PERFIL FABULOSO DESTINO DE MARIA CELESTE · Fora do seu círculo mais próxi-mo, poucos sabiam que...
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O FABULOSODESTINODE MARIACELESTENasceu pobre na aldeia e fez-sepoderosa em Lisboa. Trabalhadesde os 15 anos, estudou à noite,juntou o esforço à sorte e a polfticaà ambição. Esteve sempre com osvencedores e venceu, apesar daspolémicas: esta semana entrouno Conselho GeraL da EDP. Umdos seus maiores amigos é PauLoPortas, texto de filipe santos costa
Em outubro de 2003, Celeste Car-
dona, então ministra da Justiça, te-
ve de fazer um daqueles discursos
que um ministro não pode dele-
gar. Cardona pegou nos papéis,
ajeitou os óculos sobre o nariz e co-
meçou a ler. Apesar de algumas di-
ferenças em relação ao texto escri-
to, a arenga decorreu sem nada de
extraordinário. Quando acabou, os
colaboradores da ministra suspira-
ram de alívio. Ela também.
Ninguém se deu conta de queCeleste Cardona estava pratica-mente cega Só via sombras, em
consequência de duas cirurgias a
que tinha sido submetida, em ju-lho, por causa de três aneurismas
cerebrais que lhe puseram a vida
em risco. Não tinha lido o discurso— tinha-o decorado e fingiu que o
lia. Fora do seu círculo mais próxi-
mo, poucos sabiam que a ministra
estava quase cega e podia nunca
recuperar a visão. Tinha colocado
o lugar à disposição do primei-ro-ministro, Durão Barroso, mas
este havia-a convencido a ficar. Ce-
leste concordou, aligeirou a agen-
da, mas manteve alguns atos públi-cos. Até visitou uma prisão — on-
de, obviamente, não viu nada.
Para uns, este é um exemploda fibra de Celeste Cardona, que os
amigos classificam como ambicio-
sa, determinada, uma força da na-
tureza. Para outros, é a prova de
que não olha a meios para atingiros fins — os seus adversários apon-tam-na como ambiciosa, oportu-nista e desleal. Ser uma figura pú-blica, sobretudo um político, traz
sempre controvérsia No caso de
Cardona é mais do que isso: a advo-
gada de 60 anos que esta semana
ouviu uma vaia antes de ser confir-
mada como membro do Conselho
Geral e de Supervisão da EDP con-
centra em si admiração entusiásti-
ca e repulsa indisfarçável, como
DIA D CELESTECARDONAFOTOGRAFADANA PASSADA SECUN-DA-FEIRA, DUASHORAS ANTES DE
ENTRAR PARA A EDP
PERFIL
poucas vezes se vê com alguém
que nunca foi figura de primeira li-
nha. Um Jornalista põe-se a fazer o
seu perfil e depara-se com outro
sintoma: bastantes aceitam falar
dela — mas a maioria pede paranão ser citada, como se faz quando
se fala de alguém poderoso quenão se quer indispor.
FUHA-VTOAS
Foi um longo caminho para MariaCeleste Ferreira Lopes, nascida em
195 Lprimeira de duas filhas de umcasal humilde que vivia numa par-te de casa em Aguim — aldeia do
concelho de Anadia cujo facto mais
interessante é ficar à beira da Na-
cional L A estrada grande represen-tava a possibilidade de sair dali. An-tes de Cardona, o filho mais notório
de Aguim já tinha feito isso: Afonso
Queiró, que chegaria a diretor da
Faculdade de Direito da Universida-
de de Coimbra e que foi uma refe-
rência do Direito Administrativo e
do corporativismo salazarista Tam-bém ele era um modesto cidadão
de Aguim que rumou a Coimbra pa-ra se fazer a si mesmo. Na aldeia, a
casa dos Queiró não era estranha
aos Lopes: por vezes, os pais de Ce-
leste trabalhavam lá Anos depois,
ela havia de casar com Luís, umdos filhos do professor.
A família muda-se para Lisboa
quando Celeste tem 7 anos. O paitorna-se serralheiro na Lisnave, a
mãe vai para cozinheira da mesma
empresa. Celeste faz o melhor queuma rapariga da sua condição po-de ambicionar: a Escola Comercial
e Industrial. Conta-se na família
que, no dia em que fez 12 anos, o
pai lhe perguntou o que queria ser
quando crescesse e a miúda res-
pondeu: "Quero estudar leis." Que-ria "aconselhar as pessoas", como
via fazer a avó, a única mulher alfa-
betizada em Aguim, que lia e escre-
via as cartas de boa parte da aldeia.
Saiu da Escola Comercial aos
15 anos, pôs um anúncio no "Diá-
rio de Notícias" e conseguiu empre-
go numa empresa que geria os ca-
fés da Estação do Cais do Sodré.
Dois anos depois, aos 17, concorreuà Lisnave. Foi aí que António Sarai-
va, atual presidente da CIP, a co-
nheceu. Ele trabalhava na área de
planeamento da Direção Comer-
cial, ela era secretária no controlo
de faturação. "Não era muito dife-
rente da mulher que é hoje; lutado-
ra, combativa, determinada. Havia
pessoas que se percebia que iam fi-
car por ali, como se parassem no
tempo. Ela não: mostrava sinais de
impaciência, queria mais mundo
do que aquilo."Mais mundo significou, pri-
meiro, aprender inglês. Depois, fa-
zer as disciplinas que lhe faltavam
para ter equivalência ao 5" ano do
liceu — condição para pensar na
faculdade. Celeste casa-se, mas na-da lhe altera os planos e em 1971
inscreve-se em Direito. O nomeCardona e o filho, nascido em 1972,
são as marcas mais perenes desse
casamento, que termina nos anos
80. O emprego, a filho e as aulas
não lhe dão tempo para a política,
apesar da efervescência revolucio-
nária. Diz a lenda que por esses
tempos Maria Celeste militava naUDP. Mas a própria nega.
A política chega mais tarde,
com as muitas mudanças que o Di-
reito trouxe à sua vida Na universi-
dade, Celeste conhece Mário Este-
ves de Oliveira, sócio de Lucas Pi-
res, e começa a trabalhar nesse es-
critório. Ao mesmo tempo, tor-
na-se assistente na faculdade, ins-
creve-se no mestrado e entra parao Centro de Estudos Fiscais. Celes-
te vai a todas: quer ganhar currícu-
lo, nome, dinheiro e contactos. É
uma fura-vidas, incansável, despa-
chada, competente. Os seus parece-res ganham fama de serem bem
sustentados, ela ganha confiança
para o passo que ambiciona — ins-
tala-se por conta própria num pe-
queno escritório. Depois, cria a so-
ciedade M.C. Cardona e Associa-
dos, onde continua.
Esse passo vai de par com ou-
tro: a política. O fascínio por Lucas
Pires leva-a ao CDS. Descobre ce-
do que os contactos políticos aju-dam nos negócios. Um exemplo re-
cente: depois de ter saído da admi-
nistração da CGD, para onde foi no-
meada pelo Governo PSD-CDS, o
seu escritório ganhou uma avençacom a Hospitais Privados de Portu-
gal, o ramo de saúde da CGD.
No partido, fica conhecida como amulher de todos os presidentes.Entra com Pires, encanta-se com
Adriano (embora tenha apoiadoMorais Leitão) e tem o primeiro
cargo com a direção de Freitas,
quando Basflio Horta, secretá-
rio-geral, a convida para adjunta.Em 1991, quando Basílio se
candidata à Presidência da Repú-blica (contra quase todo o CDS,
mas incentivado por Paulo Portas
e Nobre Guedes, que iam forjandoa nova direita em "O Independen-te"), Celeste é sua chefe de gabine-te. Já então se fala da inconstância
das suas fidelidades partidárias.Numa entrevista em "O Indepen-
dente", perguntam-lhe: "Já foi frei-
tista e pirista. Agora basilou?" Res-
posta: "Nunca fui freitista, piristanem basilista. Sou Maria Celeste."
Se "basilou", depressa "desba-
silou". Em 1992, Celeste está ao la-
do de Manuel Monteiro contra Ba-
sílio. Para surpresa de muitos — in-
cluindo de Monteiro. Luís Queiró,monteirista da primeira hora com
quem Celeste estava casada há
poucos meses, pôs o seu nome na
lista. Passados 20 anos, Basílio des-
valoriza não ter sido apoiado porCeleste — admite que ela queriauma rutura no CDS que ele não fa-
ria. E traça-lhe o retraio: "É ambi-
ciosa e sabe bem o que quer. Mas
também é competente, trabalhado-
ra e solidária com os amigos."
Com Monteiro, chega à dire-
ção do CDS e a líder da distrital de
Lisboa. Mas sucedem-se os confli-
tos. É nesta altura que se diz queCeleste "ataca como um homem e
defende-se como uma mulher".
Acaba por romper com Monteiro,e a sua aposta seguinte é Maria Jo-
sé Nogueira Pinto. Celeste inscre-
ve "Zezinha" no CDS e faz tudo pa-ra que esta se candidate à lideran-
ça. Mas, quando isso acontece, jáestá noutra e apoia Portas. Celeste
jura que nunca traiu ninguém —
fez sempre opções políticas claras.
Certo é que só não esteve com umlíder: Ribeiro e Castro.
CANDIDATA EM LEIRIAEm 1999, nas primeiras eleições de
Portas como presidente do CDS, é
candidata em Leiria e desunha-se
na campanha É um sucesso na rua
e um ativo para Portas, que precisade gente com nome que lhe empres-te credibilidade. Portas aprecia-lhea capacidade de pensar "fora da cai-
xa". A sua mais-valia, dizem, é colo-
car-se no papel de quem vai ouvir a
mensagem e não no lugar do políti-
co. Há um ano, essa capacidade le-
vava-a a aconselhar Portas a dar a
mão a Sócrates. "As pessoas não
querem que as macem, não que-rem crises", dizia A sua casa esteve
à beira de ser o palco para a aproxi-
mação entre Portas e Sócrates —
mas esse encontro acabou por acon-
tecer em casa de Basílio. Cardona e
Sócrates acabaram mesmo por se
juntar à mesa, mas noutro contexto— quando este saiu do Governo e
decidiu ir para Paris, Celeste pediua um amigo comum para marcar
um almoço com o ex-PM. De-
ram-se lindamente, diz-se.
Fazer pontes para o PS não se-
ria uma novidade no percurso de
Celeste. Quando Portas tem de ne-
gociar orçamentos com Guterres,
a fiscalista entra em jogo. "Era
uma negociadora dura e bem pre-parada, com objetivos muito deter-
minados e quantificados", conta
Jorge Coelho, que se tornaria ami-
go do casal. "É uma política a sério.
Tem faro e instinto", resume o
ex-braço-direito de Guterres.
A MARCA DO CASO MODERNA
Em 2002, Durão e Portas surpreen-dem ao indicá-la para ministra da
Justiça. Consta que não é primeiraescolha, que a própria se surpreen-de e hesita. A partir desse momen-
to, o tiro à Celeste deixa de ser coi-
sa para iniciados do CDS e passa a
ser um desporto nacional. Um mi-nistro da Justiça costuma ser alvo
fácil, sobretudo quando faz mudan-
ças, como foi o caso. Cardona aca-
ba zurzida por tudo quanto é agen-te da Justiça, a começar pelo basto-
nário dos advogados, José Miguel
Júdice. Mas não era apenas mais
uma ministra sob fogo por decor-
rência de funções. Era a ministra
da Justiça escolhida por Portas
quando este ainda não se tinha li-
vrado do caso Moderna.
Ser indicada para a Justiça porum líder partidário a braços com a
lei nunca seria um bom cartão de
visita. Mas Cardona não se fica poraí — nomeia um novo diretor da
Polícia Judiciária, Adelino Salvado,
que se incompatibiliza com os dois
diretores-adjuntos que tinhamtransitado da equipa anterior.
Num clima de suspeitas sobre ma-
nipulação da Justiça pela política, o
afastamento de Maria José Morga-do, uma das magistradas mais res-
peitadas do país, vale a Cardona
uma comissão de inquérito. É in-
condusiva, mas para a oposição fi-
ca provada a "óbvia relação" entre
as demissões e a Moderna. A isto
junta-se outro caso do seu manda-to: a Casa Pia, que decapita o PS.
O fiscalista Saldanha Sanches,
marido de Morgado, escreve no Ex-
presso o que meio país político di-
zia à boca pequena: "Era preciso li-mitar os danos que o caso Moder-
na podia provocar a Paulo Portas e
por isso Celeste Cardona aceitou
nobremente esta missão de sacrifí-
cio." O texto de Saldanha Sanches
(falecido em 2010) vale-lhe uma
condenação por ofensa à honra.
Quando é conhecida a senten-
ça (em setembro de 2004, dois
anos depois da publicação do texto
e três meses depois de Cardona
sair do Governo, remodelado porSantana Lopes), a polémica em tor-no de Cardona já é outra: depoisde poucos meses como deputada,o Governo nomeia-a para a admi-
nistração da Caixa Geral de Depósi-tos. Na oposição, a leitura é linear:
é Portas a compensá-la. Celeste
bem invoca o seu currículo. Em
vão. "Ela pagou e continua a pagaro preço de ter sido ministra da Jus-
tiça num período muito complexo.Essa é uma marca difícil de reti-
rar", constata Jorge Coelho. Quetambém vê nos ataques algum
"preconceito de classe".
Diz quem a conhece que as crí-
ticas (como agora, na nomeação
para a EDP) a magoam Mesmo de-
pois de ter vencido as origens po-bres e uma doença potencialmen-te fatal. Quando estava quase cega,lamentava que talvez não pudessedoutorar-se nem ver crescer as ne-
tas. Curou-se, vê as duas netas e es-
tá a terminar o doutoramento,
com Marcelo Rebelo de Sousa.
Tem a vida que os pais nunca so-
nharam. Há pouco tempo, a rapari-
ga da aldeia descobriu o prazer de
passar horas nos campos... de gol-fe. Costuma dizer: "Acho que Deus
é meu amigo." Mas, quando os ou-
tros pensam nela, o amigo de
quem se lembram tem nome de
apóstolo e chama-se Paulo, ofscostacaexpresso.impresa.pt