas um quarteirão quadrado (10.000 m²), flagrante confusão conceitual entre

loteamento e bairro. Assim, a divisão por setor adotada pelo GUTO/UNESP, quase

integralmente assimilada no Plano Diretor do Município, compõe-se de agrupamentos de

bairros que respeitam as diferenças sócio-espaciais e buscam compatibilizar os dados do

IBGE com a base espacial (bairros e loteamentos) para a inserção e análise dos dados

criminais retirados dos B.O.s criminais e das percepções advindas das entrevistas. 105

Neste aspecto, a setorização e definição de uma entrevista para cada 5 mil habitantes

nos treze setores de bairros facilitou, e muito, não somente a difícil tarefa de decidir quantos

moradores de Marília entrevistaríamos para alcançar as percepções, mas sobretudo, a relação

entre as percepções e os dados (sócio-espaciais e criminais, conforme vimos no capítulo

anterior)106. Abaixo, a distribuição das entrevistas conforme os setores de bairros:

POPULAÇÃO

8.328

11.922 5.023 52.12630.546

28.1281.483

5.77611.564

10.046

6.5408.3665.427

CentroCentro-NorteCentro-OesteCentro-LesteCentro-SulNoroesteNordesteSudoesteSudesteNorteOesteLesteSul

ENTREVISTAS

3

322226

12

7

3 2 11

FIGURA 13: SETORES DE BAIRRO, POPULAÇÃO E ENTREVIST AS (1/5.000 HAB).

Fonte: GUTO/UNESP Org: M. R. C.

No entanto, abordar 46 (quarenta e seis) sujeitos com um universo amostral potencial

de 200 mil habitantes apresentou algumas dificuldades, em particular por se tratar de

abordagem aleatória, nas ruas, praças e esquinas dos bairros, com um pequeno gravador a

tiracolo. Nesse aspecto, nossos entrevistados não eram de um bairro apenas, de uma entidade

a ser estudada, de uma comunidade específica ou de algo circunscrito. Tratava-se do mesmo

105 Em Marília, os limites territoriais dos setores censitários raramente coincidem com os limites dos bairros, o que exige adaptações espaciais para a utilização dos dados do IBGE, sem adulterar os resultados, visto não ser raro um setor censitário abranger frações de bairros com características históricas, espaciais, de condições sócio-econômicas dos moradores, totalmente diversas. 106 É bom destacar que, no setor Sudoeste, a população local supera os 1.483 habitantes, se levarmos em conta os estudantes universitários que moram na região, não contabilizados pelo Censo de 2000 do IBGE.

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106

público alvo das pesquisas de opinião, porém, com entrevistas gravadas e perguntas se

referindo ao crime ou ao medo, preferencialmente, em frente às suas residências.107

A aleatoriedade tinha por objetivo uma amostragem que nos permitisse contatar toda a

sorte de sujeitos que residisse em Marília, desde jovens aos mais velhos, homens e mulheres

(buscando uma equivalência em toda a pesquisa, com variações que respeitassem a

amostragem dos diversos setores), enfim, todos aqueles que nos recebessem em seus portões e

calçadas e, por alguns instantes, nos confiassem suas palavras.

Como está demonstrado na Figura 14, houve preocupação em aplicar as entrevistas

com equivalência de gênero, distribuído nos treze setores. Como o número de entrevistas

variava de setor para setor, tivemos a devida atenção em abordar os sujeitos de modo a

garantir a maior proximidade da representatividade de gênero na sociedade. Apenas em dois

setores ocorreu um desvio desse propósito, Setor Centro-Sul e Setor Sudoeste. Na busca da

paridade, o resultado pareceu satisfatório:

1 1 1 1 1 41

1 41 1 6 23

2 2 1 12

1 2 1 32 1 5 23

Centro

Centro

-Nor

te

Centro

-Oes

te

Centro

-Les

te

Centro

-Sul

Noroe

ste

Norde

ste

Sudoe

ste

Sudes

teNor

teOes

teLe

ste Sul

Mar

ília

Mulheres

Homens

FIGURA 14: ENTREVISTADOS E RESPECTIVOS SETORES DE BAIRRO (POR GÊNERO).

Fonte e Org.: M. R. C.

Outro quesito relevante e tratado com cuidado refere-se à “faixa etária” dos

entrevistados, Figura 15. Mesmo sem seguir um controle absoluto, mas cuidando para

diversificar as idades no momento da abordagem, o resultado foi satisfatório. As duas figuras,

14 e 15, são meros instrumentos que ilustram a distribuição razoavelmente equilibrada entre

as faixas etárias, pois foram poucas entrevistas para uma análise quantitativa.108

107 Realizamos as entrevistas através da técnica do gravador, tendo consciência de que não alçaríamos qualquer objetividade, se levarmos em conta as palavras de Pereira de Queiroz (1991, p. 94) quando afirma “[que] os meios mecânicos são enaltecidos porque permitem um afastamento do pesquisador e de sua subjetividade na coleta de dados; possibilitam, dessa forma, dados muito mais próximos da realidade, sem a distorção trazida pelas emoções dos estudiosos. Porém, no momento em que o estudioso se volta para o aproveitamento do material que colheu, então a subjetividade e as emoções se tornariam fundamentais [...]”. Como considera essa autora, tanto o pesquisador quanto o entrevistado têm suas opiniões e valores numa base coletiva e, desse modo, urge se pensar a subjetividade de ambos os sujeitos, como pertencentes não somente ao indivíduo, mas correspondente ao grupo social em que este vive. 108 Isso somente foi possível porque as entrevistas foram realizadas aos sábados e domingos, no período da tarde. Em outra ocasião, na pesquisa de iniciação científica, em razão da ampla amostragem – 254 questionários em

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107

0%

20%

40%

60%

80%

100%

Centro

Centro

-Nor

te

Centro

-Oes

te

Centro

-Les

te

Centro

-Sul

Noroe

ste

Norde

ste

Sudoe

ste

Sudes

teNor

te

Oes

teLe

ste Sul

Mar

ília

mais de 50

de 40 a 49

de 30 a 39

de 20 a 29

até 19

FIGURA 15: FAIXAS ETÁRIAS DOS ENTREVISTADOS.

Fonte e Org.: M. R. C.

Mas, antes de mais nada, nos perguntávamos: como seria possível apreender as

percepções dos sujeitos e alguns elementos da relação sujeito-espaço, em particular às idéias

que se produzem sobre o espaço vivido? Como os sujeitos avaliam o bairro, se freqüentam os

espaços diversos destes e o que pensam sobre os demais bairros e a cidade? Para realizar essa

tarefa, nos baseamos em Pereira de Queiroz (1991) tanto sobre a possibilidade da técnica do

gravador quanto da concepção de “entrevista semi-orientada”.109

A partir disso, partimos para a elaboração de um questionário-base para as entrevistas,

uma contribuição visto o conjunto de entrevistas ser razoavelmente alto e, nesse sentido,

necessário para construir alguma técnica de abordagem que facilitasse a sua aplicação. 110

Em geral, 46 (quarenta e seis) entrevistas, nas pesquisas, não é um número tão alto e é

até exeqüível, porém, a coleta de dados e a realização das entrevistas nem sempre são

definidas previamente, o que foi o nosso caso, ainda mais quando nosso intento era realizá-las

todas por meio do gravador. Portanto, como sabíamos que deveríamos respeitar a amostragem

pré-definida, distribuída equitativamente pelo espaço, a preocupação era atingir esse número

sem prejuízo de nenhum setor. Dessa maneira, optamos por aplicar o questionário de modo

que também servisse como teste para as entrevistas. Com esse propósito, contemplaríamos a

seis setores de bairros: Centro-Sul e Sudeste (67 questionários); Centro e Centro-Oeste (108 questionários); e Sudeste e Sudoeste (79 questionários) – não foi possível restringir-nos aos finais-de-semana, incorrendo em elevado número de entrevistados com mais de 50 anos, segmento que permanecia nas residências nos dias de semana. Esse fato provocou desvio estatístico, não sendo possível avaliar a dimensão, superestimando a participação de uma faixa etária e, portanto, não correspondendo aos dados demográficos em alguns bairros. 109 Para a definição de “entrevista”, Pereira de Queiroz (1991, p. 58) considera que existem três rumos distintos na captação de informações com a técnica do gravador: “1) entrevista orientada por perguntas do pesquisador, em uma utilização do diálogo, em que falam alternadamente o pesquisador e o informante, este não tendo liberdade de conduzir a conversa, nem tendo iniciativa de fala; 2) entrevista com roteiro ou semi-orientada, em que o pesquisador de tempos em tempos efetua uma intervenção para trazer o informante aos assuntos que pretende investigar; o informante fala mais do que o pesquisador, dispõe de certa dose de iniciativa, mas na verdade quem orienta todo o diálogo é o pesquisador; 3) finalmente, entrevista realmente livre” (grifo nosso). 110 O questionário-base foi elaborado a partir de entrevistas-testes, realizadas com o modelo utilizado na pesquisa de iniciação científica. O modelo aplicado como subsídio às entrevistas gravadas consta como Anexo C).

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108

amostragem apresentada e quando conseguíssemos gravar alguma entrevista, elas nos

serviriam para ilustrar os resultados.

Assim, em um primeiro momento, realizamos mais de uma dezena de entrevistas não

gravadas, apenas com o questionário impresso. No entanto, o questionário não nos garantia

adentrar nas falas dos sujeitos que entrevistávamos, o que se revelou um triste desalento.

Naquele instante, era necessário irmos além dos questionários e encontrar alguma maneira de

gravar as entrevistas.111

Em seguida, decidimos que a entrevista gravada seria após a aplicação do

questionário. Uma vez realizadas as questões gerais, solicitaríamos licença para usar o

gravador no segundo momento, de acordo com a disponibilidade do entrevistado. Porém, um

após o outro foram demonstrando que a gravação da entrevista em outra ocasião seria quase

impossível. Um viajaria, outro dependeria do tempo de trabalho variável e, enfim, outros

sempre se constrangendo com a utilização do gravador. Concluímos, assim, que a intenção de

aplicar em momentos distintos, de modo a ganhar a confiança do entrevistado, também não

funcionaria pelo excesso de trabalho que a multiplicação das abordagens acarretaria no

intento de gravar as quarenta e seis entrevistas.

Felizmente, após alguns encontros, questionários aplicados e convites para entrevistas

posteriores com o uso do gravador confirmadas ou recusadas, encontramos em uma senhora

do bairro Lorenzetti (setor Centro Norte) um norteamento espontâneo. Diferente do que

havíamos feito outrora, abordamos essa senhora conversando com uma vizinha. Não estar

sozinha, encorajou-a em atender nossa entrevista. Além disso, como ela disparou a falar sobre

os problemas do bairro e da cidade, apresentamos o questionário e a convidamos para a

entrevista gravada, tal como se fossemos “repórteres”. De posse do questionário, ela aceitou

gravar a entrevista e o questionário tornou-se nosso “suporte-convite” para as gravações.

Essa experiência bem sucedida, de abordagem com pessoas acompanhadas de amigos

e com o questionário para prévio conhecimento pelo entrevistado, pôde ser repetida e,

somente a partir desse terceiro momento, transcorreu a aplicação das entrevistas sem grandes

transtornos, inclusive nos casos em que os sujeitos se recusavam a fazê-las, o que não foi

111 O desalento se revelou, neste momento, porque de algum modo não podíamos refazer per se a pesquisa de iniciação científica, baseados em questionários, sobretudo quando, naquele momento, amostragem era superior à apresentada para o mestrado (trocaríamos 254 por 46 questionários, em uma pesquisa que ampliava de seis setores de bairros para os trezes setores de Marília?). Além disso, os questionários tinham nos revelado elementos importantes, em especial, em frases dos entrevistados que não apenas respondiam “sim” ou “não” às perguntas, mas que, sem o uso do gravador, ficaram nos limites da memória e, exatamente por essa razão, é que se justificava a presente pesquisa. Logo, não era possível dispensar tal técnica do gravador.

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109

recorrente. O questionário foi o nosso “cartão de visitas” para gravar as entrevistas, sobretudo

nos bairros em que não há vida pública, residenciais de classe-média e alta como Aeroporto

(setor Centro-Leste), Esmeralda e Tangará (Sudeste), Fragata e Parati (Centro-Sul).112

Dessa maneira, o questionário, além de ser um “convite” à entrevista gravada, dando

segurança ao entrevistado sobre as perguntas que seriam feitas, foi também um suporte que

orientava a estrutura da entrevista, facilitando a análise das questões e suas respostas.

Embora o questionário simplificasse a entrevista nos termos de respostas mais curtas,

isso não foi uma constante. A profundidade das respostas e a possibilidade de incluir outras

perguntas deveu-se a particularidade de cada entrevistado: alguns “monossilabicamente”

(produzindo resultados apenas nos termos estatísticos), mas muitos outros apresentaram

elementos importantes para o objetivo proposto. Houve ainda, aqueles que, por força de suas

respostas “empolgadas”, alongavam os temas e divagavam sobre outros, o que nos exigia a

sugestão restritiva do questionário, sempre em mãos, para retornar ao ponto em que

necessitávamos pensar. Isso significa que sempre pudemos ter uma noção exata da entrevista

em seu conjunto, facilitando o tratamento destas. 113

Por outro lado, inúmeras foram as vezes em que terminávamos com a sensação de não

ter alcançado os objetivos. Nas melhores ocasiões, quando os entrevistados se punham a

conversar após desligar o gravador, apreendemos algumas outras idéias que tinham escapado

de suas mentes. Assim, o pedido oportuno de gravar novamente aquelas passagens pôde ser

feito, repetindo com precisão o que na conversa posterior foi abordado.114

112 No Jardim Aeroporto (setor Leste), um senhor que entrevistamos, no primeiro momento, se recusou a fazer a entrevista. Conscientes da dificuldade de entrevistar moradores naquela região, passamos a conversar, sentando ao seu lado na calçada. Alguns instantes depois, ao ler o questionário, esse senhor aceitou fazer a entrevista, de onde saiu uma das brilhantes imagens sobre os “vales” ou “buracões” de Marília, apresentada na p. 64. A diferença apontada por Caldeira (2000, p. 14) na dificuldade dos pesquisadores ao acesso dos sujeitos de bairros populares e bairros de classe-média alta estava para nós confirmada mais uma vez – diferença que já conhecíamos desde a pesquisa de iniciação científica: “[enquanto] os bairros da periferia ainda tem uma vida pública e são relativamente abertos à observação e participação, nos bairros residenciais das classes média e alta a vida social é interiorizada e privatizada e há pouca vida pública. [...] nesses bairros os observadores são vistos com suspeita e tornam-se alvo dos serviços de segurança privada”. 113 A análise das entrevistas seguiu as sugestões de Caldeira (2000, p. 58) para, após a transcrição das entrevistas: 1) Revisão e análise da estrutura da narrativa e das opiniões dos entrevistados sobre diferentes temas e tópicos pré-estabelecidos; 2) Gerar listas de temas que pareceram centrais e recorrentes; 3) Marcar nas entrevistas as citações correspondentes aos temas identificados; 4) Produzir um índice para cada entrevista; e, finalmente, 5) Produzir um índice geral de índices. Com esses procedimentos foi possível manejar as entrevistas de modo a agrupar as citações por temas, analisando-as novamente e organizando-as no texto. 114 Nosso intuito era “entrevista semi-orientada” (conforme a Nota 109). Porém, as dificuldades na abordagem obrigaram a variar entre o primeiro e o segundo tipo, de acordo com as características de cada entrevista. O uso do questionário como “convite-suporte”, portanto meio de abordagem, fez com que algumas entrevistas se aproximassem da “entrevista orientada”, quando alguns entrevistados quase liam as perguntas e respondiam

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110

É sobre esse último aspecto que essa pesquisa apresentou-se como uma experiência

edificante nos termos metodológicos e da abordagem dos sujeitos entrevistados quando, de

um modo geral, eles se dedicaram, cada qual a seu modo, em garantir que fizéssemos nossa

tarefa, sempre apresentada como um “trabalho de faculdade”.

Assim, o cuidado com a fala e a tentativa de contemplar as perguntas feitas, para além

das ressalvas que sabemos imperar em cada entrevista, sejam elas: a expectativa de influência

positiva ou negativa para o futuro do entrevistado; quebra de espontaneidade; “desejo de

agradar”; eventos no decorrer da entrevista (carros, amigos que procuravam dar suas opiniões

e sons diversos que no momento das transcrições se revelavam impetuosos); conhecimento

sobre o assunto e, além das “falhas de cometimento e de omissão”, como sugerira Huguette

(1999, p. 89-90), os entrevistados se mostraram solícitos e solidários com nosso trabalho.

Mesmo desconhecendo em profundidade os objetivos, apesar da prévia apresentação

“UNESP”, “curso de Ciências Sociais”, “grupo de pesquisa que estuda a cidade de Marília”,

etc. muitos agradeceriam, antes ou após as gravações, com frases como essa:

A senhora tem alguma coisa que gostaria de acrescentar sobre o que conversamos? É bom uma pessoa saber o que se passa na cidade, entendeu?! Que está a par do que está acontecendo. Ter alguém para ir lá lutar, entendeu? Autônoma, 44 anos, casada, 4 anos moradora da Vila Romana (Leste).115

Dessa maneira, a abordagem em bairros de Marília foi uma tentativa de alcançar os

sujeitos e suas percepções, apesar das dificuldades apontadas, um exercício de “se fazer

sociólogo”, segundo as intempéries de se esboçar na prática de pesquisa de campo os

apontamentos consagrados de Pereira de Queiroz (1991), Huguette (1999) e Caldeira (2000) e

as agruras e descobertas que pudemos edificar na relação com os próprios entrevistados.116

sumariamente. Felizmente, na maioria das entrevistas foi possível fugir do questionário, antecipando, alternando ou incluindo questões conforme a necessidade e oportunidade. 115 Sobre o modo como apresentamos neste texto os entrevistados, achamos importante atentar para o anonimato a eles reservado. Nossa posição em relação a isso é a mesma que Caldeira (2000, p. 16) aborda: levamos em conta a dificuldade de conquistá-los, com um gravador a tiracolo, cientes de que as pessoas temem as instituições públicas (particularmente a polícia), e mesmo que os identificasse no instante do nosso contato e seus nomes ressoassem na memória, optamos por omiti-los, identificando-os apenas por outras inferências, bairro, profissão, idade..., crendo, com isso, não incorrermos em publicização desnecessária. 116 Sobre a pesquisa de Caldeira (2000), é importante ressaltar que, embora seu trabalho seja o que mais se aproxima do nosso, na medida em que relaciona temas crime – violência e espaço urbano segregado sob a ótica das “falas” do crime em São Paulo (como vimos no primeiro capítulo), seu quadro de entrevistas consta de pesquisas realizadas por equipes do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento/CEBRAP (do qual fez parte entre 1985 e 1995) e pela própria autora, concentradas entre 1989 e 1991 (CALDEIRA, 2001, p. 14 e Nota 02, p. 15). À título de comparação: nosso tempo de realização das entrevistas foi entre março a maio de 2006.

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111

3.2. Topofilia: sentimentos positivos em relação ao espaço.

[...] as idéias de “espaço” e “lugar” não podem ser definidas uma sem a outra. A partir da segurança e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidão, da liberdade e da ameaça do espaço, e vice-versa. Além disso, se pensamos no espaço como algo que permite movimento, então lugar é pausa; cada pausa no movimento torna possível que localização se transforme em lugar (TUAN, 1983, p. 06).

Como vimos no primeiro capítulo, Tuan (1983) concebeu uma fusão entre “espaço” e

“lugar”, sendo o primeiro mais abstrato que o segundo, dotado de sentidos a partir da

experiência. A compreensão de que “o espaço transforma-se em lugar à medida que adquire

definição e significado” (TUAN, 1982, p. 151), nos coloca a necessidade de se identificar as

evidências dessa relação íntima entre os sujeitos e seus lugares de vivência.

É nesse contexto que Tuan (1980, p. 05) cunha o conceito de “topofilia”, como sendo

a expressão dessa relação muito mais afetiva do que simplesmente métrica, “difuso como

conceito, vívido e concreto como experiência pessoal”. As avaliações que os sujeitos fazem

de “lugar” podem variar de acordo com uma série de aspectos, a saber:

� Diferença entre a visão do visitante e do morador de um determinado espaço,

meramente estética pelo primeiro e mais abrangente pelo segundo (TUAN, 1980, p. 247); 117

� Percepções diferenciadas pelo nível de satisfação com os lugares em que moram de

acordo com as diferentes condições financeiras (TUAN, 1980, p. 240);

� Constância entre os grupos sócio-culturais em conceberem o mundo e o cosmos a partir de

um referencial etnocêntrico, superestimando seus lugares como centrais e ideais (TUAN,

1980, p. 37); 118

� As visões de mundo peculiares que se “constroem” pelos grupos sócio-culturais que

vivem em determinados ambientes ou “habitats” humanos; 119

117 Nas palavras de Tuan (1980, p. 75), “[a] contribuição [do visitante] é a perspectiva nova. Beleza ou feiúra - cada uma tende a desaparecer no subconsciente à medida que ele aprende a viver neste mundo. O visitante, freqüentemente, é capaz de perceber méritos e defeitos [...] que não são mais visíveis para o residente”. Encontramos em Relph (1976 Apud LEITE, 1998) uma assertiva que se aproxima desta de Tuan (1980). Escreve Leite (1998, p. 13): “Considerando os diferentes graus de compreensão da realidade apresentados pelos indivíduos, Relph (1976) desenvolveu duas classes de percepção dialética Homem-meio: insider (ótica do habitante do lugar) e outsider (ótica de um habitante externo ao lugar). Em cada uma dessas classes haveriam níveis intermediários de percepção, variando entre o mais enraizado e o mais desenraizado”. 118 Para Tuan (1980, p. 21) “é generalizado o desejo de compor a natureza e o mundo humano em um sistema coerente”. Agregado ao etnocentrismo é possível apreender a elaboração desses sistemas cósmicos em diferentes partes do mundo, através das substâncias ou elementos identificados com as dimensões espaciais, cores, animais, instituições humanas e traços de personalidade, “[...] alguns esquemas cosmológicos [...] elaborados, outros relativamente simples”.

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112

� Alteração do sentimento de “topofilia” dada às intervenções impostas aos espaços como

as grandes vias para o automóvel (TUAN, 1980, p. 220); ou

� Dificuldade de se ter afeição e familiaridade por parte dos novos habitantes de um

determinado lugar, estando mais inclinados a manifestar “descontentamento” (p. 249).

Nesse sentido, ao realizar as entrevistas com os moradores nos diversos bairros de

Marília, corroboramos Tuan (1980, p. 249) que “em grande parte as pessoas estão satisfeitas

com sua área residencial”. Isso se revela sob dois aspectos: na avaliação geral do bairro e

quando se propõem a compará-lo com os demais bairros da cidade.

Em primeiro lugar, quando perguntávamos inicialmente o que achavam do bairro,

quase em regra, as respostas eram afirmativas com conceitos “bom”, “ótimo para se morar”

ou “eu gosto” ou, ainda, “eu gosto muito daqui”. Mesmo quando deslanchavam críticas,

terminavam por admitir que gostavam do bairro.

No entanto, neste quesito, a sugestão de Tuan (1980, p. 249) de que “as pessoas de alta

renda comumente expressam satisfação, o que não é de surpreender, pois estão por sua

própria escolha e dispõem de meios para melhorar a qualidade do seu bairro” ratifica as

respostas iniciais desta avaliação geral por parte dos sujeitos de setores de bairros com níveis

socioeconômicos elevados como Centro-Sul e Sudeste, próximos da área central da cidade120.

Isso fica mais evidente quando se constata que em regiões populares como os setores

Nordeste, Norte e Sul, regiões mais afastadas do centro da cidade, as avaliações iniciais já não

demonstram na totalidade o mesmo “entusiasmo”. Embora a parcela dos “insatisfeitos” não

tenha sido tão elevada – acima da média da cidade nos setores Sul e Norte (região dos bairros

Nova Marília e Santa Antonieta) – é oportuno citar a fala de uma senhora moradora do Jardim

Marajó (bairro pauperizado nos limites do Setor Sul):

Sabe como surgiu o bairro? Não. Bom, antes de chegar aqui, não sei não. Eu não gosto dessa vida daqui. Meus filhos que me trouxeram para cá, mas não gosto de jeito nenhum. Ainda mais porque não tem asfalto. Mandam o cartão para eu pagar para esse pedacinho [de asfalto] que está faltando e aí não fazem e ainda dizem que está atrasado dois meses... Fomos falar com o Camarinha [José Abelardo Camarinha, ex-prefeito da cidade], levamos um chá de cadeira! Acho que foi em 2001... Mulher, “do lar”, 68 anos, 12 anos moradora no Jardim Marajó (Sul).

119 Nesse caso, Tuan (1980, p. 87) parte das características físicas particulares desses habitats de acordo com as categorias “carpintejado”, ambientes mais urbanos, e “não-carpintejado”: “O mundo carpintejado está repleto de linhas, retas, ângulos e objetos retangulares. As cidades são ambientes retangulares por excellence”. 120 Neste mesmo sentido, Felix (2002, p. 49) afirma que “[...] as pessoas de alta renda normalmente não demonstram insatisfação, pois do contrário teriam meios de mudança ou melhoria da qualidade do bairro”.

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113

No entanto, neste mesmo Setor Sul, no bairro Jardim Nacional, encontramos uma

resposta mais entusiástica de uma operária, que se identificou por “líder de produção”:

O que acha do bairro? Muito bacana, nossa... Adoro morar aqui! O que acha da vizinhança? Muito bem, todos eles, maravilhosa. A comunidade do seu bairro luta pelos seus direitos? Muito, muito. Pelo que eu percebo, muito. Como avalia as condições do bairro em termos de educação? Nossa, senhora! Muito ótimo! Só para ter certeza: aqui tem de tudo. Iluminação pública? Ah, uma belezinha (risos). Tudo perfeito. [...] O que falta no bairro para ser melhor? Para melhorar um pouquinho? Acho que pela simplicidade da gente, está tudo bom. Está bom. Operária, 40 anos, casada, 5 anos moradora no Jardim Nacional (Sul).

Nessa expressão de contentamento por parte dessa moradora de um bairro popular,

podemos entender por que seus adjetivos de “maravilhoso”, “uma belezinha” ou “ótimo”

estão presentes em muitas das respostas: questionada sobre a possibilidade de mudar de

bairro, ela nos respondeu: “Ah, eu não mudaria. A gente conseguiu isso com tanto

‘esforcinho’, né? Se fosse para mudar, ficaria aqui”.

Essas avaliações demonstram uma variação entre o sentido que os sujeitos dão aos

lugares em que vivem, carregadas da historicidade de cada um no modo como apreendem o

espaço – tornando-o “lugar – das razões pelas quais foram morar em determinado bairro, por

força das circunstâncias ou pelo anseio de construir “sua casinha”.

Para uma análise detalhada dessa relação com os bairros em que vivem, nos utilizamos

das perguntas: “Como avaliam as condições do bairro por: “educação” (escola, creche);

“saúde” (acesso a posto de saúde, hospitais); “pavimentação pública/asfaltamento”;

“saneamento básico”; “iluminação pública”; “segurança” (sensação de segurança,

policiamento); e “comércio”?” e “O (a) senhor (a) ou os membros de sua família freqüentam:

“associação dos moradores”; “conselho de segurança do bairro” (CONSEG’s); “escola”;

“posto de Saúde”; “clube esportivo/academia” ou “espaços de esportes/lazer”; “festividades

comunitárias” (quermesse, bingos e outras celebrações comunitárias); “bares, trailers,

lanchonetes” (que incluía sorveterias, pizzarias ou restaurantes)?”.

Com essas duas perguntas, pudemos observar a relação dos sujeitos com os diversos

aspectos do bairro, na medida em que suas avaliações correspondem à utilização e, portanto,

conhecimento do próprio bairro, conforme demonstrado nas Figuras 16 e 17. As duas figuras

apresentam a demonstração de uma média entre as respostas dos entrevistados em que, quanto

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114

mais altos os “pontos de dados” ou o seu conjunto, temos respostas positivas (até 1,0) e, por

conseqüência, quanto mais baixos, respostas negativas (até 0,1)121:

TABELA 10: AVALIAÇÃO GERAL DAS CONDIÇÕES DO BAIRRO PELA OFERTA DE SERVIÇOS EM MARÍLIA *

Bom Razoável Ruim Média* Educação 31 9 1 0,78 Saúde 25 8 11 0,69 Pavimentação 19 9 17 0,6 Saneamento 25 14 6 0,73 Iluminação 35 7 3 0,87 Segurança 18 15 13 0,63 Comércio 32 7 7 0,81

* Essa média é um indicador obtido conforme a Nota 121 Fonte e Org: M. R. C

Pela avaliação geral (total de respostas para a cidade), Tabela 10, “educação” e

“iluminação pública” são considerados os melhores serviços públicos da cidade. No outro

extremo estão pavimentação e segurança públicas.

Desmembrando essas percepções pelos setores de bairros na Figura 15, a região

Centro-Leste é a que mais se aproxima de 100% (considerando que 1 é o máximo para cada

indicador, para o total de 7 itens avaliados) na avaliação dos serviços públicos. O setor

Sudeste estaria entre as melhores avaliadas, não fosse a ausência de avaliação dos quesitos

“educação” e “saúde”. Por outro lado, o setor Centro-Oeste onde todos os serviços foram

avaliados, tem-se os piores indicadores da cidade.

0

1

2

3

4

5

6

7

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Comércio

Segurança

Iluminação Pública

Saneamento Básico

PavimentaçãoPública

Saúde

Educação

FIGURA 16: AVALIAÇÃO DAS CONDIÇÕES DO BAIRRO PELA O FERTA DE SERVIÇOS

(comércio, segurança, iluminação, saneamento, pavimentação, saúde e educação). Fonte e Org: M. R. C.

121 A Fórmula usada para esse indicador foi (A+B/2+C/4)/A+B+C, onde A=Ótimo(1), B=Razoável (0,5) e C=Ruim (0,25). Detalhes da construção desses indicadores no Anexo D.

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115

Seguindo a mesma metodologia e técnica de análise, na Tabela 11 estão demonstrados

os níveis de envolvimento da população em atividades sociais básicas destinadas à resolução

de problemas coletivos. Percebe-se que o quesito que recebeu a segunda pior avaliação,

“segurança”, na Tabela 11, não parece ser uma preocupação real da população, visto o

baixíssimo conhecimento e participação popular nos Conselhos de Segurança – CONSEG´s.

A pavimentação, o maior problema da cidade, segundo a avaliação dos moradores, é

outro aspecto que demonstra o baixo nível de organização da população, diante do indicador

irrelevante da participação da comunidade em associações de bairro (índice 0,38,

considerando de 0 a 1,0). Assim, em paralelo, as tabelas 10 e 11 permitem notar que os

maiores problemas da cidade, segundo a percepção dos moradores, poderiam ser atendidos

dentro de movimentos sociais de organizações civis.

TABELA 11: MARÍLIA: ÍNDICE DE PARTICIPAÇÃO OU FREQÜ ÊNCIA NOS EQUIPAMENTOS URBANOS E EVENTOS SOCIAIS

Descrição Média Associação de moradores 0,34 Conselho de Segurança do Bairro (CONSEG's) 0,05 Escola 0,67 Igreja 0,79 Posto de Saúde 0,78 Clube esportivo e demais espaços de lazer 0,41 Conselho Municipal de Saúde 0,23 Festas Comunitárias e demais festividades 0,44 Bares, trailers e lanchonetes 0,52

Fonte e Org: M. R. C.

Com uma conotação meramente ilustrativa, construímos a Figura 16 para visualizar a

distribuição dos dados da Tabela 11 entre os setores de bairros:

0

1

2

3

4

5

6

7

Cent

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Baares, trailers e lanchonetes

Festas Comunitárias e demaisfestividadesConselho Municipal de Saúde

Clube esportivo e demaisespaços de lazerPosto de Saúde

Igreja

Escola

Conselho de Segurança doBairro (CONSEG's)Associação de moradores

FIGURA 17: PARTICIPAÇÃO OU FREQÜÊNCIA NOS EQUIPAMEN TOS URBANOS E

EVENTOS SOCIAIS Fonte e Org: M. R. C.

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Portanto, a análise de todo o conjunto (tabelas 10 e 11 e figuras 16 e 17), em termos de

participação ou freqüência no bairro, a média da cidade foi positiva para os itens “escola”,

“igreja” e “posto de saúde”, tendo, no outro extremo os indicadores de participação em

“associação de moradores” e “CONSEG’s” tiveram uma baixa freqüência, o que demonstra a

inexistência desses espaços ou o desconhecimento – ou recusa – desses espaços de atuação

comunitária, embora de terem manifestado interesse quando abordado o assunto.122

Com avaliações mais elevadas – com a coluna de “pontos de dados” mais alta,

portanto, com avaliações mais positivas – o setor que se destaca em ambas as Figuras 16 e 17,

é o setor Centro-Leste, conjunto de bairros antigos no entorno do Jardim Altaneira. Esse setor

apresentou as maiores médias para a avaliação dos itens do bairro e também para a freqüência

ou participação. A região é provida da Santa Casa da cidade, escolas, clínicas particulares e

demais equipamentos urbanos como o bosque municipal e clubes esportivos particulares,

além de ser contígua à área central da cidade, beneficiando-se do comércio e serviços públicos

e privados, conforme um rapaz do Jardim Altaneira:

Há quanto tempo mora no bairro? Bom, desde que eu nasci. Minha família está aqui há 40 anos. Sabe como surgiu o bairro? Mais ou menos, algumas coisas que os familiares nossos contam, enfim, quando meu bisavô chegou aqui, só era mato, essas coisas que a gente sabe. O que acha do bairro? O bairro é muito bom, bem localizado. Cinco minutos de carro do centro. Ônibus a cada 15, 20 minutos está passando. Esse ponto é muito bom para se morar. O que acha da vizinhança? A vizinhança é legal e como o bairro é meio antigo, tem bastante pessoas de idade mais alta, particularmente meus vizinhos aqui que já são cinqüentões, quarentões, idosos... Pessoas mais velhas exatamente pelo tempo que o bairro já tem, né, que são os primeiros moradores aqui do bairro. Como avalia as condições do bairro em termos comércio? Também é bom o comércio. Tem aqui padaria, mercadinho, mercearia. De tudo um pouquinho, né? O que falta no bairro para ser melhor? Rapaz... Nada, cara, tudo aqui pertinho. Vendedor, 26 anos, mora com a família no Jardim Altaneira (Centro-Leste).

Esse morador do setor Centro-Leste enfatiza as qualidades do bairro Jardim Altaneira,

qualidades, essas, acessíveis aos demais bairros do setor e que talvez justifiquem as avaliações

positivas do setor de bairros vizinho, o setor Sudeste, especialmente quando relacionada a

mais baixa declaração de participação ou freqüência nos espaços do bairro, Figura 17. Por

serem bairros residenciais de alto padrão, entre os entrevistados dos bairros Tangará e 122 Isso vale, especialmente, para o segundo item – de todas as entrevistas, somente duas pessoas afirmaram freqüentar o CONSEG’s do bairro, a maioria respondeu que “não tem” e os demais disseram que não conheciam.

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Esmeralda (Sudeste) tais itens não foram pontuados nas entrevistas, bem como não os

freqüentavam em outros bairros da cidade. Neste aspecto, é interessante que, nas Figuras 16 e

17, há uma correspondência com a avaliação do bairro, quando os itens foram bem avaliados,

com exceção de “educação” ou “saúde” em que os moradores afirmaram a ausência de

escolas – públicas – ou postos de saúde, segundo atesta essa entrevistada no bairro Esmeralda:

Como avalia as condições do bairro em termos de educação? Ah, aqui tudo é longe, né? Acho que o pessoal que mora aqui, acho que nem creche usa. Escola, por aqui, acho que é tudo particular. Saúde? Ah, posto de saúde eu não conheço para dizer para você. O hospital que a gente usa é a Santa Casa [de Misericórdia] que eu conheço. Saneamento básico? Ah, aqui acho que tudo funciona direitinho. Comércio? É, tem, não aqui no bairro. Você tem que ir pelo menos até o final da [avenida] Esmeralda. [em direção ao centro da cidade]. Mulher, “do lar”, 45 anos, casada, 5 anos no Jd. Esmeralda (Sudeste).

Ainda sobre os setores que se destacam em ambos os gráficos, vale considerar que o

setor Sudoeste, a região do Campus Universitário e de bairros com os mais altos níveis

socioeconômicos da cidade (64,7% acima de 10 salários para 14% na cidade), aparece em

ambos os gráficos com apenas uma entrevista, realizada com um estudante universitário.123

Esse estudante afirma freqüentar quase todos os itens presentes na Figura 16, o que eleva o

setor neste gráfico, aproximando-o do setor Centro-Leste, porém, sua entrevista permite-nos

verificar que sua permanência em Marília circunscreve-se ao campus, desconhecendo outras

regiões da cidade. Para ele, a avaliação dos itens “segurança”, “comércio”, “pavimentação

pública” e “saneamento básico” foi por “razoável” ou “péssima”, além da sempre repetida

reclamação com a “sujeira”, reivindicando lixeiras nas ruas:

O que acha do bairro? É bom para se morar, mas só que eu acho meio sujo. E porque você acha meio sujo? Ah, porque o pessoal é meio relaxado. Joga lixo para todo lado, a prefeitura não ajuda com a limpeza. [...] O que falta no bairro para ser melhor? Ah, acho que a parte de limpeza. Umas lixeiras. Universitário, 24 anos, 3 anos morador no Campus Universitário (Sudoeste).

Embora não tenhamos outras entrevistas para contrapor ou corroborar, fica, aqui, a

impressão deste estudante sobre o “lugar dos estudantes”, bem avaliado pelos equipamentos

urbanos, mas com certo “relaxo” por parte daqueles que moram no bairro. 123 Embora seja apenas uma entrevista realizada dentro do setor inteiro, optamos por manter as respostas dando destaque a este fato, justamente em cumprimento às regras definidas na elaboração da amostra de 1 entrevistado por 5 mil habitantes em cada setor.

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Após citarmos três setores que se destacaram conforme as avaliações positivas de seus

moradores, além de serem os bairros com as melhores condições sócio-espaciais da cidade,

partiremos para aqueles bairros com características socioeconômicas diversas destes e que nas

Figuras 16 e 17 não se destacaram tanto quanto os citados acima.

Embora tenha apresentado baixa avaliação das condições do bairro, Figura 16, o setor

Nordeste apresentou respostas diversificadas em razão do número elevado de entrevistas (seis

no total). Neste setor, formado por bairros antigos próximos ao centro (Palmital, por

exemplo), loteamentos populares ao longo de sua extensão em direção ao norte da cidade

(Castelo Branco, Prolongamento Palmital, entre outros) e favelas, os entrevistados revelaram

descontentamento – quando comparado o bairro com o centro da cidade – ou satisfação –

quando comparado com os bairros dos setores Norte e Sul, mais afastados e mais desprovidos

de equipamentos urbanos. Desse setor, destacamos uma percepção positiva em relação ao

bairro, de um morador da Vila Barros – vizinho à favela homônima – mesmo quando

considera ter no bairro “várias ‘fitas’, mas de boa”:

Há quanto tempo você mora no bairro e qual é o nome do bairro aqui mesmo? É a minha querida Vila Barros e moro aqui há 20 anos. Sabe como surgiu o bairro? Aqui a história é uma só. O bairro é violento. Você concorda com isso? Concordo e não concordo, porque o lugar que o emprego é escasso, a violência é maior. Onde há miséria sempre vai ser violento. Segurança, policiamento no bairro? Sempre abusando. O seu bairro é perigoso? Não. Já sofreu algum tipo de violência no bairro? Ah, eu não. Tem várias “fitas”, mas “de boa”. Entregador de mercadorias, 25 anos, “amasiado”, Vila Barros (Nordeste).

Além do setor Nordeste, temos os setores Sul e Norte que se destacam por serem

bairros periféricos, “quase outra cidade”, e de grande dimensão, o que explica o número

elevado de entrevistas (7 e 11 entrevistas, respectivamente). Esses setores, apesar da

“distância” desses loteamentos das áreas centrais sempre lembrada pelos entrevistados,

acompanha a média da cidade nos dois gráficos. É claro que o número elevado de entrevistas

dos setores Norte e Sul pode influenciar com maior peso a média da cidade, mas é

interessante que as médias das respostas foram levemente superiores à cidade, se observarmos

os “pontos de dados” levemente superiores à média da cidade na Figura 16. Logo, se

influenciaram, foi para a elevação das avaliações positivas do conjunto das entrevistas. Isso

indica que, embora sejam criticados por seus moradores diante de uma série de problemas, a

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avaliação se revela razoavelmente positiva, acompanhada de uma declaração de freqüência ou

participação nos itens do bairro também superior à cidade.

No setor Sul, as respostas foram variadas e sempre se referindo à idéia de que as

condições do bairro melhoraram, como atesta esta entrevistada:

Há quanto tempo mora no bairro? Ah, desde que saiu o [bairro] Nova Marília... Não me lembro mais... Sabe como surgiu o bairro? É, desde que eu moro aqui, sei. Como era aqui? Era café, Fazenda São José. Quando era café, trabalhava aqui. Quando foi para sair as casas e vieram as inscrições, meu marido trabalhava na prefeitura. Aí saiu para nós. Era só barro. As casas já estavam todas prontas. Passei a conhecer aqui quando mudei aqui. O que acha do bairro hoje? Para mim está bom. Meus vizinhos, tudo, eu conheço. Doméstica, 56 anos, casada, moradora no bairro Nova Marília (Sul).

Essa avaliação, inclusive se aproxima da reflexão feita no capítulo anterior (p. 90)

anterior sobre a historicidade de problemas nos períodos iniciais do bairro Nova Marília,

endossado por um entrevistado de um bairro vizinho, a Vila Real (setor Sul):

Há quanto tempo mora no bairro? Aqui praticamente nasci e cresci. Sabe como surgiu o bairro? Aqui era tudo pasto. E cresceu bastante? Cresceu. Acha que melhorou? Melhorou 100%. Tinha muito problema aqui no bairro? Ah, tinha. Tipo? Briga, roubo, pessoas morrendo em favela. Agora acabou tudo. O que acha do bairro? Ah, eu gosto. O que acha da vizinhança? Ah, a vizinhança é tudo boa... Nós temos amizade. Quando precisa de alguma coisa, vai em um e no outro. Marceneiro, 23 anos, “amasiado”, morador da Vila Real (Sul).

No setor Norte, nem tão positiva em relação às melhorias do bairro quanto no Nova

Marília (setor Sul), as entrevistas, também diversas, sempre apontaram a necessidade de

acesso a diversos serviços como uma agência bancária ou áreas de lazer em uma tentativa de

garantir a melhoria, passo a passo, de seus bairros:

Há quanto tempo mora no bairro? Dezesseis anos. Como era o seu bairro quando chegou aqui?

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Ih, era péssimo, só tinha a minha casa, essa dali e a daqui da frente. Era tudo mato. E agora, o que acha do bairro? Eu gosto. O que acha da vizinhança? Eu gosto também. A comunidade do seu bairro luta pelos seus direitos? Não. Na minha visão, acho que não. Porque a Santa Antonieta já é um bairro velho, né, e não tem nada! Não tem um lugar para pagar conta de água. A pista de cooper que fez é uma porcaria. Aquilo, para mim, não é nem... Se pudesse mudar de residência, para qual bairro de Marília gostaria de ir? Ah, não sei não. Ah, eu já acostumei, tanto tempo aqui, não sei... De primeiro eu não gostava. Não tinha vizinho, não tinha nada. Agora já acostumei tanto que eu gosto daqui. Acho que ficaria por aqui mesmo. O que falta no bairro para ser melhor? Uma [agência do banco] Caixa Econômica. A pista de cooper, também. A melhoria do posto. O atendimento, porque ele ficou bom. Você vai lá, os médicos atendem. Acho que o atendimento das pessoas. Acho que tem muita gente trabalhando lá e não faz nada. Senhora, “do lar”, 45 anos, casada, moradora no Santa Antonieta (Norte).

Percebe-se que, talvez, a avaliação positiva nos setores Sul e Norte, verificada na

Figura 16 e confirmada pela freqüência ou participação dos espaços do bairro acima da média

da cidade da Figura 17, seja pela identificação desses sujeitos com seus bairros na medida em

que a trajetória dos próprios entrevistados se confunde com a história e desenvolvimento do

bairro em que residem. Seus bairros, com uma série de problemas sociais e de acessibilidade –

pela distância em relação ao centro e serviços diversos – são avaliados com a devida precisão

das dificuldades enfrentadas, mas com a possibilidade de melhora. Os obstáculos são

lembrados paralelamente aos avanços a partir de seus próprios esforços, individuais ou

coletivos, como se pode perceber nas palavras da moradora do Jardim Nacional (setor Sul), ao

afirmar que a comunidade do bairro luta pelos direitos (“Muito, muito. Pelo que eu percebo,

muito”) e na percepção de que no bairro está “tudo bom” e que não mudaria para outro bairro

em razão do “esforcinho” feito para morar ali, citada na p. 113.

No último trecho de entrevista, da moradora do bairro Santa Antonieta (setor Norte),

vimos a identificação com o bairro, apesar dos percalços, quando ela responde à questão “Se

pudesse mudar de residência, para qual bairro gostaria de ir?”. Sua resposta “Agora já

acostumei tanto que eu gosto daqui. Acho que ficaria por aqui mesmo” contempla a resposta

de muitos entrevistados. De todas as entrevistas, dezenove sujeitos responderam que “ficariam

no mesmo bairro”, “para o mesmo bairro”, “não troco isso [o bairro] por nada”, entre outras

que agregamos como “para o próprio bairro/não mudaria”, conforme a Figura 18:

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121

Para o próprio bairro ou Não mudaria 31%

Centro7%

Lorenzetti e Aquarius (CN)

2%

Castelo Branco/Palmital (NE) 7%

Aeroporto (L)2%

Nova Marília (S) 12%

Maria Isabel, Esmeralda e Tangará (SE) 12%

Cavalari (O) 3%

"Zona Norte"2%

Chácara2%

não sabe2%

nenhum3%

outra cidade8%

Parati e Jd Tropical (CS) 7%

FIGURA 18: RESPOSTA À QUESTÃO: “SE PUDESSE MUDAR DE RESIDÊNCIA, PARA QUAL BAIRRO GOSTARIA DE IR?” – I

Fonte e Org: M. R. C.

Para a resposta de que ficariam no mesmo bairro, os entrevistados davam como

motivo: “[porque] gosto”, “[é] legal”, “[de] fácil acesso”, “estou acostumado”, “acesso”,

“[porque] comprei a casa”, “[é] tranqüilo”, “não tem [bairro] melhor”, “[por causa da]

família”, “sossegado”, “porque me dou bem com todo mundo”, “conheço bastante gente”, “os

amigos moram perto”, entre outras. Essas respostas, de maneira geral demonstram o peso das

relações de vizinhança na avaliação do bairro e na definição positiva de que o bairro em que

se reside é um bom lugar para morar diante do conjunto bairros da cidade, o que nos remete

novamente a compreensão de “lugar” de Tuan (1980).

Para uma relação afetiva com o espaço, de modo que esse se transforme em lugar,

Tuan (1980, p. 252) considera, a todo instante, sempre os aspectos culturais e as relações

sociais que se estabelecem em um determinado espaço. Isso significa afirmar que, como

predominante nas avaliações, apreciações ou rejeições dos diversos espaços, o que está em

jogo são as relações sociais entre os sujeitos. Neste aspecto, as relações de vizinhança

constituem um dado qualitativo fundamental, pois,

A satisfação com o bairro depende mais da satisfação com os vizinhos – sua amizade e respeitabilidade – do que das características físicas da área residencial. As reclamações sobre moradias inadequadas ou ruas inseguras comumente são reclamações sobre os hábitos e padrões dos vizinhos. As relações sociais parecem determinar a maneira como as pessoas responderão à adequação de suas moradias e facilidades, se elas permanecem ou se mudam e como enfrentam a superlotação e outras conveniências.

Assim, o sentido da cidade se altera e enquanto “um propósito humano” passa a ser a

expressão dos anseios, expectativas e aspirações dos homens que a vivenciam, de modo que

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“seus próprios lares podem expressar suas personalidades, os lugares onde trabalham, se são

pequenos e lhes pertencem e talvez a rua da vizinhança se é cena de encontros informais”

(Tuan, 1980, p. 287). É ilustrativo o trecho que se segue, de uma moradora do bairro

Presidente Costa e Silva, próximo ao bairro Nova Marília (setor Sul):

Se pudesse mudar de residência, para qual bairro gostaria de ir? Eu adoro aqui, embora tenha esses problemas, eu adoro aqui. É o que eu te falei. O lugar, assim, como tem tudo é perfeito. Mesmo equilibrando os dois [pontos] eu gosto muito daqui. Minha mãe fala “quando casar, você vai mudar”, mas eu falo que eu vou ficar aqui por perto mesmo, “pode ficar sossegada porque não vou sair de perto da senhora” [risos]. Professora, 26 anos, solteira, 16 anos moradora no bairro Presidente Costa e Silva (Sul).

Com essas palavras, confirma-se que: nas relações dos sujeitos com o espaço, de

satisfação ou contentamento, de modo geral, suas vivências e historicidade, em particular nos

bairros populares, se confundem com a história dos bairros ou com as relações sociais

estabelecidas por meio da família ou da vizinhança.

Dessa maneira, quando confrontamos as avaliações e declarações de freqüência ou

participação nos espaços sociais do bairro, demonstram-se especificidades na relação sujeito-

espaço demarcadas pelas condições sociais de cada bairro ou região.

De um lado, nos bairros novos de classe-média e alta, estritamente residenciais, há

ausência de espaços sociais, por vezes considerado um atributo que os distingue dos demais

bairros: a “privacidade” que, conforme a busca pelos “enclaves” fortificados, ou não, se

traduz na recusa da experiência urbana no que ela se revela de mais democrático: a

diversidade dos espaços e sujeitos.

Por outro lado, a vivência sofrível dos moradores de bairros periféricos e pauperizados

impõe que, ao esforço por sobrevivências individuais, se agreguem as lutas pela melhoria

desses bairros desprovidos de diversos serviços e com tal localização que dificulta o acesso

aos existentes nos espaços centrais da cidade.

No entanto, essa vivência de luta na cidade por melhoria de seus bairros, não afirma

que os problemas de condições básicas sejam exclusivos dos bairros populares quando os

dados sócio-espaciais atestam que bairros dos setores Sudoeste, Sudeste e Centro-Sul

apresentam leve deficiência nos itens “abastecimento de água” e “escoadouros de esgoto”, já

apresentados no capítulo anterior. Pelo contrário, a experiência e historicidade da luta coletiva

é que parece ser exclusiva dos bairros populares, como demonstram as preocupações de uma

moradora do bairro Parati (setor Centro-Sul):

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123

O que falta no seu bairro para ser melhor? Olha, eu acho que as pessoas deveriam, assim, se unir um pouco, porque o que mais pesa aqui é a falta d’água. Eu não me prejudico tanto, porque passo o dia inteiro fora e quando eu chego já tem água. Mas, todos os dias durante o meio do dia não tem água. Ou a caixa fica cheia ou não tem água. Hoje mesmo, não tem água desde ontem. Acabou a da caixa... Assistente Administrativa, 24 anos, casada, 1 ano e meio no bairro.

Neste aspecto, as experiências “positivas” na cidade parecem encontrar o seu “lugar”

nestes espaços fragmentados e segregados da cidade: na necessidade mais que urgente de os

sujeitos se unirem em torno da resolução dos seus problemas tornados comuns pela

vizinhança de bairro. Aqui, a construção de uma relação “topofílica” parece se constituir em

alguns bairros, mais populares, a partir de uma identificação das condições materiais e da

solidariedade entre os “pobres”. É por essa razão que Santos (2000, p. 60) compreende que a

cidade, apesar de suas adversidades, se constitui em “lugar de construção” de alternativas

porque nela é possível desenvolver-se a “comunicação entre os pobres”.

Ela reúne pessoas das mais diversas origens, dos mais diversos níveis de instrução, de riqueza, de entendimento. Constitui-se em um lugar em que é possível uma mistura de interpretações mais ou menos corretas do mundo, do país e do próprio lugar. Há uma enorme riqueza de perspectivas. A vizinhança obriga as pessoas a se compararem e a se perguntarem sobre as suas diferenças, seja ela próxima ou distante [...].

E termina Santos (2000) por ponderar que os estudos sobre a violência entre os

pobres, embora sejam importantes, merecem ser contrapostos com “centros de estudos sobre a

solidariedade entre os pobres”. Para ele, ao analisar as “diferentes formas de ajuda mútua”,

poderíamos contribuir com “um outro discurso mais consistente e politicamente eficaz”.124

Essas percepções “positivas”, em sua diversidade confrontada, podem, por sua vez, ser

contrapostas com a análise dos aspectos “negativos” relativos à relação sujeito-espaço em

Marília. Nesse caso, no próximo tópico, estão dispostos alguns desses elementos que se

contrapõem ao sentimento “topofílico”, no sentido de “topofobia” de Tuan (2005).

124 Essas ponderações se devem à questão de Odette Seabra: “Estou aceitando toda a descrição que o professor faz sobre as condições muito diversificadas de vida dos pobres na cidade e considerando que a cidade é um universo que nos não sabemos pintar nem descrever, tais são suas diversidades e possibilidades. Mas concordo que é preciso estudar e descobri isso. O que o professor acha que é preciso estudar? MS [Milton Santos] – há um centro de estudos da violência na USP ao qual devemos boas analises. Mas deveria ser criado também um centro de estudos sobre a solidariedade entre os pobres. É evidente que isso não dá manchete, mas poderíamos compreender melhor as diferentes formas de ajuda mútua, assim como saber de que modo repercute a produção de um discurso que escapa à indústria cultural, mas que é cultura. Tudo isso poderia ser objeto de preocupação e ajudaria na produção de um outro discurso mais consistente e politicamente eficaz. O discurso estabelecido hoje é que o pobre é violento e, por isso, vamos ver como a violência se dá entre eles. As pessoas têm boa vontade, estão preocupadas com a violência, mas o que é importante mesmo é menos o patológico e mais o raio de sol espontaneamente instalado com a semente da solidariedade e da mudança para o melhor” (SANTOS, 2000b).

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124

3.3. Topofobia: sentimentos negativos na relação sujeito-espaço.

“Escapism” has a somewhat negative meaning in our society and perhaps in all societies. It is the restless activity that produces the story line. Human beings have been and continue to be profoundly restless. For one reason or another, they are not content with being where they are. They move or if they stay in place, they seek to rearrange that place. Migration and the in situ transformation of the environment are two major themes – the two major themes – in human geography. They both reveal a discontent with the status quo, a desire to escape. Geographers have written voluminously on these themes without using "escape" or "escapism" as a guiding concept. What is to be gained by using it now? (TUAN, 1998, p. 152 – tradução livre).

Com “Paisagens do medo” e “Escapism”, Tuan (2005 e 1998) aborda temas presentes

nas outras obras, mas com um olhar especial ao sentimento “negativo” que se atribui aos

espaços, na medida em que ele consubstancia a “fuga” de um determinado ambiente. Do

conjunto de paisagens do medo, Tuan (2005, p. 04) cita as seguintes imagens que parecem ter

composto a história dessa relação de temor no mundo:

[...] medo do escuro e a sensação de abandono quando criança; ansiedade em lugares desconhecidos ou em reuniões sociais; pavor dos mortos e do sobrenatural; medo das doenças, guerras e catástrofes naturais; desconforto ao ver hospitais e prisões; medo de assaltantes em ruas desertas e em certos bairros; ansiedade diante da possibilidade de rompimento da ordem mundial.

Esses temas contribuem para a percepção negativa dos espaços da cidade que

merecem ser analisadas sob as relações que se estabelecem entre os sujeitos em uma

determinada região, bairro ou cidade. Já no “texto-manifesto” da geografia humanística que

vimos no início deste trabalho, Tuan (1982), apresentou um tema que, ao ser discutido sob o

prisma humanista, contraria meras explicações causais: o adensamento populacional como

explicação dos conflitos sociais como a violência. A partir de Tuan (1982), podemos inferir

que, em uma análise da criminalidade, a instrumentalização quantitativa atrelada à densidade

populacional, apesar da aparente explicação, exige outras referências que incorporem os

aspectos sócio-culturais.

Em Felix (2002) encontramos uma reflexão das condições ecológicas que agregam as

relações entre o sujeito e o espaço e a sensação de insegurança decorrente de um espaço que é

percebido como “perigoso” pelos sujeitos. De acordo com o modelo de incivilidade e

vizinhança de Herbert (1993 Apud FELIX, 2002, p. 132), percebe-se a relação entre a

vizinhança e o sentido que os sujeitos a ela atribuem como uma condição de alguns incidentes

criminais e à possibilidade de vitimização. O modelo de Herbert consiste em um esquema em

que cada elemento decorre do outro, conseqüentemente:

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125

FIGURA 19: MODELO DE INCIVILIDADE E VIZINHANÇA DE H ERBERT Fonte: Herbert (1993 apud FELIX, 1996).

Entretanto, como Felix (1996, p. 132) demonstra, a criminalidade não se limita aos

espaços de incivilidade ou a outros específicos como o centro da cidade, bairros pobres e

favelas, pois se dissemina pelos ambientes mais abastados de classe média e alta que, além do

medo em si, vivenciam outro fenômeno altamente temido por esse segmento social: a

desvalorização imobiliária.

Nesse sentido, a territorialidade latente e o sentido de comunidade incidem em baixas

taxas de crimes, uma vez que tornam seguros os espaços. De acordo com Newman (1972

Apud Felix 1996, p. 51-52):

[a] ligação emocional com o espaço e com seus vizinhos reverte-se numa vigilância solidária das propriedades, o que fatalmente afugentará os transgressores.

Assim, essas alterações se mostram sintomáticas ao que Caldeira (2000), Kowarick

(2000), Souza (2000) e Jacobs (2001) compreendem como implosão do espaço público. Para

Jacobs (2001), esse processo corresponde a uma incivilidade dos espaços públicos que, por

sua vez, no plano da vida cotidiana, compromete a segurança nos espaços da cidade, nas áreas

centrais em períodos noturnos e em bairros estritamente residenciais. Ruas vazias são ruas

sem interesse de uso pelos pedestres e moradores e, por conseqüência, mais afeitas à

insegurança uma vez que inexistem os “olhos informais de vigilância”.

As ruas devem ter múltiplos usos e funções, a despeito da arquitetura que concebe a

cidade ideal com funções setorizadas, segundo Jacobs (2001). A variedade funcional,

Sinal de aumento de desordem.

Diminuição no sentido de lugar: aumento no nível de ansiedade, medo, menor nível de envolvimento na comunidade, comunidade

baseada na presença do crime.

Condições para o aumento no crime.

Maior medo de vitimização.

Perda de satisfação de vizinhança: desejo de mudar.

Nível de incivilidade aumentado.

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mesclando espaços residenciais e comerciais, garantiria movimento nas calçadas e ruas,

elemento fundamental para a segurança de seus pedestres e moradores:

[...] a segurança das ruas é mais eficaz, mais informal e envolve menos traços de hostilidade e desconfiança exatamente quando as pessoas se utilizam espontaneamente e estão menos conscientes de que estão policiando (JACOBS, 2001, p. 37).

Desse modo, o “movimento” é fundamental para dar vida às ruas, pois:

[...] ninguém gosta de ficar na soleira de uma casa ou na janela olhando uma rua vazia. [...] Há muita gente que gosta de entreter-se, de quando em quando, olhando o movimento da rua” (JACOBS, 2001, p. 36).

Em nossa pesquisa, encontramos percepções que se aproximam dessas compreensões

de Jacobs (2001). Sobre a importância do “movimento” da rua nos diversos espaços como

forma de dar vida, agregar sensação de segurança – e quem sabe – inibir atividades delitivas,

citamos essa passagem de um morador de um loteamento novo, nos limites do setor Sul:

O que acha do bairro? Eu acho que faltam algumas coisas, mas para asfaltar ainda, né? O prefeito faz pouco caso para esse lado da Zona Sul aqui. Tem muita obra para fazer. Acho que deveria ter uma caçamba para lixo. Aqui dá muito entulho. Uma sugestão, né, para facilitar as pessoas. É um loteamento novo. [...] Como avalia as condições do bairro em termos de segurança? Aqui em Marília, acho, está bem. Mas tem muito furto de residência. Aqui no bairro tem muito roubo de fios. Principalmente à noite, não tem ninguém. E levam os fios. Devido ao pouco de movimento de pessoas à noite. Acho que falta um guarda, tipo, polícia comunitária para fazer a ronda aqui à noite. Acho que é necessário para a população. Operário, 39 anos, casado, 01 ano morador no Parque dos Ipês (Sul).

Em uma região mais antiga da cidade, no Jardim Palmital (setor Nordeste),

verificamos como essa relação com o bairro está nas histórias contadas pelos entrevistados. A

partir delas, entendemos por que alguns entrevistados fizeram referências a acontecimentos

“que não se devem comentar” que marcaram a vizinhança;

O que acha da vizinhança? Ah, a vizinhança é bem tranqüila. Ultimamente está bem tranqüila. Já esteve pior, mas melhorou bem. Já faz muito tempo e nem é bom comentar porque passado é passado. A gente não comenta muito, mas é questão de moradores... Mas, graças a Deus, melhorou bastante. Auxiliar de serviços gerais, 20 anos, mora com a família no bairro Palmital (Nordeste).

A percepção de que os problemas no bairro ocorrem a partir da vizinhança, pode ser

observada, mesmo que, por vezes, pejorativamente, em especial quando relacionada a eventos

criminais, na fala de uma entrevistada, moradora de um bairro novo no limite leste da cidade,

a Vila Romana (setor Leste). Após narrar diversos problemas das ruas do bairro, como o

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asfaltamento e iluminação precários, a moradora aponta sujeitos “estranhos” ao bairro como

possíveis responsáveis por furto quando ainda estava terminando a construção da casa:

O que acha do bairro? Eu acho um sossego. Muito bom para se morar... Tranqüilidade... Você não tem... Você se sente tranqüila com relação à ladrão. Sabe, às vezes, você não dorme por um barulho aqui e ali... Aqui é uma paz! Muito bom para se morar. Não tem o que reclamar daqui. O que acha da vizinhança? Olha, também não tem o que reclamar, não. São gente muito boa. É assim: cada um na sua casa, né?! Assim, a gente se cumprimenta, se conversa. Muito boa. [...] Já sofreu algum tipo de violência no bairro? Não. Assim, quando nós estávamos terminando casa, logicamente arrombaram a porta, mas roubaram as coisas que estavam aqui dentro. Eu não morava ainda aqui. Mas é gente, assim, que eu acho que nem daqui é. Gente que passa de vez em quando. Daqui mesmo tenho certeza que não é não. Autônoma, 44 anos, casada, 04 anos moradora na Vila Romana (Leste).

Essa idéia de “pessoas diferentes”, “pessoas que nem do bairro são”, aparece em outra

entrevista, no Jardim Lorenzetti (setor Centro-Norte):

O seu bairro é perigoso? Não, o bairro é tranqüilo. Dos anos que moro aqui nunca teve problema de nada. Já sofreu algum tipo de violência no bairro? Aqui não. Não. Aqui... Ah, sim, aqui já teve em que casas que eles alugam, né?! Geralmente casas alugadas, aparecem pessoas diferentes, que você não conhece o ritmo delas. Já morou uma família que o filho... Não donos da casa, na casa do lado, já morou pessoas que o filho era bandido, ele roubava coisas do meu quintal, bacias de alumínio, churrasqueira de alumínio. Isso eles faziam mesmo. Roubou todos os vizinhos aqui. Foram embora, graças a deus! Agora está bem tranqüilo, bem calmo. Antigamente aqui era bravo. O que falta no bairro para ser melhor? Ah, o que é ruim nesse bairro aqui é esse boteco aqui. Esse bar que tem som o dia inteiro e os vizinhos estão todos irritados com esse som aí. Tirar um pouco essas coisas, o bar onde tem várias residências, as pessoas ficam nervosas, angustiadas, às vezes quer estudar... E não consegue. Então, um bar no meio de várias casas acho que atrapalha a residência de cada família. Professora aposentada, 54 anos, casada, 15 anos moradora do bairro Lorenzetti (Centro-Norte).

Nesta última entrevista, a moradora do bairro Lorenzetti, região antiga próxima ao

centro da cidade, chama atenção para um fenômeno muitas vezes identificado com os

problemas de vizinhança nos bairros, o botequim ou “boteco”, nas palavras da entrevistada do

jardim Marajó (setor Sul):

O seu bairro é perigoso? Eu acho que é... É... Mas o que a gente vai fazer... É isso aí [apontando o bar em frente à casa]. Mas, o que vai fazer? Minha vida é longe desses lugares, não freqüento mesa de bar. Minha vida é dentro de casa. Senhora “do lar”, 68 anos, 12 anos moradora no Jardim Marajó (Sul).

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O “movimento” nas ruas do bairro ou aspectos da vizinhança vistos negativamente tais

como “pessoas estranhas” ou bares conformam a maneira como os sujeitos, cada qual ao seu

modo, explicam a vida em seus bairros e ruas. Porém, merecem as devidas reservas na medida

em que necessitaríamos saber, em cada caso, como se efetivam suas percepções sobre tais

eventos, levando em conta como tais eventos efetivamente têm ocorrido.

Embora, em geral, conforme vimos no tópico anterior, os entrevistados tenham

respondido positivamente ao bairro, afirmando que gostavam dele, encontramos alguns casos

que se referem ao bairro negativamente e, até mesmo, com indignação. Assim, mostraremos a

percepção de uma moradora do jardim Cavalari (setor Oeste) e, em seguida, a fala de uma

garota do bairro Santa Antonieta (setor Norte):

O que acha do bairro? Não gosto. Porque você não gosta do bairro? Ah, por que é muito chato, não tem nada para fazer. O pessoal não cuida do bairro. O que acha da vizinhança? Fofoqueira [risos]. A comunidade do seu bairro luta pelos seus direitos? Até luta, mas ninguém liga para nada.[...] O que falta no bairro para ser melhor? Ah, sei lá... Esse bairro é uma merda! Jovem de 19 anos, declarou que não trabalha e mora 11 anos com a família no bairro Santa Antonieta (Norte).

O que acha do bairro? Uma bosta! Eu vou falar a verdade... [risos]. Por que já faz onze anos que eu moro nesse bairro. Faz cinco anos que passaram três asfaltos. O bairro é uma bosta e existe há mais de quarenta anos. Nenhum prefeito não faz nada pra cá. Você sai na rua e na esquina tem que pisar na terra, então não adianta.[...] Você morou antes em quais bairros aqui de Marília? Eu morei no Bosque, na Santa Helena, e ali na Vila Jardim. O que você achava desses bairros? A Vila Jardim é uma droga. Porque lá só tem droga e é uma droga! Mas eu nunca morei em um bairro tão ruim igual ao [bairro] Cavalari, porque, assim, são pessoas, sabe, são pessoas que se você estiver morrendo, ali mesmo você morre. Ninguém faz nada! Sei lá, Marília não presta, né? Os vizinhos são muito fechados, você sai na rua, só tem moleque brincando, mas não tem ninguém. Conheço todo mundo, mas é meio complicado. Manicure, 30 anos, casada, 11 anos moradora no Jardim Cavalari (Oeste).

Em ambos os casos, há uma forte demonstração de “descontentamento”. A jovem do

bairro Santa Antonieta, por sua vez, demonstra o descontentamento de residir em um bairro

afastado do centro, que “não tem nada para fazer”. Após chamar a vizinhança de “fofoqueira”,

ela admite que existem sujeitos na comunidade que “até lutam”, mas “ninguém liga para

nada”, o que inferimos tratar-se de um descrédito naqueles que alguma coisa poderiam fazer

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pelo bairro, lembrando o texto pejorativo aos moradores da “Zona Norte” que contaram 512

buracos nas ruas do bairro, visto no capítulo anterior (p. 80).

Por outro lado, o descontentamento da moradora do jardim Cavalari revela o

incômodo com a ausência de equipamentos urbanos no bairro e a condição ruim de

pavimentação nas ruas, além da vizinhança ser pensada nos termos de que “são pessoas que se

você estiver morrendo, ali mesmo você morre”. Além disso, essa moradora cita outros bairros,

em específico a “Vila Jardim” (jardim Marília, Centro-Oeste), com uma caracterização

negativa que somente não supera o Cavalari. Enfim, com ela encontramos uma percepção

negativa sobre o próprio bairro e a cidade que não encontrou paralelo em qualquer outra

entrevista.

Nesse caso, o setor Centro-Oeste, onde está a “Vila Jardim”, se destacou com a mais

baixa avaliação das condições do bairro (Figura 16, p. 114) e baixa freqüência/participação

(Figura 17, p. 115). O difícil na análise deste setor antigo, contíguo ao centro, no entorno dos

bairros Jardim Marília (“Vila Jardim”), IV Centenário entre outros, é que as respostas aos

diversos itens foram, em geral, diretas e sem maiores explanações. Entrevistamos dois jovens

de 20 e 21 anos, uma empregada doméstica e um desempregado. Ambos responderam

secamente por “péssimo”, “ruim” para a avaliação das condições do bairro e “não” para quase

a totalidade dos itens da Figura 17. Na comparação das colunas de ambos os gráficos,

percebe-se, ainda, que o único item que pareceu ser satisfatório foi “comércio”, o que se

explica, em certa medida, pela proximidade ao centro comercial da cidade, localizado em sua

porção oeste e, portanto, prolongamento das ruas do setor Centro-Oeste.

Sobre outro aspecto, atinente à perspectiva negativa, relacionado diretamente à

percepção do crime de acordo com cada setor de bairros, perguntamos se o bairro era

“perigoso”. Do conjunto das entrevistas, esse foi o resultado:

Não Sabe3%

Se comparar com os outros, não

5%

Como os demais bairros.

8%Já foi perigoso.

11%

Sim16%

Razoável30%

Não27%

FIGURA 20: RESPOSTA DOS ENTREVISTADOS À QUESTÃO: “O SEU BAIRRO É

PERIGOSO?” – I Fonte e Org.: Márcio R. Carvalho

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As respostas para “não” foram superiores às respostas para “sim”. Em certa medida, os

sujeitos consideram que seus bairros sejam “mais ou menos” ou “já foram” “perigosos”.

Observando a Figura 21, tem-se a distribuição das respostas entre os setores considerados

“menos perigosos” pelos entrevistados/moradores do bairro foram os setores Centro-Leste,

Centro-Sul, Leste, Sudoeste e Sudeste.

0

1

2

3

4

núm

ero

de

ent

revi

sta

s

Centro

Centro

-Nor

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Centro

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Centro

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e

Centro

-Sul

Noroe

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Norde

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Sudoe

ste

Sude

ste

Norte

OesteLe

ste Sul

setores de bairros

Sim Não

Razoavelmente perigoso. Não Sabe

Como os demais bairros. Já foi perigoso.

Se comparar com os outros, não

FIGURA 21: RESPOSTA À QUESTÃO: “O SEU BAIRRO É PERIGOSO?” – II

Fonte e Org.: Márcio R. Carvalho

De acordo com essa figura, percebemos que, por outro lado, os setores de bairros que

apresentaram respostas para “sim” e “razoavelmente” foram os setores Nordeste, Norte e Sul.

Apesar dos setores Norte e Sul acompanharem a variedade das respostas percebida no

conjunto da cidade, o setor Nordeste se destaca por apresentar somente respostas afirmativas.

O interessante, na Figura 21, reside nas respostas dos entrevistados dos setores Centro-

Sul, Centro-Leste, Leste e Sudoeste, que responderam em sua totalidade que seus bairros não

eram “perigosos”, sendo que, no setor Sudeste, com dois entrevistados, as respostas foram

“não” e “se comparar com os outros, não” – esta última de um policial morador do bairro

Tangará.

Entretanto, os setores Sudeste, Sudoeste e Centro-Sul, que apresentaram as melhores

condições sócio-espaciais da cidade, foram também os setores com os mais elevados índices

criminais em 2001 e 2002, conforme vimos no capítulo anterior125. Ou seja, essa percepção

125 Com a região central de Marília, os setores Sudoeste e Centro-Sul apresentaram os mais altos índices criminais, conforme as Figuras 10 e 11 (p. 96 e 97). O setor Sudeste apareceu em quinto lugar no ano de 2001.

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positiva de seus moradores não corresponde com os dados criminais, mesmo quando colocada

de maneira ponderada.

Relacionando com a pergunta “já sofreu ou ouviu falar de algum tipo de violência no

bairro?”, percebemos que as respostas em sua maioria passam a ser negativas e a se referirem

aos vizinhos, ao início de residência no bairro ou “ouviu falar”, “ficou sabendo” ou

“acontecem”, como se pode ver na Figura 21:

No começo4%

Ouviu falar Ficou

sabendoAcontecem

17%

Sim20% Não

48%

Com os vizinhos

11%

FIGURA 22: RESPOSTA À QUESTÃO: “JÁ SOFREU OU OUVIU FALAR DE ALGUM TIPO

DE VIOLÊNCIA NO BAIRRO” – I Fonte e Org.: Márcio R. Carvalho

Nesta figura, vemos que metade dos sujeitos afirmaram ter conhecimento de algo

relacionado à violência (na própria residência, com vizinhos ou no bairro), mas a outra

metade nem mesmo “ouviu falar”. Ou seja, parte significativa dos sujeitos não tem suas

experiências na cidade marcadas por “histórias” de violência, mesmo que possamos admitir

que alguns tenham omitido por força das “circunstâncias”.

Distribuídas de acordo com os setores de bairros, Figura 23, as respostas à mesma

questão revelam que os entrevistados dos setores Norte e Sul, apesar das respostas afirmando

que os bairros são “razoavelmente perigosos”, em sua maioria responderam que não haviam

sofrido qualquer tipo de violência no bairro. Parece que a compreensão de que a imagem de

bairro “razoavelmente perigoso” não se refere à experiência vivida por aqueles que no bairro

moram, com exceção apenas no setor Nordeste. Neste setor, onde as percepções de que o

bairro é “perigoso” combinam com respostas tais como “já ouviu falar” e com os “vizinhos”,

se confirmam, por sua vez, a Figura 10 (p. 96) dos boletins de ocorrências criminais no ano de

2001, quando o setor Nordeste apareceu em quarto lugar no ranking dos setores com os mais

altos índices criminais.

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0

1

2

3

4

5

6

núm

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resp

osta

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troCen

tro-N

orte

Centro

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tro-L

este

Centro

-Sul

Noroe

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Sudo

este

Sude

ste

Norte

Oeste

Leste

Sul

setores de bairros

Sim Não No começo Ouviu falar/Ficou sabendo/Acontecem Com os vizinhos

FIGURA 23: RESPOSTA À QUESTÃO: “JÁ SOFREU OU OUVIU FALAR DE ALGUM TIPO

DE VIOLÊNCIA NO BAIRRO” - II Fonte e Org.: Márcio R. Carvalho

Porém, nessa mesma Figura 23, percebe-se que as duas entrevistadas do setor Centro-

Sul afirmaram já ter sofrido algum tipo de violência, “arrombamento de carro” e “furto no

carro”. Isso demonstra que, apesar de não haver uma “sensação de insegurança”, há uma

aproximação entre a experiência de vitimização e a caracterização exposta nas Figuras 10 e 11

(p. 96 e 97), em que aparece em terceiro lugar em ambos os anos de 2001 e 2002.

Por outro lado, ainda sobre os indicadores das Figuras 16 e 17 confrontados à Figura

10, tem-se a afirmação de dois moradores do setor Noroeste (que aparece com os menores

índices de B.O.’s criminais em 2001 e 2002) sobre o jardim Bandeirantes – de que o bairro

era “razoavelmente” “perigoso” ou, mais precisamente, “uma parte sim, uma parte não”, além

de já terem “ouvido falar” de algum tipo de violência no bairro:

Como avalia as condições do bairro em termos de segurança? Segurança é razoável porque tem as “favelinhas” ali embaixo. Aqui para cima é razoável. Lá para baixo eu não sei. Para mim é razoável. O seu bairro é perigoso? Não. Às vezes. Sabe, tem dia que está tranqüilo. Lá embaixo tem a favelinha. Às vezes sim, às vezes não. Já sofreu ou ouviu falar de algum tipo de violência no bairro? Ah, mais furto, né? É tranqüilo, mas, assim, você tem medo. Você escuta falar ali embaixo assaltaram a casa, prenderam os meninos drogados, né, daqui para baixo. Aí você fica com medo, né? Professora, 28 anos, mudou com a família havia uma semana para o bairro Jardim Bandeirantes (Nordeste).

Como avalia as condições do bairro em termos de segurança? Bom, segurança, não tenho do que reclamar. Comércio? É o comércio está... O que está violento é o preço, viu?! A coisa está subindo dia por dia. E os nossos ganhos não estão acompanhando. Vamos supor, subiu o salário. Subiu cinqüenta reais o salário mínimo, mas nunca

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acompanhou o preço da mercadoria. O que a gente vai fazer nessa situação? O povo vai viver numa crise de fome. Crise de fome que está passando o povo. Agora, fala... Fulano está fazendo isso porque não quer trabalhar. Você, às vezes, dezoito anos, vamos falar assim, a idade completa, você vai lá, dá a volta o mês inteiro, não arruma serviço. Você vai fazer o que? Você tem que partir... Não é que eu estou mandando partir para o lado violento – sou contra violência – mas se a pessoa não acha meio, ela tem que pegar alguma coisa de outro aí para sobreviver. O seu bairro é perigoso? Olha, uma parte sim, outra parte não. É um lugar sossegado. Eu gostaria de não mudar daqui. É um lugar muito bom. Eu com minha esposa gostamos muito daqui. Todo ano. Há uns 32 dois anos nós gostamos muito daqui. Já ouviu falar de alguma coisa por aqui? Não. Sim, aqui por perto... O vizinho aí já tentaram assaltar a casa dele, mas isso é uma coisa que... Eles procuram alguma coisa na pessoa que tem dinheiro. Cabeleireiro, 70 anos, casado, 32 anos no Jardim Bandeirantes (Nordeste).

A professora, moradora recente, e o cabeleireiro, morador desde a abertura do

loteamento, revelam duas percepções distintas que se caracterizam por: a primeira estar muito

mais vinculada a idéias construídas ou recebidas de outros moradores do que da própria

experiência; e a segunda ter uma experiência carregada, sobretudo por relatar as lutas travadas

para melhoria do bairro.

Além disso, esses dois entrevistados, para além do tempo de vivência no bairro,

diferem sobremaneira na compreensão do que seja a violência, do que causa temor. Para a

professora, a “favelinha” logo abaixo das ruas de sua casa é um fator de receio, enquanto para

o senhor cabelereiro, vizinho da “favelinha”, o que é violento é o “preço das mercadorias” que

constrange o “povo”. A “favelinha”, para ele, não é sinal de alarme, tampouco foi citada como

fonte de qualquer problema, até mesmo por que, em sua perspectiva, essas atividades delitivas

estão relacionadas com a “crise de fome” que “o povo está passando”.

Portanto, nesse tópico, vimos alguns elementos que demonstram como os sujeitos

apreendem seus bairros sob uma perspectiva de descontentamento. Como as percepções

positivas em relação ao espaço são medidas pelas relações que se estabelecem nos respectivos

bairros, vinculadas à historicidade do sujeito e do bairro e com a vizinhança, temos, aqui, que

as perspectivas contrárias também se revelaram desse mesmo modo. Em termos de

experiência em espaços estigmatizados como favelas, vale levar em consideração as palavras

de Perlman (1977, p. 173), após realizar suas pesquisas em favelas no Rio de Janeiro:126

126 O trabalho de Perlman (1977) é fundamental para se entender as percepções que se produzem sobre espaços como favelas – especialmente quando esse fenômeno se agiganta a ponto de Davis (2006) afirmar que “favelização” se tornou sinônimo de “urbanização” ao publicar “Planet of Slums” (Planeta das favelas) (“FRONTEIRA, 2006, A-34) – além de desconstruir, como Kowarick (1977), Coelho (1980) e Santos (1979), “mitos” da marginalidade, como já dito no primeiro capítulo.

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É difícil, naturalmente, avaliar com precisão índices de criminalidade [...] segundo minhas próprias observações, posso afirmar duas coisas sobre o crime na própria favela. Primeiro, muitos favelados têm televisores, rádios e bicicletas e deixam seus barracos mais ou menos abertos grande parte do tempo. No entanto, havia poucas queixas de furtos. Segundo, ainda que os choffers de táxi tivessem medo de me levar mesmo até a entrada da favela, e que a maioria dos cariocas não quisesse acreditar que eu tivesse vivido dentro das favelas, eu me sentia mais segura andando numa favela à noite, e vivendo nelas, do que jamais me senti em Cambrigde ou New York!

Além disso, a percepção do medo ou do crime permite-nos adentrar nessa relação

negativa, embora, nem sempre as compreensões sobre a criminalidade ou violência sejam

caracterizadas do mesmo modo. Para alguns, há uma projeção do perigo aos bairros

circunvizinhos que, aqui, significam: bairros do mesmo setor; para outros, uma depreciação a

espaços pauperizados presentes no bairro como as “favelinhas”; e para outros, ainda, são as

condições sociais que, por sua vez, transcendem os limites do bairro e da cidade, uma crítica

das situações sofríveis em que “o que é violento é o preço [das mercadorias]”.

Entretanto, ressaltamos o resultado da questão sobre a vitimização, com metade dos

entrevistados negando ter sofrido ou “ouvido falar” de algum tipo de violência com a família,

vizinhos ou no bairro. Este resultado confirma, mais uma vez, a reflexão sobre a importância

de não tomarmos apenas as perspectivas sobre o crime ou medo do crime como ponto de

partida para uma análise da cidade, tal como nas “narrativas do crime” de Caldeira (2000).

Não podemos, portanto, nos limitarmos a essas percepções negativas sobre os próprios

bairros, sem levar em conta as correspondências existentes nas percepções sobre os demais

bairros da cidade (presentes no próximo tópico) que, no conjunto, permitem a análise das

impressões sobre a cidade e suas diversas “faces”.

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3.4. Percepções sobre outros lugares da cidade.

Se pudesse mudar de residência, para qual bairro de Marília gostaria de ir? Bom, eu gosto muito daqui. Daqui eu mudaria só deus sabe se eu vou sair ou não. Mas eu iria para o [bairro] Nova Marília. Eu gosto de lá. E qual é a diferença que a senhora faz de lá e aqui? Ah, eu não sei, mas as pessoas são mais, assim,... Mais “dadas”. Não de ir à casa dos outros, mas sabe... O que está acontecendo. “Oi, como você está? Como vai indo a sua vida?” Entendeu? É mais, assim... Como é que se diz? próximas, mas mantém distância. Você vai perguntando o que está acontecendo, se chega uma coisa, entendeu? Aqui não são tanto. Um “bom dia”, “boa tarde”. Não tem do que reclamar. São gente boa. Autônoma, 44 anos, casada, 4 anos na Vila Romana (Leste).127

As experiências na cidade dependem da historicidade de cada sujeito. De acordo com

as suas respectivas condições materiais de existência, os sujeitos se apropriam dos diversos

espaços da cidade e, a partir das experiências que travam, passam a ter percepções sobre a

cidade, de seus bairros de cores, traços e relevos diferentes, das classes sociais dispostas

desigualmente entre bairros “centrais” e os “periféricos”, subúrbios planejados e vigiados e

favelas nos limites frágeis dos terrenos impróprios – legal ou fisicamente – e, finalmente,

entre mansões requintadas “bem vistas” e casebres de madeiras carentes de olhar interessado.

As percepções desses lugares, articuladas aos aspectos políticos e culturais, garantem

compreensões do que seja a cidade e o mundo, por vezes coerentes, contraditórias ou, ainda,

antagônicas. Dessa maneira, é necessário observar essas diversas percepções que os sujeitos

de distintos bairros possuem sobre os demais lugares da cidade, uma vez que, a partir disso,

possamos apreender quais concepções de cidade estão em jogo e de que maneira elas

correspondem, ou não, às experiências vividas.

É isso que faremos, neste tópico: uma tentativa de observar como os sujeitos

apreendem o espaço de Marília e sua diversidade (im)posta pela segregação sócio-espacial.

Nesse caso, identificar os bairros e regiões que lhes parecessem lugares “bons” ou “ruins”

para morar e que, portanto, combinassem aspectos positivos ou negativos que refletissem qual

é a concepção de cidade em voga segundo suas percepções.

Trabalhando sobre o “meio ambiente e estilos de vida”, Tuan (1980) abordou a relação

entre “imagem”, “experiência” e “classe” que define percepções distintas a partir de diferentes

condições de existência. Assim, os “ricos” detêm um conhecimento abstrato da cidade, pois

127 Essa moradora da Vila Romana (setor Leste), ao nos responder que “se tivesse que mudar de residência, para qual bairro de Marília, gostaria de ir?” mudaria para o bairro Nova Marília (setor Sul) apresenta a relação entre as vizinhos que, em sua percepção, difere os dois bairros. Essa percepção contribui, em grande medida, aos elementos da pesquisa e as reflexões que, neste tópico, serão expostos.

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possuem um mapa mental, mas estão tão isolados quanto os “pobres”. Por viverem em lugares

tão diferenciados e separados, tanto os “ricos” quanto os “pobres” acabam conhecendo

somente aspectos da vida urbana que lhes são característicos, desde o lugar onde mora, onde

trabalha, para onde viaja etc. Para Tuan (1980),

[os] ricos raramente visitam os distritos mais pobres, exceto, talvez nas excursões pelas favelas dentro do ônibus com ar condicionado. [...] Os homens brancos americanos de classe alta e média alta vivem em subúrbios e trabalham no centro da cidade em torres de aço e vidro. A rota que eles percorrem diariamente é uma auto-pista ou estrada que cruza os melhores distritos residenciais e comerciais. O caráter social das partes da cidade – pontos focais e rotas de conexão – que ele experiência pessoalmente é essencialmente homogêneo. As viagens de negócios o levam a outras cidades, mas os lugares que ele visita em geral têm as mesmas características físicas e sociais. As férias na Europa o levam aos meios urbanos que são diferentes só superficialmente se ele continua circulando no mesmo nível socioeconômico (p. 240-241 – grifo nosso).

Por outro lado, os “pobres” não desfrutam de um conhecimento mais abrangente que

os “ricos”. Embora, em razão do trabalho (em particular o trabalho doméstico), os “pobres”

experienciem com mais freqüência os espaços dos “ricos” do que estes os bairros pobres da

cidade, a segregação nos espaços de classe média e alta, “entradas sociais” e “de serviços”,

garantem uma experiência ainda segregada e fragmentada dos espaços diversos. Aqui, Tuan

(1980) afirma que,

[no] dia-a-dia, as mulheres pobres conhecem, como empregadas, áreas residenciais abastadas e adquirem uma perspectiva do mundo da riqueza bem diferente daquela de seus padrões. A frente e o fundo das residências da classe média são nitidamente diferentes quando comparadas com as casas da classe pobre. A frente tende a ser ordenada e formal, o fundo pouco atraente. Algumas pessoas entram na casa pela frente, enquanto outras pelo fundo – as empregadas, entregadores e crianças. No mundo dos negócios da classe média e alta, zeladores e faxineiras percebem e trabalham em meio ambientes bem diferentes daqueles dos executivos e de sua equipe de assistentes engravatados. Os trabalhadores uniformizados percebem as pequenas portas que dão para os fundos dos edifícios comerciais; vêem e cheiram as “entranhas” do edifício expostas no porão e nos compartimentos das caldeiras; estão bem cientes do sistema de transporte aviltante que movimenta o equipamento de limpeza sujo, os suportes de plataforma e eles mesmo” (p. 240).

Dessa maneira, para Tuan (1980),

Talvez um membro profissional da classe média – médico, advogado ou jornalista – tenha maior oportunidade de experienciar uma ampla variedade de meio ambientes e culturas, quer seja do muito rico ou pobre (p. 241).

Apesar de, talvez, esses apontamentos de Tuan (1980) não serem correspondentes a

todas as experiências e apropriações dos espaços se considerarmos a diversidade das

percepções dos sujeitos, podemos ter uma idéia de como os sujeitos percebem os diversos

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espaços da cidade de acordo com as suas distintas condições de classe e, portanto, de relações

diferenciadas com os espaços. Nesse caso, vale considerar que as imagens dos espaços da

cidade são, muitas vezes, projetadas de acordo com as percepções de uma parcela da

sociedade que tem a possibilidade de inscrever suas apreensões nos meios impressos como

jornais e de comunicação como rádio e televisão.

Pensamos nos termos de Villaça (1999, p. 166) e Maricato (2000). Villaça (1999), em

estudo da imprensa de São Paulo, constatou que 70% das notícias se referiam ao quadrante

sudoeste da cidade de São Paulo (região priorizada nos orçamentos públicos municipais – e

estaduais também – no período 1992-1996, gestão Paulo Maluf), onde se concentravam as

camadas de mais alta renda e o mercado imobiliário sofisticado,

[...] quando a notícia se referia a algo que estava fora dessa mancha urbana, era acompanhada de um qualificativo: a avenida da Zona Leste, acidente na Zona Norte. Ou seja, a região que concentra a população de alta renda é tomada como representação da “cidade”. A parte é tomada pelo todo. Aí moram os chamados formadores de opinião.

Maricato (2000), comentando essa pesquisa de Villaça (1999) considera que a

representação da cidade, propalada por meio da mídia e da publicidade, reflete, em verdade,

não as percepções da população de modo geral, mas as compreensões da população de alta

renda da cidade.

Em nossa pesquisa, fizemos duas perguntas aos entrevistados: para apreendermos as

perspectivas positivas, sobre os bairros “bem vistos”, “se pudesse mudar de residência, para

qual bairro gostaria de ir? Por quê?”; e, para as perspectivas negativas, sobre os bairros “mal-

ditos”, “se pudesse mudar de residência, para qual bairro não gostaria de ir? Por quê?”. Para a

perspectiva positiva, conforme já apresentamos, os sujeitos apresentaram o desejo de

permanecer em seus respectivos bairros por uma série de fatores que revelaram um

sentimento “topofílico” em relação a seus bairros. Entretanto, na Figura 24 (p. 138), essas

repostas estão distribuídas pelos respectivos setores de bairros.

Excetuados aqueles que prefeririam permanecer no mesmo bairro, percebe-se, no

gráfico abaixo, que os bairros que se destacam na preferência dos entrevistados são: Nova

Marília (setor Sul); Maria Isabel, Tangará e Esmeralda (que compõem o setor Sudeste); Parati

e Tropical (setor Centro-Sul); Centro; e Palmital e Castelo Branco (setor Nordeste).

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setores de bairros

Para o próprio bairro/Não mudaria CentroMaria Isabel/Esmeralda/Tangará (SE) Parati/Jd Tropical (CS)Nova Marília (S) Lorenzetti/Aquarius (CN)Aeroporto (L) Castelo Branco/Palmital (NE)Cavalari (O) "Zona Norte"Chácara não sabenenhum outra cidade

FIGURA 24: RESPOSTA À QUESTÃO: “SE PUDESSE MUDAR DE RESIDÊNCIA, PARA

QUAL BAIRRO GOSTARIA DE IR?” - II. Fonte e Org.: M. R. Carvalho

Os setores Sudeste e Centro-Sul são bairros “abastados” e compõem a nova frente dos

empreendimentos imobiliários, que cintilam o “novo” e o “moderno”, e foram considerados

“bem visto”, com “casas bonitas”, “sossegado” e “tranqüilo”, se considerarmos as

justificativas para a escolha desses bairros, presentes no conjunto das respostas apresentadas

na Figura 25 (aqui foram retiradas as respostas “para o próprio bairro/não mudaria”):

FIGURA 25: RESPOSTA À QUESTÃO: “SE PUDESSE MUDAR DE RESIDÊNCIA, PARA

QUAL BAIRRO NÃO GOSTARIA DE IR? POR QUÊ?”. Fonte e Org.: M. R. Carvalho

Por outro lado, os setores Sul e Nordeste foram escolhidos, em sua maioria, por

entrevistados da própria região, conforme a Figura 24. O bairro Nova Marília (setor Sul) foi

citado notadamente por entrevistados de bairros populares (setores Centro-Oeste, Oeste,

Nordeste e Norte), circunvizinhos do próprio setor Sul (Pq. dos Ipês, Vila Real e CDHU) e,

com apenas uma citação no bairro de classe média Vila Romana (setor Leste). As

justificativas, presentes na Figura 25, foram: “é bom”, “gosta”, “tem tudo” (uma vez que é

"Casas bonitas" 8%

Família8%

Acesso, localização,"tem tudo"

26%

"É bom", "gosta", "bem

visto"27%

Ex-morador19%

"Segurança", "sossegado", "tranqüilo"

12%

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considerado o bairro popular mais bem equipado da cidade), “família”, e, no caso, da

moradora do setor Leste: por ser “ex-moradora” – como posto na epígrafe deste tópico.

Os bairros Castelo Branco e Palmital (setor Nordeste) foram citados pela “localização”

e “acesso”, por entrevistados de bairros próximos (Setores Centro-Norte e Centro-Oeste) e do

Setor Norte que, nesse caso, justifica-se por serem bairros mais próximos do centro (inclusive

passagem obrigatória por todos os moradores daquela região) e menos desprovidos que os

bairros do setor Norte. Ou seja, no que se refere aos bairros populares, de uma maneira geral,

eles são escolhidos por moradores de bairros com condições similares, mas que apresentam

algumas vantagens como acessibilidade e localização em relação ao centro da cidade ou

existência de alguns de serviços presentes no bairro desejado.

Além disso, o critério de existência de amigos no bairro permeou a escolha de muitos

entrevistados, inclusive daqueles que escolheram bairros “abastados” como evidencia o trecho

da entrevista, abaixo, com uma moradora do centro:

Se pudesse mudar de residência, para qual bairro gostaria de ir? Ah, então estava conversando agora mesmo com minha amiga: eu gosto do bairro Parati [Centro-Sul]. Por quê? Eu mudaria. O lugar é alto. Chega bastante sol. Eu gosto disso, de lugar arejado, sabe? E tem mais lugares na cidade, tem o Jardim Tropical [Centro-Sul], lá pro lado da Esmeralda [Sudeste]. Mas em termos de comodidade eu ficaria onde estou, porque tem tudo perto, em termos de padaria, varejão... Farmácia. Não saio daqui por causa disso, entendeu? E para qual não mudaria? Hummm... E agora? Como eu falei pra você... São poucos os lugares que eu gosto daqui, então são vários os bairros que eu não mudaria porque eu sou seletiva. Eu gosto de ter amigos onde eu vou morar, certo. Eu gostaria de ir para um lugar onde eu tenho amizade, né? Não gostaria de ir para um lugar onde eu não conheço ninguém. Cirurgiã dentista, 52 anos, viúva, 16 anos moradora no Centro de Marília.

Portanto, no momento de escolha de bairros que os entrevistados percebiam como

lugares em que poderiam residir, eles optaram por lugares tanto abastados quanto mais

populares (embora a escolha de bairros populares tenha sido feita, em sua maioria, por

moradores de bairros populares). Por outro lado, o mesmo não ocorreu quando a questão se

referia aos “bairros em que não gostaria de ir, se pudesse mudar de residência”, Figura 26.

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Santa Antonieta (N) 20%

Nova Marília (S) 19%

Vários 5%

Castelo Branco (NE) 2%

Outros Setor Sul 11%

Outros Setor Norte 10%

Vila Barros (NE) 8%

Setor Oeste 8%

Bairros Novos 2% Bandeirantes (NO) 2% Para o próprio

bairro 2% Não sabe

5%

Nenhum 3%

Centro 3%

FIGURA 26: RESPOSTA À QUESTÃO: “SE PUDESSE MUDAR DE RESIDÊNCIA, PARA

QUAL BAIRRO NÃO GOSTARIA DE IR?” - I. Fonte e Org.: M. R. Carvalho

Com exceção do centro da cidade, todos os demais bairros citados são populares.

Nesta figura, os bairros Santa Antonieta (setor Norte) e Nova Marília (setor Sul) se destacam

do conjunto. Se somarmos as respostas que citam esses dois setores: Nova Marília e “Outros

[bairros do] Setor Sul”; e Santa Antonieta e “Outros [bairros do] Setor Norte”, ambos os

setores, Sul e Norte, empatam com 30% das respostas cada um, somando quase dois terços

das percepções negativas aos demais bairros da cidade. As citações que os seguiram, foram:

Vila Barros (setor Nordeste), conhecida pela favela homônima, a maior da cidade; Centro;

entre outros, como “conjuntos habitacionais” ou “bairros novos”.

Os bairros do setor Oeste citados foram: Argolo Ferrão, Coimbra, Flamingo e

Cavalari. Desses, somente o bairro Cavalari não é um bairro popular, pois se trata de região

com forte presença de repúblicas estudantis do campus universitário. Nesse aspecto, as

citações negativas vieram exatamente de um estudante universitário vizinho ao bairro e de

uma moradora que, na Figura 27, aparece como a única pessoa que não mudaria para o

próprio bairro, tal como observamos no tópico anterior (p. 129):

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setores de bairros

Para o próprio bairro VáriosSanta Antonieta (N) Nova Marília (S)Vila Barros (NE) Bandeirantes (NO)Outros Setor Norte Outros Setor SulArgolo Ferrão, Coimbra, Flamingo,e Cavalari (O) CentroNenhum Não sabeConjunto habitacional novo, vilas novas Castelo Branco (NE)

FIGURA 27: RESPOSTA À QUESTÃO: “SE PUDESSE MUDAR DE RESIDÊNCIA, PARA

QUAL BAIRRO NÃO GOSTARIA DE IR?” – I. Fonte e Org.: Márcio R. Carvalho

Nesta Figura, onde estão distribuídas as respostas de acordo com os setores, chama a

atenção o fato dos bairros mais citados, Santa Antonieta (setor Norte) e Nova Marília (setor

Sul), terem sido preteridos em quase todos os setores. Além disso, os “Outros [bairros do]

setor Sul” e “Outros [bairros do] setor Norte” foram preteridos por moradores desses mesmos

setores, ou seja, ao citar algum bairro, os entrevistados pensavam em bairros vizinhos como

sendo bairros para os quais não mudariam.

Em todo caso, as justificativas para preterir os bairros para nova moradia, como

(Figura 28), estão relacionadas à “distância” – em sua maioria relativas aos bairros Santa

Antonieta (setor Norte) ou Nova Marília (setor Sul) e os demais bairros desses setores;

“perigoso”, “violento”, “com muita violência”, “drogas”, “assassinato”, “bandidagem” –

também relacionados a esses bairros e a outros como Vila Barros (setor Nordeste).

Custo alto - 1 "Não gosta"

3

Ouviu falar 5

Muito movimento

1 Não conhece

1

"Parece que é outra cidade"

1 Aparece muito em jornal

1

Distância 13

Perigoso 20

FIGURA 28: RESPOSTA À QUESTÃO: “SE PUDESSE MUDAR DE RESIDÊNCIA, PARA

QUAL BAIRRO NÃO GOSTARIA DE IR? POR QUÊ?”. Fonte e Org.: Márcio R. Carvalho

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As respostas de “ouviu falar”, “muito movimento” e “aparece muito em jornal”

também se referem à idéia de quais tais bairros sejam “perigosos”. Houve aqueles que

responderam simplesmente “não gosta”, “custo alto” – para o centro de acordo com um rapaz

do setor Norte – e “parece que é outra cidade” – em relação ao Santa Antonieta (setor Norte) e

Nova Marília (setor Sul), como atesta uma moradora do setor Nordeste:

E para qual [bairro] não mudaria? Ah, Nova Marília. Por quê? Ah, não sei. Nem Nova Marília, nem Santa Antonieta. Parece que é outra cidade, pra mim. Eu vou lá e nem passa pela minha cabeça. Não tenho discriminação de nada, mas não me vejo morando lá. Pode ser que Deus decida, mas não me vejo morando lá, não. Cabeleireira, 36 anos, casada, 5 anos moradora no Jd. Castelo Branco (Nordeste).

Essa entrevista ilustra bem a compreensão que os entrevistados têm dos bairros citados

no que diz respeito ao distanciamento do centro da cidade, embora apresentem uma diferença

entre esses dois bairros:

E para qual [bairro] não mudaria? Meu Deus, para o [bairro] Nova Marília. Santa Antonieta. Por quê? Ah, uma porque é longe de tudo, principalmente o [bairro] Santa Antonieta, porque o [bairro] Nova Marília já é um bairro que está tendo tudo. Mais o Santa Antonieta que é longe de tudo, de tudo... Técnica em enfermagem, desempregada, 48 anos, casada, 47 anos moradora no Jd. Lorenzetti (Centro-Norte).

No que se refere à percepção de que tais bairros sejam perigosos, vale apresentar as

palavras de uma entrevistada do Jd. Parati (setor Centro-Sul) que trabalha no distrito

industrial localizado na região do bairro Santa Antonieta (setor Norte), ao falar da recusa de

mudança de turno de trabalho por parte de suas colegas, moradoras na região:

Elas não querem ir para o 2º turno exatamente porque voltam sozinhas de bicicleta e todas moram ali no bairro Santa Antonieta. E como onde estão as fábricas é deserto, à noite não passa nada. Não passa caminhão, não tem ônibus, não tem nada. Então, elas têm que atravessar um trecho e elas têm medo, né, de passar pela [empresa de bebidas] Belco, onde virou um matagal. Então, todas têm medo, tem que sair onze horas do serviço e não sabem o que vão encontrar na rua. Até os meninos, quando vão, vão de carona ou vão em dois. Como as meninas vão de bicicleta ou vão a pé, elas preferem o 1º turno. Assistente Administrativa, 24 anos, casada, 1 ano e meio moradora no bairro Parati (Centro-Sul).

No entanto, é preciso considerar o que os moradores desses bairros citados, tanto Nova

Marília (setor Sul) quanto Santa Antonieta (setor Norte), sentem em relação a esses aspectos

relativos ao “medo” ou “perigo” no bairro. Em alguns casos, eles revelaram aspectos da

vizinhança e alguma experiência de vitimização, nestes dois bairros:

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O que acha do bairro? [risos] mais ou menos. O que acha da vizinhança? A vizinhança? Eu não tenho. Só tenho ela aqui [apontando a vizinha que acompanhava a entrevista]. Vizinho aqui do lado eu não tenho. Vizinha eu só tenho ela aqui. O seu bairro é perigoso? Perigoso, um pouco. Por quê? Porque aqui mesmo foi assaltado três vezes. O que falta no bairro para ser melhor? Que eu acho que falta no bairro para ser melhor? Pra mim... Que precisa para melhorar aqui. [sugestões do marido: “cuidar dos terrenos baldios”] que está tudo abandonado, né? É isso aí. Auxiliar de produção, 47 anos, casada, 22 anos no Santa Antonieta (Norte). O que acha da vizinhança? Boa. Assim, tem os dois lados. Tem os maus elementos, mas no geral é bom. Aqui, tudo o que você precisa tem. O seu bairro é perigoso? Razoavelmente. Não é 100%, não. Já sofreu algum tipo de violência no bairro? Porque minha casa já foi assaltada uma vez e o pessoal aqui é meio difícil. Tem que tomar um pouco de cuidado. Professora, 26 anos, solteira, 16 anos moradora no bairro Presidente Costa e Silva (Sul).128

No caso da moradora do Santa Antonieta (setor Norte), vemos uma relação com a

ausência de vizinhança e os “terrenos baldios”, no entorno de sua residência, localizada às

margens da Rodovia BR-153 (Marília-Lins). No entanto, essa relação verificada na fala dessa

senhora do Santa Antonieta, não corresponde à satisfação com a vizinhança apresentada pela

entrevistada do Presidente Costa e Silva (setor Sul), em trecho do tópico anterior (p. 122).

A percepção do bairro sob o prisma da violência de uma forma mais contundente

aparecerá na fala de um morador do CDHU, conjunto habitacional da Companhia de

Desenvolvimento Habitacional e Urbano nos limites do Setor Sul:

O que acha do bairro? É um bairro bem violento, mas é gostoso de morar aqui. O seu bairro é perigoso? Muito. Por causa do tráfico que tem aqui dentro. Segurança? Péssimo. Tem policiamento, mas só de vez em quando. O que falta no bairro para ser melhor? Acho que falta de um posto de policiamento e melhorias no posto de saúde, porque esse é péssimo. Autônomo, 24 anos, há 8 anos mora com a mãe no CDHU (Sul)

128 Essas duas percepções negativas poderiam ter sido trabalhadas no tópico anterior, onde foram abordados esses aspectos negativos sobre o bairro. Entretanto, neste tópico, elas nos servem para confrontar com as percepções de entrevistados de outros bairros.

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Outras percepções, nesse mesmo sentido, de que “o bairro é bem violento, mas é

gostoso morar aqui”, apareceram, porém com outros contornos nas entrevistas no bairro Santa

Antonieta (setor Norte):

O seu bairro é perigoso? Mais ou menos. Eu acho que é porque faz 16 anos que eu moro aqui, eu não acho aquele perigo que o povo fala. O povo fala: “ah, Santa Antonieta é isso, Santa Antonieta é aquilo...”, mas eu não acho. Mulher, “do lar”, 45 anos, casada, moradora no Santa Antonieta (Norte).

Como avalia as condições do bairro em termos de segurança? Ah, não posso me queixar, não. Aqui, graças a Deus, é a melhor rua que tem. Segurança aqui é a gente que faz, os próprios vizinhos fazem a segurança. Cada um vigia a sua casa e Deus vigia nós. [...] O seu bairro é perigoso? O perigo está em todo lugar. Está na periferia, no centro. Você vê: um bairro como o Santa Antonieta é mais sossegado. O perigo, de uma forma ou de outra, acontece. Isso é normal. É falta de o povo esquecer dos outros, respeitar pai e mãe. Buscar um lazer melhor. De buscar mais um sossego na parte de Deus. É difícil explicar porque as pessoas esqueceram Deus e resolveram buscar as coisas do mal, violência, baderna, desagrado, né? Desagrado aos pais, desagrado às mães, desagrado à sociedade. Trabalhador em serviços gerais, 43 anos, casado, 10 anos morador no Santa Antonieta (Norte).

Essas duas entrevistas demonstram que as idéias dos demais moradores da cidade

sobre esses bairros não encontram reflexo nas percepções desses sujeitos que ali residem. Na

perspectivas deles, o receio do perigo não pode ser considerado algo imanente, afinal, “de

uma forma ou de outra, acontece. Isso é normal”, encontrando, à sua maneira, justificativas

religiosas, culturais ou sociais para a violência, conforme essas outras entrevistas:

Como avalia as condições do bairro em termos de segurança? [risos] opinião? Eu não sou a favor de polícia. Eu sou contra. Tem coisas que faltam e tem coisas que é até certo, mas se for trazer para o lado que a polícia está aí para fazer coisa para o pessoal que realmente confia em polícia é falho. É falho. Mas se for para o lado de fazer para um pessoal que não precisa de polícia, aí está bom. O seu bairro é perigoso? Depende, do “por quê?” e “para quem?”. Por que e para quem? Porque se você é uma pessoa que não se envolve com nada, mas que você tem a capacidade de chegar e sair do lugar mesmo sem se envolver, você sai tranquilamente. Mas se você é daquela pessoa que é cheia de falar mal, cuidar da vida dos outros, eu acho que em qualquer classe é assim... Agora, nessa mesma questão aí, tem aquele outro lado, as drogas. Às vezes a pessoa que incentiva o menor é da própria família do menor e que, queira ou não, depende daquilo para viver, porque não teve oportunidade. Às vezes depende daquilo, que nem é culpa dele. Mas a pessoa tem dois, três familiares envolvidos que dão o exemplo, errado é, mas eu acho que temos que tirar um pouco da culpa no traficante, total. Diríamos que setenta por cento é culpa dele. Pedreiro, 23 anos, “amasiado”, 20 anos morador do Sta Antonieta (Norte).

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Como avalia as condições do bairro em termos de segurança? Tem policiamento, mas, hoje, ninguém respeita polícia, né? Policiamento é a mesma coisa que nada. O que dá mais medo é muito bandido, a criminalidade está feia hoje. Não tem mais como confiar em policia, também não. O seu bairro é perigoso? É... Mais ou menos. Tem uns maus elementos, só que é aquele negócio: dificilmente eles mexem com vizinho, né... Mau elemento tem bastante, mas na vizinhança eles não mexem, né? Com as próprias pessoas do bairro, dificilmente tem atrito, né? É mau elemento no próprio bairro. Então, quer dizer, você morando perto é mais seguro do que morar em um bairro bom aí e... É menos perigoso. As pessoas falam que é ruim morar em um bairro afastado do centro, onde tem maus elementos. Mas os maus elementos dificilmente fazem alguma coisa de ruim para quem mora perto, né? Porteiro, 30 anos, casado, 13 anos morador no Jd. Maria Angélica (Sul).

Essas duas entrevistas apontam, a seu modo, uma estereotipia dos “maus elementos”

ou de que determinadas ações delitivas pudessem ter um fundamento no incentivo familiar.

Entretanto, essa estereotipia não circunscreve o problema da criminalidade ou violência aos

“maus elementos”, mas incorpora a polícia como parte deste problema e sugere uma mea

culpa às condições sociais nas quais estão impelidos os sujeitos que se enveredam para

atividades como a comercialização das drogas. Além disso, as idéias sobre a violência e/ou

“perigo” de vitimização passam pela capacidade dos sujeitos em saber “lidar” uns com os

outros, pois “em qualquer classe é assim...”.129

Enfim, com essas diversas percepções sobre outros bairros, nota-se que, ao apreciá-

los, os critérios dos entrevistados, em geral, são pautados pelo fato de serem “melhores” que o

próprio bairro. “Melhor” não significa ser mais abastado – mesmo que bairros como Maria

Isabel, Esmeralda e Tangará (setor Sudeste) e Parati e Itaipu (setor Centro-Sul), de setores

com as mais elevadas condições sócio-espaciais da cidade, tenham sido escolhidos. Quando

as escolhas são de bairros populares, elas permeiam outros valores como ser provido dos

serviços essenciais que, nem sempre, estão dispostos em todos os bairros.

129 Na pesquisa sobre os condomínios horizontais fechados em Marília, Delicato (2004, p. 94-96) encontra entre os seus entrevistados falas que demonstram a relação de vizinhança como um problema, conforme uma moradora de um desses condomínios “é bom você não criar inimizade com ninguém [...] Você fica com medo de ficar reclamando muito [...] No final de semana passado tinha um pessoal de outro lugar, de não sei onde, usando a piscina. De fora! Quer dizer, então você paga o condomínio e tudo o mais, pra ter uma limpeza, e vem gente de fora e usa a piscina! Mas aí eu fui reclamar. Aí já é demais! Mas você percebe, às vezes tem churrasco lá embaixo e só aquelas pessoas participam, sabe”. Em outros trechos, os problemas de convivência nesses condomínios se colocam acentuados: “Existem aqueles que entendem que viver em sociedade é uma coisa saudável e existem alguns poucos que acabam atrapalhando essa convivência” e “Gera muita confusão. Tem aqueles que têm a consciência de que não devem fazer isso. Têm outros que já fazem por pirraça porque o vizinho é um chato, perigoso. E tem aqueles que fazem, chamam a atenção, simplesmente por acharem que são os donos do lugar”.

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Por outro lado, quando se trata da depreciação de outros bairros, o critério vinculado à

idéia de “perigoso” ou espaço de “violência” emerge na direção daqueles bairros citados: em

quase a sua totalidade, bairros populares. Neste aspecto, os bairros depreciados na cidade de

Marília, foram aqueles que se localizam nos extremos norte e sul da cidade, identificados, por

vezes, pelos bairros mais conhecidos destas regiões: Nova Marília (setor Sul) e Santa

Antonieta (setor Norte).

Considerados pela “distância” e pelas percepções de que sejam os bairros mais

“perigosos” da cidade – com a favela Vila Barros – essas duas regiões, onde se localizam os

dois distritos industriais da cidade, concentram juntas quase 45% da população mariliense e se

compõem de loteamentos populares novos com ruas sem asfalto; conjuntos habitacionais

recentes, mas já deteriorados; e favelas, escondidas para os “vales” ou “buracões” e que, por

isso, quase não pertencem à paisagem da cidade.

No entanto, como vimos na dinâmica criminal de Marília, esses setores, Norte e Sul,

aparecem com baixos índices de ocorrências – quando analisados sob a relação “crime versus

população total” (logo, total de crimes por mil habitantes) – contrariando essas percepções,

inclusive aquelas dos sujeitos de outros bairros destes mesmos setores.

É claro que, em alguns casos, a percepção dos sujeitos desses setores se revelava sobre

os próprios bairros, afirmando inclusive a experiência de vitimização ou “ter ouvido falar” de

algum tipo de violência no bairro, o que dificulta qualquer tentativa de questionar suas

experiências. Porém, se somarmos todas as percepções que se referem aos demais bairros,

inclusive quando nem mesmo tiveram qualquer experiência no bairro citado, incorremos na

possibilidade de haver uma projeção dos estigmas e preconceitos presentes por meio da tese

que relaciona pobreza-criminalidade.

Uma tese que é um obstáculo à possibilidade de se pensar a criminalidade sob outras

óticas, como a relação entre as sociabilidades articuladas à apropriação do espaço da cidade,

negligenciando a própria superação dos problemas vividos, além de contribuir para a

reprodução do círculo vicioso: estereótipos que criminalizam os desfavorecidos sócio-

economicamente – polícia repressiva contras as classes populares - mais violência, que

reproduz estereótipos...

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Considerações do Capítulo 3.

Muitas pessoas, mesmo no mundo ocidental moderno e afluente, são perseguidas pelo medo. Quase diariamente lemos sobre assaltos e assassinatos e sobre os idosos que residem nos centros das cidades que, devido ao medo, se transformam em virtuais prisioneiros dentro de suas próprias moradias. Embora os adultos jovens e cultos comumente não vivam com medo da violência física, outras ameaças mais nebulosas aborrecem suas vidas. Frequentemente, parecem estar preocupados com o futuro, tanto o próprio quanto o da humanidade. Eles têm a sensação desagradável de que “as coisas estão se tornando piores”; o futuro promete não apenas maior deterioração dos centros das cidades como também crise ecológica, tensão racial, fome mundial e desastre nuclear. (TUAN, 2005, p. 333).

Com essas palavras, pensamos nas diversas percepções apreendidas e expostas neste

capítulo. Além disso, lembramos das reflexões apresentadas no primeiro capítulo,

particularmente quando nos referíamos aos medos na cidade. Para Tuan (2005), muitos medos

sempre estiveram presentes nos pensamentos dos homens, nas suas relações com os outros,

com a natureza ou mundo selvagem. Nesta sociedade predominantemente urbana, diversos

medos, o medo do campo e das forças “ocultas” da natureza como fantasmas e monstros de

florestas inabitadas ou desconhecidas, foram minimizados. Porém, a exposição das

individualidades na sociabilidade urbana apresentou novos e complexos medos. Como vimos,

muitos deles são alimentados pela possibilidade da ameaça dos “pobres”, seus problemas,

necessidades ou reivindicações de parte dos quinhões produzidos enquanto produto social,

pão, moradia, trabalho ou a própria cidade. Nesta sociedade complexa, com o avanço da

ciência e o acesso a outras noções de realidade, os medos são mitigados e se revelam cada vez

mais sob a percepção do que Tuan (2005) afirma ser a “escala global” e “futuridade”.

A ansiedade neste mundo com mudanças cada vez mais rápidas parece colorir o medo

presente. É claro que a violência e o crime – nos termos da experiência de vitimização e do

sentimento de insegurança – reverberam nas percepções de homens e mulheres na cidade.

Mais do que isso, as percepções e sentimentos relativos à violência e criminalidade estão

atrelados às políticas urbanas que buscam remediar os conflitos, embora, em sua grande

maioria, estejam mais vinculados à necessidade sempre premente de segregar ainda mais os

espaços sociais da experiência na cidade. Segrega-se sócio-espacialmente as classes sociais

em periferias distintas, percebida pelo morador do Jardim Aeroporto (setor Leste, epígrafe na

p. 76), ou na revitalização conservadora dos processos de “gentrification” que, em Marília,

parece despontar na recuperação de galpões industriais abandonados há décadas (na p. 77).

Dessa maneira, não seria nenhuma surpresa reencontrarmos eventos similares às rebeliões que

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ocorrem volta e meia em grandes cidades, guardadas as devidas proporções (“émeutes” na

periferia francesa ou “ataques” de organizações criminosas em São Paulo, no ano passado).

O contato com a percepção dos sujeitos na cidade de Marília permite-nos observar

muitos aspectos, por vezes relacionados à violência ou criminalidade, por vezes sobre outras

elementos da realidade urbana. Assim, a exposição dessas percepções por meio dos aspectos

positivos, relativos ao sentimento de “topofilia”; negativos ou “topofóbicos”; e, ainda, sobre

outros espaços da cidade, nos mostraram que:

1) Nos termos dos sentimentos “topofílicos”, a satisfação com o bairro, em geral refere-se às

vivências e historicidades de cada sujeito, ao mesmo tempo em que se confunde com a

história dos bairros ou com as relações sociais tecidas na família e/ou vizinhança. Assim, as

avaliações e as vivências nos bairros são permeadas por especificidades que cada bairro ou

região apresenta em termos de condições sociais: enquanto nos bairros de alto padrão

percebe-se positivamente a ausência de espaços sociais, ao se valerem da privacidade presente

em seus quarteirões estritamente residenciais; nos mais populares, às lutas individuais por

sobrevivência se agregam lutas coletivas pela melhoria desses lugares, muitas vezes

desprovidos de diversos serviços básicos;

2) Da mesma forma que as percepções positivas, as perspectivas contrárias – que poderíamos

atribuir o caráter de “topofóbicas” – também se revelaram por meio da historicidade da

relação sujeito-bairro e das condições de vizinhança. Além disso, a percepção do medo ou do

crime demonstra a projeção do “perigo” ou receio: aos bairros circunvizinhos, do mesmo

setor ou região; aos espaços pauperizados presentes no bairro como as favelas; e às condições

sociais e econômicas que acentuam ainda mais as situações sofríveis vividas pelos mais

pobres. Porém, a análise dos sentimentos negativos não nos pareceu passar necessariamente e

tão somente pela experiência de vitimização ou sensação de insegurança quando metade dos

entrevistados negou experiências relacionadas diretamente com a violência;

3) No que se refere às percepções dos demais espaços da cidade – a partir de questões como

“se pudesse/quisesse/tivesse que mudar de residência, para qual bairro gostaria de ir? Por

quê?” e “para qual bairro não gostaria de ir? Por quê?” – o apreço a determinados bairros

advém do simples critério de serem “melhores” que os seus, não exatamente por serem mais

abastados, mas por serem providos de serviços essenciais que nem sempre estão dispostos em

todos os bairros. Finalmente, quando se trata da depreciação de bairros estranhos aos seus,

conceitos de “perigosos” ou espaços de “violência” são direcionados, em quase a sua

totalidade, aos bairros populares. Em Marília, os mais citados localizam-se nos extremos norte

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e sul (entorno dos bairros Nova Marília – setor Sul, e Santa Antonieta – setor Norte) onde

reside quase a metade dos marilienses e onde se encontram os dois distritos industriais,

loteamentos populares, conjuntos habitacionais e favelas. No entanto, conforme os mapas da

dinâmica criminal, são regiões de baixos índices de ocorrências criminais (em relação aos

seus habitantes) e, tampouco, seus moradores concordam com tais referências negativas.

No conjunto, as percepções dos espaços da cidade se revelam de maneira múltipla e

relativas às experiências no/do urbano. Por um lado, se apresentam de modo coerente aos

dados sócio-espaciais quando demonstram a apreensão de uma espacialidade desigual, tanto

nos bairros populares ao revelarem sua precariedade e distância das áreas centrais, quanto

naqueles de classe média e alta ao citarem as qualidades de seus enclaves fortificados, ou não.

Por outro lado, quando as referências se dirigem aos demais espaços da cidade, as percepções

se distanciam das experiências e, até mesmo, dos dados criminais ao se alinharem aos

preconceitos, estigmas e estereótipos presentes nas teses que fazem alusão à relação direta

entre pobreza e criminalidade. Neste caso, em particular, as “falas do crime” de Caldeira

(2000) parecem se verificar, portanto, não na experiência direta, mas na reprodução dos

estigmas e estereótipos que elegem os bairros populares como lugares privilegiados de

expressão do “perigo” ou medo na cidade.

Embora essas percepções negativas sobre os bairros tenham se apresentado dessa

maneira, vale considerar outros medos que se revelam na cidade. Medos que nos remetem a

complexidade desse sentimento que, por vezes, transcendem os limites da cidade, mas se

relacionam ao que Tuan (2005) chamou de “futuridade”.

Como alude a epígrafe deste tópico, vemos que os medos contemporâneos se

conformam em uma “escala global” que parece escapar ao controle das possibilidades

individuais ou locais. Trata-se da percepção de que o futuro se coloca como uma incógnita: o

futuro ecológico do planeta, a sobrevivência da humanidade e as vicissitudes e intempéries da

sobrevivência individual representada pelo emprego, ou ausência deste.

Com duas perguntas que pudessem explorar as necessidades ou apontamentos no final

da entrevista (“o que falta no bairro para ser melhor?” e “o que falta na cidade para ser

melhor?”) encontramos um quadro de respostas interessante:

1) Para o bairro, as respostas recuperavam os pontos abordados nas entrevistas e apontavam

o asfaltamento das ruas, iluminação, “mais escolas”, limpeza de terrenos baldios, “segurança”

e “mais policiamento” – enfatizados na direção da “polícia comunitária” – e toda a sorte de

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problemas presentes no entorno da vizinhança, distribuídos de modo equilibrado entre os

diversos setores de bairros; e

2) Para a cidade, por sua vez, apesar da grande alusão a “um governo melhor”, “mais saúde”,

“educação”, “segurança” e “áreas de lazer” (com grande ênfase à ausência de espaços

públicos de recreação, particularmente piscinas públicas), distribuídos igualmente de maneira

equilibrada pelos setores de bairros, foram significativas as referências “mais emprego” e

“trabalho”. Pautadas pela exigência de “mais firmas” e “indústrias”, estas respostas se

relacionaram com a compreensão de que a “Capital Nacional do Alimento” deveria

diversificar a produção industrial como maneira de ampliar a oferta de emprego na região:

Queria acrescentar também que eu acho que o prefeito deveria trazer mais indústrias para a cidade, porque falam muito de “Capital Nacional do Alimento”, mas deveria variar também porque abrir as portas para novas empresas vai surgir mais empregos e a cidade só tende a crescer ainda mais... Metalúrgico, casado, 31 anos, 9 anos morador da Vila Nova (Norte).

Essa percepção, como as de outros entrevistados, demonstra que os sujeitos têm uma

apreensão razoável também dos acontecimentos no plano econômico da cidade no que se

refere ao processo corrente de “city marketing”, visto no primeiro capítulo. Não nos parece de

acordo com os cognomes forjados para construir alguma identidade para a cidade em um

mundo que se “globaliza” ou mundializa – de acordo com os preceitos de Tuan (1980) e Augé

(1994) – e que impõe os atuais imperativos do capitalismo: político, na crítica de Vainer

(2000) à “pacificação planejada” que propõe a união em nome de um projeto de cidade acima

de interesses partidários ou de classe; e econômico, ao transformar a cidade em nome de um

setor econômico específico valendo-se da interiorização das indústrias, redes de rodovias e

“bem estar interiorano” (supostamente livre de contradições como nas grandes cidades).130

A conjunção de indústrias do mesmo setor econômico que ocorre em Marília se

conforma em um aspecto revelador sobre a vida urbana nesta virada de milênio: a

reestruturação do setor produtivo que, por ocasião da necessidade de uma rentabilidade

flexível, impõe de um lado uma espacialidade e localização estratégica de suas fábricas em

130 São muitos os autores que trataram dessa característica das cidades médias em consagrarem alguma identidade regional conforme a atividade econômica predominante. Além do trabalho especifico sobre Marília que criticava a idéia de “capital do alimento” que convive com a presença da fome nas muitas favelas da cidade (RIBEIRO, 1996), algumas obras contribuem para a discussão crítica de como a cidade tem sido transformada no horizonte de se tornar uma “cidade global” atendendo por meio da organização do espaço aos ditames do capital financeiro ou industrial – presentes em Fix (2000), Vainer (2000), Arantes (2000), Maricato (2000), Ferrari (2003) e outros; ou aludindo à sustentabilidade de uma “cidade ecológica” como é o caso de Curitiba, sempre referenciado, mas nem sempre tão real quanto se proclama, segundo de Sanchéz García (1999).

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distritos industriais com facilidades de circulação de mercadorias e, de outro, o desemprego

ou a terceirização das atividades produtivas que se percebe em relatos como estes:

Não tem [emprego para a terceira idade], né? A não ser firma terceirizada, que é para outra firma, que é sonegação de imposto. Para mim, não passa disso aí. Isso é firma que presta serviços para outra. Ela que está querendo correr do encargo tributário é para passar para as costas de outra. Mesmo sendo firma terceirizada, pela faxina, guarda, porteiro, outras funções como essas só firma terceirizada. Mas essas firmas credenciadas pelo Estado, essas não pegam, é só de 30 anos para baixo. Trabalhador em serviços gerais, 43 anos, casado, 10 anos morador no Santa Antonieta (Norte).

Essa percepção, presente nas falas de trabalhadores da cidade, aponta este medo que

predomina nas cidades capitalistas: “estão mandando todo mundo embora” – atesta uma

auxiliar de produção, moradora do mesmo bairro no extremo norte de Marília. Um medo que

dota de complexidade a vida dos sujeitos na medida em que altera as percepções sobre suas

próprias experiências, as de seus familiares, as da vizinhança, além de múltiplos aspectos

vivenciados na cidade. É o caso da explicação tácita de fenômenos como a violência ou

criminalidade, reproduzindo esquemas de desemprego que leva à criminalidade quando

identificam determinados sujeitos ou espaços conforme a tese pobreza-criminalidade.

Ao mesmo tempo, essa percepção recorrente sobre emprego ou desemprego pode

indicar respostas a muitos dos problemas e conflitos que permeiam a vida urbana. Ao

denunciar o modo como se empreende os elementos mais constitutivos para a sobrevivência

no capitalismo, o trabalho, se esboça uma crítica aos projetos urbanos, políticos e econômicos

correntes e a necessidade de projetos alternativos.

Neste aspecto, a percepção espacial, crime e medo, conforme o que apresentamos

neste capítulo, parece evidenciar uma multiplicidade de relações com a cidade, assinalada por

alguns nexos coerentes nos termos de: sociabilidades diversas conforme segregação sócio-

espacial, uma vez que as percepções sobre os bairros correspondem às caracterizações sócio-

espaciais destas cidades “colchas de retalhos”; percepções do crime que criminalizam os

“pobres”, sem respaldo em qualquer evidência estatística (nas pesquisas do GUTO/UNESP ou

outros grupos de pesquisa que não compreendem a violência ou o crime como algo natural ou

em relações de causa e efeito), exceto pela condição histórica de estarmos em um país com

gritante expressão das diferenças entre as condições de vida dos “mais ricos” e dos “mais

pobres”; e, finalmente, percepções sobre a própria concepção de cidade que, muitas vezes,

contraria o projeto de empresas e instituições estatais na consecução de símbolos ou

cognomes sem correspondência nas necessidades e anseios de grande parte de seus habitantes.

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Breves considerações

Como vimos ao longo dessa pesquisa e na elaboração do texto, os aspectos que

circundam a realidade urbana são muito complexos e merecem uma atenção precisa e preciosa

dos fenômenos. A vida nas cidades se assenta sob diversos imperativos materiais, políticos,

econômicos e culturais. O grande desafio está na experiência cotidiana e no enfrentamento de

cada um desses imperativos. A segregação sócio-espacial não é apenas um modelo de cidade

como um “estilo particular”. Ela é mais uma expressão de uma sociedade de classes que

espolia o trabalho dos homens do mesmo modo que todos os espaços da vida social, tudo

aquilo que se produz e que se cria.

A cidade não é uma produção do capitalismo, mas sob o capitalismo suas ruas e

bairros, praças e moradias foram segregados em um processo que parece cada vez mais

irremediável. Cada sujeito, sua família e seus pares são distribuídos no espaço desigual

conforme a capacidade de sustentar mecanismos como a especulação imobiliária. A recusa

desta cidade que segrega e inviabiliza qualquer projeto democrático de sociedade se construiu

em diversas lutas urbanas, relacionadas com o trabalho diretamente, com a moradia

inexistente ou até mesmo pelo pão de cada dia negado. A essa resistência organizada

politicamente, as empresas e o Estado responderam pelo reforço dos muros. Surgia o medo

urbano característico do capitalismo: o medo dos “pobres”, de sua miséria, dos trabalhadores,

de sua organização política. Esse é o “espectro” do medo que rondou não somente a Europa

do século XIX, mas todos os países que se desenvolveram sob a égide do capitalismo e da

conformação de uma sociedade de trabalhadores e proprietários.

Nos tempos em que esse temor parece se desmanchar com a força de um passado nem

tão distante, emerge paulatinamente o medo do crime. Um medo que se acentua nos muros,

físicos ou não, que cercam a cidade. As empresas midiáticas confirmam ou reforçam esse

medo, todos os dias em seus diversos boletins sobre o “terror”, os “assaltos”, os “seqüestros”

e uma enormidade de acontecimentos que apenas atestam: este mundo é um caos

intransponível. Parece não haver mais nenhuma outra compreensão do que seja essa realidade

senão por aquilo que nos provoca a tomar todo cuidado com o “outro”, com a “rua”, com a

“multidão” cada vez mais crescente de miseráveis e desvalidos.

A pergunta que resta é: esta é a única possibilidade de “versão” sobre o mundo

presente? Não existem saídas para a superação deste estado de coisas maior do que as nossas

mãos e mentes alcançam? Muitas respostas existem, diversas e múltiplas, antagônicas e

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correspondentes, localizadas e abrangentes. Ficamos com a possibilidade do confronto dessas

respostas.

Se a realidade se cria e recria processualmente, não é possível existir uma resposta

reveladora para todos os seus aspectos. Provavelmente existem muitas e, dentre elas, algumas

se reafirmam na experiência nossa de cada dia. É necessário, portanto, voltar às experiências

que constroem, destroem e reconstroem o mundo, os valores, a sociedade, a cidade ou a

própria trajetória individual.

Neste caso, nos parece que a percepção dos homens e mulheres, pode revelar outras

experiências na realidade urbana e, mais do que isso, colocar em xeque todas as “verdades”

que se efetivam sobre a cidade. Como vimos, as percepções apreendidas na cidade de Marília

confirmam muitas teorias, especialmente aquelas que se dirigem à análise crítico-social da

realidade: a “espoliação urbana” parece permanecer impetuosamente sobre as vidas dos

sujeitos, especialmente dos moradores das periferias e na beira de “buracões” dessa cidade do

interior. De uma maneira devidamente complexa, esse processo de segregação sócio-espacial

encontra a “cidade de muros” que em Marília tem uma nuance especial: os “vales” são

apropriados à sociedade de classes e seus enclaves. Essa apropriação pode ser observada na

fala de um promotor de vendas de lotes em um condomínio horizontal fechado de um lado do

“vale”, “tranqüilizando” um possível comprador sobre a favela Vila Barros do outro lado:

“não tem como passar pra cá, é um paredão com 50, 60 metros de altura, não tem como pular e vir pra cá, o visual não tem jeito, em São Paulo é normal” (DELICATO, 2004, p. 48)

Este é o discurso de um promotor de vendas, fundado na comparação com outras

cidades e preocupado em justificar a moradia em um condomínio. Entretanto, as percepções

dos habitantes de Marília não necessariamente se vinculam à concepção de cidade que

reproduzem os representantes dos interesses imobiliários.

Quando se busca as percepções dos moradores dos diversos bairros de Marília,

percebe-se que as imagens de temor do crime não são tão freqüentes quanto aparecem,

obviamente, nos estudos sobre São Paulo ou Rio de Janeiro, por exemplo. Elas são mais

diversificadas e demonstram outros sentimentos sobre o próprio bairro no que se refere à

afeição e familiaridade por quase a totalidade dos entrevistados. A relação afetiva com o

bairro se esboça a partir de uma historicidade que nem a distância ou dificuldade de acesso

aos bens urbanos poderia esboroar.

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As percepções que criminalizam a pobreza estiveram presentes, confirmando outras

pesquisas, em outras cidades e com estatísticas e métodos de pesquisa diversos. Em Marília, a

tese pobreza-criminalidade se evidenciou através dos preconceitos e estigmas contra os

bairros populares, em especial contra as favelas. Porém, isso somente aconteceu quando os

sujeitos não conheciam os espaços que diziam ser perigosos, pois as percepções de moradores

ou de sujeitos com relações pessoais com os moradores dos bairros tidos como perigosos, se

referiram de maneira diversa na relação dos fenômenos criminais e espaços pauperizados. As

percepções destes desconstruíam uma relação tão imediata ou, até mesmo, justificavam como

única alternativa de superação individual das dificuldades econômicas e sociais, muito

próximo da categorização de Souza (2000) sobre “injustiça social-criminalidade”.

Portanto, essas percepções deflagram as idéias predominantes nas empresas de mídia

ou do capital imobiliário não apenas sobre o que sejam os bairros da cidade, mas inclusive a

própria cidade, especialmente sobre outros projetos de organização do espaço (‘“eles’ vêem

mais ‘central’” e ‘“pros’ bairros não”, p. 76) e do trabalho, ao recusarem o cognome “Capital

Nacional do Alimento”.

Por fim, diante do que foi apresentado, devemos ressaltar que, tanto as reflexões

quanto os resultados da pesquisa compõem as nossas inquietações sobre a cidade, não

somente desta cidade média do interior paulista, mas das sociabilidades que se tecem nas

cidades pelo mundo afora. Por essa razão, concordamos com os autores que afirmam ser a

cidade uma das maiores expressões das potencialidades humanas e, exatamente pelo caráter

potencial, eminentemente histórico e permeado por contradições, nos preocupamos na

identificação das razões humanas que se inscrevem em cada um dos seus espaços. A pesquisa

em busca das percepções realizada em Marília nos ofereceu nesses dois anos um tortuoso e

sinuoso exercício, mas frutífero nos seus resultados. Do ponto de vista teórico, coloca-se a

exigência da continuidade dos estudos e verificação de muitas das assertivas, afinal não são

conclusões, mas possibilidades de análise. No conjunto, esperamos ter contribuído com a

análise das evidências sócio-espaciais e sociabilidades na cidade a partir da percepção

espacial.

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Referências

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______. Pobreza urbana. São Paulo: Moderna, 1979.

______. Por uma geografia nova: da crítica da geografia a uma geografia crítica. São Paulo: Hucitec/USP, 1978. 236 p.

SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Tradução de Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

SPOSATI, Aldaísa et all. Os direitos (dos desassistidos) sociais. São Paulo: Cortez, 1989. p.126 (com Maria do Carmo Falcão e Sônia Maria Fleury Teixeira).

______. Mapa da inclusão e exclusão social da cidade de São Paulo/2000: a dinâmica social dos anos 19990. São Paulo: NEPSAS – PUC/PP; INPE; POLIS, (?). p. 5-43.

VELHO, Gilberto. Violência e cidadania. In: DADOS: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 23 (3), p. 361-364, 1980.

______. A utopia urbana: um estudo de antropologia social. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

WACQUANT, Loïc. Da América como utopia às avessas IN: BOURDIEU, Pierre (Org.). A miséria do mundo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

ZALUAR, Alba. A máquina e a revolta. São Paulo: Brasiliense, 1985. 265 p.

ZIEGLER, Jean. Os senhores do crime: as novas máfias contra a democracia. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2003.

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Anexos

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ANEXO A

PRIMEIRA SETORIZAÇÃO DE BAIRROS DE MARILIA UTILIZAD A PELO GUTO. FONTE: GUTO. ORG: GUTO

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ANEXO B

CLASSIFICAÇÃO OCORRÊNCIAS CLASSIFICAÇÃO OCORRÊNCIAS

TRÁFICO DE ENTORPECENTE ESTUPRO

USO OU PORTE DE ENTORPECENTE ATO OBSCENO

ENCONTRO DE ENTORPECENTE ESCRITO OU OBJETO OBSCENO

DROGADO ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR

OCORRÊNCIA COM ENTORPECENTE

OUTRAS OCORRÊNCIAS COM ENTORPECENTE

CORRUPÇÃO DE MENORES

PERTURBAÇÃO DO SOSSEGO PÚBLICO RAPTO

CONDUTA INCONVENIENTE EXPLORAÇÃO DO LENOCÍNIO

EMBRIAGUEZ JOGO DE AZAR

DESINTELIGÊNCIA VADIAGEM

VIAS DE FATO MENDICÂNCIA

RIXA SERVIR BEBIDA ALCOÓLICA A INCAPAZ

TROTE IMPORTUNAÇÃO OFENSIVA AO PUDOR

OCORRÊNCIA CONTRA A PAZ

PÚBLICA

OUTRAS OCORRÊNCIAS CONTRA A PAZ PÚBLICA

ESTUPRO, TENTATIVA

HOMICÍDIO DESORDEM/PERTUBAÇÃO DA TRANQUILIDADE

HOMICÍDIO, TENTATIVA

OCORRÊNCIA CONTRA OS COSTUMES

OUTRAS OCORRÊNCIAS CONTRA OS COSTUMES

ABORTO ACIDENTE PESSOAL

LESÃO CORPORAL/AGRESSÃO PARTURIENTE

INFANTICÍDIO DEMENTE

PERICLITAÇÃO DA VIDA MORTE NATURAL

ABANDONO DE INCAPAZ MAL SÚBITO

OMISSÃO DE SOCORRO INDIGENTE

AMEAÇA PESSOA DESPROTEGIDA

SEQUESTRO/CÁRCERE PRIVADO PESSOA DESAPARECIDA

VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO PESSOA LOCALIZADA

MAUS TRATOS OBJETO ABANDONADO/LOCALIZADO

RACISMO ORIENTAÇÃO

OCORRÊNCIA CONTRA A PESSOA

OUTRAS OCORRÊNCIAS CONTRA A PESSOA

AUXÍLIO A GESTANTE DESAMPARADA

FURTO AUXÍLIO A MIGRANTE

FURTO, TENTATIVA

OCORRÊNCIA DE AUXILIO AO PÚBLICO

E ASSISTENCIAIS

OUTRAS OCORRÊNCIAS DE AUXÍLIO AO PÚBLICO

ROUBO ENCONTRO DE CADÁVER

ROUBO, TENTATIVA AVERIGUAÇÃO DE SUSPEITO

EXTORSÃO SUICÍDIO

POSSE/INVASÃO DE PROPRIEDADE SUICÍDIO, TENTATIVA

DANO/DEPREDAÇÃO PRESERVAÇÃO DE LOCAL

APROPRIAÇÃO INDÉBITA PROTEÇÃO PESSOAL PATRIMONIAL

ESTELIONATO/FRAUDE TRANSPORTE EMERGENCIAL

RECEPTAÇÃO TRANSPORTE

LATROCÍNIO EVACUAÇÃO AEROMÉDICA

EXTORSÃO MEDIANTE SEQUESTRO POLICIAMENTO PREVENTIVO

ALARME DISPARADO INSTRUÇÃO/TREINAMENTO

ALARME DISPARADO ACIDENTALMENTE DESFILE/DEMONSTRAÇÃO

AUTO LOCALIZADO

OUTROS ATENDIMENTOS

OUTROS ATENDIMENTOS

OCORRÊNCIA CONTRA O

PATRIMÔNIO

OUTRAS OCORRÊNCIAS CONTRA O PATRIMÔNIO

TABELA 11 – CLASSIFICAÇÃO E RESPECTIVAS OCORRÊNCIAS FONTE: GUTO. ORGS.: Marceu D. Toigo e Leandro R. Laiter

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ANEXO C

ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA

1. Dados pessoais. Idade: _______ anos. Sexo: [ ] M [ ] F Estado civil:_______________. Escolaridade:____________. Origem: _____________________ [cidade] _____[estado] Profissão/Ocupação:_____________________.

2. Dados sobre o bairro. a) Há quanto tempo reside no bairro?________________________________________________________. b) Conhece a história do seu bairro?_________________________________________________________. c) O que acha do bairro?__________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________________. d) O que acha da sua vizinhança ? __________________________________________________________ ______________________________________________________________________________________. e) A sua comunidade luta por seus direitos?___________________________________________________. f) Como avalia as condições do bairro, através de: Educação: [ ] bom [ ]razoável [ ] ruim. [ ]não sei Saúde: [ ] bom [ ]razoável [ ] ruim. [ ]não sei

Asfaltamento: [ ] bom [ ]razoável [ ] ruim. [ ]não sei

Saneamento básico: [ ] bom [ ]razoável [ ] ruim. [ ]não sei

Iluminação: [ ] bom [ ]razoável [ ] ruim. [ ]não sei Segurança: [ ] bom [ ]razoável [ ] ruim. [ ]não sei

Comércio: [ ] bom [ ]razoável [ ] ruim. [ ]não sei

g) Você ou os membros de sua família freqüentam/participam : Associação de moradores [ ] sim [ ] não

Conseb/Conseg [ ] sim [ ] não Onde/Qual?_________________________________

Escola [ ] sim [ ] não Onde/Qual?_________________________________

Clube esportivo [ ] sim [ ] não Onde/Qual?_________________________________

Igreja [ ] sim [ ] não Onde/Qual?_________________________________

Conselho Municipal de Saúde [ ] sim [ ] não Onde/Qual?_________________________________

Posto de Saúde [ ] sim [ ] não Onde/Qual?_________________________________

Festas comunitárias [ ] sim [ ] não Onde/Qual?_________________________________

Outros [ ] sim [ ] não Onde/Qual?_________________________________

h) O seu bairro é perigoso? [ ] sim [ ]não [ ] razoavelmente [ ] não sabe. Por que? ______________ ______________________________________________________________________________________. i) Já sofreu algum tipo de violência no bairro? [ ]não [ ] sim, onde?______________ Qual?__________. j) Se pudesse mudar de residência, para qual bairro de Marília gostaria de ir? ________________________. Por que?_______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________________. E para qual não se mudaria? _______________________________________________________________. Por que?_______________________________________________________________________________ ______________________________________________________________________________________. k) O que falta no bairro/região para ser melhor?________________________________________________ ______________________________________________________________________________________ l) O que falta na cidade para ser melhor? _____________________________________________________ ______________________________________________________________________________________.

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ANEXO D

As duas perguntas, “AVALIAÇÃO DAS CONDIÇÕES DO BAIRRO PELA OFERTA DE

SERVIÇOS (comércio, segurança, iluminação, saneamento, pavimentação, saúde e educação)” e

“PARTICIPAÇÃO OU FREQÜÊNCIA NOS EQUIPAMENTOS E EVENT OS SOCIAIS” (Figuras 16 e

17) tinham como objetivo avaliar o nível de interação social dos entrevistados. Nas duas

figuras tem-se a demonstração da média entre as respostas dos entrevistados, onde: quanto

mais altos os “pontos de dados” ou o seu conjunto, mais positiva é a avaliação e, por

conseqüência, quanto mais baixos, mais negativa:

0

1

2

3

4

5

6

7

Cen

troC

entro

-Nor

teC

entro

-Oes

teC

entro

-Les

teC

entro

-Sul

Nor

oest

eN

orde

ste

Sudo

este

Sude

ste

Nor

teO

este

Leste Su

lM

aríl i

a

Comércio

Segurança

Iluminação Pública

Saneamento Básico

PavimentaçãoPública

Saúde

Educação

FIGURA 16: AVALIAÇÃO DAS CONDIÇÕES DO BAIRRO PELA O FERTA DE SERVIÇOS (comércio, segurança, iluminação, saneamento, pavimentação, saúde e educação)

Fonte e Org: M. R. C.

Foi elaborada a média entre as respostas dos entrevistados para cada item em ambas as

Figuras (exemplos: comércio, saneamento básico, associação de moradores, etc.). Desse

modo, as Figuras têm um efeito visual mais claro do que as duas tabelas originais – nas

páginas que se seguem – para a consulta dos dados e, se for o caso, para o contraponto com o

resultado obtido nas Figuras. Como é possível observar nas tabelas, a quantidade de dados é

enorme e, portanto, foi preciso simplificá-las nas duas figuras, embora não possam ser

somados, por serem qualitativamente diferentes. A média foi revista várias vezes para que o

resultado se aproximasse ao máximo dos dados das tabelas. Para fazer a média, utilizamos

três grandezas: 1,00; 0,5; e 0,25. Na Figura 16 “AVALIAÇÃO DAS CONDIÇÕES DO BAIRRO

PELA OFERTA DE SERVIÇOS...”, as grandezas eram:

A – “bom” ou “ótimo” (1,00); B – “razoável” ou “mais ou menos” (0,5); e C – “ruim”, “péssimo” (0,25). D – “não tem”, “não conhece/não sabe””, “não respondeu”.

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0

1

2

3

4

5

6

7

Cent

roC

entro

-Nor

teC

entro

-Oes

teCe

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-Les

teC

entro

-Sul

Nor

oest

eN

orde

ste

Sudo

este

Sude

steN

orte

Oes

teLe

ste

Sul

Mar

ília

Baares, trailers e lanchonetes

Festas Comunitárias e demaisfestividadesConselho Municipal de Saúde

Clube esportivo e demaisespaços de lazerPosto de Saúde

Igreja

Escola

Conselho de Segurança doBairro (CONSEG's)Associação de moradores

FIGURA 17: PARTICIPAÇÃO OU FREQÜÊNCIA NOS EQUIPAMEN TOS E EVENTOS

SOCIAIS Fonte e Org: M. R. C.

Na Figura 17: “PARTICIPAÇÃO OU FREQÜÊNCIA NOS EQUIPAMENTOS E EVENT OS

SOCIAIS”), as grandezas foram:

A – “sim” (1,00); B – “razoavelmente”, “às vezes” ou “mais ou menos” (0,5); C – “não”, “nunca”. (0,25). D – “não tem”, “não conhece”, “não respondeu”.

A média foi feita a partir de uma fórmula que somava as opções de respostas de

acordo com a grandeza relativa, terminando por dividir esta soma pela totalidade de respostas:

A + B/2 + C/4

A + B + C + D

Sendo A=1, B=0,50 e C= 0,25

Assim, quanto maior o “ponto de dados”, aproximando-se de +1,0, significa que a

média de respostas para o respectivo item (comércio) equivale a uma maioria de “bom” ou

“ótimo”. O caso contrário, em que o “ponto de dados” aparece mais próximo de Zero,

demonstra que, para aquele item, no respectivo setor de bairros, as respostas equivalem aos

conceitos “ruim” e “péssimo”.

Dessa maneira, quando o “ponto de dados” se apresenta com um tamanho

intermediário, observa-se que a média foi equilibrada entre as diversas opções de respostas. A

grandeza 0,25 foi uma opção para que as respostas negativas não desaparecessem dos

gráficos.

Essa apresentação dos dados é demonstrativa e opcional à tabela original, sobretudo

porque não existem normas estatísticas que validem tal apresentação.

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Educação Saúde Pavimentação Pública

Saneamento Básico

Iluminação Pública Segurança Comércio

A B C D1 D2 A B C D2 A B C D2 A B C D3 A B C D3 A B C A B C Centro 2 1 1 2 2 1 2 1 2 1 1 1 1 2 1 C-Norte 3 1 1 1 1 2 2 1 2 1 1 1 1 2 1 C-Oeste 2 1 1 2 2 1 1 2 2 C-Leste 2 2 1 1 2 2 2 1 1 C-Sul 1 1 2 2 1 2 1 1 2 1 1

Noroeste 2 2 1 1 1 1 2 1 1 1 1 Nordeste 3 2 1 2 4 1 5 3 2 1 4 1 1 1 2 3 4 1 1 Sudoeste 1 1 1 1 1 1 1 Sudeste 2 2 2 2 2 1 1 1 1 Norte 6 1 4 3 4 3 4 3 7 3 2 2 5 1 1 Oeste 2 1 2 1 2 1 1 1 3 2 1 2 1 Leste 1 1 2 1 2 1 1 1 1 2 1 1 Sul 8 2 1 5 1 5 7 2 1 1 6 2 1 1 8 2 1 4 4 3 11

Marília 31 9 1 3 2 25 8 11 2 19 9 17 1 25 14 6 1 35 7 3 1 18 15 13 32 7 7 AVALIAÇÃO DAS CONDIÇÕES DO BAIRRO PELA OFERTA DE SE RVIÇOS (comércio, segurança, iluminação, saneamento, pavimentação, saúde e educação) Legenda: A: “bom”; B: “razoável”; C: “ruim” (C), “não sabe” (D1), “não tem” (D2) e “não respondeu” (D3). Fonte e Org: M. R. C.

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Associação de moradores Conselho de Segurança do Bairro (CONSEG's) Escola Igreja

A B C D1 D2 D3 A B C D1 D2 D3 A B C D1 D2 D3 A B C D1 D2 D3 Centro 2 1 1 2 3 3 C-Norte 1 1 1 1 1 1 3 3 C-Oeste 2 2 2 1 1 C-Leste 1 1 1 2 2 C-Sul 1 1 1 1 1 1 2 1 1 Noroeste 1 1 1 1 2 2 Nordeste 5 1 5 5 1 5 1 Sudoeste 1 1 1 1 1 Sudeste 1 1 1 2 2 Norte 6 1 5 2 6 1 6 1 Oeste 1 1 1 1 2 2 1 1 2 Leste 2 2 1 1 1 1 Sul 2 1 8 1 9 1 7 4 8 1 2 Marília 6 4 30 2 4 0 2 0 0 27 8 9 26 0 20 0 0 0 33 2 9 2 0 0

Posto de Saúde Clube esportivo e demais espaços de lazer

Conselho Municipal de Saúde

Festas Comunitárias e demais festividades

Bares, trailers e lanchonetes

A B C D1 D2 D3 A B C D1 D2 D3 A B C D1 D2 D3 A B C D1 D2 D3 A B C D1 D2 D3 Centro 2 1 1 1 1 1 1 1 2 1 1 1 1 C-Norte 3 1 2 2 1 1 1 1 2 1 C-Oeste 2 2 2 1 1 1 1 C-Leste 2 1 1 2 1 1 1 1 C-Sul 2 1 2 2 1 1 2 Noroeste 2 1 1 1 2 1 1 2 Nordeste 3 1 1 1 3 1 2 6 2 2 2 3 1 2 Sudoeste 1 1 1 1 1 Sudeste 1 1 2 2 2 1 1 Norte 6 1 1 5 1 5 2 1 6 4 1 2 Oeste 2 1 1 2 2 1 2 1 1 1 1 Leste 2 1 1 2 1 1 1 1 Sul 8 2 1 2 1 6 1 1 10 1 4 3 3 1 5 3 2 1 Marília 32 6 9 1 0 0 11 3 25 5 1 1 2 1 33 0 10 0 13 4 21 8 0 0 15 10 16 3 0 2

RESPOSTA DOS ENTREVISTADOS ÀS QUESTÕES SOBRE PARTICIPAÇÃO OU FREQÜÊNCIA EM... Legenda: A: “sim”; B: “razoavelmente”; C: “não” ou “nunca” (C); “não tem” (D1), “não conhece” (D2) e “não respondeu” (D3). Fonte e Org: M. R. C.

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ANEXO E

IMAGEM DE SATÉLITE DA CIDADE DE MARÍLIA. Fonte: site de buscas Google Earth.

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“ITAMBÉ”.

“ITAMBÉS” Foto tirada do bairro Jânio Quadros (setor Norte) de M. R. Carvalho.

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Ádima Domingues . Adriana França [GUTO] . Alexander Maximilian Hilsenbeck Léquinho .

Alecsandro Lélis Moreira . Alessandro Dorna . Alessandro Moura . Alexandre Pianelly .

Aline da Silva Ribeiro [da Pós] . Amélia Cristina Rosa . Américo Neto . Ana Elisa Messias

[GUTO] . Anderson [filosofia] . Anderson Marques . Andréia da Clara . Andréia Rodrigues .

Ângela . Áurea de Carvalho [mãe] . Bárbara Machado . Beatriz [Bia] Martins . Bruno Moretti

. Camila Vedovello . Carlos Eduardo França . Carolina de Paula Telles . Charles . Cíntia

Falchi . Claude Lépine . Cláudio Delicato . Christian Souza Ribeiro . Chico . Danilo José

Dálio . Daniel Théry . Davi Vinícius . Davisão . Dora Nigro [a professora de sempre] . Rafael

Del’Omo . Edemir de Carvalho. Elenice . Élida Maria . Elizângela Cardoso . Eloísa

Bennevenuti . Elton . Ethel Kosminsky . Fabiana Diniz . Fábio Júnior Lopes . Fábio Maia .

Fátima Cabral . Fabiana . Fátima Diniz . Felipe . Filipe Mesquita . Francisco Corsi . Francisco

Diniz Teixeira . Ginha [Ângela] . Gisele Sanches . Herbert Barucci . Helson [GUTO] . Hélio

Alexandre . Ícaro . Isabel Loureiro . João Pioto . José Carlos Miguel . Antônio Júnior . Jussara

Menezes . Kauan Vitor de Carvalho . Kléber Bianchi . Kimiko Mariza [Escritório de

Pesquisa] . Larissa . Laura Carolina Braga Carmo . Leandro . Leonardo Bezerra . Lídia Cássia

Lopes . Lídia Possas . Lívia Godoy . Luciane . Luciana Baliego [GUTO] . Luís . Maíra Nigro

. Marceu Toigo [GUTO] . Marcos Alvarez . Marcos Piva . Marcos Del Roio . Marcos

Cantuária . Maria Érbia Carnaúba . Maria de Fátima Diniz . Mariana . Mariana Vedovello .

Marisa [ma professeur] . Marlene de Carvalho . Marlene Colantuono . Marcelo Lira . Melina .

Meliza Custódio . Meire [Mirinéia] . Milena Deganuti [GUTO] . Míriam [Moradia] . Míriam

Simonetti . Míriam Ruiz Lopes . Michele de Castro . Michele Lima de Souza . Mirielly

Carrara . Misaelli Padilha . Mônica de Carvalho [irmã] . Nery dos Santos . Norico Higa

Kuboyama . Noêmia Ramos Vieira . Patrícia Resende . Paulinha Rodrigues . Paulo de Barros .

Paulo Lúcio dos Santos [GUTO] . Paulo Cunha . Priscilla Lundstedt . Rafael Vicente de

Moraes [Tramela] . Raffaella Hernandez . Regina [Clube de Cinema] . Renato Botão . Rita de

Cássia Cardoso . Roberto Simão Ferreira . Robson dos Santos . Rodrigo Rabello . Ronan

Gomes Gonçalves . Rony Fagundes [Escritório de Pesquisa] . Sandra Escouto de Carvalho .

Sandra Paula Daura . Satiko Shimojo . Sérgio Munhoz . Sylvia Horiguella [Escritório de

Pesquisa] . Simone Maria Magalhães . Simone da Conceição Silva . Simone Cristina . Sueli

Félix . Sueli Mendonça . Silas . Taiguara Belo de Oliveira . Tati Pacanaro Trinca . Tânia

Padilha . Tina Glória . Thaís Dantas . Thaís Passos. Tiago Silvestre . Theóphile Lourenço .

Tullo Vigevani . Valéria Veríssimo . Vandeí . Valdir . Sílvio Onofre dos Santos [Ximbica] .

Wagner Alonge . Wagner de Barros . Walderez [Conselho de Curso]. William . Willians

Mattos . Wilton . Wilmyara dos Santos . José Luís da Silva .