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NOTA DA EDITORA

Neste Peregrino registámos as escas-sas emendas feitas por Janeira à primeira edição da Livraria Portugal; mantivemos o uso intencional de maiúsculas em con-ceitos como «Alegria», «Dor», «Sol» ou «Deserto»; e actualizámos a orto-grafia. Acrescentámos no fim do livro um pequeno glossário que nos pareceuadequado para melhor explicitação de termos que Janeira nos trouxe da língua

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japonesa. A este respeito, agradecemos os esclarecimentos de Yosoi Toda,Shihoko Yamasuga Gouveia e Leonilda Cavaco Alfarrobinha. Introduzimos foto-grafias que o autor guardou do dia das homenagens a Moraes, há 54 anos, e que Ingrid Bloser Martins, sua viúva, gentilmente nos cedeu. E como sempre acontece em qualquer iniciativa em torno da vida e da obra de Janeira, esta publicação contou com o seu incan-sável empenho.

Vinte anos passaram sobre a morte de Armando Martins Janeira. A editora Pássaro de Fogo presta-lhe homenagem com a presente reedição, que tem o apoio da Câmara Municipal de Cascais.

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PREFÁCIO

Quando leio Peregrino, a poesia que perpassa todo o seu texto faz-me recuar até Três Poetas Europeus – Camões, Bocage, Pessoa, um ensaio que Ar-mando Martins Janeira assina com o pseudónimo Mar Talegre em 1947, ou avançar até ao seu The Epic and the Tragic Sense of Life in Japanese Literature, editado em 1969. São dois trabalhos consideráveis que abordam

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a questão do Mistério, da Vida e da Morte, e esta como o fruto da vida, ou como algo que existe dentro da própria vida. A morte é um acto natural e iluminado de união com o espírito de Deus, ou o momento em que o ser individual se incorpora no Universo. Peregrino persevera nessa ideia, partin-do da descrição de um acto simbólico – a inauguração em Tokushima, no Japão, de um monumento a Wenceslau de Moraes. Estamos em 1954. Pas-sam cem anos sobre o nascimento de Moraes, e vinte e cinco anos sobre a sua morte.

Armando Martins Janeira, o maior estudioso de Wenceslau de Moraes,

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escreve neste ano O Jardim do En-canto Perdido, publicado em 1956, e o pequeno Peregrino, que chega ao leitor apenas em 1962. O Jardim do Encanto Perdido é das mais importantes fontes de documentação para o estudo da vida e da obra de Moraes. Nesse livro o autor não nos narra contudo os am-bientes que rodearam as cerimónias de homenagem a Moraes naquele dia 1 de Julho, data da sua morte, e que são, pelo menos aparentemente, a base de Peregrino. Poderia até dizer que uma obra completa a outra, mas a inspiração em Peregrino vai além da personalidade de Wenceslau de Moraes e, apesar de sumário o seu volume,

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a arte da escrita de Janeira merecia ser guardada desta forma, isoladamente, como uma pérola na sua concha. As-sim, em Peregrino, encontramos ainda a silhueta de Moraes, mas essa silhueta serve a Armando Martins Janeira de ponte para outras páginas, cheias de delicadeza e sensibilidade, sobre todo um sistema filosófico e religioso que então o fascinava – o budismo zen. Janeira está no Japão a exercer fun-ções diplomáticas desde 1952, e há um leque de sentires e de sentidos novos que naquele momento o invadem e per-turbam. E Moraes, que arriscou a vida inteira numa experiência em busca da felicidade, é aqui o veículo que nos leva

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ao Amor e à Beleza, ao entendimento de que Deus e o homem são um só.

Nos primeiros anos da sua carreira diplomática, longe de Portugal, Ar-mando Martins Janeira sentiu várias vezes, ou muitas vezes, momentos de solidão. As suas páginas de diário são espelhos de um desgosto que Moraes também conheceu:

Cheguei aqui [a Ponta Negra, em 3 de Julho de 1946] de manhã, de avião, e fui ver o mar, durante horas.

Estou só, num quarto de hotel: sinto-me um pouco só no mundo, abandonado de mim mesmo e da

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vontade firme de realizar a vida. [...] Nestes momentos de dor, chego a desanimar. Já assim acon-teceu outras vezes. A vida parece fosca, chata e sem interesse. [...] De tudo o que sofro certamente algum proveito tiro: abrem-se-me cada vez mais os olhos para a vida e torno-me mais humano por me tornar mais compreensivo. [...]

Mas o que me fica no fim são os meus sonhos: o que hei-de fa-zer da minha vida. Tenho-me des-viado por caminhos provisórios. E nada tenho feito que seja um passo para fazer descer ao chão o meu sonho.

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Confessado várias vezes, o sonho de Janeira era ser escritor. Sonho maior, ser poeta. Não apenas poeta de versos, mas também poeta em todos os seus passos. O que Janeira estimava era ver um homem lançado a colher a flor da vida, embrenhado nos caminhos do destino, incerto e vibrante na aventura do tempo: o entusiasmo como chave do futuro. E foi esse entusiasmo que ele próprio muitas vezes sentiu per- dido. Nestes anos de busca, antes de conhecer o Japão, Armando Martins Janeira abraça a alegria e a tristeza. Em cartas a amigos, expressa essa sua solidão, mas paradoxalmente diz ter consciência de que dentro de si existe

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uma reserva infinita de paz, apenas obscurecida e despedaçada pela vida que levava – artificial, segundo ele – e que, na sua ideia, seria obrigado a levar durante mais algum tempo. Chega a confessar que tem um trabalho em que não se sente feliz, que deixará assim que for praticável. Janeira levou contudo até ao fim a sua carreira na diplomacia. Para suportar agruras, muito lhe terá valido a «aprendizagem» no Japão.

Armando Martins Janeira escreve Peregrino aos quarenta anos: o meio de uma vida, ou o auge dela. Desde a infância que lia Wenceslau de Moraes. O universo sensível de Moraes sem-pre esteve presente nos seus sonhos

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e contribuiu de certa forma para o seu anseio, desde muito novo, de ver o mun-do. Como refere, são frequentemente os acasos da profissão que fazem por nós a escolha do local em que vivemos. Tanto Moraes como Janeira passaram por esse «condicionamento». Um e outro são levados para o Japão pela profissão. É no Japão que aprendem o significado da vida e da felicidade, e é lá também que nascem como escritores. Nenhuma outra terra estrangeira influiu tanto nos seus seres internos e na maneira de verem a humanidade. É aqui que Ja-neira e Moraes se confundem, e é aqui também que se apartam. Se Wenceslau de Moraes optou por se fixar no Japão,

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apesar de nunca verdadeiramente se ter esquecido da sua pátria, Janeira não ra-ras vezes demonstrou essa mesma von-tade, mas não resistiu ao amor pelo seu país e ao desejo de terminar os seus dias em Portugal, ensinando. Mas Moraes e Janeira são irmãos na essência. Foram peregrinos de ideias grandes; buscaram a realização do Sonho; ambos escrito-res, mas também diplomatas, sempre evitaram as honras, que nada lhes diziam. Exactamente sessenta anos dis-tam entre o nascimento de Wenceslau de Moraes e o de Armando Martins Janeira. Não só o tempo os separa, é certo, mas muito mais os une. Moraes e Janeira amaram os homens.

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E foi no Japão, onde passou os dias mais felizes da sua vida, que Janeira, apesar do seu desencanto e desprendi-mento da carreira, mais se compene-trou no amor pela sua profissão e sentiu o entusiasmo de trabalhar pelo seu país. Sempre orgulhoso da sua identidade e da sua origem. No mais fundo de si, a imagem da sua pequena aldeia entre montanhas, pura e virgem, era a secreta força que lhe dava coragem e obstina-ção contra tudo que lhe fosse adverso. De quando em quando tinha de voltar ao seu Trás-os-Montes para retem-perar a alegria da alma, o idealismo, a pureza. A pureza, ou a virgindade: uma qualidade que Armando Martins

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Janeira soube preservar e ter presente em todas as situações, no encontro com os outros, procurando sempre as pala-vras que aproximam e deixam algum calor na humana indiferença em que a vida actualmente nos congela. Regres-samos aqui ao Peregrino e à ideia do nada como caminho de conhecimento, para a Verdade. Moraes, o homem da sensibilidade, é um exemplo de quem procurou desapossar-se da materia-lidade e buscou um vazio luminoso que o pusesse em contacto com a sua condição humana.

Peregrino dá-nos conta afinal de uma transformação interior duradoura, por que o próprio Janeira também passou.

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Pois só quem experimenta esse desper-tar, ou a expansão da consciência, que nos faz parte da essência divina, o pode descrever com tal encantamento.

Paula MateusSetembro de 2008

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Armando Martins Janeira, 1954.

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Para poder entrar no Céu pelas piedosas mãos do Buda, Wenceslau de Moraes despiu-se do seu nome por-tuguês e recebeu o kaimyo, nome de morto, de Soukou Inden Hensou Bunken Daikoji, que magnificamente quer dizer: peregrino escritor habitante de um iluminado castelo de algas – algas movediças, sugerindo a vida do marujo e aventureiro. Assim o luso Wenceslau renasceu, como qualquer japonês, para a vida eterna das reencarnações, com um nome rútilo e virgem. É verdade

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que a todo o homem ou animal é per-mitido entrar no Céu budista. Difícil, impossível até para o estrangeiro, é penetrar no Olimpo xintoísta, guardado pelos génios terríveis postados à entrada dos templos nipónicos. Hoje porém, cinco lustros após a morte de Moraes, o Japão, pela sua religião oficial, reconhe-ceu nele um daqueles raros homens em quem o Espírito se revela com as vir-tudes que, entre a massa, individualizam o herói. E assim lhe foi prestado preito e homenagem pela igreja do Xinto e as-cendeu ao Céu dos imortais – onde cer-tamente vive feliz, entre a excelsa legião dos imperadores, dos guerreiros, dos escritores, dos artistas do Dai-Nippon.

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O monumento que a cidade de Toku-shima ergueu à memória de Wenceslau de Moraes fica ao cimo da principal avenida, Shinmachi-bashi, na raiz do monte Bizan. Foi inaugurado no ani-versário da sua morte, em 1 de Julho de 1954.

O sol doirava a manhã gloriosa, a foliar com os pássaros nos cimos das ramagens, brincando nos tanques de lótus e nos espelhos dos arrozais. O verde luxuriante da terra como que se dissolve na luz do sol, que o esparze depois em reflexos vivos, em lufadas, em matizes infinitos. O verdadeiro encanto do Japão é esta luz divina que parece nascer das próprias coisas, que

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tudo alaga e embalsama, qual música inaudível, alegria suave, perfume que enche o ar, onda de espuma ou de sor-riso. É este sorrir da luz brincada que explica o constante sorriso dos japone-ses – a felicidade dos homens nasce da luz do Sol.

A cerimónia começou por um ser-viço xintoísta em frente ao monumento. Dois sacerdotes de longas túnicas de seda branca, na cabeça uma espécie de gorro alto de charão preto bri-lhante, pés de alvos tabi metidos nos enormes tamancos finos de negra laca, dobram-se em vénias profundas diante da imagem do primeiro portu-guês que a religião xintoísta venera.

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Em frente ao monumento há um altar de madeira nova, com as oferendas tradicionais: ao centro o saké, o vinho japonês, o arroz cozido, dois peixes frescos e luzidios e algas – os frutos da Terra e do Mar; depois os cestinhos com sêmea de mochi cru, bolos, o yokan, doce de feijão de que Wenceslau tanto gostava e que agora, em Tokushima, se vende em bonitas caixas com o seu retrato, e as frutas da estação e da terra nipónica – laranjas douradas, pêssegos cor de nácar, maçãs, uma abóbora, um prato de pepinos. Não há flores – apenas ramos verdes de sakaki, a árvore sagrada do xintoísmo.

O sacerdote xintoísta inclina-se agora,

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numa vénia mais pausada, diante do medalhão com o busto de Moraes em bronze aposto sobre o rectângulo de granito branco, depois abençoa com o ramo sagrado de sakaki a multidão recolhida sob a tenda de panos claros listrados de vermelho. A música aguda do gagaku, levada pelo fio ténue da flauta japonesa, evola-se espiritual e esquisita e vai dissolver-se no céu lilás, diáfano e brilhante como a superfície duma pérola. O sacerdote começa por invocar os deuses do Xinto. A invo-cação tem a jovial frescura dum hino primitivo ao Sol. Os deuses xintoístas são alegres e bons, habitam as velhas árvores das florestas, as fontes, os cimos

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das montanhas, e aceitam gostosamente os votos ofertados de coração simples e puro. O sacerdote, grave, hierático, fixa demoradamente os olhos de Moraes e bate duas vezes as palmas, chamando o seu espírito. E começa a entoar em voz profunda. Invoca os espíritos, os kami da Terra e do Mar nipónicos, e pede-lhes que se dignem estender a sua protecção ao português exilado que veio deixar as suas cinzas a esta abençoada terra de Amaterasu. A voz do sacerdote é har-moniosa e quente, vibra na manhã de mel e cristal e perde-se no verde espesso das árvores, além, onde os deuses habi-tam entre as sombras e os mistérios dos templos da montanha. Por vezes, uma

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criança vem brincar entre o monumento e a assembleia, respingando de mimos e travessura a seriedade da gente oficial. As caras abrem-se em sorrisos, animadas pela alegria fresca da terra. Nada sugere evocações de morte; jovialidades pagãs brincam na luz doirada, e os próprios espíritos e deuses, invisíveis e presentes, dir-se-ia papearem e sorrirem no ar azul. O momento é de júbilo – glorificamos o homem audaz e vário, ofertando-lhe os frutos saborosos da Terra e do Mar, sobre o altar no sopé da montanha, erguendo cânticos ao Sol. Logo nos ocuparemos das negras tribulações que esperam a alma e a encomendaremos ao Buda, en-toando sutras graves e tristes.

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Chegou a altura de irmos depor no altar os ramos sagrados de sakaki. Cada um toma a sua vez, faz uma reverência ao sacerdote e recebe das mãos dele o ramo sagrado que vai oferecer, com uma vénia recolhida, ao espírito de Moraes. Eu deponho antes um ramo de flores: crisântemos, jasmins e rosas – rosas como as de Portugal – para que não faltem ao seu gosto luso das flores e possa consolar com elas a memória da sua terra distante, com o preito do único português que lho veio prestar, de coração cheio de afecto e de saudade, a esta terra gentil e estrangeira.

Vêm a seguir os discursos oficiais, toando monótonos na aragem de seda.

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Tenho o pressentimento de que agora o espírito de Moraes não aprova. Ele, que era simples e quis viver entre gente simples e pobre, desprezando honras e pompas oficiais, deve estar a mirar-nos com galhofa, e a considerar ironica-mente a sorte dos homens que viveram para o amor das coisas simples e puras e a cujo génio impomos, depois da morte, as engomadas formalidades das consa-grações oficiais.

Mas se foi isto para ele sacrifício, não foi longo, porque a cerimónia fin-dou, as duas mil pessoas da assistência foram debandando, e lá ficaram, a brincar irreverentes sobre o degrau do monumento, as crianças de Tokushima,

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encantadoras nos seus quimonos garri-dos, correndo, tropeçando de pés nus nas geta de madeira pintada, as mais pequeninas com guizinhos na cabeça, em familiar convívio com Wenceslau, a quem certamente mais regozijou esta parte imprevista no programa.

Logo, à tarde, vão celebrar-se, pela alma de Wenceslau, preces budistas no pequeno templo de Anjuji. Então nos recolheremos a meditar sobre o destino deste português que a um mundo estra-nho veio pedir satisfação para uma trai-dora sede de felicidade: veio perguntar ao silêncio o que é o homem, num deses-perado anseio de conhecer-se e de encon-trar à vida as respostas e os sentidos.

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Esta madrugada fora eu recolhida-mente depor flores no seu túmulo. As suas cinzas estão reunidas numa caixi-nha de pedra, ao lado das cinzas da sua amada Ko-Haru, Pequena Primavera. A lápide vertical, curta e delgada como um tronco de árvore, tem de um ladoinscrito o nome de Moraes e do outro okaimyo – de Ko-Haru – Enkaku Mioushou Shinnyo: piedosa mulher, comparável a um magnífico quadro, traçado por pincel primoroso e oferecido aos deuses.

O cemitério de Chionji é exíguo, co-mo todos os cemitérios japoneses; as cinzas a que se reduz um homem são mais escassas ainda do que o breve pu-nhado de terra que lhe cobre o caixão.

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Não se vê uma flor. Há em quase todas as campas ramos de sakaki. Moraes e a sua bem-amada O-Yoné, a Nobre Senhora Bago de Arroz, lá têm os seus, verdes, em frente de cada túmulo, meti-dos em duas piazinhas de granito, um ramo de cada lado.

Paira um silêncio manso, uma se-renidade alegre e pagã na luz do sol que passarinha entre os túmulos sin-gelos. Mal dobro o pequeno carreiro do jardim, vejo, sobre a sepultura de Moraes, um gatinho mais branco do que a neve, voluptuoso, tomando o sol. Fico a olhá-lo, com o pensamento cheio do espírito de Wenceslau e daquela névoa de poesia e de profundo amor

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dos animais e das coisas que se des-prende dos seus livros. Mal me salta à ideia que o gatinho, imaculado e esfín-gico, poderia muito bem ser a encarna-ção da sua alma, eis que uma borboleta surge, voluteando em roda da lápide. Já não posso duvidar agora – são os espíritos de Wenceslau e Ko-Haru que vieram, neste dia a eles consagrado, go-zar a alegria deste sol criador, os verdes suaves do monte Bizan. Pois não disse ele: «pode bem acontecer que o espírito não suba, antes paire sobre a terra e desça a vir poisar, como um pequenino insecto guloso, [...] sobre as coisas que amou»?

Ao fitar longo tempo a pedra exótica, gravada de sibilinos caracteres, abala-me

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um sentimento de profunda estranheza. Interno-me numa floresta de símbolos indecifráveis, de cintilações que cegam para talvez abrir os olhos a outra luz; pressinto que este deslumbramento cabe noutras palavras, que não são nossas. Compreendi então claramente que Wenceslau não morreu inutilmente aqui entre estrangeiros. O seu espírito inspira a bondade e a compreensão humana com que os japoneses me agasalharam e recebem quem vem de Portugal. Pela primeira vez se rompeu o muro que ódios de religião e de raça e a incompreensão levantavam. O aná-tema de Kipling, East is East and West is West – nunca o Oriente e o Ocidente

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se encontrarão –, foi Wenceslau de Moraes, que mais sofreu com ele, o primeiro a derrubá-lo. Semearam amor os seus livros, todos cheios de amor por esta terra gentil e formosa, onde alegre-mente se canta aos mortos e as virgens, em longas túnicas brancas e vermelhas, dançam em louvor aos deuses.

A cerimónia budista vai começar. Dirijo-me ao templo, acolho-me às suas sombras calmas, perfumadas de incenso.

O bonzo, de joelhos, velho, calvo, de rosto lavrado pela meditação e pelo desgosto de contemplar os erros dos homens, veste um rico manto de seda cor de violeta e, sobre este, uma túnica fina de seda amarela. A gente

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recolhe-se ajoelhada, à volta dele. Muitas das pessoas da solenidade da manhã – autoridades, intelectuais de Tokushima, alguns que conheceram Moraes. Além, atrasado, a correr no átrio do templo, vem um japonês alto, de fino quimono de rica seda escura, os pés nus nas geta de madeira nova; é um poeta de Tokushima conhecido em todo o Japão.

Os fumos do incenso enchem o ar quente dum perfume baço de misticis-mo oriental. O bonzo recita a meia voz, numa plangência monótona e pastosa, os sagrados sutras – namyo horen ge-kyo, namyo horen gekyo, namyo horen gekyo, namyo... que repetido mil vezes

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tem o condão de trazer até nós a pre-sença do espírito invocado. A entoação é cada vez mais profunda e sibilina; tem nas modulações lentas e grossas o po-der de invocação do mundo terrível dos espíritos, que pressentimos ao lado do nosso mundo, infundindo-nos o terror dos seus mistérios, e no qual os comba-tes do bem e do mal tomam sentidos te-merosos e obscuros. Por isso, estas duas religiões, xintoísmo e budismo – uma, das apoteoses pagãs das alvoradas, e a outra, dos mistérios da noite da alma –, se completam e são observadas simul-taneamente por cada japonês. O bonzo e o acólito vão entoando, sem parar, a lengalenga, fazendo uma suspensão

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brusca, quando se lhes acaba o fôlego, para inspirar ruidosamente. É agora o momento de cada um dos circunstantes se levantar e ir queimar incenso, três ve-zes, em frente do altar do Buda. Ao lado da grande imagem doirada do Buda, há frutos, flores de papel, pingentes, escri-tos, e uma confusa e rica exibição de símbolos, caixinhas, papéis, tabuinhas com inscrições, objectos indescritíveis de cobre doirado velho. Chegou a minha vez. Ajoelho em frente do altar, faço a minha vénia e queimo três vezes incenso. Quando levanto os olhos para o altar, vejo, pela primeira vez, o retrato de Wenceslau, velho, vestido de quimono e haori escuros que lhe chegam aos pés,

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Peregrino 51

longas barbas alvas, os lábios entreaber-tos num impenetrável sorriso japonês. Apossa-se de mim uma emoção ex-traordinária e funda, sinto-me trans-portado a um mundo ignoto em que o meu espírito comunga, em admiração e afecto a Wenceslau, confiando-me a ele, à sua sabedoria, à sua protecção, nesta contracorrente de sentimentos os mais estranhos, em que me confundo e extravio; ora o sinto meu, português, do meu sangue e da minha língua, ora o sinto estrangeiro e me perco, desatinado, na espessura de ritos e secretos símbo-los, no canto litúrgico cujos sentidos não penetro, numa atmosfera densa de mis-tério que me fascina e me transporta.

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Foi este o 26.º serviço budista em su-frágio da alma de Wenceslau de Moraes, que no seu testamento dispôs que queria ser cremado e enterrado segundo os ri-tos budistas, e que desejava que as suas cinzas fossem juntas às da sua amada Ko-Haru.

À noite, o Prefeito de Tokushima ofe-receu um jantar numa casa de gueixas. Foram servidos os pratos tradicionais: o nobre peixe cru, ó-sashimi, fritos de tempura e outras infinitas variedades, em deliciosos pratos minúsculos de porcelana, arranjados artisticamente na bandeja de charão. Comemos de joelhos, sobre tatami, o chão macio de palha de arroz.

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Peregrino 55

Lindas moças de Tokushima, esbeltas e ondulosas, vieram servir, sentando-se ao lado de cada conviva, pródigas em gentilezas e sorrisos, abanando leques de papel. Depois, as gueixas dançaram, ao som do shamisen, as danças tradicio-nais de Tokushima, o bon-odori querido de Wenceslau, entre cujos cantos a po-bre Ko-Haru passou numa maca, tísica, para ir morrer ao hospital Kokawa.

O bon-odori de Tokushima é um bailado elegante e gracioso, os braços movem-se em ritmos ora espertos, ora demorados, tirando efeito das longas mangas do quimono, e a música, embo-ra com aquela nostalgia alegre de toda a música japonesa, é mais rápida e viva.

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Peregrino 57

Aqui senti eu o espírito de Wenceslau bem presente, sorrindo à animada e grácil beleza destas mulheres envoltas em sedas floridas, animadas na coreia, os pezinhos de tabi alvos de neve e as mãos pequenas, mimosas como péta- las, escandindo os ritmos do bon-odori. O espírito de Wenceslau está decerto aqui bem presente e divertido, entre a graça e o encanto destas mulheres suaves que o prenderam a este país de maravilhas.

Não vale a pena ver mais de Toku-shima. Percorri as suas ruas tranquilas e verdes, andei os caminhos profundos da montanha, descansei na fresca sole-dade dos seus templos, fui passear aos campos esmaltados de folhas de lótus

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na linda estrada de Naruto, e vi, tomando chá num velho hotel onde Moraes tam-bém se hospedava, a passagem estreita para o Mar Interior e os pequenos barcos a resfolegar contra a corrente impetuosa e os perigos dos rochedos submersos.

Tomo o comboio de Tokushima para Takamatsu, o maior porto da ilha de Shikoku. Na estação, os amigos que fiz vêm despedir-se. Não faltam lá mesmo todas as criadinhas do Hotel Awa, garridas nos seus novos quimonos de Verão, para me honrarem, de acordo com a velha cortesia japonesa, com uma vénia profunda, que retribuo. E veio também aquela rapariga for-mosa e muito doce da casa de gueixas

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Peregrino 59

trazer-me, para que a não esqueça, uma caixinha com dois minúsculos kokeshi, tradicionais bonecos de madeira, repre-sentando um engraçado par de namo-rados de Tokushima. Ao receber esta lembrança, adivinho que um sorriso de Wenceslau, travesso e aprovador, me es-preita. Assim se encerra bem a minha visita à terra eleita onde Moraes viveu e morreu, com o sentimento de que até ao fim lhe fui fiel e me teve sob a pro-tecção do seu espírito. Assim digo adeus a Tokushima, entre acenos de sorrisos, a cortesia da gente deste País, a gentileza e a graça infinita da mulher japonesa – que foi, apenas ela, que enfeitiçou Moraes e aqui lhe guarda o coração, para sempre.

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Esta foi a Consagração.Não a consagração do Escritor, mas

a do homem que, ao fim da expurgação dolorosa, foi capaz de entranhar-se na vida japonesa, cantar os seus mitos, venerar os seus símbolos e ritos sagra-dos, amar o seu Povo e os seus deuses. Pelas virtudes da alma japonesa pro-curou modelar a sua. Iniciação árdua, peregrinação incerta e longa – ao fim, aberta, a grande Porta de Diamante.

Esta é a Iluminação, ou satori.A seita mais intelectual do budismo,

zen, ensina assim o caminho para a Ilumi-nação – primeiro, o corpo em imobilidade

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Peregrino 61

absoluta, a mente esvaziada de todo o pensamento, o lago do coração tornado puro e calmo, atinge-se a serenidade; acima da serenidade está o nada: o nada onde a renúncia de todas as coisas leva ao conhecimento da última realidade, o nada que é a virgindade que se oferece à fecundação, a treva que se abre à luz absoluta, à Verdade.

O vazio é forma, ensina o budismo; a forma de todas as coisas é o nada; e o nada é a base da Iluminação. Na renúncia a tudo, Wenceslau descobre o Universo – a emoção virgem de olhar as Árvores, as Flores, as Pedras, os Animais e os Homens, sobretudo os Pobres, que são aqueles que, vivendo

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na dor e na precisão de tudo, aprendem o significado e o valor das Coisas, mes-mo as mais desprezadas – um vaso de água, uma folha seca, uma brasa, um sopro. As coisas falam uma linguagem sua, que só pode ouvir aquele que sente o amor do Universo, aquele que não lhes tolhe a liberdade, porque as não deseja possuir, aquele a quem a tristeza das coisas enternece. Poder encontrar beleza fascinante e rica nas pequenas coisas vulgares é uma fonte inesgotável de prazer. Se a renúncia à posse das coisas é a chave do verdadeiro conten-tamento e conduz à sabedoria, ao con-trário, a renúncia aos puros prazeres da alma leva à morte. Viver assim, liberto,

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Peregrino 63

é bom; juntar o seu canto aos hinos do Universo, caminhar entre alegrias puras. Wenceslau descobriu as relações naturais com as coisas, aprendeu a con-viver com elas. A alma das coisas roça--o, entra na sua alma. Acender o lume para cozinhar o seu jantar eleva-o quase a um êxtase: é o enlevo de admirar as belas veias do carvão, o assombro de fazer o fogo, esse acto primitivo e sa-grado. Uma flor que se quebra lança-o em profunda melancolia: é a perda ir-reparável da beleza. Nos reflexos do incidental e do pequeno declinava os signos do eterno.

Quando alguém atinge um tal amor da Natureza, qual não será o seu sentimento

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pelos Homens, que são dela a parte mais bela e mais nobre?

Todo ele se penetra de «emanações de amor por toda a humanidade, me-lhor ainda, por toda a criação».

É o pensamento japonês e a formo-sura da terra nipónica que abrem o es-pírito de Moraes a esta comunhão. Lá, estava o seu caminho para a Beleza. Os grandes espíritos têm uma intuição profunda para descobrir o lugar e o ambiente propícios ao florescimento do seu génio. Não há «Oriente» nem «Ocidente», há um homem e um mundo. Raul Brandão pôde enlevar-se no mesmo milagre diante do bucolismo verde do seu Minho: «Nunca Londres

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ou a floresta americana me incutiram mistério que valesse o dos quatro pal-mos do meu quintal.»

Todo o vero Amor, sem deixar de ser ardente, é perspicaz. Por isso, a dor é dele inseparável. Torna mais urgente o problema da consciência. – Para quê? Vale a pena viver? Esse prazer pleno de gozar a natureza, e o privilégio de per-tencer-lhe, é pago em sofrimento. Mas o sofrimento natural aperfeiçoa e purifica – é o sofrimento infligido ao homem pelo homem que é monstruoso e avilta. Se sofrem os animais, se as árvores secam e caem, é também justo que o homem sofra dessa dor natural que amadurece e depois destrói. Assim é justa a Morte.

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O mesmo círculo compreende a Dor e a Alegria; os dois contrários são o suporte da Vida – da Vida onde compreendida está também a Morte. Este pensamento de que a Dor não transcende o Homem, não é imposta nem suportada em nome de Deus, mas é uma provação natural e inevitável no progresso do Homem, levou Wenceslau a abraçar o Budismo.

Contígua à Vida, ou antes dela sendo parte, a Morte faz-nos esperar a sequência de outras coisas, desco-nhecidas e, por isso, fascinantes – é um novo País a descobrir, a última, a maior Aventura. A aventura do regresso ao seio dos elementos; ao imo da origem de onde viemos. Wenceslau, que correu

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mundo só pelo prazer de errar em terras novas e em novos oceanos, declara-se fascinado por ela. Como Rilke, sorri de curiosidade ao que vai descobrir na Última Viagem: «como quem, ao fim da festa da Vida, parte para uma casa estranha e sedutora, escondida entre ramos, ao fundo da alameda». Não é bem a ideia central rilkeana de que a «grande Morte que cada um traz em si é o fruto em volta do qual tudo gravita»; mas é a mesma ideia de que a Morte é uma experiência viva, de que nela se atinge o cimo de todo o conhecimento, a alegria pura inerente a todas as coisas frementes e virgens.

Wenceslau foi para longe do seu país,

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deixou os seus familiares, o seu ambi-ente e todas aquelas coisas em que se enraíza, com o nosso afecto, o senti-mento de pertencermos a um mundo, a um género de felicidade. Nem sequer uma lareira onde o velho, ao crepitar das brasas, empresta vida aos vultos do pas-sado. Nada que o distraia da grande pre-ocupação: descobrir o que é o homem e o que a vida significa. De propósito, pro-curou o mais estranho dos ambientes e, aí, as situações mais estranhas; serve-se de si próprio como de um instrumento para, na conjuntura com o mundo, co-nhecer-se. Ir à descoberta de homens, de costumes, de nações é afinal aprofundar o conhecimento do homem.

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Como, hoje, Saint-Exupéry, Wences-lau foi à procura do «mais belo deserto do mundo». A Europa, cada vez mais absorvida em resolver os problemas do indivíduo, abandonava o homem. O Ocidente, todo ele respirava ferro e carvão industrial, entusiasmado com as suas máquinas e as maravilhas da sua ciência que ia cuidadosamente elaborando os cálculos para a bomba atómica. Desgosto igual ao de Moraes veio exprimi-lo mais tarde aquele avia-dor-aventureiro francês, frustrado por esta vida seca de autómatos que cada dia mais se irracionaliza entre o metro e o futebol: «Sinto-me triste pela minha geração que é vazia de toda a substância

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humana.» «Odeio a minha época com todas as minhas forças. O homem aqui morre de sede.» «Há um único proble-ma: restituir aos homens a significação espiritual», grita Saint-Exupéry. Eram irmãos; a ânsia de amar os homens le-vava-os ao abandono de tudo.

Wenceslau elegeu Tokushima para ir morrer.

Estranha e perturbante, essa preocu-pação de alguém escolher o lugar onde vai morrer. Já não é fácil eleger o espa-ço de terra em que hão-de decorrer os nossos dias – acasos do nascimento, da profissão, da família fazem geralmente por nós essa eleição. Mas a preferência pelo bocado de terra onde para sempre

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Peregrino 71

cairemos um dia, a atracção por certa aldeia, certa rua, por um canto de ver-dura com árvores e pedras, dir-se-ia revelar ocultos laços, iluminar, comple-tar o sentido da vida de alguns homens que pelo mundo passaram envoltos em enigmas, suscitando em cada passo mo-tivos de meditação e de espanto. Há vi-das claras, directas, sem hesitações nem tumultos, exactas e largas como a planí-cie à luz meridiana; e há vidas perturba-das e sinuosas, ora escuras e descendo a abismos, perdendo-se entre sombras, ora plenas, radiosas, abertas como um grande rio que, depois de atravessar sinistras cavernas, surge largo e des-lumbrante ao Sol. Se aquelas podem

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oferecer um exemplo de felicidade sem sombras, são estas, que se mancharam na maldição e se purificaram na graça, que alargaram os limites do Homem e do seu conhecimento de si mesmo.

Está explicado porque Wenceslau foi seduzido pelo Japão; como a vida, a alma japonesa deliciaram o seu espírito, foram a terra da sua Obra e lhe inspiraram um humanismo novo, frequentemente asiático nas maneiras, mas profundo e universal na essência. O que é mais difícil de atingir nele, porque vem de mais fundo, é essa tor-turante atracção do Longe. Gauguin morre na Polinésia, mas com o pensa-mento cheio de Paris, ávido da glória

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e da consagração dos bulevares. T. E. Lawrence, identificado aos seus beduí-nos, ao fim de uma longa adaptação, penetra-se da grande serenidade do de-serto, mas nunca deixa de ser um agente da administração britânica. Lafcadio Hearn tem filhos japoneses, mas nunca se desliga do seu jornal na América. Wenceslau, esse, quebra todos os laços, larga a profissão e o escritório consular e, liberto de todas as servidões, entrega--se inteiro à nova experiência de, numa pequena cidade da Província japonesa, viver e sentir como um habitante do Universo.

Nenhum país como Portugal e a In-glaterra produziu desses espíritos que,

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amando o seu País, sofrem nele insatis-feitos, torturados pela sede do Desco-nhecido e do estranho, onde se sentem renascidos e maiores.

No fundo, o mal destes homens é a sua sede de Universo; o seu drama, a ânsia de Soledade. É a atracção da in-teligência pelo Deserto. A Europa é uma leira de terra, vezes sem conta arada e revolvida, onde o lavrador levanta em cada sulco truncadas estátuas e mitos. O mundo do Ocidente conhece-se de mais, exprimiu-se de mais, esgotou a mensagem que trazia e ainda não gestou uma nova. Aqui o Deserto é impossível. Os montes, as pedras, os troncos velhos, as nuvens, as próprias tonalidades da luz

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falam história, evocam as grandezas e as misérias da herança do espírito, as ambições e os erros das guerras, o rumor das multidões enganadas, as ficções, os ideais, os sonhos de arte que se prolongam em nós e nos agitam. Por isso, o homem torturado pelo anseio de encontrar-se a sós com a sua alma procura o Longe. O apelo do estranho e do exótico é uma outra tentação da Soledade: o encontrar-se diante do que é totalmente diferente de si unifica o homem que, assim íntegro e desnudo, pode sentir-se, analisar-se, interrogar-se livremente e descobrir os mistérios da sua alma. Além disso, há um delicioso, secreto prazer no Abandono.

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A Soledade é um caminho para a Iluminação, em que o destino de todas as coisas aparece translúcido. A Ilumi-nação é a comunhão perfeita com a obra da Criação e, dentro desta, atingir o mais alto grau de amor aos homens. E a prova deste amor é viver como homem, com ou longe dos outros, banhado no grande destino colectivo como quem mergulha no largo mar, seguindo à frente dos outros, desbra-vando caminhos. Quanto mais à frente, maior a Soledade. «O que o progresso pede inexoravelmente aos homens e aos continentes é renunciar à sua es-tranheza, é romper com o mistério.» «Haverá cada vez menos lugar para

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os esplendores da natureza», diz hoje o romancista francês Raymond Gary. Wenceslau, precursor dum novo huma-nismo, do novo sentimento do mundo que hoje surge, não se contentou senão com a natureza mais pura, isto é, mais estranha, mais longe, de esplendores mais vivos, de mais guardados misté-rios. Aí se deu à contemplação interes-sada do mundo da Criação. A Vida é sobretudo uma questão de densidade. A contemplação, a meditação de lon-gos anos, no seu belo deserto, tornaram a sua visão mais aguda, o pensamento mais universal, o seu coração mais rico do amor dos homens. A sua obra é a sua voz – nela condensou a sua vida,

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depositou os frutos da sua sabedoria.Na milenária arte nipónica de atirar

com arco, kyu-jutsu, ensinam os livros, o archeiro não deve preocupar-se em mirar o alvo, mas apenas em identifi-car-se de tal modo com o arco que, ar-cheiro e arco, se tornem num só; então a flecha desferida irá cravar-se inevita-velmente no alvo. Wenceslau nunca se preocupou com o êxito dos seus escri-tos (a bem dizer, ele nunca publicou livros), escrevia o que estava dentro de si tão natural e sincero como se a sua alma se diluísse na tinta. Como o can-teiro que no granito corta o sonho das suas horas, ele esculpia em palavras que ao futuro entregava indiferente. Os seus

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primeiros livros têm por certo esse tom pretensioso e incómodo de divulgador de exotismos. É a fase de iniciação do homem; o escritor está a exercitar o seu arco. Até que por fim o homem ascende à Iluminação – e surge o escritor verda-deiro. Um no outro – tão unificados que os temas, antes de tomarem forma, lhe circulam no sangue e na alma –, como o operário que entrega a obra saída do carinho das suas mãos, sem lhe passar pela mente que é melhor que a dum outro, mas satisfeito porque ela é o seu trabalho e nasceu do nobre espírito de servir os homens.

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Wenceslau de Moraes, 1916.

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Peregrino 83

GLOSSÁRIO

Bon-odori significa dança dos mor-tos. Nos três dias de celebração, em Julho ou Agosto, milhares de japoneses juntam-se às comunidades locais para saudar os espíritos dos antepassados. Segundo a crença budista, os mortos vêm conviver com os vivos, que os recebem com música e danças.

Dai-Nippon traduz-se por Grande Japão. Nippon deriva do ideograma

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chinês significando o lugar de onde vem o sol ou Terra do Sol Nascente. É o título de um dos livros de Wenceslau de Moraes.

Gagaku significa música elegante; é uma espécie de música clássica japo-nesa que se tocou na corte imperial durante vários séculos.

Geta são sandálias para homem e se-nhora que se usam normalmente com a yukata, o quimono informal de Verão.

Haori é o casaco que se usa com o quimono para lhe dar mais formalida-de. Inicialmente, era usado apenas por

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homens, mas desde o fim do período Meiji passou a ser também peça de ves-tuário das senhoras.

Kaimyo é o nome sagrado que os sacerdotes budistas atribuem aos mor-tos, para uso no Outro Mundo e como sinal de que se tornaram budas, ou seja, atingiram a salvação. Originalmente, o kaimyo era concedido a budistas devo-tos, que se iniciavam na vida religiosa. Actualmente ainda se confere o kaimyo a monges.

Mochi são bolos típicos japoneses e chineses, feitos de uma pasta de arroz glutinoso. Embora se coma durante

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todo o ano, é um doce tradicional do Ano Novo japonês.

Namyo horen gekyo é um mantra extraído do Sutra de Lótus que revela o estado búdico latente em cada um de nós; significa devoto-me à verdade pro-funda do Sutra de Lótus.

Sakaki é uma árvore ou um arbusto perene e florescente das regiões quen-tes do Japão, Coreia e China Continen-tal. Pode atingir dez metros de altura. Oferece-se aos kami (deuses; espíritos) nos rituais xintoístas.

Sakê é uma bebida alcoólica tipica-

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mente japonesa, obtida pela fermenta-ção do arroz.

Shamisen é um instrumento musical japonês com três cordas.

Tabi são meias curtas, pelo torno-zelo, com uma separação entre o dedo grande e os outros dedos, que normal-mente se usam com as geta. Há-as tam-bém com a forma de bota.

Tempura é um prato clássico da culinária japonesa que consiste em pedaços fritos de vegetais ou mariscos envoltos num polme fino de farinha de trigo. Foi introduzido no Japão pelos

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portugueses no séc. XVI. Pode derivar tanto da palavra portuguesa tempero como de têmporas, termo usado na linguagem eclesiástica e que designa os períodos de jejum ou em que não se come carne.

Yokan é uma geleia ou doce de fei-jão em barra. Originalmente era um prato chinês feito a partir de gelatina de carneiro cozido. Foi introduzido no Japão pelos budistas zen que, em vez da carne, que não comem, usavam feijão vermelho. É hoje um dos doces mais populares do Japão.

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Nota da editoraPrefácioPeregrinoGlossário

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ÍNDICE

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PEREGRINO

Autor: Armando Martins Janeira

Revisão: Paula Mateus

Caligrafia: Hirosuke Watanuki

Ilustração da capa: baseada num biombo

pintado por Seiran Fukuoka

Impressão e acabamento: Manuel Barbosa & Filhos, Lda.

Depósito legal: 282593/08

ISBN: 978-972-99857-7-5

Colecção: A Oriente/2

2.ª edição: Outubro de 2008

© Pássaro de Fogo e Ingrid Bloser Martins

[email protected]