Performatividade

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 contemporanea | comunicação e cultura W W W . C O N T E M P O R A N E A . P O S C O M . U F B A . B R 409 contemporanea | comunicação e cultura - v.11 – n.02 – mai-ago 2013 – p. 409-424 | ISSN: 18099386 A PERFORMATIVIDADE DA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: MODULAÇÕES RÍTMICAS E TENSIVAS DA SENSIBILIDADE THE PERFORMATIVITY OF AESTHETIC EXPERIENCE: TENSIVE AND RHYTHMIC MODULATIONS OF SENSIBILITY Benjamim Picado 1  Jônathas Miranda de Araújo 2 RESUMO: Pretende-se aqui examinar aspectos da experiência estética que implicam sua neces- sária performatividade, especialm ente da parte do apreciador de obras ou produtos de nosso campo de estudos: neste sentido, nos interessa avaliar como a leitura ou a frui- ção sensível de textos, sons ou imagens implica nas modulações especícas nas quais as paixões e a sensibilidade da recepção são empregadas, sobretudo com respeito às capacidades somáticas desta performatividade. De momento, nos interessa examinar a questão do ritmo da apreciação, como elemento nucleador de experiências estéticas, sobretudo naquilo que nos permite avaliar a produção das tensões próprias ao regime passional da leitura e do engajamento sensorial no universo das obras.  PALAVRAS-CHAVE: 1. Experiência estética 2. Ritmo 3. Performatividade  ABSTRACT : The intention here is to examine aspects of aesthetic experience involving its necessary performativity, especially from the connoisseur of works or products in our eld of stud - ies: in this sense, we are interested in evaluating the ways in which reading or sensible enjoyment of either texts, sounds or images imply the modulations of the conditions under which passions and sensible reception are employed, particularly with respect to the somatic capabilities of this performativity. At the moment, we are interested in examining the question of the rhythm of appreciation, as a nucleating element of aesthetic experience, especially allowing us to evaluate the production of the tensions 1 Doutor em Comun icação e Semiótica Professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia, Un iversidade Federal Fluminense , [email protected]  RIO DE JANEIRO, Brasil. 2 Mestre em C omunicação, Doutorando do P rograma de Pó s-Graduação em C omunicação da U niversidade Federal Fluminense, [email protected]  RIO DE JANEIRO, Brasil.

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    409contemporanea | comunicao e cultura - v.11 n.02 mai-ago 2013 p. 409-424 | ISSN: 18099386

    A PERFORMATIVIDADE DA EXPERINCIA ESTTICA: MODULAES RTMICAS E TENSIVAS DA SENSIBILIDADE

    THE PERFORMATIVITY OF AESTHETIC EXPERIENCE: TENSIVE AND RHYTHMIC MODULATIONS OF SENSIBILITYBenjamim Picado1 Jnathas Miranda de Arajo 2

    RESUMO:

    Pretende-se aqui examinar aspectos da experincia esttica que implicam sua neces-

    sria performatividade, especialmente da parte do apreciador de obras ou produtos de

    nosso campo de estudos: neste sentido, nos interessa avaliar como a leitura ou a frui-

    o sensvel de textos, sons ou imagens implica nas modulaes especficas nas quais

    as paixes e a sensibilidade da recepo so empregadas, sobretudo com respeito s

    capacidades somticas desta performatividade. De momento, nos interessa examinar a

    questo do ritmo da apreciao, como elemento nucleador de experincias estticas,

    sobretudo naquilo que nos permite avaliar a produo das tenses prprias ao regime

    passional da leitura e do engajamento sensorial no universo das obras.

    PALAVRAS-CHAVE:

    1. Experincia esttica 2. Ritmo 3. Performatividade

    ABSTRACT:

    The intention here is to examine aspects of aesthetic experience involving its necessary

    performativity, especially from the connoisseur of works or products in our field of stud-

    ies: in this sense, we are interested in evaluating the ways in which reading or sensible

    enjoyment of either texts, sounds or images imply the modulations of the conditions

    under which passions and sensible reception are employed, particularly with respect

    to the somatic capabilities of this performativity. At the moment, we are interested

    in examining the question of the rhythm of appreciation, as a nucleating element of

    aesthetic experience, especially allowing us to evaluate the production of the tensions

    1 Doutor em Comunicao e Semitica Professor do Departamento de Estudos Culturais e Mdia, Universidade Federal Fluminense, [email protected] RIO DE JANEIRO, Brasil.

    2 Mestre em Comunicao, Doutorando do Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Universidade Federal Fluminense, [email protected] RIO DE JANEIRO, Brasil.

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    that are proper to the passionate regimes of reading and the sensory engagement in

    these universe of artworks.

    KEYWORDS:

    1. Aesthetic experience 2. Rhythm 3. Performativity

    PRLOGO: O EMPENHO PASSIONAL DA COMPREENSO E DA SIGNIFICAO

    Na origem das relaes entre a comunicao e a experincia esttica, argumentamos

    que seja necessrio que a reflexo esttica sobre processos e fenmenos comunicacio-

    nais no seja assomada pelas abordagens exclusivamente histricas e sociolgicas da

    arte. Nestes termos, aquilo que nos interessa desta conexo suposta entre tais domnios

    to distintos deve concernir especialmente ao modo como a sensibilidade (compreen-

    dida em sua dimenso manifesta de simultneas sensorialidade e passionalidade) se

    define no carter de uma necessria partilha intersubjetiva - mobilizada por certas di-

    menses daquilo que se poderia designar como a ordem dos significados dos produtos

    e obras do campo da comunicao.

    Neste ltimo aspecto, inclusive, haveria muito o que pensar sobre os dilogos entre

    certas correntes das teorias da significao e uma abordagem genuinamente esttica

    da comunicao. E, de fato, ao examinarmos certos debates que demarcaram estas dis-

    ciplinas to presentes em nosso domnio de estudos, notamos como as prprias teorias

    semiticas pareceram vislumbrar, no limite de certas demarcaes epistemolgicas de

    seus prprios repertrios conceituais e abordagens analticas, a necessidade de repen-

    sar alguns de seus primeiros passos, no concernente noo mesma de significao,

    em face de certos problemas ligados a seu uso terico.

    Dois exemplos so notveis para ns, nestes termos: de um lado, o longo debate que

    se travou em torno do emprego da categoria do cone, definida como propriedade de

    semelhana entre os signos e sua referncia. Em especial, nos interessa a auto-crtica

    que Umberto Eco realiza do processo de virtual insolvncia heurstica da iconicidade

    no qual se empenhara, em boa parte de sua aventura intelectual: ao repercutir os

    eventuais problemas de uma excessiva constrio da iconicidade pela arbitrariedade de

    seu fundamento semntico, Eco sugere a necessidade de um dilogo mais intenso das

    teorias semiticas com certos ramos das teorias psicolgicas sobre a percepo comum.

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    JORGE CARDOSO FILHOSOBRE MSICA, ESCUTA E COMUNICAO BENJAMIM PICADO E JNATHAS DE ARAJOA PERFORMATIVIDADE DA EXPERINCIA...

    Quando percebo uma bola como tal, reajo a uma estrutura circular. No tenho vontade de

    dizer que iniciativa minha contribui para fazer com que a perceba tambm como esfrica,

    e por certo com base num tipo cognitivo previamente formado que saberei ainda que de-

    veria ser de borracha, saltitante, e portanto capaz tanto de rolar quanto de ser devolvida

    conforme a mova ou lance (...). Mas decerto o que deu incio ao julgamento perceptivo o

    fenmeno do iconismo primrio em cuja base logo percebi uma semelhana com outros ob-

    jetos do mesmo tipo de que j tivera experincia (ou cujo tipo cognitivo me fora transmitido

    de forma muito precisa). (ECO, 1998: 291).

    Em outras quadras do campo semitico, este problema igualmente demarcatrio das

    viragens que marcaro a direo assumida por certas escolas de uma semntica estru-

    tural, na direo de uma ordem passionalizada da compreenso: no percurso que nos

    conduz da anlise estrutural da narrativa em Barthes at o espao tensivo de Zilber-

    berg, o que se nota este turno feito pela ortodoxia do estruturalismo, ao deslocar a

    questo do sentido como uma relao determinada no mbito estritamente sinttico de

    sua construo, para uma maior ateno s questes associadas ao prazer do texto

    (em Barthes), s anisocronias e anacronias da narrativa (em Genette) e aos valores

    semntico-conceituais da passionalidade (em Greimas). Neste ltimo, reconhecemos

    em seu projeto de uma semntica estrutural uma espcie de continuidade entre o es-

    truturalismo semiolgico e a fenomenologia da percepo.

    com conhecimento de causa que nos propomos a considerar a percepo como o lugar no

    lingustico onde se situa a apreenso da significao. Assim procedendo, ganhamos a van-

    tagem e o inconveniente de no poder estabelecer, no seu estatuto particular, uma classe

    autnoma de significaes lingusticas, suspendendo destarte a distino entre semntica

    lingustica e semiologia saussuriana. Embora reconhecendo nossas preferncias pela teoria

    da percepo tal como foi anteriormente desenvolvida na Frana por Merleau-Ponty, obser-

    vamos, entretanto, que esta atitude epistemolgica parece ser tambm aquela das cincias

    humanas do sculo XX em geral: assistimos assim, para citar apenas o que particularmente

    evidente, substituio da psicologia da forma e do comportamento pela psicologia das

    faculdades e introspeco (GREIMAS, 1973: 15).

    Mas, se o estabelecimento deste campo discursivo das abordagens estticas implicaria

    em reconhecer as viragens conceituais havidas nas prprias disciplinas do sentido e da

    interpretao, tambm deveramos considerar a enorme falta de ateno dos prprios

    estudos da comunicao nos fundamentos epistemolgicos que lhe so prprios, em

    preceitos de ordem sociolgica e histrica - a certas fortunas tericas que se estabe-

    leceram sobre objetos variados, em nome dos quais a definio de um ncleo comuni-

    cacional da investigao foi estabelecida a partir dos compromissos ontogenticos das

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    formas textuais com as condies estticas de sua recepo (por exemplo, no contexto

    dos estudos literrios, em Wolfgang Iser).

    O modelo de interao entre texto e leitor fundamental para o conceito de comunicao.

    Com isto, simultaneamente dito que o leitor recebe o texto na medida em que, conduzido

    pela articulao da estrutura deste, vem a constituir a funo como seu horizonte de senti-

    do. Para uma abordagem do tipo comunicacional, as estruturas tm o carter de indicaes

    pelas quais o texto se converte em objeto imaginrio, na conscincia de seu receptor. O

    conceito de comunicao, usado na teoria da literatura, acolhe portanto a descrio das

    estruturas e a determinao da funo e, na verdade, deles necessita como o pressuposto

    necessrio para que a transmisso e a recepo se tornem processos descritveis. (ISER,

    1983: 374,375).

    Mais do que isto, inclusive, o fato de que esta instncia do acolhimento no concebida

    na dimenso de um mero acompanhamento da ordem vetorializada das instrues sobre

    os percursos de sentido contidos no texto, mas precisamente enquanto performativida-

    de de uma recepo e tambm como modalizao passionalizada da compreenso. Pois

    sobre a recapitulao destas ideias centrais da performatividade e da passionali-

    dade que pretendemos retomar as relaes entre comunicao e experincia esttica:

    as linhas gerais de nosso exame apostam, portanto, na indissociabilidade entre a expe-

    rincia sensorial e afetiva da comunicao e o fato de que esta unidade se manifesta na

    ordem de uma paixo que performada na atividade da recepo.

    ORDENS DO FAZER E DO SENTIR/PERCEBER: DA POISIS PERFORMATIVIDADE

    Precisamos nos interrogar sobre uma ordem de pressupostos das teorias da comunica-

    o, na relao que propem entre o carter produzido dos objetos da experincia

    esttica e o aspecto de sua destinao ao horizonte da compreenso, especialmente

    na sua dimenso de procedimento ou mediao tcnica. De nosso lado, a poisis que

    interessa a uma teoria esttica no apenas a operosidade de uma fabricao, pois

    aquilo que esta ao produz no apenas um objeto mas o vetor de uma experincia.

    Nestes termos, propomos a explorao desta questo sobre o carter necessariamente

    produzido das realidades estticas, a partir do modo como Luigi Pareyson examina

    o processo artstico e as duplicidades que marcam sua origem. O debate esttico que

    caracteriza as vrias apreenses do sentido do fazer (e que no se confundem com as

    abordagens estritamente poticas do assunto) esto em geral concernidas com a neces-

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    sidade de se atribuir um significado nuclear ao conceito de uma obra: assim sendo, a

    discusso sobre o fazer potico no interessa esttica do ponto de vista da particula-

    ridade deste fazer, mas na perspectiva de uma compreenso sobre as condies formais

    de sua apreciao (o que que, sendo parte da obra, se deixa ver na apreciao como

    aspecto de sua feitura?).

    No curso de suas consideraes sobre o processo artstico, Pareyson defende que o tipo

    de produtividade que caracteriza a formatividade da obra de arte se define menos pela

    materialidade concreta de sua manifestao e mais pelos efeitos que ela pode suscitar

    na sua fruio e apreciao. neste ponto que a interrogao sobre o processo artstico

    aponta para sua condio necessariamente esttica, na qual o potico se encontra

    confinado e definido enquanto um tipo de finalidade precisa do fazer: se a lei do xito

    preside as etapas da formao da obra, enquanto realidade fsica, isto no pode impli-

    car que o prazer esttico decorra da tematizao deste processo de gnese material

    da obra.

    Na experincia esttica, o que inevitvel tratar como aspecto de uma gnese diz

    respeito sobrevivncia da forma, sendo algo que decorre da necessria dinamizao

    da obra por atos de interpretao. Destaque-se aqui que esta forma sobrevivente na

    dinamizao no uma qualidade exclusiva da obra, mas daquilo que nela se manifes-

    ta como vetor de uma interao possvel entre ela e a ordem da sensibilidade. Neste

    ponto, vemos aonde se conectam potica e esttica, na perspectiva de Pareyson: o fa-

    zer da obra se retoma na considerao dinmica, que prpria da sensibilidade que

    assumimos para sua forma.

    Dar-se conta do valor artstico da obra significa ver a sua perfeio dinmica, surpreender

    a imodificvel inteireza no ato de acabamento, olh-la como processo no ato de conseguir

    a prpria inteireza. O processo aparece assim como includo na prpria obra: aplacado, no

    extinto; consolidado, no enrijecido; tornado estvel e definitivo na calma e imodificvel

    perfeio da obra, mas, precisamente por isso, no identificvel numa trajetria histrica,

    psicolgica e temporal. (PAREYSON, 1997: 197).

    Este aspecto da valorizao da recepo na viragem nas teorias da arte testemunhado

    mais claramente na obra de Paul Valry: em sua aula inaugural ao curso de Potica no

    Collge de France em 1937, somos restitudos de sada ao sentido originrio do termo

    que define esta disciplina dedicada ao artstico (a Potica), pelo qual o agir que lhe

    prprio (da ordem do produzir) definido no apenas pela operosidade de suas eta-

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    pas, mas por referncia quilo que resulta deste trabalho, sob a forma de uma obra

    do esprito.

    Ele anuncia assim as grandes linhas de um programa sobre os fundamentos do artstico

    que se distanciaria do esprito no qual a herana dos saberes poticos foi assimilada

    na crtica e na histria da literatura: no lugar de uma discursividade prescritiva dos

    modos de fazer artsticos, lhe interessava pensar sobre este sentido mais primitivo

    do potico, como enraizado numa certa ordem genrica do fazer e, em especial, do

    fazer que se destina a realizar objetos que nos afetam, de uma maneira bem especial.

    Este outro sentido de um saber potico implicaria na valorizao distintiva do ato de

    produzir, mais do que naquele do produto do fazer, como um objeto transcendente

    sua origem em uma poisis.

    Mas deplorando-a ou deleitando-se com ela, a era da autoridade nas artes h muito tempo

    est terminada, e a palavra Potica s desperta agora a idia de prescries incmodas e

    antiquadas. Acreditei ento poder resgat-la em um sentido que leve em conta a etimologia,

    sem ousar, contudo, relacion-la ao radical grego potico do qual a fisiologia se serve

    quando fala de funes hematopoticas ou galactopoticas. Mas , finalmente, a noo

    bem simples de fazer que eu queria exprimir. O fazer, o poen, do qual desejo me ocupar,

    aquele que termina em alguma obra e que eu acabarei restringindo, em breve, a esse gnero

    de obras que se convencionou chamar de obras do esprito. So aquelas que o esprito quer

    fazer para seu prprio uso, empregando para este fim todos os meios fsicos que possam lhe

    servir. (VALRY, 1999: 180,181).

    Valry considera que os elementos determinantes do ato pelo qual a criao marca a

    origem de uma obra no se localizam naquilo que a histria da literatura examina so-

    bre as vontades de seu autor ou as circunstncias de sua biografia: ao reconhecer que

    os atos mais recnditos da procura artstica ou intelectual no apartam o seu sujeito

    de tudo aquilo que compromete estes atos com sua destinao, Valry introduz na raiz

    dos procedimentos da criao um critrio similar quele pelo qual Pareyson definir o

    xito do prprio ato formativo. Esta questo da finalidade do processo artstico de-

    marcar muito fortemente as concepes de Pareyson sobre a razo do fazer artstico,

    de tal modo que alguns comentadores notaram como o impacto das ideias poticas de

    Valry se verificou mais facilmente no plano terico da esttica do que na prpria po-

    tica (GOMES, 1996).

    No caso da primeira lio de Valry sobre questes de potica, o problema da produo

    do efeito menos uma decorrncia dos procedimentos da arte do que uma questo

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    ligada ao valor que a obra assume, uma vez consumada em sua feitura. Esta questo

    instaura um limite entre dois sentidos do fazer, do qual decorrem, por sua vez, dois

    significados distintos da obra na relao com este mesmo fazer: tomada na condio

    de um puro procedimento, o fazer que realiza a obra como resultado a considera en-

    quanto realidade fsica ou material, ao passo que o fazer que conecta a obra a um valor

    identifica nela o efeito que capaz de suscitar para alm daquilo que a originou; deste

    modo, a obra no - neste sentido especfico da poisis - um ponto final, mas um pro-

    longamento de certos aspectos de sua realidade que apenas sobrevivero na recepo

    sensvel. A expresso mais acabada deste valor exprime-se na ideia de que a obra do

    esprito sobrevive para seu apreciador enquanto ato.

    Fora deste ato, o que permanece apenas um objeto que no oferece qualquer relao par-

    ticular com o esprito (...). um Parthenon no passa de uma pequena carreira de mrmore.

    E quando o texto de um poeta utilizado como compilao de dificuldades gramaticais ou

    de exemplos, ele deixa imediatamente de ser uma obra do esprito, visto que o uso que se

    faz inteiramente estranho s condies de sua produo, e que lhe recusado, por outro

    lado, o valor de consumo que d um sentido a essa obra. (VALRY, 1999: 185).

    No que respeita a questo da performatividade da experincia esttica, esta conexo

    com um aspecto da origem das obras do esprito tem a ver com aquilo que ao menos

    para alguns comentadores constituiria uma espcie de conotao pragmtica dos

    preceitos aristotlicos sobre a arte de compor poemas dramticos (GOMES, 1996): no

    caso da arte potica, h uma clusula de especificao pela qual Aristteles designa a

    destinao prpria dos atos de produo de suas obras, agora no sentido de separar, na

    ordem prtica, os fazeres que redundam em coisas daqueles que redundam em efei-

    tos. A obra potica no se define pela natureza terminal dos objetos resultantes de um

    fazer, mas do efeito nelas prescrito - e o fato de que estes so visados pelo carter da

    feitura dos objetos que so obra destas artes, em particular.

    , por exemplo, neste sentido preciso que Aristteles define que a poisis que redunda

    em obras de arte , necessariamente, mmesis: mais do que estrita correspondncia

    entre formas aparentes de obras e coisas (o legado da significao mimtica que nos

    chegou, pelo fato de este conceito se associar historicamente a uma particular forma

    de poisis, a pictrica), o sentido aristotlico da imitao parece designar precisamen-

    te este preceito mais remoto (restituvel tica, por exemplo), de que o bem prprio

    produtividade potica, embora manifesto na materialidade da obra, se realiza na

    propriedade formal de seu efeito, a saber, a de ser percebida como imitao. Na

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    considerao daquilo que traz o problema da mmesis para uma outra compreenso da

    prescrio aristotlica do potico, precisaramos avaliar o modo como esta categoria da

    imitao se correlaciona com outras experincias associadas s obras.

    Ao recapitular a histria do processo pelo qual a experincia esttica foi sendo disso-

    ciada de sua dimenso de partilha comunicacional, Hans Robert Jauss nos restitui a uma

    tripla fonte dos saberes acerca do prazer prprio fruio (em Aristteles, Agostinho

    e Grgias): nos trs casos, a descarga prazerosa associada ao tipo de relao que man-

    temos com tudo o que nos afeta passionalmente se exprime como uma inclinao da

    receptividade a um nvel prprio de atividade sobre as coisas que provocam nossas pai-

    xes. Nos pares aisthesis/katharsis e voluptas/curiositas se consubstanciaria uma no-

    o do prazer esttico que seria indissocivel de nossa disposio genrica conduta.

    O que particularmente notvel no sentido do prazer esttico que evocam Aristteles e

    Agostinho a conjuno entre a ordem dos efeitos poticos, da sensibilidade esttica e

    a descarga passional que resulta desta experincia: neste mbito, catarse e curiosidade

    so melhor definidos como faculdades da experincia esttica, nos quais podemos iden-

    tificar mais claramente o carter pragmaticamente orientado de nossa receptividade.

    E nestes dois se exprime igualmente um sinal das prescries pelas quais se identifica

    em cada um dos gneros dramticos seus respectivos programas de produo do efeito.

    Jauss ressalta como o longo processo que redundou na completa remoo de qualquer

    vestgio do prazer como ncleo da experincia (em Adorno, por exemplo) removeu esta

    unidade comunicacional da sensibilidade e da ao, nos aspectos em que ambas tocam

    a dimenso esttica e constitutivamente ativa da recepo.

    A subjetividade que goza de si mesma, como novo ideal do prazer esttico, abandonou o

    sensus communis como expresso de uma simpatia comunicativa, enquanto ao mesmo tem-

    po o culto do gnio desterrou, um vez por todas, a esttica do efeito da retrica. Data de

    ento a decadncia de toda experincia prazeirosa da arte. O prazer esttico, restringido

    em toda sua dimenso cognitiva e comunicativa, mostra-se, de agora e diante, nos modelos

    trifsicos da histria da filosofia como a contra-instncia sentimental e utpica da alienao,

    ou, na teoria esttica contempornea, como a quintessncia de uma conduta que, j em

    face da arte clssica, tomada como alheia arte, passando a condenada face a todas as

    formas artsticas da modernidade. (JAUSS, 2002: 90).

    Mais do que na aisthsis ou na poisis, na intensificao passional prpria da catarse

    que poderemos identificar esta dimenso na qual a sensibilidade e os afetos redundam

    em atividade da receptividade, pois na experincia catrtica que a paixo se per-

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    forma mais nitidamente, realizando-se numa significao encarnada de sensibilidade:

    nesta ordem da experincia esttica que podemos afirmar, por outro lado, que esta

    sensibilidade se traduz em compreensibilidade - sendo sobre seu fundamento que pode-

    mos falar de uma necessria comunicabilidade das paixes. Para alm disto, podemos

    tambm fixar nesta intensificao afetiva uma espcie de fora ilocucionria da sig-

    nificao da experincia esttica: , portanto, neste quadro pragmtico da passionali-

    zao de uma partilha esttica que Jauss identifica na catarse uma faculdade sensvel

    que sobreviveria s circunstncias histricas da poisis e a subjetividade extremada da

    aisthsis.

    MODALIZANDO AS PAIXES: RITMOS E TENSES DA EXPERINCIA ESTTICA

    Ao lermos textos clssicos das teorias e da anlise literria, tais como Introduo

    anlise estrutural da narrativa, podemos ficar com a impresso de que a experincia

    da leitura de fices se constituiria como uma espcie de acompanhamento protocolar

    da sucesso dos eventos narrados, como se esta experincia no implicasse pressupos-

    tos de uma adeso existencial atividade da leitura. Mais atentos a certas sutilezas

    da argumentao barthesiana, notamos contudo que os diferentes nveis da organiza-

    o hierrquica do discurso ficcional demandam do leitor o exerccio ativo de certas

    faculdades que as funes do texto apenas indicam para a atualizao da leitura. Na

    verdade, estas funes (que do conta dos regimes pelos quais os diferentes segmentos

    da histria constroem variadas intensidades da sucesso das aes) apenas antecipam,

    na condio de uma estrutura prvia, uma espcie de quadro antropolgico da conduta

    que fenomenologicamente anterior ao prprio texto.

    Assim sendo, no a estrutura textual da narrativa que institui a exigncia pela qual a

    sute ordinria das aes se manifeste sempre e necessariamente actorializada: estas

    mesmas condies da apresentao estrutural das aes narradas tem seu fundamen-

    to no carter existencialmente engajado dos atos de leitura; o julgamento sobre as

    aes que os personagens empreendem est intimamente ligado aos estados corporais

    e anmicos do leitor - portanto, ao modo como a recepo pode performar as paixes,

    na relao com a ordenao sequencial dos textos; e um tal problema no era de todo

    incgnito para a tradio semiolgica, j que - em certos textos contemporneos de

    sua fase estruturalista - Barthes notara esta antecedncia de um cdigo proairtico,

    relativamente ao cdigo discursivo das funes narrativas.

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    Ao estabelecer a cincia da ao ou da prxis, Aristteles, de fato, f-la- preceder de uma

    disciplina anexa, a proairesis, ou a faculdade humana de deliberar antecipadamente o final

    de um ato, de escolher ( o sentido etimolgico), entre os dois termos de uma alternativa,

    aquele que se vai realizar. Ora, a cada ncleo da srie de aes, a narrativa tambm (...)

    escolhe entre vrias possibilidades e essa escolha compromete a cada instante o prprio

    futuro da histria (...). Essas so as implicaes do termos proairetismo que proponho apli-

    car a toda ao narrativa implicada numa srie coerente e homognea. (BARTHES, 2001

    :156,157).

    Mas se aqui destacamos que as paixes vividas atravs de narrativas possuem uma ca-

    racterstica de performatividade, precisamos avanar no detalhamento do modo como

    esta estrutura proairtica das aes efetivamente modulada na ordem sequencial

    das fices e finalmente empenhada nos regimes estticos da compreenso. De nos-

    sa parte, consideramos que esta questo envolve duas etapas de uma considerao

    sobre o investimento sensorial e passional das sequncias narrativas: no que respeita

    os aspectos de intensificao afeccional do discurso, estamos falando daquilo que Iser

    valoriza nas protenses e retenes da apresentao narrativa da sucesso dos

    eventos, de modo a capitalizar as predisposies da leitura; por outro lado, h uma

    dimenso da leitura que caracteriza sua adeso como sendo a performatividade de um

    andamento que se pode experimentar esteticamente, elementos estes que igualmente

    se transferem para um aspecto preciso da ordenao textual das obras - o que prenun-

    cia para ns a questo do ritmo da experincia esttica.

    Esta distino entre a estruturao formal das sequncias textuais e sua atualizao na

    atividade da leitura uma marca mais saliente daquilo que a esttica da recepo iden-

    tifica como clivagem entre as estruturas da tematizao pelas quais o texto constri

    as condies de sua comunicao com o universo da leitura (a partir dos repertrios de

    sentido, que compreendem tanto a normatividade das realidades extra-textuais quanto

    os sistemas da expresso literria e de seus gneros, por exemplo) e a etapa propria-

    mente dita dos atos de leitura. Nos dedicamos precisamente aos regimes ativos nos

    quais a leitura se define como performance do texto narrativo: na fenomenologia da

    leitura de Iser, os atos de apreenso atravs dos quais o leitor organiza a passagem da

    ordem narrativa e de suas estruturas textuais para o mbito subjetivo da leitura est

    implicada no modo como o texto se apresenta configurado para esta mesma apreenso.

    Iser nota que h uma diferena importante no ato atravs do qual a percepo sinte-

    tiza esteticamente seus objetos e aquele que caracteriza a atividade da leitura, por

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    outro lado: nos dois casos, a apreenso depende da construo de um ponto-de-vista

    atravs do qual podemos nos deixar absorver no universo referido pela expresso (seja

    a pictrica, seja a literria); mas a apreenso do texto se diferencia daquela que

    prpria experincia pictrica, pois as perspectivas que ela apresenta se modificam,

    na medida em que as fases da ao se prolongam. Mais do que isto: ao passo em que

    a apresentao para a percepo visual est submetida a certas leis gestalticas de

    estabilizao pictrica ou iconolgica do referente, a denotao ficcional na literatura

    necessariamente pautada por um princpio interno de transformao: isto acarreta

    a consequncia de que o ato da leitura seja tomado como um permanente esforo de

    snteses dinmicas da referncia.

    Em conseqncia, o objeto do texto no idntico a nenhum de seus modos de realizao

    no fluxo temporal da leitura, razo pela qual sua totalidade necessita de snteses para poder

    se concretizar. Graas a essas snteses, o texto se traduz para a conscincia do leitor, de

    modo que o dado textual comea a constituir-se como correlato da conscincia, mediante a

    sucesso das snteses. Essas snteses, porm, no se realizam aps determinados momentos

    da leitura; muito ao contrario, a atividade sinttica continua em cada fase em que se move

    o ponto de vista do leitor. (ISER, 1999: 13)

    A prpria estrutura frasal da narrativa construda em favor dos atos de leitura j traz

    consigo os elementos de uma modalizao das intensidades e dos andamentos da suces-

    so que no apenas engajam a recepo no fluxo dinmico das snteses de perspectivas

    transformadas em cada fase do processo, mas tambm introduzem um ndice tmico

    - j que a experincia da leitura no se define apenas por um acompanhamento tono

    ou acrnico das etapas pelas quais os pontos de vista da enunciao so modificados

    pelo texto: Iser identifica a estrutura desta apresentao dinmica dos pontos-de-vis-

    ta, como construda sobre uma oscilao entre protenses e retenes, definidas

    como aquilo que a apresentao sequencial das aes implica enquanto uma dinmica

    de saturao e esvaziamento das referncias textuais, na medida em que a leitura

    avana para adiante. Uma vez engajado existencialmente no texto, o leitor experimen-

    ta na sua apreenso da sute das aes estas permanentes aberturas e fechamentos dos

    horizontes semnticos e de enunciao da narrativa.

    Este processo necessrio porque, como vimos, somos incapazes de captar um texto num s

    momento. O que a princpio parecia mera desvantagem em relao aos atos de percepo,

    revela-se agora um modo de apreenso capaz de organizar o texto no processo da leitura

    como constante separao e fuso de seus horizontes interiores (...). Esse ato sempre

    levado a cabo quando processos comunicativos no mais so regulados por um cdigo domi-

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    nante; assim, os atos de formao se evidenciam tambm como modos de uma compreenso

    produtiva (ISER, 1999: 17).

    O carter dinmico das apreenses prprias aos atos de leitura constituem a base de

    uma argumentao sobre uma dimenso performativa da recepo. Mas esta mesma

    estrutura sugere um aspecto de seu desenvolvimento que precisa ser refinado, pois a

    dialtica entre protenses e retenes no se manifesta fora de um contexto pro-

    priamente modalizado das mudanas de perspectiva, nas diferentes fases da leitura.

    De nosso ponto-de-vista, isto reclama uma considerao mais detalhada sobre certos

    aspectos da intensificao passional inerente composio destes horizontes da leitu-

    ra: nestes termos que emerge a questo da modulao rtmica da sucesso, como um

    elemento da apresentao do discurso narrativo que performa uma condio precisa de

    sua recepo passional.

    Cremos que o ritmo uma das dimenses das experincias da fruio de uma obra,

    sejam estas estruturadas sob o modo da sequencialidade tpica das artes narrativas ou

    no. De nosso ponto de vista, o aspecto central da convocao da modulao rtmica

    aquele que coloca no centro da experincia esttica os aspectos de adeso somtica

    pela qual o prazer prprio relao com as obras pode ser propriamente performado:

    o ritmo possui uma capacidade de estruturar as disposies do corpo para a execuo

    das paixes atravs das quais a compreenso do texto se d. preciso ateno para

    essa condio da origem do sentido que engaja nosso aparato sensrio na experincia,

    ao mesmo tempo em que se fixa o sentido semntico das obras que apreciamos. Pois o

    terreno destas relaes entre o sujeito da experincia e o quadro conceitual das obras

    no se manifesta apenas em uma ordenao simblica ou arbitrria, mas tambm en-

    carnada em um corpo sensvel e pleno de paixes e disposies.

    Pensemos brevemente no caso da funo estruturante do ritmo musical, na experincia

    esttica da dana, por exemplo: esta possibilidade de interao pela sincronizao com

    os padres de andamento e acentuao musicais se realiza fundamentalmente atravs

    de uma execuo corporal; nestes termos, a dana, mesmo na sua dimenso mais ordi-

    nria de acompanhamento, exprime uma experincia esttica que necessariamente

    performativa. Na sua condio de execuo, esta experincia tem uma marca de singu-

    larizao quase individualizada que no raramente leva o seu portador a se evadir das

    constries mais elementares das diversas normas sociais e culturais de sua manifesta-

    o. No se dana conforme um ritmo apenas por seguir os cdigos e convenes esta-

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    belecidas nas trocas sociais, mas fundamentalmente por haver uma intensa interao

    entre o corpo do ouvinte e os padres estticos da expresso musical.

    Para nosso interesse, contudo, pela ocorrncia do ritmo na tessitura da expresso

    que se torna possvel restituir performatividade das paixes os papis que se pode

    atribuir ao posicionamento do corpo em relao quilo que vetorializa uma experincia

    esttica: seja no acompanhamento mais saliente atravs do qual buscamos correspon-

    der sincronicamente aos padres de andamento musical, ou ainda na mais discreta e

    quase insondvel experincia de um pulso atravs do qual o percurso da leitura de uma

    histria em quadrinhos se realiza (nos fazendo ressentir os diferentes graus de inten-

    sificao emocional ou dramtica de uma histria), em todos estes casos a questo do

    ritmo se pe como um elemento nucleador daquilo que implica no apenas os quadros

    e valores semntico-referenciais da apreenso da obra, mas tambm aqueles de ordem

    somtico-performativos.

    Mas devemos tomar cuidado com tamanha objetificao da estrutura rtmica, nos mo-

    dos de passionalizar uma experincia de compreenso de obras ou eventos organizados

    dentro de um certo sentido sequencial. Se chegamos possibilidade de falar de ritmo,

    no apenas por reconhecer na forma musical uma espcie de vigncia privilegiada de

    tal estrutura, mas sim por reconhecer que h na musicalidade uma organizao que,

    podendo ser mais ou menos formalizada, destina um certo efeito e uma conduta de-

    terminada ao ouvinte. O ritmo no s uma abstrao que auxilia a execuo privada

    ou coletiva da obra, mas sim uma organizao de eventos que convoca o ouvinte a um

    trabalho de formar coerncia, de conferir forma.

    H no bojo dessa competncia rtmica a prpria possibilidade da experincia esttica.

    possvel trazer a descrio que Iser faz do ato da leitura para a abstrao de uma

    espcie de estrutura da experincia, como descreve Dewey, a includas as experin-

    cias predominantemente estticas. Entre as condies por ele eleitas, para se ter uma

    experincia singular (possuidora de qualidade esttica), encontramos o critrio de uni-

    cidade e, logo, o de consumao.

    A propsito da unicidade, nenhuma parte ou evento de uma sucesso pode restringir-

    -se em seu valor prprio. Este vale por aquilo que antecipa e restitui (protenses e

    retenses). Tal critrio j implica que toda experincia aponta para sua finalidade, con-

    sumao ou xito. Ao descrever o caso imaginrio de uma pedra que tem em mente o

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    422contemporanea | comunicao e cultura - v.11 n.02 mai-ago 2013 p. 409-424 | ISSN: 18099386

    repouso apontado durante sua aventura ao rolar contra diversos eventos em seu curso,

    Dewey revela que o fim, para tal personagem, no apenas a cessao de um srie de

    eventos, mas a consumao final desses eventos.

    Sua natureza e importncia (da experincia) s podem expressar-se pela arte, porque h

    uma unidade da experincia que s pode ser expressa como uma experincia. A experincia

    de um material carregado de suspense e avana para a sua consumao por uma srie

    interligada de incidentes variveis. (DEWEY, 2010: 121)

    Assim, ter uma experincia nuclear eventos atravs da coerncia com que apontam

    para uma finalidade. Ter uma experincia pressupe uma competncia, que como ve-

    mos, pode ser verificada, em seu nvel mais elementar, como uma atuao somtica, de

    fundamento rtmico. E, em algum patamar, esta adeso pelo ritmo funda uma espera e

    uma durao. Assim apostamos que investigar a dimenso rtmica das paixes perfor-

    madas atravs dos objetos de nosso interesse avaliar a qualidade, em diversos graus,

    de suas esperas e duraes.

    apenas relacionado a um propsito que a atuao corporal, efetivamente empregada

    ou implicitada, participa do jogo prazeroso, simultaneamente comunicativo e esttico

    em sua qualidade. Do contrrio trata-se apenas de um reflexo motor protocolar que

    todo ente capaz de executar, de acordo com as suas possibilidades.

    Pulamos de imediato ao nos assustarmos, assim como nos enrubescemos no instante em

    que sentimos vergonha. Mas o susto e o recato envergonhado no so, nesses casos, estados

    afetivos. Em si, no passam de reflexos automticos. Para se tornarem emocionais, precisam

    fazer parte de uma situao inclusiva e duradoura que envolva o interesse pelos objetos e

    por seus desfechos. (DEWEY, 2010: 119-120)

    Mas, como j destacamos, todo trabalho de anlise que se detenha sobre a relao do

    leitor, espectador ou ouvinte com a obra no pode prescindir de um modelo descritivo

    da prpria obra. Precisamos reconhecer quais so os elementos da forma que se cons-

    troem como ritmo. H que se conceber um modelo mais geral que sirva para uma apro-

    ximao do ritmo como elemento de outras ordens da significao. H que se ter em

    conta que alguns elementos do ritmo s existem pela anlise, sendo assim constitudos

    por um ato de abstrao. Por exemplo, o andamento apenas um elemento para iniciar

    e orientar a execuo musical, no sendo parte exclusiva da escuta. Um andamento

    em verdade uma abstrao de um movimento sem variao, em que cada batida seria

    igual a outra, sem marcas de uma acentuao ou entonao; se no h reconhecimento

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    de uma intermitncia pelos sentidos, no poderamos considerar tal movimento como

    dotado de uma qualidade rtmica. O ritmo uma unidade de vetorializao da per-

    formance da recepo: seja no mbito musical ou narrativo, ele o elemento de uma

    estrutura de significaes atravs da qual o corpo (ou certas de suas partes) chamado

    a corresponder, sob o signo de um ressentir-se face s modulaes passionais ou inten-

    sificadas do discurso musical ou narrativo.

    E j que falamos de competncias rtmicas que implicam uma capacidade sensvel de

    reconhecer padres e empenhar o corpo nessa atividade, poderamos pensar em uma

    abordagem histrica do ritmo, que nos apontaria para uma histria do corpo, ou seja: o

    que o ritmo possui como familiar e que, ao mesmo tempo, orienta seu encontro com o

    texto estaria na base do que nos permite tambm lidar com o no familiar, com o que

    assincrnico. Tal projeto no incompatvel de todo com as pretenses deste trabalho:

    mas, nos limites que traamos momentaneamente sobre esta questo da modulao

    passional do discurso (uma vez associado performatividade da experincia esttica),

    nos concentramos aqui no ponto em que as assimetrias que geram a funo rtmica do

    discurso se explicam no plano das relaes intratextuais: nos fixamos, assim, sobre este

    mbito mais interno (ou sintagmtico) das transformaes dos padres aos quais o lei-

    tor j havia se familiarizado ao ponto de poder estar em sincronia rtmica com o texto.

    Assim como na dana, assumir um ritmo a tal ponto seguro que confiamos plenamente

    o nosso prximo movimento a algo que apenas suposto, que habita somente a nossa

    expectativa: verdadeiramente antecipamos algo da msica, assim como podemos pres-

    sentir a concluso de uma ao narrativa ou mesmo de uma proposio sobre fatos.

    Caso o mesmo padro no se encontre nesse momento futuro, imediatamente perde-

    mos o ritmo, a nossa performance no mais coerente para habitar aquele mundo

    ficcional, sendo a que a experincia vai buscar uma nova sincronia.

    REFERNCIAS

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    Artigo recebido: 20 de maio de 2013

    Artigo aceito: 08 de agosto de 2013