Perfil dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil

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    Perfil dosPrincipais

    AOSENVOLVIDOSno TrabalhoEscravo Ruralno Brasil

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    Braslia, 2011 Brasil

    Organizao Internacional do Trabalho OIT

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    Copyright Organizao Internacional do Trabalho 2011Primeira edio: 2011

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    Impresso no Brasil

    Perl dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil /Organizao Internacional do Trabalho. - Brasilia: OIT, 20111 v.

    ISBN: 9789228254938;9789228254945 (web pdf)

    Organizao Internacional do Trabalho; Escritrio no Brasil

    trabalho forado / trabalhador rural / trabalhador migrante / zona rural/ Brasil

    13.01.2 Dados de catalogao da OIT

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    Fundada em 1919, a Organizao Internacional do Trabalho (OIT)tem como objetivo a busca da justia social como condio para apaz universal e permanente. Ao longo de mais de 90 anos, a OITtem elaborado, a partir de um processo de discusso tripartiteprotagonizado pelos governos, organizaes de empregadores ede trabalhadores de seus Estados-Membros, as normas interna-cionais do trabalho. Essas normas internacionais (convenes erecomendaes) se referem aos mais diferentes aspectos das con-dies e relaes de trabalho, e todas elas tm como objetivo con-tribuir promoo do trabalho decente no mundo.

    Duas dessas convenes versam sobre uma das mais graves viola-es dos direitos humanos e dos direitos fundamentais no trabalho:o trabalho forado. A primeira delas, adotada em 1930, e raticadapelo Brasil em 1957, a Conveno n 29 sobre o Trabalho Foradoou Obrigatrio, que dene o trabalho forado como todo trabalhoou servio exigido de uma pessoa sob a ameaa de sano e para oqual ela no tiver se oferecido espontaneamente. A segunda de-

    las, adotada em 1957 e raticada pelo pas em 1965, a Convenon 105 sobre a Abolio do Trabalho Forado. A Conveno n. 105

    prlogo

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    estabelece que o trabalho forado no poder jamais ser utilizadoou justicado para ns de desenvolvimento econmico ou comoinstrumento de educao poltica, discriminao, disciplinamentoatravs do trabalho ou punio por participar de greve.

    O trabalho forado constitui a mais clara anttese do trabalho de-cente. Em 1995, o Brasil reconheceu ocialmente uma realidadeque vinha sendo denunciada desde a dcada de 1970 do sculopassado por organismos de defesa dos direitos humanos: a exis-tncia de formas contemporneas de escravido no pas. Esse atoconstituiu um marco e um passo importantssimo no esforo paraenfrentar e erradicar esse crime. Desde ento, o pas vem desen-

    volvendo uma srie de estratgias e instrumentos para combateressa prtica, que avilta a dignidade da pessoa humana.

    A escravido contempornea expresso de uma situao degrande vulnerabilidade e misria que ainda afeta importantescontingentes de trabalhadores e trabalhadoras no Brasil. A faltade alternativas de trabalho decente para um contingente de pes-

    soas que no possui qualquer qualicao prossional e a relati-va fragilidade das redes de proteo social obrigam os trabalha-dores, em muitas situaes, tanto no campo quanto na cidade, aaceitarem condies precrias e degradantes de trabalho, na qualsua dignidade e liberdade so violentadas.

    Apesar da complexidade do problema, o Brasil considerado hojeuma referncia na implementao de mecanismos de combate

    escravido contempornea. A eccia dessas aes deve-se, so-bretudo, capacidade de articulao entre o governo brasileiro,a sociedade civil, o setor privado e os organismos internacionais.Contudo, ainda h um longo caminho a ser percorrido para que otrabalho escravo seja denitivamente erradicado no Brasil.

    Em um pas historicamente marcado por grandes desigualdades

    sociais, o reconhecimento e a compreenso das atuais formas deexplorao dos trabalhadores em situaes limites como as que

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    caracterizam o trabalho em condies anlogas escravido, soos primeiros passos para o enfrentamento consistente desse cri-me. Entre 1995 e os dias atuais, mais de 40.000 trabalhadores etrabalhadoras foram resgatados dessa situao. Em muitos casos,

    at esse momento, essas vtimas eram invisveis para o Estado,uma vez que no possuam nem o registro de nascimento. O es-tudo que ora apresentamos busca trazer tona o perl dos atoresenvolvidos na escravido contempornea (trabalhadores resgata-dos, aliciadores os gatos e proprietrios rurais). Est baseadoem entrevistas qualitativas realizadas a esses atores e tem comoobjetivo desenvolver a base de conhecimentos e reexo sobre o

    tema e subsidiar a elaborao de polticas que possibilitem avan-ar em forma consistente e denitiva rumo verdadeira aboliodo trabalho escravo no Brasil.

    O estudo foi realizado no mbito dos Projeto de Combate ao Tra-balho Escravo e.Combate ao Trco de Pessoas implementadospelo Escritrio da Organizao Internacional do Trabalho (OIT)no Brasil, que contou com o apoio dos governos da Noruega edos Estados Unidos da Amrica. A pesquisa foi realizada por umgrupo de pesquisadores e pesquisadoras que colaboram com oGrupo de Estudo e Pesquisa Trabalho Escravo Contemporneoda Universidade Federal do Rio de Janeiro (GPTEC/UFRJ): Ma-ria Antonieta da Costa Vieira (coordenao geral), Regina-ngelaLandim Bruno, Alair Molina e Adonia Antunes Prado. Tambm

    colaboraram com o trabalho os/as assistentes de pesquisa Caroli-ne Bordalo, Cludia Alvarenga Prestes, Jos Evaristo Neto e MariaNasar Ferreira Pinto. A superviso tcnica foi realizada por GelbaCavalcante de Cerqueira e Ricardo Rezende Figueira, por parte doGPTEC/UFRJ e Andrea Bolzon e Luiz Machado, coordenadores doProjeto de Combate ao Trabalho Escravo da OIT respectivamenteentre 2007 e 2009 e de 2010 at a presente data.

    la W. AbaDiretora Escritrio da OIT no Brasil

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    Os pesquisadores agradecem as valiosas contribuies dos inte-

    grantes dos Grupos Especiais de Fiscalizao Mveis (GEFM), que

    tiveram um papel fundamental na realizao da pesquisa.

    AgrAdecimentos

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    sUmrio

    iu 13

    cau 1: Conceituando a escravido contempornea 25

    1.1 Denio de trabalho forado da OIT 251.2. Artigo 149 do Cdigo Penal brasileiro 26

    1.3. Denio de trabalho escravo para os

    trabalhadores pesquisados 27

    1.4. Denio de trabalho escravo para os gatos

    pesquisados 33

    1.5. Denio de trabalho escravo para os

    empregadores pesquisados 35

    1.6. Quadro: Saiba mais A dvida que escraviza 37

    cau 2: Situao de trabalho escravo nas

    fazendas pesquisadas 41

    2.1. Caractersticas das fazendas onde foram

    entrevistados os trabalhadores e os gatos 412.2. Aliciamento dos trabalhadores 43

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    2.3. Trabalho temporrio 47

    2.4. Condies de trabalho nas fazendas pesquisadas 48

    2.5. Responsabilidade pelos problemas ocorridos

    nas fazendas 52

    cau 3: Perl dos trabalhadores 55

    3.1. Caracterizao socioeconmica 56

    3.2. Fluxos migratrios 62

    3.3. Relaes familiares 70

    3.4. Trajetria prossional 78

    3.5. Formas de participao social 863.6. Formas de sociabilidade e imagem social 88

    3.7. Aspiraes e projetos de vida 96

    3.8. Expectativas em relao do trabalho 100

    3.9. Solues para a situao dos trabalhadores 103

    Sntese 104

    cau 4: Perl dos gatos 107

    4.1. Novas formas de arregimentao, controle

    e organizao do trabalho 107

    4.2. Caracterizao socioeconmica 110

    4.3. Fluxos migratrios 111

    4.4. Relaes familiares 112

    4.5. Trajetria prossional 113

    4.6. Formas de participao social 115

    4.7. Formas de sociabilidade 115

    4.8. Aspiraes e projetos de vida 118

    Sntese 120

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    cau 5: Perl dos empregadores 121

    5.1. Caracterizao socioeconmica 121

    5.2. Fluxos migratrios 122

    5.3. Relaes familiares 124

    5.4. Trajetria prossional 125

    5.5. Formas de participao social 130

    5.6. Caractersticas dos empreendimentos 131

    5.7. Formas de gesto da mo de obra 138

    5.8. Representaes dos empregadores sobre

    o trabalhador rural 144

    5.9. Imagem social dos empregadores 1465.10. Aspiraes e projetos de vida 148

    Sntese 149

    cau 6: A erradicao da escravido

    contempornea no Brasil 151

    6.1. Polticas de combate ao trabalho escravo 1516.2. Trabalhadores, gatos e empregadores:

    diferentes vises sobre os instrumentos

    de combate ao trabalho escravo 156

    Consideraes nais: os atores em dilogo 165

    Ficha catalogrca 171

    Referncias bibliogrcas 173

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    introdUo

    1. paaa H a eav ca

    Ba

    Aps a abolio legal da escravido no Brasil em 1888, as prticas

    coercitivas de controle da fora de trabalho continuaram a compora histria do campo brasileiro, sob diferentes modalidades e em

    diferentes regies o colonato1 nas fazendas de caf do Sudeste

    no sculo XIX e o sistema de aviamento2 na produo da borracha

    na regio amaznica nas primeiras dcadas do sculo XX. Nessas

    1 Quando, em meados do sculo XIX, o plantio do caf se expandia e as diculdades re-

    lacionadas com o m do trco negreiro cresciam, fazendeiros, principalmente de SoPaulo, lanaram mo de uma poltica de migrao de europeus e asiticos apoiada peloEstado e puseram em prtica o modelo das chamadas colnias de parceria ou colona-to. fcil compreender que esse sistema degeneraria rapidamente em uma forma deservido por dvidas. O Estado brasileiro nanciava a operao, o imigrante hipotecavao seu futuro e o de sua famlia e o fazendeiro cava com todas as vantagens (FURTADO,1982; p. 126-127; ESTERCI, 1999; p. 104).

    2 Na explorao da borracha, os seringalistas adotaram a prtica de recrutar trabalhado-res, sobretudo, dos estados do Nordeste. O sistema de aviamento foi o embrio de umgrande mecanismo de endividamento e submisso dos trabalhadores aos seus patres.O migrante nordestino comeava sempre a trabalhar endividado, pois era obrigado a

    reembolsar os gastos com a totalidade ou parte da viagem, com os instrumentos de tra-balho e outras despesas de instalao. As grandes distncias e a precariedade de suasituao nanceira reduziam-no a um regime de servido por dvidas (FURTADO, 1982;p. 134).

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    PerfldosPr

    incipaisAtoresEnvolvid

    osotabalhoescavor

    ualoBasil diferentes situaes, foram utilizados de forma recorrente meca-

    nismos de endividamento articial que atavam os trabalhadores

    propriedade, acompanhados por vezes por mtodos violentos.

    (ESTERCI E VIEIRA, 2003).

    Esta no apenas a realidade de um passado distante. A escra-

    vido ainda est presente em nossos dias, mas modicada por

    algumas caractersticas particulares. A partir de meados da d-

    cada de 1960, grandes fazendas agropecurias foram beneciadas

    por incentivos scais fornecidos pelo governo militar brasileiro e

    comearam a instalar-se na Amaznia. Neste perodo, a polticagovernamental tinha como nalidade estratgica a ocupao do

    territrio nacional. O slogan nacionalista adotado no perodo era:

    integrar para no entregar (BRETON, 2002). A ocupao se fez

    desestruturando organizaes sociais e produtivas j existentes,

    expulsando as populaes tradicionais camponesas e indgenas.

    A grande propriedade foi priorizada em detrimento da pequena

    produo (IANNI, 1978; CASALDLIGA, 1970; REZENDE, 1986).

    Esse processo propiciou um uxo migratrio para a regio. A r-

    pida expanso da fronteira agrcola na Amaznia criou para os

    trabalhadores rurais uma situao extremamente adversa. Esta-

    beleceu-se uma lgica de explorao do trabalho baseada no arb-

    trio do fazendeiro ou de seus representantes. Estima-se que, entre

    1970 e 1993, houve mais de 85 mil trabalhadores escravizados no

    Brasil (FIGUEIRA, 1999; p. 170).

    A escravido contempornea no pas, especialmente na regio

    de fronteira agrcola amaznica, revela uma situao de grande

    vulnerabilidade e misria dos trabalhadores rurais. A falta de al-

    ternativas para um contingente que no possui qualquer quali-cao, a no ser a prpria fora manual de trabalho e a ausncia de

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    empregos regulares, tanto no campo como na cidade, obrigam os

    trabalhadores a aceitarem condies precrias de trabalho.

    Alguns fazendeiros utilizam os chamadosgatos, recrutadores de

    mo de obra, que percorrem diversas regies procura de traba-lhadores rurais temporrios. Osgatos aliciam trabalhadores dis-

    ponveis e os levam para regies remotas. Na primeira abordagem,

    eles se mostram agradveis, portadores de boas oportunidades de

    trabalho. Oferecem servios em fazendas, com garantia de salrio,

    alojamento e comida, alm de adiantamentos para a famlia e ga-

    rantia de transporte gratuito at o local de trabalho.Ao chegarem ao local do servio, os trabalhadores so surpreendi-

    dos com situaes completamente diferentes das prometidas. Em

    geral, neste momento, recebem a informao de que j esto de-

    vendo. O adiantamento, o transporte e as despesas com alimenta-

    o na viagem j foram anotados em um caderno de dvidas. Em

    casos extremos, at mesmo o custo dos instrumentos de trabalho(foices, faces, moto serras, entre outros) anotado no caderno

    de dvidas do gato, bem como as botas, luvas, chapus e roupas.

    Finalmente, despesas com os alojamentos e com a precria ali-

    mentao sero anotadas, todas elas acima do preo de mercado.

    Em geral, as fazendas encontram-se distantes do comrcio mais

    prximo, sendo impossvel ao trabalhador no se submeter ao sis-tema de dvidas. Caso deseje ir embora, ser impedido sob a ale-

    gao de que est endividado. Aqueles que reclamam ou tentam

    fugir so vtimas de surras e podem perder a vida (SAKAMOTO,

    2007; p. 22). Em alguns casos, guardas armados esto presentes

    nas fazendas para coagir os trabalhadores que criticam as con-

    dies de trabalho. Assim, para prend-los ao trabalho, os gatoscriam mecanismos de endividamento articial e formas de con-

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    PerfldosPr

    incipaisAtoresEnvolvid

    osotabalhoescavor

    ualoBasil trole e represso, geralmente envolvendo violncia fsica e con-

    namento.

    O reconhecimento e a compreenso das atuais formas de explo-

    rao dos trabalhadores rurais so os primeiros passos para aerradicao do trabalho em condies anlogas de escravo no

    Brasil. Dessa forma, o presente estudo busca conhecer a dinmica

    dos principais atores envolvidos na escravido contempornea no

    pas, suas caractersticas, valores e expectativas, a m de avanar

    no fortalecimento e reorientao de polticas pblicas que tm

    como meta o enfrentamento do trabalho anlogo ao de escravo.

    2. objv a qua

    O objetivo deste estudo traar o perl dos principais atores en-

    volvidos com a escravido contempornea rural no Brasil (traba-

    lhadores, gatos e empregadores), com a nalidade de subsidiarpolticas pblicas de combate ao trabalho anlogo ao de escravo,

    que incluem aes de represso e preveno da escravido no

    pas. Os resultados da pesquisa podem orientar a elaborao de

    campanhas educativas e fornecer informaes importantes para

    o controle do trco de trabalhadores submetidos escravido

    contempornea. Alm disso, o estudo contribuir para repensar

    as estratgias de reinsero dos trabalhadores resgatados em seus

    locais de origem, tais como a oferta de trabalho e renda, mecanis-

    mos de acesso terra e apoio agricultura familiar.

    3. ma a qua

    A elaborao do perl dos diferentes atores envolvidos com a es-

    cravido contempornea no Brasil norteou-se por uma perspectiva

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    relacional entre eles. Apesar das diferenas, trabalhadores, gatos

    e empregadores fazem parte de um mesmo processo social. Esto

    ao mesmo tempo separados e unidos por um lao tenso e desigual

    de interdependncia que expressa relaes de poder. A perspecti-

    va relacional permite revelar como certos traos, caractersticas,

    prticas e concepes podem ser consideradas como parte de uma

    lgica mais geral, ou podem ser vistos como traos especcos e

    singulares de um determinado grupo (MERLLI, 1996:16).

    O estudo no pretendeu ter representao estatstica, uma vez

    que est baseado principalmente em uma metodologia qualitati-va. A pesquisa foi conduzida mediante a aplicao de entrevistas

    a trabalhadores, gatos e empregadores3, com o intuito de captar

    as prticas, concepes, valores e expectativas dos diferentes ato-

    res, tendo como foco principal o trabalho. Alm disso, realizou-se

    uma reviso bibliogrca: textos acadmicos relativos ao tema e

    documentos disponibilizados pela OIT, pelas entidades parceiras

    do projeto de cooperao tcnica e por fontes diversas foram con-

    sultados.

    4. pqua

    4.1 Lcus da pesquisa de campo dos trabalhadores e gatos

    Para entrevistar os trabalhadores e os gatos4, a estratgia utilizada

    pela pesquisa foi o acompanhamento das operaes dos Grupos

    Especiais de Fiscalizao Mveis (GEFM) nas fazendas identica-

    3 Para as entrevistas dos trabalhadores e gatos foram elaborados dois formulrios comquestes abertas e fechadas, que continham um conjunto de questes comuns, a m deque se pudesse estabelecer comparao entre os grupos. Para as entrevistas com os em-

    pregadores, foi elaborado um roteiro que serviu de base para a realizao de entrevistasabertas semidirigidas.4 A pesquisa realizada com os empregadores ser explicada na pgina 12 no presente

    estudo.

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    PerfldosPr

    incipaisAtoresEnvolvid

    osotabalhoescavor

    ualoBasil das pela prtica do trabalho em condies anlogas de escravo5.

    Os Grupos Mveis, compostos por equipes de Auditores Fiscais

    do Trabalho, Procuradores do Trabalho, Policiais Federais e Po-

    liciais Rodovirios Federais, apuram as denncias de escravido

    contempornea realizando vistorias nas fazendas.

    Procurou-se realizar as entrevistas nas regies de maior incidncia

    de trabalho anlogo ao de escravo no Brasil. Informaes do Mi-

    nistrio do Trabalho e Emprego (MTE) de 1995 a 2008 destacam

    os estados do Par e Mato Grosso como campees em resgates de

    trabalhadores. Dados dos ltimos anos indicam um crescimentosignicativo de trabalhadores libertados nos estados da Bahia, To-

    cantins e Maranho. Dessa forma, planejou-se realizar entrevistas

    nesses estados. Apesar de no ter sido contemplado na pesquisa,

    observou-se, no perodo 2008 a 2010, um aumento signicativo

    de trabalhadores libertados na regio Sul do pas, principalmente

    nos estados de Paran e Santa Catarina, a partir do o aumento das

    aes scais do GEFM e dos Grupo Rurais das Superintendncias

    Regionais de Trabalho e Emprego (SRTEs). Em 2010, os trabalha-

    dores libertados na regio Sul corresponderam a cerca de 15% do

    total dos trabalhadores libertados no Brasil, enquanto em 2007

    haviam correspondido a menos de 4% desse total. As entrevistas

    com trabalhadores e gatos ocorreram em 10 fazendas localizadas

    nos estados do Par, Mato Grosso, Bahia e Gois, entre outubrode 2006 e julho de 2007. No total, foram entrevistados 121 traba-

    lhadores e 7 gatos (ver tabelas 1 e 2). Convm observar que no

    foram entrevistados trabalhadores resgatados no Maranho e em

    Tocantins, pois os perodos das aes de scalizao no coinci-

    5 A excepcionalidade da situao de scalizao e resgate certamente introduz um vis na

    pesquisa. Considerou-se, porm, que ele largamente compensado pela oportunidadede entrevistar trabalhadores no momento em que esto vivenciando a situao de traba-lho escravo, tendo como referncia uma situao concreta a ser discutida e avaliada poreles. Alm disto, o acesso posterior aos trabalhadores e gatos extremamente difcil.

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    taba 1: Local de resgate dos trabalhadores entrevistados

    UFmsogio

    mico

    gio

    muicpio

    Faz

    das

    n

    od

    taba

    lhados

    PA SudesteParaense

    Paragominas Abel Figueiredo 1 15

    Ulianpolis 1 16

    So Felix doXingu

    So Felix doXingu

    1 10

    Parauapebas gua Azul doNorte

    1 8

    MT Norte Mato-Grossense

    Sinop Unio do Sul 2 20

    Alto Teles Pires Nova Ubirat 1 6

    BA ExtremoOeste Baiano

    Barreiras Barreiras 1 21

    GO CentroGoiano

    Anpolis Itabera 1 23

    Inhumas6 1 2

    ta 10 121

    Fonte: Pesquisa de Campo.

    taba 2: Local de resgate dos trabalhadores e gatos entrevistados7

    UFtabaha ga

    Fqa % Fqa %

    PA 49 40,5 2 28,6

    MT 26 21,5 3 42,8

    BA 21 17,3 - -

    GO 25 20,7 2 28,6

    ta 121 100,0 7 100,0

    Fonte: Pesquisa de Campo.

    6 Havia um nmero maior de resgatados na fazenda de Inhumas (GO), no entanto, em

    funo da disponibilidade de tempo e de acesso dos pesquisadores foram entrevistadosapenas 2 trabalhadores.7 Vale ressaltar que em Mato Grosso foi entrevistado um gato em uma fazenda onde j no

    havia mais trabalhadores e em Gois 2 gatos trabalhavam em uma mesma fazenda.

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    osotabalhoescavor

    ualoBasil diram com a disponibilidade dos pesquisadores. Por isso, foram

    realizadas entrevistas em Gois, que apresentou, em 2007, um

    crescimento signicativo no nmero de operaes de resgate de

    trabalhadores.

    A realizao das entrevistas com trabalhadores e gatos enfrentou

    vrias diculdades de ordem operacional. As aes dos Grupos

    Mveis (GEFM) so realizadas principalmente aps denncias da

    Comisso Pastoral da Terra, de entidades da sociedade civil, de

    projetos de scalizao da Secretaria de Inspeo do Trabalho e

    de denncias annimas, quando ento, aps anlise por membrosdos GEFM ou dos Grupos Rurais das Superintendncias Regionais,

    enviada uma equipe para realizar as scalizaes. Dessa forma,

    era necessrio esperar que houvesse uma operao nos estados

    onde se determinou que as entrevistas fossem feitas, para ento

    enviar a equipe de pesquisadores, o que dicultava a execuo do

    trabalho de campo dentro do cronograma previsto. Alm disto, h

    locais que, quando scalizados, o Grupo Mvel (GEFM) no en-

    contra mais os trabalhadores na fazenda denunciada, como che-

    gou a ocorrer durante a pesquisa, ou ento denncias que, quan-

    do scalizadas, no so consideradas pelo Grupo Mvel (GEFM)

    como situaes anlogas escravido, inobstante a precariedade

    das condies de trabalho observadas. Convm registrar que to-

    dos os trabalhadores entrevistados na pesquisa foram resgatadospelo Grupo Mvel (GEFM), ou seja, as situaes nas quais eles se

    encontravam foram enquadradas, conforme o artigo 149 do Cdi-

    go Penal Brasileiro8, como de trabalho anlogo ao de escravo.

    Alm das entrevistas, os pesquisadores tambm acompanharam

    a rotina de trabalho dos Grupos Mveis (GEFM). Esse acompa-

    8 O artigo 149 do Cdigo Penal Brasileiro ser destacado no captulo 1.

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    nhamento permitiu levantar informaes importantes sobre as

    caractersticas dos diferentes atores envolvidos na escravido con-

    tempornea no Brasil e as alteraes que tm ocorrido no perodo

    recente. A pesquisa de campo propiciou uma rica experincia aos

    pesquisadores, evidenciando as mltiplas dimenses presentes

    na realidade do trabalho em condies anlogas de escravo.

    4.2 Banco de dados do MTE baseado no CAGED

    Para o perl dos trabalhadores, alm do material coletado emcampo, foram utilizadas informaes sobre os trabalhadores res-

    gatados contidas no banco de dados do MTE baseado no Cadastro

    Geral de Empregados e Desempregados (CAGED)9 de novembro

    de 2002 a maro de 2007. Neste perodo, o banco de dados dispe

    de informaes a respeito de idade, sexo, naturalidade e proce-

    dncia de 9762 trabalhadores resgatados 10. O banco de dados foi

    utilizado como parmetro de referncia para a anlise dos dados

    da pesquisa de campo. As 121 entrevistas realizadas na pesquisa

    e os dados baseados no CAGED permitiram quanticar algumas

    informaes para o perl. Ainda que o estudo realizado contenha

    indicaes importantes sobre as caractersticas dos trabalhadores

    submetidos a condies anlogas de escravos, necessrio dei-

    xar claro que a pesquisa no trabalhou com uma amostra esta-tisticamente representativa, o que impede a generalizao para o

    conjunto dos trabalhadores, dos achados dessa pesquisa.

    9 Uma importante iniciativa governamental no combate ao trabalho escravo tem sido opagamento de Seguro Desemprego aos trabalhadores resgatados, o que asseguradopela Lei n. 10.608/2002 que regula o Programa de Seguro Desemprego no pas (COSTA,2008). O banco de dados dos trabalhadores resgatados baseado no CAGED foi fornecido

    pelo Ministrio do Trabalho e Emprego.10 O banco de dados do MTE com base no CAGED apresenta informaes sobre outrasvariveis, como cor/raa. No entanto, nem todas as informaes puderam ser utilizadasem funo do preenchimento incompleto e no padronizado.

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    osotabalhoescavor

    ualoBasil 4.3 Lcus de pesquisa dos empregadores

    Os empregadores no foram entrevistados no momento do resga-

    te, entre outros motivos porque nem sempre estavam presentes na

    fazenda durante a scalizao. Para a seleo dos empregadores,tomou-se como referncia o Cadastro de Empregadores Flagrados

    na Explorao de Trabalho em Condies Anlogas a de Escravo

    (Lista Suja)11. Na escolha, procurou-se contemplar os diversos

    tipos de atividades econmicas, diferentes formas de gesto/ad-

    ministrao do empreendimento e tamanhos da propriedade. Os

    proprietrios foram contatados por telefone para agendamento deentrevistas em seus locais de residncia.

    Foram muitas as diculdades enfrentadas para conseguir entre-

    vistar os empregadores. A primeira foi o acesso a eles: obter os

    telefones e convenc-los a dar entrevista. A grande maioria deles

    no queria falar. Recusam e relutam em serem identicados, reco-

    nhecidos e lembrados como infratores. De 66 proprietrios conta-tados, conseguiu-se entrevistar apenas 12. Entre os empregadores

    que aceitaram dar entrevista, vrios concordaram apenas aps um

    longo processo de convencimento. Esse processo permitiu susci-

    tar e conquistar a conana do entrevistado condio primeira

    para obteno de um material sucientemente rico e passvel de

    ser interpretado segundo os objetivos e os pressupostos de uma

    pesquisa (BEAUD, 1996; p. 244). Mesmo as recusas e os argumen-

    tos utilizados trouxeram elementos importantes para a compre-

    enso do perl dos empregadores.

    11 A chamada Lista Suja refere-se a um cadastro, institudo pela Portaria n.540/2004do MTE, que rene o nome de empregadores (pessoas fsicas e jurdicas) agrados naexplorao de trabalhadores em condies anlogas escravido. A Lista Suja ser ex-

    plicada com mais detalhes no captulo 6 do presente estudo. Ela est disponibilizada aopblico pelo site do MTE: .

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    As fazendas dos empregadores entrevistados localizavam-se pre-

    dominantemente nos estados do Par e Mato Grosso, havendo

    ainda propriedades na Bahia, Tocantins e Maranho. A pesquisa

    abrangeu, portanto, os estados com maior incidncia de resgate

    de trabalhadores submetidos escravido contempornea (ver

    tabela 3).

    taba 3. la a a a qua

    UF muFqa %

    PA

    So Flix do Xingu (2)

    6 50,0UlianpolisTom-AuRio MariaMarab

    MTLucas do Rio Verde

    3 25,0DiamantinoSo Flix do Araguaia

    BA Luiz Eduardo Magalhes 1 8,3

    TO Anans 1 8,3

    MA Aailndia 1 8,3

    ta 12 100,0

    Fonte: Pesquisa de Campo.

    4.4 Estrutura do trabalho

    O presente estudo est estruturado em seis captulos. O primeiro

    apresenta as diferentes denies de escravido contempornea uti-

    lizadas no Brasil, alm de destacar as percepes dos trabalhadores,

    gatos e empregadores sobre o trabalho anlogo ao de escravo no pas.

    O captulo 2 apresenta a situao de escravido contempornea

    observada pelos pesquisadores que acompanharam o Grupo M-

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    vel (GEFM). Neste captulo, busca-se demonstrar as caractersti-

    cas da escravido (aliciamento, condies de trabalho, privao da

    liberdade) observadas durante a pesquisa de campo.

    O captulo 3 traz um perl dos trabalhadores submetidos escra-vido contempornea entrevistados na pesquisa. Neste captulo

    so destacadas no apenas as caractersticas socioeconmicas dos

    trabalhadores, mas tambm os uxos migratrios, suas relaes

    familiares, a trajetria prossional, suas formas de sociabilidade e

    suas aspiraes e projetos de vida.

    O captulo 4 apresenta um perl dosgatos envolvidos com a es-cravido rural no Brasil. So analisadas as novas formas de arregi-

    mentao, controle e organizao do trabalho anlogo ao de escra-

    vo observadas na pesquisa de campo. Alm disso, so destacadas

    a caracterizao socioeconmica dos empreiteiros entrevistados,

    seus uxos migratrios, suas relaes familiares, suas caractersti-

    cas prossionais, suas formas de sociabilidade e suas expectativase aspiraes.

    No Captulo 5, apresentado um perl dos empregadores que fo-

    ram agrados utilizando mo de obra em condies anlogas de

    escravo em suas fazendas. Os mesmos aspectos presentes nos per-

    s dos trabalhadores e gatos so destacados para os empregado-

    res. Buscou-se tambm apresentar algumas caractersticas de seusempreendimentos e suas formas de gesto da fora de trabalho.

    Finalmente, o captulo 6 analisa as polticas de enfrentamento

    escravido no Brasil. Alm disso, so apresentadas as vises dos

    trabalhadores, gatos e empregadores sobre os instrumentos de

    combate escravido contempornea no pas.

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    conceitUAndo A escrAVidocontemporneA

    Cap.1

    A seguir sero apresentados o conceito de trabalho forado da

    Organizao Internacional do Trabalho (OIT) e o artigo 149 do

    Cdigo Penal brasileiro. Alm disso, analisar-se-o as percepes

    dos trabalhadores, gatos e empregadores sobre o trabalho escravono Brasil.

    1.1 Denio de Trabalho Forado da OIT

    A Conveno n. 29 (de 1930)1 da Organizao Internacional do

    Trabalho (OIT) -sobre o trabalho forado ou obrigatrio -, rati-cada pelo Brasil em 1957, dene trabalho forado como todo

    trabalho ou servio exigido de uma pessoa sob a ameaa de sano

    e para o qual ela no tiver se oferecido espontaneamente. Alm

    disso, a Conveno n. 105 (de 1957)2 - sobre a Abolio do Tra-

    balho Forado - estabelece que o trabalho forado jamais pode

    ser utilizado para ns de desenvolvimento econmico ou como

    1 Conveno n 29 sobre o Trabalho Forado ou Obrigatrio.2 Conveno n 105 sobre a Abolio do Trabalho Forado

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    osotabalhoescavor

    ualoBasil instrumento de educao poltica, de discriminao, disciplina-

    mento atravs do trabalho ou como punio por participar de gre-

    ve. Ambas as convenes foram raticadas pelo Brasil, respectiva-

    mente em 1957 e em 1965.

    De acordo com essas convenes, o trabalho forado no pode

    simplesmente ser equiparado a baixos salrios ou a ms condies

    de trabalho, mas inclui tambm uma situao de cerceamento da

    liberdade dos trabalhadores. Portanto, toda a forma de trabalho

    forado trabalho degradante, mas a recproca nem sempre ver-

    dadeira. O que diferencia um conceito do outro a questo darestrio da liberdade.

    No caso brasileiro, a restrio da liberdade dos trabalhadores de-

    corre dos seguintes fatores: apreenso de documentos, presena

    de guardas armados com comportamentos ameaadores, isola-

    mento geogrco que impede a fuga e dvidas ilegalmente impos-

    tas. Por esses motivos, os trabalhadores cam impossibilitados deexercer seus direitos de ir e vir, de sair de um emprego e ir para

    outro (MARTINS, 1999; p. 162).

    1.2 Artigo 149 do Cdigo Penal Brasileiro

    Artigo 149 do Cdigo Penal Brasileiro, reformulado em 2003 pelaLei 10.803/2003, utiliza a expresso reduo a condio anloga

    de escravo para denir o crime no pas.

    Artigo 149. Reduzir algum a condio anloga de escravo, quer

    submetendo-o a trabalhos forados ou a jornada exaustiva, quer

    sujeitando-o a condies degradantes de trabalho, quer restrin-

    gindo, por qualquer meio, sua locomoo em razo de dvida con-trada com o empregador ou preposto.

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    Pena recluso, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, alm da pena

    correspondente violncia.

    1 Nas mesmas penas incorre quem:

    I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do tra-balhador, com o m de ret-lo no local de trabalho;

    II - mantm vigilncia ostensiva no local de trabalho ou se apode-

    ra de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o m

    de ret-lo no local de trabalho.

    2 A pena aumentada de metade, se o crime cometido:

    I - contra criana ou adolescente;

    II - por meio de preconceito de raa, cor, etnia, religio ou origem.

    A denio de trabalho anlogo ao de escravo contida no Cdigo

    Penal Brasileiro, portanto, no requer a combinao desses fato-res para caracterizar o crime: a presena de apenas um dos fatores

    j suciente para punir o responsvel pela prtica desse delito

    (COSTA, 2010). importante notar tambm que o tipo penal

    amplo, abrangendo no s situaes de falta de liberdade em sen-

    tido estrito, como tambm o trabalho em jornada exaustiva e em

    condies degradantes (VIANA, 2007, p. 44).

    1.3 Denio de Trabalho Escravo para os trabalhadores

    pesquisados

    A pesquisa buscou identicar o que os trabalhadores entendem

    por trabalho escravo, ou seja, quais os elementos que, para eles,caracterizam essa condio. Os seguintes aspectos foram desta-

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    ualoBasil cados no seu discurso: a ausncia de remunerao ou pagamento

    insuciente (citada em 38,8% dos casos); os maus tratos e a humi-

    lhao dos trabalhadores e a jornada exaustiva (citados em 36,3%

    dos casos); as condies precrias de trabalho (citada em 28,9%

    dos casos), a privao da liberdade (24,7% dos casos) e a ausncia

    de carteira assinada (4,1% dos casos) (ver grco 1).

    Grfico 1. O que trabalho escravo para os trabalhadores*

    0

    38.80%

    36.30%

    36.30%

    28.90%

    24.70%

    4.10%

    0.00 5.00 10.0 15.0 20.0 25.0 30.0 35.0 40.0 45.0

    Ausncia de remunerao ou pagamento

    insuficiente

    Jornada exaustiva

    Maus tratos e humilhao

    Condies degradates de trabalho

    Privao da liberdade

    Ausncia de carteira as si nada

    Fonte: Pesquisa de campo.*A resposta a esta questo podia ser mltipla. Os percentuais apresentados referem-se proporo derespondentes que mencionaram aquele aspecto na sua denio de Trabalho Escravo

    Alm disso, o estudo procurou conhecer quais seriam, para esses

    trabalhadores, os limites das situaes de explorao nas relaes

    de trabalho considerados suportveis. Perguntou-se aos trabalha-

    dores que motivos justicam o rompimento do contrato de traba-

    lho. Os relatos sobre esses limites, bem como os problemas que

    enfrentam com os gatos, foram utilizados para caracterizar o tra-

    balho escravo sob a tica dos trabalhadores.

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    1.3.1. Ausncia de remunerao, pagamento insuciente ou que-

    bra de contrato

    No receber remunerao ou ganhar pouco foi o elemento mais

    freqente (38,8%) apontado pelos trabalhadores para caracterizaro trabalho escravo. Segundo relatos dos entrevistados, o trabalho

    escravo :

    A pessoa que vai trabalhar na fazenda a vida inteira trabalhando

    sem ganhar quase nada.

    A gente trabalhar muito e ganhar pouco.

    Quando a gente trabalha sem tirar lucro e botou fora, trabalhou

    e o dono do servio no quer pagar.

    Na hora do acerto de conta, ele [o gato] desonesto, no paga

    certo.

    A quebra da palavra dada, ou seja, o no cumprimento do combi-

    nado pelo gato tambm apareceu como sinnimo de escravido:

    O trabalhador no tem segurana. Combinam uma coisa, prome-

    tem e no cumprem.

    Na cidade da gente eles falam uma coisa e depois outra. Nunca

    do jeito que eles falam.

    1.3.2. Maus tratos e humilhao

    Segundo um dos trabalhadores entrevistados na pesquisa de cam-

    po, a escravido no s car preso numa fazenda. Os maus

    tratos, os xingamentos e agressividade dos gatos e empregadores

    tambm foram considerados atributos da escravido por 36,3%dos trabalhadores.

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    ualoBasil Os maus tratos desqualicam e submetem moralmente o traba-

    lhador vontade do outro e, nesse sentido, privam-no de sua au-

    tonomia, mesmo quando no o prendem sicamente. A categoria

    humilhao foi recorrente nos depoimentos dos trabalhadores.

    Um deles considerou a humilhao como o equivalente do casti-

    go na escravido colonial: de primeiro [a escravido] era quando

    trabalhava apanhando. Hoje quando trabalha humilhado. Outros

    relatos retrataram esse aspecto da escravido contempornea:

    Acho que [o trabalho escravo] sofrimento que a pessoa passa no

    servio, humilhado e agredido.

    Quando as pessoas to sendo maltratadas e humilhadas pelos do-

    nos de fazenda e gatos.

    Receber grito direto, ser tratado que nem cachorro. Se o peo sen-

    ta um instante chega gritando, maltratando, arrogante.

    Tratar das pessoas como quem trata de um bicho.

    Quando perguntados sobre os motivos que justicam o rompimen-

    to de um contrato de trabalho, a razo mais forte apresentada pelos

    trabalhadores foi o tratamento desrespeitoso por parte do gato ou

    empregador, com atitudes que desqualicam e discriminam; nas

    palavras de um trabalhador, quando a gente no se sente como hu-mano. Ou seja, este tipo de tratamento se congura para o traba-

    lhador como injustia, como um ataque sua dignidade humana.

    1.3.3. Jornada exaustiva

    A jornada de trabalho exaustiva (seja ela extensa ou intensa) foi

    destacada para denir a escravido por 36,3% dos trabalhadores

    pesquisados. Para eles, o trabalho escravo :

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    Aquele [servio] que voc pega de madrugada, pra de noite.

    No d tempo de folga, nem para beber gua.

    Explorar o trabalhador. O trabalhador fazer o que ele no pode, o

    mximo que o corpo pede.

    1.3.4. Condies de trabalho

    As condies degradantes de trabalho, isto , o alojamento, a ali-

    mentao, a gua e os equipamentos de proteo e segurana,

    foram elementos utilizados para caracterizar o trabalho escravo

    por 28,9% dos trabalhadores entrevistados na pesquisa de cam-

    po. Geralmente, as condies precrias de trabalho apareceram

    associadas a outros fatores, como a ausncia de remunerao, a

    jornada exaustiva de trabalho, os maus tratos e humilhao. Os

    trabalhadores pesquisados armaram que a escravido :

    Trabalhar s pra comer, no receber dinheiro, comer uma comida

    ruim, tipo escravizado mesmo, como o que estamos vivendo aqui:

    trabalhar muito e ganhar pouco, ser humilhado.

    Quando tiver alimentao muito fraca ou estragada ou ser xinga-

    do e agredido pelo gato.

    Quando sofre humilhao e a alimentao no boa.

    1.3.5.Privao da liberdade

    A restrio da liberdade foi mencionada por 24,7% dos trabalha-

    dores para denir o trabalho escravo no Brasil (ver grco 2).

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    ualoBasil

    14%

    12,30%

    4,10%

    0%

    2%

    4%

    6%

    8%

    10%

    12%

    14%

    16%

    Caractersticasgeogrficas do local

    Violncia fsica eostensiva

    Reteno por dvida

    Grfico 2. Privao da liberdade como caracterstica da

    escravido*

    Fonte: Pesquisa de campo.*Respostas mltiplas.

    Nesse aspecto, 14% dos entrevistados na pesquisa de campo se re-

    feriram s caractersticas geogrcas das fazendas que impossibi-

    litam a sada do local de trabalho:A empreita s acertada nas terras do homem [fazenda]. Ele [o

    gato] diz: tanto. Se no aceitar, tem de ir embora. Ir embora

    como?

    Estar trabalhando no lugar, no poder falar, no poder sair, no

    poder se comunicar com a famlia.

    Querer sair e no ser liberado.

    A violncia ostensiva, isto , a presena de guardas armados com

    comportamentos ameaadores e a violncia fsica foram citadas

    por 12,3% dos trabalhadores. Segundo os entrevistados, o trabalho

    escravo ocorre quando:

    Voc t trabalhando e uma pessoa t com uma arma. Voc querparar pra descansar e ele ca avexando pra trabalhar. A eu acho

    que .

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    A pessoa trabalha sem condies e obriga a pessoa a car na fa-

    zenda. Ter vigia armado.

    Ser ameaado. Se quer sair, o cara dizer que vai matar.

    A reteno por dvida foi apontada por 4,1% dos entrevistadoscomo elemento que congura a escravido. Apesar do pequeno

    percentual de trabalhadores que se referiram espontaneamente

    dvida como um fator que dene o trabalho escravo no Brasil, de-

    ve-se notar que a dvida ainda possui um papel signicativo para a

    reteno dos trabalhadores nas propriedades conforme demons-

    tra o quadro saiba mais nas pginas 25 e 26. a pessoa que trabalha e nunca tem um saldo bom. s devendo.

    o peo [que] no consegue ir embora porque est devendo.

    Eles [os gatos] mentem demais. O que pedir [de mercadoria] vai,

    mas dobrado o preo. [...] Eu no gosto de trabalhar pra gato,

    porque ele vai me enrolar.

    O gato vende fumo, bota, tudo e a desconta. A mixaria que a gen-

    te ganha e ainda descontado.

    1.3.6. Ausncia de carteira assinada

    Apenas 4,1% dos trabalhadores se referiram ausncia de carteira

    assinada como sinnimo de escravido. No entanto, vale observarque, ao serem perguntados sobre as medidas para a erradicao

    do trabalho escravo no Brasil, alguns se referiram importncia

    do registro em carteira (ver pginas 121, 122 e 123).

    1.4 Denio de Trabalho Escravo para os gatos pesquisados

    O entendimento dos gatos sobre o trabalho escravo no se dife-

    renciou do encontrado para os trabalhadores. Para os empreitei-

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    osotabalhoescavor

    ualoBasil ros, os aspectos utilizados para denir a escravido foram: a exis-

    tncia de trabalho no pago, os maus tratos e a humilhao por

    parte do empregador, a jornada exaustiva de trabalho e a ausncia

    de carteira assinada, como se observa nos depoimentos abaixo:

    Onde a pessoa trabalha e no recebe.

    Trabalhando maltratado, no t recebendo, no t se alimentan-

    do.

    Quando diz: voc tem que fazer isto e pega s 6 da manh, traba-

    lha at s 8 da noite e no pagam o que vale.

    Trabalho sem registro, sem carteira assinada. Trabalho com maus

    tratos, trabalhar humilhado.

    Perguntados sobre quais motivos justicariam o abandono do

    servio pelos trabalhadores, os gatos destacaram o pagamento

    insuciente, os maus tratos, as condies precrias de trabalho,especialmente a alimentao, indicando a existncia de elemen-

    tos comuns percepo dos trabalhadores em relao aos limites

    da explorao do trabalho. Esses relatos tambm foram utilizados

    para caracterizar o trabalho escravo sob a tica dos gatos (ver qua-

    dro saiba mais nas pginas 25 e 26).

    Quando ele no est ganhando nada.

    Se trabalhou um tempo e no deu pr tirar o valor da diria, tem

    direito de ir embora.

    Quando ele maltratado. Quando no alimenta ele bem e falta

    com respeito, ele deve abandonar [o servio].

    No meu modo de pensar, no deveria [abandonar o trabalho]. Sse passar fome. Quem que vai trabalhar com fome?

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    35

    1.5 Denio de Trabalho Escravo para os empregadores

    pesquisados

    O aspecto mais citado pelos empregadores para denir a escravi-

    do contempornea foi a privao da liberdade dos trabalhadores:

    [Trabalho escravo ] endividamento com comida. Sem poder sair

    do local de trabalho.

    Quando se obriga algum a fazer um trabalho, por no ter como

    sair, por receber em comida apenas.

    [Escravido] no ter permisso de ir e vir.

    A ausncia de pagamento, as condies precrias de trabalho e a

    jornada exaustiva tambm foram critrios citados pelos empre-

    gadores para denir a escravido contempornea, como demons-

    tram os depoimentos abaixo:

    [Trabalho escravo ] no ter salrio, no ter registro, no ter con-

    dies bsicas de vida.

    [Trabalho escravo ] no pagar salrio, no respeitar a jornada de

    trabalho.

    Convm observar, entretanto, que muitos empregadores entre-

    vistados na pesquisa criticaram a ao da scalizao do MTE3,

    armando que existem muitos exageros sobre o trabalho escravo

    no pas.

    Existe [trabalho escravo], mas no na proporo que falam. Na

    prtica nunca vi essas situaes que dizem ser trabalho escravo.

    importante delimitar o que se enquadra ou no como trabalho3 A opinio dos empregadores sobre a legislao trabalhista e sobre os mecanismos de

    combate ao trabalho escravo no Brasil ser descrita com detalhes no captulo 6.

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    ualoBasil escravo, pois hoje se cria uma situao em que o funcionrio an-

    dou de nibus que est quebrado, ele j um trabalhador escravo.

    Tinha que rever tudo isso antes de sujar o nome da gente. Tudo

    trabalho escravo! Tem que ouvir todos os lados antes de dizer que trabalho escravo.

    Alm disso, com exceo de um empregador, todos negaram a

    presena de trabalhadores escravos em suas fazendas. O proprie-

    trio que reconheceu sua parcela de culpa armou que: fomos

    negligentes. Ele se posicionou favorvel ao combate ao trabalhoescravo e defendeu uma melhor denio das leis. E fez questo

    de ressaltar que:

    [O trabalho escravo] um problema srio. Acho que uma reali-

    dade. Mas no um privilgio da agricultura. Voc tem trabalho

    escravo, quando a sem preconceito uma criana de 9 anos no

    Nordeste, deixa de ir escola e ca fazendo comida. Tambm

    trabalho escravo quando uma pessoa um costureiro coreano ou

    boliviano ca connado, n? E por conta da ameaa da denncia

    da ilegalidade, trabalha e tal.

    Entre os doze empregadores entrevistados, apenas dois negaram

    veementemente a existncia da escravido contempornea no

    Brasil.

    No existe trabalho escravo no Brasil. tudo inveno. Na cidade

    tem gente trabalhando que nem no campo, no ? Sem carteira

    assinada. E porque que eu tenho que pagar?

    No existe [trabalho escravo]. [...] O que se v so coisas naturais.

    Deveria se acabar com a pecha de trabalho escravo. Virei uma in-

    dstria de trabalho escravo [...] No existem pessoas que so ali-

    ciadas pra trabalhar ali que no vai poder sair. Ele sai a hora que

    quiser.

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    Qua Saiba mais: A va qu avza*

    A privao da liberdade por dvidas um mecanismo tradicio-

    nalmente utilizado no Brasil para manter os trabalhadores ca-tivos. Endividado, o trabalhador muitas vezes recusa sua liber-

    tao, pois se considera subjetivamente devedor e, portanto,

    incapaz de violar o princpio moral em que apia sua relao

    de trabalho (MARTINS, 1999; p. 162). Dessa forma, os pesqui-

    sadores buscaram vericar se os trabalhadores entrevistados

    consideram a dvida como um elemento que justica sua re-

    teno na propriedade. 52% dos trabalhadores armaram queno podem sair se estiverem devendo e 18,1% condicionaram a

    sada a algumas situaes. Apenas 29,9% consideraram que o

    trabalhador pode sair do emprego em caso de dvidas.

    a) n a a faza v v

    Os trabalhadores que armaram que no podem sair do local

    de trabalho se estiverem devendo (52%) utilizaram principal-mente argumentos relacionados obrigatoriedade moral de

    pagar a dvida. Segundo eles:

    O direito acertar a cantina.

    Tem que pagar porque honestidade acima de tudo. Uma

    das coisas mais feias que acho no cumprir quando deve.

    Tem que trabalhar pra poder pagar. Se sair no tem comopagar.

    O trabalhador que honesto tem que sair limpo de qual-

    quer lugar.

    es caso saiam das fazendas endividados:

    Se sai devendo, depois eles tem coragem de matar at porum real.

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    ualoBasil

    Porque sai sujo aqui de dentro. Quando volta para char,

    no cha mais.

    b) p a a faza v v

    Entre os trabalhadores que armaram que podem sair do local

    de trabalho se estiverem devendo (29,9%), um grupo utilizou

    como argumento a ilegalidade da situao e outro justicou o

    abandono do emprego armando que o trabalhador endivida-

    do no consegue sair dessa situao:

    No existe lei para ter cantina na fazenda.

    Tem o direito de sair porque ningum pode trabalhar de

    graa. At mquina no trabalha de graa porque tem que

    ter o investimento nela.

    Se no tem dinheiro, como vai fazer pra pagar?

    Alguns entrevistados tambm sugeriram que o trabalhadordeve sair da fazenda para no aumentar ainda mais a dvida e

    posteriormente deve voltar para pag-la, ou seja, eles reconhe-

    cem a dvida da cantina como legtima e vem a necessidade de

    quit-la.

    Se est massacrado deve sair mesmo. Que depois volte e pague

    a dvida.

    *Essa expresso foi retirada do ttulo de um

    artigo da autora Neide Esterci (1999; p. 101)

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    ) p a a faza v v a

    ua

    18,1% dos trabalhadores entrevistados consideraram que o de-ver moral de car na propriedade para pagar a dvida relati-

    vizado diante de certas circunstncias, como em caso de do-

    enas, de quebra do contrato de trabalho e, especialmente, de

    maus tratos e da humilhao:

    Se ele t devendo tem que pagar, mas se ele for humilhado

    tem o direito de sair.

    Dependendo, se o gato tiver querendo prender e explorar

    a sim, mas se ele estiver s devendo tem que trabalhar

    para pagar [a dvida] primeiro.

    Se t doente, pode sair.

    Se combinou de um jeito falou de outro, eu vazo!

    Dessa forma, possvel concluir que a dvida um mecanismo

    ecaz para prender o trabalhador fazenda, tendo em vista que

    os valores morais como honra e honestidade so fortes orien-

    tadores da conduta para grande parte dos trabalhadores. Alm

    disso, o medo de possveis sanes tambm impede que alguns

    trabalhadores deixem o local de trabalho se estiverem endivi-

    dados.

    O estudo procurou vericar tambm se os gatos consideram a

    dvida como um elemento que justica a reteno dos traba-

    lhadores nas fazendas. Alguns gatos condicionaram a sada dos

    trabalhadores a situaes especcas, como em casos de maus

    tratos ou fome. Outros utilizaram argumentos de ordem prag-

    mtica, ou seja, eles acham melhor que o trabalhador saia paraevitar problemas.

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    Primeiro de tudo, ele fez um compromisso. Mas se o patro

    estiver maltratando ele tem direito para evitar confuso.

    Se ele est passando fome, no t tendo assistncia, temdireito de ir embora.

    Tem [direito de sair]! [...] Se ele quiser sair melhor; seno vai

    criar diculdade, acaba no trabalhando.

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    sitUAo de trABAlHo escrAVonAs FAZendAs pesQUisAdAs

    Cap.2

    Neste captulo ser apresentada a situao de trabalho escravo

    encontrada pelos pesquisadores que acompanharam as aes do

    Grupo Mvel (GEFM). Primeiramente, sero destacadas as carac-

    tersticas das fazendas onde foram entrevistados os trabalhadorese os gatos, incluindo a localizao, o tamanho da propriedade e as

    atividades produtivas. Analisar-se- tambm a maneira como os

    trabalhadores foram aliciados para as fazendas. Alm disso, sero

    apresentados os depoimentos dos trabalhadores sobre as condi-

    es de trabalho nas fazendas pesquisadas e as opinies dos em-

    pregados e dos gatos sobre os responsveis pela situao encon-

    trada nas propriedades visitadas pelos pesquisadores.

    2.1 Caractersticas das fazendas onde foram entrevistados os

    trabalhadores e os gatos

    Como j foi dito anteriormente, as entrevistas com os trabalhado-

    res e gatos ocorreram em dez fazendas localizadas nos estados do

    Par, Mato Grosso, Bahia e Gois (ver tabela 1 na pgina 10). Es-

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    osotabalhoescavor

    ualoBasil sas dez propriedades se diferenciam quanto ao tamanho e tipo de

    gesto. Duas delas so grandes empresas: uma produz cana-de-

    -acar no Par; e a outra produz caf, algodo e soja na Bahia. As

    demais fazendas pertencem a proprietrios individuais, a maior

    parte deles absentestas, ou seja, que no frequentam suas pro-

    priedades, cando a gesto desta por conta de um administrador.

    Em metade das fazendas pesquisadas, a atividade econmica era

    a pecuria e nas demais a agricultura. As atividades agropecurias

    estavam localizadas no Par e Mato Grosso e abrangeram 43,8%

    dos trabalhadores entrevistados (ver tabela 4).As fazendas com atividades agrcolas se diferenciavam: uma de-

    las, na Bahia, regio que passa por intenso crescimento na pro-

    duo de gros com culturas altamente mecanizadas, produzia

    caf, algodo e soja. Outra, localizada no Par, era produtora cana

    de acar/lcool. Alm disso, havia ainda uma fazenda em Mato

    Grosso, produtora de arroz, e duas em Gois, uma produtora detomate e outra de cana1

    taba 4. n a abaha avaa

    Ava ea a Faza pa tabaha %

    Pecuria 5 53 43,8

    Agricultura

    Caf, Algodo, Soja 1 21 17,4

    Cana de acar 2 18 14,8

    Tomate 1 23 19,0

    Arroz 1 6 5,0

    ta 10 121 100,0

    Fonte: Pesquisa de Campo.

    1 Nesta ltima fazenda de Gois foram entrevistados apenas dois trabalhadores.

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    2.2 Aliciamento dos trabalhadores

    O recrutamento dos trabalhadores entrevistados na pesquisa de

    campo operou principalmente por meio da rede de relaes pes-

    soais. A maioria dos trabalhadores soube do servio por amigos ouconhecidos (40,8%) ou pelo gato (27,5%). Os demais procuraram

    escritrios que funcionavam como agncias de empregos ou diri-

    giram-se diretamente a fazenda (31,7%). Os depoimentos dos ga-

    tos conrmaram as informaes divulgadas pelos trabalhadores,

    uma vez que, segundo eles, a arregimentao dos trabalhadores

    foi realizada principalmente pela rede de contatos pessoais e porindicaes de pessoas conhecidas.

    2.2.1.Local de aliciamento

    Grande parte dos trabalhadores entrevistados (62,6%) soube do

    trabalho na prpria residncia ou na vizinhana. Outros foraminformados em hotis e penses (12,2%) ou em locais pblicos

    (8,7%), como rodovirias, estaes de trem e ruas das cidades por

    onde circulavam a procura de emprego (ver tabela 5). 7,8% dos tra-

    balhadores souberam do servio em escritrios de contabilidade.

    taba 5. la aa (%)*

    ra uVzhaa

    H up

    lab

    e aba

    ouaua

    62,6 12,2 8,7 7,8 8,7

    Fonte: Pesquisa de Campo.*Excludos 6 trabalhadores sem informaes.

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    ualoBasil 2.2.2 Responsveis pela contratao dos trabalhadores ou

    aliciador

    Em mais da metade dos casos (52%), os trabalhadores foram con-

    tratados pelos gatos. A pesquisa de campo revelou outras modali-dades de contratao: 24,8% dos trabalhadores foram contratados

    diretamente pela unidade produtiva (gerente, fazendeiro ou em-

    presa); 14,9% foram contratados por escritrios de contabilidade a

    servio da empresa; e 8,3% foram contratados por outros agentes

    (ver grco 3). Os servios dos escritrios de contabilidade foram

    utilizados pelos fazendeiros como tentativas de terceirizao damo de obra a m de evitar problemas com a intermediao da

    fora de trabalho2.

    Fonte: Pesquisa de Campo.

    2.2.3 Tipos de contratao dos trabalhadores e dos gatos

    Em seis fazendas pesquisadas os trabalhadores no foram registra-

    dos e em trs os trabalhadores possuam carteira assinada3. Duas

    2 No captulo 4, sero apresentadas as novas formas de arregimentao, controle e organi-zao do trabalho encontradas na pesquisa de campo.3 No h informaes sobre o tipo de contratao dos trabalhadores para 1 das 10 fazendas

    pesquisadas.

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    das trs fazendas onde havia registro dos empregados eram gran-

    des empresas. Nas situaes em que os gatos estavam presentes, a

    contratao dos trabalhadores foi apenas verbal, com exceo de

    um caso em que as carteiras dos trabalhadores foram registradas.

    Os responsveis pela contratao dos gatos foram os proprietrios

    das fazendas em 4 casos e os gerentes em 3 casos. Apenas dois ga-

    tos rmaram contrato por escrito com os donos das fazendas; os

    demais zeram apenas acordo verbal. Somente um possua rma

    registrada.

    2.2.4 Relao anterior com o aliciador e companhia para o

    trabalho

    Grande parte dos entrevistados (71%) no havia trabalhado ante-

    riormente com o contratante e nem mesmo o conheciam (57%).

    Entre os que j tinham contato, a maioria no tinha um relaciona-mento prximo. Apenas 5,8% dos trabalhadores disseram ter com

    ele relaes de amizade e 1,7% armaram ter relaes de paren-

    tesco. Os 35,5% restantes armaram que o contratante era apenas

    conhecido (ver tabela 6).

    taba 6. ra a aa

    dh 57%

    ch 35,5%

    A 5,8%

    pa 1,7%

    Fonte: Pesquisa de Campo.

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    ualoBasil Por outro lado, a maior parte dos entrevistados (69,4%) estava

    acompanhada por outros trabalhadores conhecidos e/ou parentes

    na fazenda onde foi resgatado. Apenas 28,1% declararam ter ido

    sozinhos para a fazenda (ver tabela 7). A ausncia de amigos ou fa-

    miliares os torna mais vulnerveis diante de situaes de violncia

    e constrangimento que podem ocorrer nas fazendas. A presena

    de conhecidos e parentes pode atuar como um mecanismo prote-

    tor e de ajuda mtua.

    taba 7. caha aa abah

    c a u h 50,4%

    szh 28,1%

    c a 19%

    ou 2,5%

    Fonte: Pesquisa de Campo.

    2.2.5 Tipo de transporte

    Como a maioria das fazendas encontradas na pesquisa de campo

    cava em locais distantes e de difcil acesso, mais da metade dos

    trabalhadores (54%) foram transportados em caminhes ou ca-

    minhonetes da cidade mais prxima at o local de trabalho. Para

    um grupo menor (13%) foi utilizado o nibus da fazenda.

    Antes de chegarem cidade prxima, os trabalhadores utilizaram

    vrios meios de transporte no percurso: nibus de linha, trem e

    nibus clandestino para o transporte interestadual dos trabalha-

    dores. Neste ltimo caso, o gato eximiu-se da responsabilidade

    pelo transporte, atribuindo-a aos trabalhadores. Convm obser-

    var que, dos sete gatos entrevistados na pesquisa de campo, qua-

    tro assumiram ser responsveis pelo transporte dos trabalhadores

    para a fazenda.

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    2.3 Trabalho temporrio

    As atividades desenvolvidas pelos trabalhadores entrevistados ti-

    nham carter temporrio. Dados da pesquisa de campo indicam

    que a maioria dos trabalhadores com residncia xa (88,4%) es-tava fora de casa h at 6 meses, sendo que grande parte (69,5%)

    estava longe h apenas 3 meses ou menos. Apenas 4,2% dos tra-

    balhadores saram de casa por um perodo de um a dois anos (ver

    grco 4).

    Fonte: Pesquisa de campo.*Excludos 21 trabalhadores sem residncia xa e 5 sem informao.

    Situao diferente ocorre entre os trabalhadores sem residncia

    xa (11,60%), que geralmente estavam h anos fora da residncia

    familiar. O estudo encontrou trabalhadores que no voltavam

    para a casa da famlia h mais de 10 anos.

    Os empreiteiros tambm estavam trabalhando na fazenda h

    pouco tempo: seis gatos estavam no local de trabalho h at 3 me-

    ses; e um estava trabalhando de 3 a 6 meses.

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    ualoBasil 2.4. Condies de trabalho nas fazendas pesquisadas

    2.4.1.Alojamento

    As condies de trabalho nas fazendas pesquisadas eram extre-

    mamente degradantes. Os alojamentos dos trabalhadores, espe-

    cialmente no Par e Mato Grosso, eram barracos improvisados no

    cho de terra, com cobertura de lona preta ou de palha, conforme

    denuncia um dos trabalhadores entrevistados: o barraquinho de

    lona, no um ambiente prprio pra car. Devido s pssimas

    condies dos alojamentos, os trabalhadores rurais cavam ex-

    postos ao sol e chuva. Os alojamentos apresentavam tambmproblemas de ventilao e superlotao. Um trabalhador ressal-

    tou a importncia na construo de um alojamento bem organi-

    zado, gua encanada natural, quintal bem cercado, com galinhas

    e porcos separados.

    2.4.2 gua e Alimentao

    Nas fazendas pesquisadas no havia gua potvel com qualidade

    para os trabalhadores. A gua, procedente de crregos prximos,

    era utilizada indiscriminadamente para beber, cozinhar, tomar

    banho e lavar equipamentos utilizados no servio, alm de ser

    dividida com animais. Em geral, a alimentao fornecida era de

    baixa qualidade, produzida em precrias condies de higiene.

    A carne raramente era oferecida pelos patres. Em alguns casos,

    para obteno de carne, os trabalhadores eram obrigados a caar

    animais silvestres. Os relatos a seguir denunciam s precrias con-

    dies da alimentao e da gua nas fazendas:

    gua ruim danada. Tem dia que no tem mistura [carne].

    Tinha muita coisa irregular [na fazenda] o rango [comida], o ba-nheiro. Principal o rango.

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    2.4.3 Saneamento

    Na maioria das fazendas no havia instalaes sanitrias. Nas pro-

    priedades que possuam banheiros, estes estavam em pssimas

    condies de funcionamento e higiene. Banheiro velho, sujo,sem zelo, relatou um dos trabalhadores.

    2.4.4 Equipamentos de segurana e sade dos trabalhadores

    A maioria dos trabalhadores no utilizava equipamentos de pro-

    teo individual. Em alguns casos, foi identicado o uso de pro-dutos txicos (venenos) proibidos pela legislao brasileira. Ve-

    ricou-se tambm ausncia de assistncia sade. Em uma das

    fazendas, um trabalhador faleceu por falta de atendimento m-

    dico aps sofrer um acidente de trabalho. Os trabalhadores que

    estavam presentes no local armaram que o principal problema

    que enfrentaram ali foi:O acidente que aconteceu e no foi dada assistncia.

    A morte do rapaz que morreu na derrubada.

    2.4.5 Jornada exaustiva

    Vericou-se que os trabalhadores foram submetidos a jornadas

    exaustivas de trabalho, sem descanso semanal e com horas extras

    no pagas. Um dos trabalhadores entrevistados retratou a jornada

    exaustiva: [Aqui temos] que acordar muito cedo [...] e trabalhar

    muito.

    Segundo Ubiratan Cazetta (2007; p. 108), a jornada exaustiva a que submete o trabalhador a um esforo excessivo, sujeitando-

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    ualoBasil -o ao limite de sua capacidade e que implica em negar-lhe suas

    condies mais bsicas, como o direito de trabalhar em jornada

    razovel e que proteja sua sade, garanta-lhe descanso e permita

    o convvio social (BRITO FILHO, 2006).

    2.4.6 Maus tratos e humilhao

    As histrias de humilhao e sofrimento dos trabalhadores foram

    recorrentes nos relatos coletados. As ameaas (violncia moral)

    mantinham os trabalhadores em um estado constante de medo.Segundo os seus relatos, o grande problema na fazenda era:

    Os scais [da fazenda] humilhavam a gente demais. O scal che-

    gou a falar pra mim: vocs nunca obedeceram pai e me, vocs vo

    me obedecer.

    A ignorncia do gato. Chegava bravo porque a gente no estava

    trabalhando, mas ele no tinha levado a comida.

    A humilhao, o dono da fazenda humilha as pessoas.

    Os scais [da fazenda] e os encarregados tratam a gente mal,

    como se fosse um burro, um animal. Como algo que no pertence

    a gente mesmo.

    2.4.7 Problemas com pagamento

    Muitos trabalhadores no foram informados devidamente sobre

    o valor que seria pago pelo servio. Em outros casos, as tarefas

    a serem realizadas foram acrescidas em relao ao combinado,

    mantendo-se o mesmo valor da remunerao. Segundo relatos

    dos entrevistados:

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    [Estvamos] ganhando s 6 reais [por dia]. No compensava. Fo-

    ram falar com o gato, mas no resolveu.

    O preo do trabalho era 7 ou 13 reais por dia, isso no normal.

    Alm disso, foi recorrente nos depoimentos dos entrevistados a

    quebra do contrato de trabalho. [O gato] no deu o que prometeu

    pra gente, armou um dos trabalhadores.

    2.4.8 Privao da liberdade

    O estudo tambm revelou a existncia de mecanismos de cercea-

    mento da liberdade dos trabalhadores nas fazendas pesquisadas.

    Em algumas situaes, os trabalhadores caram presos nas fa-

    zendas pelas dvidas contradas. Mercadorias de uso pessoal eram

    vendidas pelos gatos ou administradores das fazendas por preos

    exorbitantes. Segundo um dos trabalhadores da pesquisa de cam-po: [o trabalhador] tinha que pagar botina, cala.

    Em outros casos, os trabalhadores estavam isolados geograca-

    mente e, portanto, no podiam sair da fazenda. Os relatos a seguir

    demonstraram as diculdades enfrentadas pelos trabalhadores:

    Tinha trabalhador que queria ir pra famlia depois de 5 meses l.Pediu pra levar de moto e ele [o gato] no quis. Se a scalizao

    [GEFM] no tivesse ido l, ia car por isto mesmo.

    No tinha assistncia. Meu cunhado precisava ligar para a esposa

    grvida e ele no tinha como sair para telefonar.

    Em outras situaes, observou-se que ameaas verbais eram fei-

    tas pelos gatos para impedir que os trabalhadores denunciassem a

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    ualoBasil situao no local de trabalho. Alm disso, foram encontradas du-

    rante as scalizaes, em algumas propriedades, armas de fogo de

    gatos e administradores sem a devida licena. Segundo os traba-

    lhadores, os principais problemas enfrentados na fazenda eram:

    As ameaas que o gato fazia. Dizia que se algum denunciasse no

    comia mais feijo.

    Ameaas de morte. Dizia que se houvesse denncia mandava matar.

    Alguns de ns que falasse [o gato disse que] ia passar a espingarda.

    2.5 Responsabilidade pelos problemas ocorridos nas fazendas

    2.5.1 Opinio dos trabalhadores

    A responsabilidade pelo ocorrido na fazenda no foi vista de ma-

    neira uniforme pelos trabalhadores. Quase metade (48,3%) res-

    ponsabilizou o proprietrio pelo ocorrido4, 27,5% apontaram o

    gato e 15,8% declararam no saber de quem a responsabilidade

    (ver tabela 8). Vale ressaltar que muitas vezes sequer o trabalhador

    sabe o nome real da fazenda, do dono da fazenda e/ou o encontra.

    taba 8. rv a faza*

    Proprietrio 48,3%

    Gato 27,5%

    Gerente/scal da fazenda 8,4%

    No sabem 15,8%

    ta 100,0%

    Fonte: Pesquisa de campo.

    *Excludo 1 trabalhador sem informao.

    4 A presena do Grupo Mvel pode ter inuenciado as respostas dos entrevistados.

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    53

    Entre os trabalhadores que responsabilizaram o proprietrio, o ar-

    gumento foi principalmente de ordem legal, ou seja, atribuem ao

    fazendeiro ou empresa a responsabilidade pelo que ocorre em

    seu empreendimento, cabendo a eles registrar os trabalhadores e

    tomar as providncias necessrias para resolver os problemas. Se-

    gundo relatos dos trabalhadores, o responsvel pelos problemas

    na fazenda era:

    O fazendeiro, que o dono do servio.

    O dono, ele tem que legalizar e assinar carteira.

    O responsvel foi o proprietrio da fazenda. Se ele andasse em dia

    com a justia no teria que se preocupar com que aconteceu hoje.

    Os entrevistados que responsabilizaram os intermedirios utili-

    zaram principalmente argumentos de ordem moral, enfatizando

    atitudes desonestas e comportamentos inadequados dos gatos.Apenas um atribuiu responsabilidade legal ao gato por no regis-

    trar a carteira dos trabalhadores.

    O gato ameaava, humilhava.

    O gato. O fazendeiro d o dinheiro e ele enrola um pouco.

    O gato. Ele ia para o escritrio pra pegar um cheque, depois inven-tava de levar o pessoal para o bar dele e descontava tudo, sobrando

    uma mixaria pro cara.

    O gato, pega as pessoas e no registra.

    importante notar a existncia de duas ordens de argumentos

    nas respostas dos trabalhadores: a ordem moral, que tende a res-

    ponsabilizar o gato; e a outra legal, que tende a responsabilizar o

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    proprietrio. Nesta ltima esboa-se uma percepo baseada nos

    direitos trabalhistas que devem ser respeitados e cumpridos pelo

    empregador.

    2.5.2 Opinio dos gatos

    Nenhum dos gatos entrevistados na pesquisa de campo consi-

    derou que havia trabalho escravo nas fazendas scalizadas pelo

    Grupo Mvel (GEFM). Apenas um disse: s se for pela assinao

    de carteira que no tinha. Perguntados sobre os problemas exis-tentes nas fazendas onde estavam trabalhando, os gatos respon-

    deram de forma evasiva, armando que a presena da scalizao

    se deve s denncias feitas por trabalhadores. Segundo relatos dos

    empreiteiros, os problemas da fazenda eram:

    Na minha cabea, o que eu tenho pra dizer s os barracos [aloja-

    mento em barraco de lona].No tenho nem idia. Deve ter tido alguma denncia.

    Parece que teve uma denncia annima por causa de trabalho es-

    cravo.

    Os gatos consideraram que as condies de trabalho nas fazendaseram razoveis, ainda que tenham apontado como aspectos ne-

    gativos as condies dos alojamentos e a gua para beber e tomar

    banho, o que coincide com a avaliao dos trabalhadores.

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    perFil dos trABAlHAdores

    Cap.3

    A chegada do Grupo Especial de Fiscalizao Mvel (GEFM) na

    fazenda surpreendia os trabalhadores. Para alguns, que j tinham

    alguma experincia de scalizao, a expectativa era de nalmen-

    te terem seus direitos reconhecidos. Outros reagiam assustados,principalmente diante dos Policiais Federais, demonstrando

    medo do que poderia acontecer.

    Aos poucos os trabalhadores iam se descontraindo e se revelando.

    Invariavelmente sua aparncia nas diferentes fazendas era seme-

    lhante: roupas e calados rotos, mos calejadas, pele queimada do

    sol, dentes no cuidados, alguns aparentando idade bem superior que tinham em decorrncia do trabalho duro e extenuante no cam-

    po. A expectativa de todos era trabalhar duramente na diria e ob-

    ter a remunerao necessria para garantir a sobrevivncia prpria

    e o sustento da famlia. Conforme conversvamos, os trabalhadores

    iam revelando suas opinies a respeito do que viviam ali, do traba-

    lho que realizavam e das relaes sociais estabelecidas. Demonstra-

    vam sua indignao em relao s injustias cometidas na fazenda,

    mas tambm revelavam suas aspiraes e projetos de vida.

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    PerfldosPr

    incipaisAtoresEnvolvid

    osotabalhoescavor

    ualoBasil Como j foi dito anteriormente, o presente estudo apresenta in-

    formaes de 121 trabalhadores resgatados de situaes anlogas

    escravido, entrevistados durante pesquisa de campo que acom-

    panhou operaes do Grupo Mvel (GEFM), entre outubro de

    2006 e julho de 2007. Alm disso, o banco de dados do MTE, ba-

    seado no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CA-

    GED), que contm informaes sobre idade, sexo, naturalidade e

    procedncia de 9.762 trabalhadores resgatados (de novembro de

    2002 a maro de 2007) foi utilizado como parmetro de referncia

    para a anlise dos dados da pesquisa de campo. Ainda que o estu-

    do contenha indicaes importantes sobre as caractersticas dostrabalhadores submetidos escravido contempornea, neces-

    srio ressaltar que a pesquisa no trabalhou com uma amostra es-

    tatisticamente representativa, o que impede a generalizao, para

    o conjunto dos trabalhadores, dos resultados encontrados.

    3.1 Caracterizao socioeconmica

    3.1.1 Sexo/idade

    Durante a pesquisa de campo, vericou-se que os trabalhadores

    escravos resgatados pelas equipes de scalizao eram predomi-

    nantemente homens adultos,1 com idade mdia de 31,4 anos. A

    idade mdia dos trabalhadores resgatados presentes no banco de

    dados do MTE de 32,5 anos, portanto, bastante prxima da en-

    contrada na pesquisa. No mesmo Cadastro, o trabalhador mais

    jovem tinha 14 anos e o mais idoso 78 anos.

    1 Na pesquisa de campo, foi encontrada apenas uma mulher, que corresponde a 0,8%dos entrevistados, o que impede uma caracterizao por sexo. Ela era encarregada de

    preparar as refeies para o marido e alguns outros trabalhadores e no era remuneradapor esta funo. Pode-se, entretanto, armar que as mulheres so minoria entre os tra-balhadores resgatados. Segundo o banco de dados do MTE baseado no CAGED, apenas4,7% dos resgatados eram do sexo feminino.

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    As informaes da pesquisa de campo demonstraram que peque-

    na a proporo de adolescentes resgatados com menos de 18 anos

    (1,7%). No entanto, trata-se de uma populao jovem, o que se ex-

    plica em razo do tipo de trabalho desenvolvido, que requer uso

    signicativo de fora fsica. Segundo dados da pesquisa de campo,

    a maioria dos trabalhadores (52,9%) tinha menos de 30 anos. A

    proporo vai diminuindo medida que se avana nas faixas et-

    rias. No entanto, cabe observar que trabalhadores com 50 anos ou

    mais que correspondiam a 7,4% do total ainda necessitam re-

    correr a este tipo de trabalho (ver grco 5). Este dado surpreende,

    tendo em vista se tratar de trabalho exaustivo e pesado.

    1,70%

    51,20%39,70%

    7,40%

    Grfico 5. Idade

    Menos de 18 anos

    De 18 a 29 anos

    De 30 a 49 anos

    50 ou mais anos

    Fonte: Pesquisa de Campo.

    3.1.2 Cor/raa

    A maioria dos trabalhadores da pesquisa de campo (81%) era

    constituda de no brancos, dos quais 18,2% se autodenominaram

    pretos, 62% pardos e 0,8% indgena. A proporo de trabalhado-

    res escravos no brancos encontrada na pesquisa foi signicati-

    vamente maior do que a encontrada no conjunto da populao

    brasileira (50,3%) e mesmo nas Regies Norte (76,1%) e Nordeste

    (70,8%) (ver tabela 9). Com efeito, os trabalhadores negros (pre-

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    PerfldosPr

    incipaisAtoresEnvolvid

    osotabalhoescavor

    ualoBasil tos e pardos), equivalem a 80% dos trabalhadores entrevistados

    na pesquisa, indicando que esse grupo est mais vulnervel a situ-

    aes de trabalho escravo do que os brancos.

    Chama a ateno a proporo de pretos entre os trabalhadorespesquisados (18,2%), um percentual 2,5 vezes superior ao encon-

    trado na populao brasileira (6,9%), prxima apenas do ndice

    encontrado na Bahia (15,7%), estado com a mais alta proporo de

    pretos no Brasil2.

    Apenas um dos entrevistados se autodenominou indgena. Cabe

    lembrar, no entanto, que houve casos, especialmente em 2007, descalizaes realizadas no Mato Grosso que resgataram grupos

    signicativos de trabalhadores indgenas.

    taba 9. dbu aava /aa

    c u aa (%)

    Baa paa pa ia

    Ba 49,7 42,6 6,9 0,8

    r n 23,9 69,2 6,2 0,7

    r n 29,2 62,5 7,8 0,5

    ea a Baha 20,3 63,4 15,7 0,6

    pqua a 19,0 62,0 18,2 0,8Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios 2006 e pesquisa de campo.

    Segundo declaraes dos entrevistados na pesquisa de campo, a

    proporo de no brancos entre os trabalhadores (81%) foi supe-

    rior quela existente entre os seus pais (62,2%), o que se expli-

    ca pela incidncia de casamentos inter-raciais. Quase a metade

    2 Seria necessrio realizar novos estudos para vericar se essa mesma proporo se vericanos dados relativos ao conjunto dos trabalhadores libertados.

  • 7/30/2019 Perfil dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil

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    (47,7%) das unies dos pais foi entre brancos e no brancos. Em

    13% dos casos ambos eram brancos e em 39,3% ambos eram no

    brancos.

    3.1.3 Posse de documentos pessoais

    Entre os trabalhadores abordados na pesquisa de campo, apenas

    um no tinha nenhum tipo de documento. Grande parte possua

    a maioria deles: certido de nascimento (91,7%), carteira de traba-

    lho (87,6%), carteira de identidade (87,5%), CPF (83,5%) e ttulode eleitor (83,5%). A carteira de reservista o documento menos

    encontrado: apenas 45% a possuem (ver grco 6). Entre os anal-

    fabetos, 32% no possuem ttulo de eleitor e CPF. Importante des-

    tacar que os dados revelados na pesquisa de campo no podem ser

    generalizados para o conjunto dos trabalhadores.

    91,70% 87,60% 87,50% 83,50% 83,50%

    45,90%

    0,00%

    10,00%

    20,00%

    30,00%40,00%

    50,00%

    60,00%

    70,00%

    80,00%

    90,00%

    100,00%

    Certido de

    Nascimento

    Carteira de

    trabalho

    Carteira de

    identidade (RG)

    CPF Ttulo de Eleitor Carteira de

    Reservista

    Grfico 6. Posse de documentos pessoais

    Fonte: Pesquisa de Campo.

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    PerfldosPr

    incipaisAtoresEnvolvid

    osotabalhoescavor

    ualoBasil 3.1.4 Renda dos trabalhadores e renda familiar

    Os rendimentos dos trabalhadores e a renda familiar no podem

    ser vistos rigorosamente como renda mensal regular, uma vez que

    se trata de trabalhadores temporrios, que no esto empregadosdurante o ano inteiro3. Neste sentido, os dados apresentados de-

    vem ser vistos apenas como indicao de rendimento.

    A renda mdia declarada pelos trabalhadores foi de 1,3 salrios

    mnimos. 40,5% disseram obter at um salrio mnimo e 44,8%

    entre 1 e 2 salrios mnimos. Apenas 6,9% declararam ter renda

    mensal superior a 3 salrios mnimos (ver grco 7).

    40,50%

    44,80%

    7,80%

    6,90%

    Grfico 7. Renda Mensal do Trabalhador

    At 1 SM**

    De 1 a 2 SM

    De 2 a 3 SM

    Mais de 3 SM

    Fonte: Pesquisa de Campo.*Excludos os trabalhadores sem informaes**Salrio Mnimo (SM).

    As diferenas regionais foram grandes. O rendimento dos traba-

    lhadores da Regio Nordeste era bem mais baixo do que os que

    moravam nas Regies Norte e Centro-Oeste (ver tabela 10).

    3 Os trabalhadores tinham diculdade de responder de forma precisa s perguntas rela-tivas sua renda. Alguns informavam sobre o que haviam ganho no momento, outrosprocuravam fazer uma mdia. Para auferir com mais rigor os rendimentos familiaresseria necessrio realizar um estudo especco.

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    taba 10. r a abaha (%)

    r

    r

    n c-o

    n

    At 1 SM 21,5 55,5

    De 1 a 2 SM 53 38,4

    Mais de 2 SM 25,5 6,1

    ta 100 100

    Fonte: Pesquisa de Campo.*Excludos os trabalhadores sem informaes.

    Considerando-se os trabalhadores que vivem com suas famlias4,

    25,9% recebem at um salrio mnimo, 34,8% recebem de um a

    dois mnimos, 19,65 de 2 a 3 mnimos e 19,65% mais de 3 salrios

    mnimos (ver tabela 11). Em mdia, duas pessoas trabalh