Pernambuco Vivo

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Publicação especial realizada pelo Jornal do Commercio, com apoio do Governo de Pernambuco, através da Secretaria de Cultura e Fundarpe, sobre os Patrimônios Vivos de Pernambuco.

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DIRETOR DE REDAÇÃO: IVANILDO SAMPAIODIRETOR-ADJUNTO DE REDAÇÃO: LAURINDO FERREIRAEDITORA-EXECUTIVA: MARIA LUIZA BORGESEDIÇÃO: DIANA MOURA, MARCELO PEREIRA, OLÍVIA MINDÊLOEDIÇÃO DE ARTE: BRUNO FALCONE, FABIANA MARTINS, KARLA TENÓRIOEDIÇÃO DE FOTOGRAFIA: ARNALDO CARVALHO, HEUDES REGIS E CHICO PORTOCONCEPÇÃO E REPORTAGEM: MATEUS ARAÚJO CONCEPÇÃO GRÁFICA, ILUSTRAÇÃO E DIAGRAMAÇÃO: ÍCARO BIONEFOTOGRAFIA E VÍDEO: HEUDES REGISEDIÇÃO DE VÍDEO: CAIQUE MULATINHOTRATAMENTO DE IMAGEM: JAIR TEIXEIRAREVISÃO: RITA KRAMERWEB DESIGNER: FÁBIO MONTEIROAGRADECIMENTOS: ACERVO DO MUSEU DO HOMEM DO NORDESTE –

FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO, PELA PERMISSÃO PARA FOTOGRAFAR A CALUNGA DONA JOVENTINA.

RECIFE - PE, BRASILNovembro de 2013

expediente

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sumárioPREFÁCIOAPRESENTAÇÃODEPOIMENTOSMÚSICA

LIA DE ITAMARACÁSELMA DO COCOGALO PRETOMAESTRO DUDAMAESTRO NUNESSOCIEDADE MUSICAL CURICAEUTERPINA DE TIMBAÚBAORQUESTRA CAPA-BODEPAGODE DO DIDIJOÃO SILVACAMARÃO

ARTES CÊNICAS & CINEMAFERNANDO SPENCERTEATRO EXPERIMENTAL DE ARTEÍNDIA MORENA

GRAVURA E CORDELMESTRE DILAJ. BORGESJOSÉ COSTA LEITE

CERÂMICA & PINTURAZÉ DO CARMOMARIA AMÉLIAZEZINHO DE TRACUNHAÉMMESTRE NUCAMANUEL EUDÓCIO

AGREMIAÇÕESCABOCLINHO SETE FLEXASCABOCLINHO CANINDÉMARACATU LEÃO COROADOMARACATU ESTRELA DE OURO DE ALIANÇAMARACATU ESTRELA BRILHANTE DE IGARASSUO HOMEM DA MEIA-NOITECONFRARIA DO ROSÁRIO

IN MEMORIANBASTIDORES

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Quem são eles, de onde vêm, que alegria é essa tão contagiante, que nem os dias tristes abalam o seu canto e o seu viver? Que mundo é esse, fei-

to de sonho e poesia, onde cantar é lei, criar é dote? Quem são esses filhos do povo, irmãos da arte, esses pastores da divina criação, ungidos que se escondiam no anonimato e que agora saem do seu pequeno mundo para a posteridade? Foram por toda sua existência pelotiqueiros e saltimbancos da grande comédia humana – que agora são resgatados para obra e graça dos seus contemporâneos, porque homenagem póstuma é uma visão dis-torcida da história presente. Alguns deram vida ao barro, outros perpetu-aram a imagem. Todos eles honraram a vida e escreveram uma pequena epopeia. Esses homens e essas mulheres que hoje são personagens deste caderno especial Pernambuco Vivo, essas instituições sacrossantas mais amadas do que conhecidas, são um pedaço vivo do povo de suor e sandá-lias, da história e do orgulho de Pernambuco. Que sejam todos louvados, com licença de Vinicius de Morais.

Louvada seja Selma do Coco, preta e sábia, elegante na sua echarpe co-lorida, faceira nos brincos de ametista – guardiã das melhores tradições do nosso cancioneiro popular: o coco, sob suas mais diversas manifestações. Coco que já rendeu a Selma nove discos, um DVD e cinco filmes, patrimô-nio tão expressivo que bate o de muitos famosos do showbiz norte-ameri-cano. Seja louvada Lia de Itamaracá, cujo nome e cuja fama se espalham por esses brasis tão brasileiros, dado que a ela se credita o resgate da autên-tica ciranda. E ciranda, como se sabe, não é coisa para amador. Louvada seja Índia Morena, que mambembou pelos picadeiros dos circos mais fa-mosos aos mais humildes, fazendo da cobertura de lona o teto seu de cada caminhada – e que neste mundo de fantasia corre chão há mais de meio século. Não ganhou dinheiro, não fez fortuna, não tem patrimônio – mas virou Patrimônio e tem o riso largo dos que carregam nas mãos os praze-res da vida. Seja louvada Maria Amélia, rainha do barro e da criação – as imagens moldadas pelas suas mãos talentosas são ornamentos admira-dos bem para lá do horizonte. E o que dizer de Galo Preto, hoje de barba branca, com seu pandeiro e seu improviso, cortante como o chicote de um feitor – vaidoso sempre com seu chapéu quebrado?

Este suplemento especial que hoje estamos entregando aos leitores, com textos de Mateus Araújo, fotos de Heudes Regis, criação gráfica de Ícaro Bione e edição de Diana Moura, tem bem mais no seu rico conteúdo. Ele fala de personagens e instituições que se tornaram, por justiça e merecimento,

preFáCio

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Patrimônios Vivos de Pernambuco. Perfilam nesta honrosa galeria os gran-des ceramistas Zezinho de Tracunhaém e Zé do Carmo, o Mestre Dila da gravura, o cordelista José Costa Leite, o xilogravurista J. Borges, parceiro do não menos famoso Ariano Suassuna, instituições como os Maracatus Leão Coroado e Estrela de Ouro, a Confraria do Rosário e o Caboclinho Sete Flexas. Pioneiro do cinema pernambucano, louvado seja Fernando Spencer, há mais de meio século envolvido coma sétima arte. Dá para ver, portanto, que a leitura deste suplemento será prazerosa e enriquecedora – um dife-rencial que estamos colocando hoje nas mãos de nossos leitores.

IVANILDO SAMPAIODiretor de Redação

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Eles são 29 homens, mulheres e agremiações. Com poesia, escrevem a cultura pernambucana todos os dias. E fazem parte dela. Alimentam

um mundo imaginário habitado por bois, gigantes, calungas, bichos que fa-lam e santos que se transfiguram. Vivem em pequenas casas coloridas, pin-tadas por dentro e por fora. Quase todos vêm da periferia, dos arredores, de onde o vento faz a curva. Talvez por isso, não falem em linha reta, mas em voltas. Contam de um mundo só deles, que encanta e, às vezes, faz doer. São os Patrimônios Vivos de Pernambuco que mantêm a rica tradição da cultu-ra popular do Estado e dão cores, sons e vozes à identidade pernambucana.

Pela imensa contribuição que oferecem ao seu povo, eles mereceram o título de Patrimônios Vivos. O reconhecimento oficial é oferecido pelo go-verno do Estado, por meio de um edital da Secretaria de Cultura/Fundarpe. Anualmente, uma comissão estadual, formada especificamente para a elei-ção, reúne-se, avalia os nomes inscritos e seleciona três novos membros para o grupo. O processo passa pelo aval do Conselho Estadual de Cultura. O reconhecimento foi estabelecido por lei em 2002 –ainda que os primeiros 15 nomes só tenham sido anunciados em 2005, retroativamente.

Desde então, a cada ano, três novos artistas ou agremiações são escolhi-dos. Eles têm que morar no Estado há pelo menos 20 anos e comprovar atua-ção dentro da cultura local. Mensalmente, recebem uma bolsa vitalícia – R$ 1.021,62 para pessoas físicas; ou R$ 2.043,24 para instituições sem fins lucra-tivos. É um incentivo para que se mantenham em atuação e repassem seus conhecimentos. Em outubro, o Jornal do Commercio publicou dois cader-nos Pernambuco Vivo, apresentando aos leitores um pouco da trajetória de arte e encantamento desses guerreiros. O material, que resultou neste e-book, reflete a própria formação cultural do Estado, em sua diversidade ímpar.

Maracatus, caboclinhos, frevos, forrós, sambas e afoxés. Poetas da madei-ra, da cerâmica e das letras. Atores e bailarinos. Desenho, pintura e escul-tura. É uma incrível multiplicidade de manifestações culturais que se des-dobram neste Pernambuco Vivo. Nomes que vão além do Carnaval, do São João e do Natal. Artistas que, como já havia alertado o poeta Padre Antônio Vieira, deveriam estar na boca do povo, nas salas de aula.

Para contar um pouco dessa história, nos dedicamos por 18 meses. Os Patrimônios Vivos de Pernambuco abriram as portas de suas casas, ate-liês e sedes de instituições. Às vezes, as memórias se diluem no tempo, e os registros se inscrevem nas entrelinhas. Suas biografias se confun-dem com a arte que professam. Nas reportagens, o leitor vai perceber

ApresentAÇÃo

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que, para essas pessoas, vida e obra são uma coisa só. Durante toda a viagem, impressiona o sorriso no rosto de cada um deles. Com orgulho, deixaram que seu mundo fosse compartilhado.

Só assim foi possível narrar o retorno ao sucesso da cirandeira Lia de Itamaracá e da coquista Selma do Coco, hoje grandes amigas. A contor-cionista Índia Morena redescobre a infância. O elegante Galo Preto fala de superação. As criações dos xilogravuristas e cordelistas Dila, J. Borges e José Costa Leite revelam cores e rimas. Abrem-se as cortinas do Teatro Experimental de Arte. Zé do Carmo, Maria Amélia e Nuca fazem orações em forma de esculturas. Arte e fé se encontram na Confraria do Rosário e nos batuques dos maracatus Leão Coroado, Estrela Brilhante e Estrela de Ouro.

Em Pernambuco Vivo também passeiam mestres do Carnaval mais colo-rido do mundo. Reverenciamos O Homem da Meia-Noite, descemos ladeiras ao som dos frevos rasgados dos maestros Duda e Nunes e nos emocionamos ao ritmo hipnotizante dos caboclinhos Sete Flexas e Canindé. Também tri-lhamos estradas para entrar nos salões do forró que marca o Sertão, com João Silva e Camarão; e conhecemos o vigor das bandas filarmônicas da Zona da Mata: Euterpina Timbaúba, Capa-Bode e Curica. Do Agreste e da Mata che-gam escultores como os mestres Nuca e Manuel Eudócio. Neste livro, por fim,nos despedimos dos Patrimônios que já se foram: Manuel Salustiano, Arlindo dos Oito Baixos, Ana das Carrancas e Canhoto da Paraíba.

Com delicados enredos de vida, esses artistas descreveram sonhos, amo-res, canções; e confidenciaram medos. Mesmo aqueles que esqueceram al-guma parte da história pelo caminho, todos ainda acreditam num final fe-liz. Salvaguardados por um título que os torna representantes oficiais da arte pernambucana, mestres do barro, músicos, cineasta e carnavalescos recontam narrativas tão suas, ao mesmo tempo tão nossas.

O projeto Pernambuco Vivo foi concebido por Mateus Araújo, autor da maior parte dos textos, com algumas reportagens assinadas por José Teles, Bruno Albertim e Diogo Guedes. As fotografias são de Heudes Régis, com colaborações de Ricardo Labastier e Priscila Buhr. Todo o conceito visual dos dois cadernos especiais e deste e-book foi pensado pelo desig-ner gráfico Ícaro Bione. O hotsite hospedado no JC Online foi desenhado por Fábio Monteiro. O material do e-book é muito enriquecido ainda pelos vídeos editados por Caíque Mulatinho.

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Falar de universos muitas vezes

estereotipados, mundos talvez esquecidos. Dar voz aos artistas, permitir que contem suas próprias histórias. Foi isso que propusemos no especial Pernambuco Vivo. A partir de horas de entrevistas gravadas, fui seguindo narrativas, desvelando lembranças ora confusas, ora tão vivas. Um desafio de apuração e um desejo de revelar para Pernambuco os seus grandes Patrimônios. É muito honroso entregar este especial, um trabalho de equipe. Um grupo dedicado e sempre disponível. Dois cadernos nossos, e, antes de tudo, desses 30 orgulhos pernambucanos.”

MATEUS ARAÚJORepórter

O grande desafio desse trabalho

foi entrar na casa dos personagens, na intimidade de cada um, sem que a nossa presença interferisse no universo deles. Sem que os apetrechos guardados para ocasiões especiais saíssem das gavetas e armários, em reverência à “visita da imprensa”. Precisamos nos desprender do olhar viciado para desnudar suas verdadeiras identidades. Queríamos nos surpreender, como no Turista aprendiz, de Mário de Andrade, e experimentar o prazer da descoberta a cada encontro. Praticamos o exercício de desconstruir a imagem desses artistas (sedimentada nos jornais, na TV ou no rádio) para trazer, em retratos do cotidiano, um pouco da elegância e dignidade que lhes são merecidas.”

HEUDES REGISFotógrafo

Ser não é a única questão para

eles, mas sim o quanto podemos compartilhar o que cada um deles é para nós. A pura e crua cultura pernambucana permeada em nosso imaginário. Cada morador do Estado tem em si um pouco da realidade desses 30 personagens, talvez não no cotidiano, mas em nossas raízes. Símbolos, cores, vestimentas, rosas e lanças são representados aqui por um outro ângulo, um olhar contemporâneo, numa estrutura que procura harmonia, leveza e ritmo para incitar o leitor a passear por cada história como se fosse uma única - nossa - própria história.”

ÍCARO BIONEDesigner

“ “ “

depoimentos

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MÚSICA

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A primeirA VoZ dA CirAndALIA DE ITAMARACÁ

Lia tinha um medo. Em abril de 1998, a cirandeira da Ilha de Itamaracá foi convidada para cantar no festival Abril pro Rock (APR), no Recife.

“Olha, eu me meti no meio dos roqueiros. Menino, me deu um medo. Eu pensei: ciranda com essa batucada será que casa, meu Deus?. E fui embo-ra.” Lia estava longe da mídia. Lançou um LP em 1977, A rainha da ciran-da, e sumiu do mapa. O convite representava uma possível volta. “Rapaz, o show foi tão bom, mas tão bom, que, se eu pudesse, estava lá todo dia. Os roqueiros ficaram doidos. Dançaram, cantaram, bateram palma. Parecia que eu estava ali dentro há séculos.” Depois disso, já gravou mais dois ál-buns, Eu sou Lia (2000) e Ciranda de ritmos (2008), e participou de fil-mes, entre eles o incrível Recife frio, de Kleber Mendonça Filho. Lia é um Patrimônio Vivo de Pernambuco.

O título lhe engrandece a alma. “É bom ter o trabalho reconhecido com a pessoa viva. Se alguém tiver de fazer alguma graça pra mim, faça comigo

Fotos: Ricardo B. Labastier/JC Imagem

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viva, para eu ver. Não faça depois de eu morrer, não. Esse negócio de a Rua de Lia, a Praça de Lia, a estátua de Lia... Faça comigo viva”, avisa. Além da projeção nacional, conquistou respeito ao redor do mundo. Foi chamada de “diva da música negra”, pelo jornal norte-americano The New York Times, e comparada à voz da cabo-verdiana Cesária Évora, pelo jornal francês Le Parisien. Mas sua história não é feita só de alegrias.

Aos 69 anos, completados em 12 de janeiro de 2013, a artista vive um momento tranquilo depois de muitos altos e baixos. A cantora, que nos anos 1970 experimentou o apogeu da ciranda, conheceu o aban-dono na década seguinte e voltou a brilhar fora da ilha depois de ser apadrinhada pelo movimento manguebeat, no APR.

Altiva e elegante, Lia era chamada de Rainha da Ciranda na década de 1970. A classe média e o público universitário saíam da capital nos finais de semana em busca das rodas de cantiga à beira-mar. O destino era Itamaracá ou a praia do Janga – onde morava a famosa Dona Duda. No livro Do frevo ao manguebeat, o crítico musical do JC, José Teles, explica que outros ar-tistas também foram importantes na afirmação da ciranda. Em 1967, Teca Calazans lançou um disco com a canção mais conhecida da cirandeira, Quem me deu foi Lia, gravada inicialmente por Expedito Baracho. A auto-ria da música foi discutida por muito tempo. “E no fim das contas a músi-ca termina sendo minha mesmo, né? Quem deu foi Lia e acabou”, brinca. Hoje a composição é de domínio público.

DE SOL E DE SAL

Foi no auge da popularidade, em 1977, que Lia lançou seu primeiro álbum. Logo depois foi esquecida. Na virada dos anos 1970 para a década seguinte, as indústrias fonográfica e cultural passaram a marginalizar a música po-pular brasileira não elitizada. Esse ostracismo, somado ao alcoolismo e à má administração da carreira, levou a cantora a uma crise artística e pessoal.

“Eu vivia dentro de um poço.” Hoje ela credita a fama e a vida estável que tem ao trabalho do seu empresário Beto. Depois do show do APR, ela con-quistou a admiração do público jovem e ganhou o mundo. “Perdi a conta de lugares por onde já andei. Eu pensei que nunca ia sair dessa ilha. Aqui é um mato sem cachorro. Ninguém olha pela cultura. Mas já fui à Alemanha, Paris, Lisboa. Menino, eu já bati o mundo, Jesus!”, sorri, sem esconder a satisfação. Mesmo assim, diz que não quer ser a “rainha da cocada preta”.

Lia tem a humildade daqueles que já perderam tudo e tiveram que re-começar. Não uma vez. Mas várias. No verão de 1988 para 89, ela teve a residência incendiada. Eram 2h da madrugada quando a casa detaipa co-meçou a pegar fogo. “Foi muita inveja. Eu tinha acabado de ganhar uma geladeira, e os vizinhos estavam de olho grande. No outro dia, acharam uma espécie de tocha no chão. Alguém tinha tocado fogo na minha casa.” As idas e vindas da vida e da ciranda obrigaram Lia a ser, por 28 anos,

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merendeira em uma escola pública da ilha, trabalho que lhe deu sustento durante o período longe dos palcos.

A casa onde mora com o marido foi herdada da mãe adotiva – a quem Lia foi dada, aos dez anos, por falta de condições financeiras dos pais bioló-gicos. Chegar até lá é tarefa fácil. Ela mora em Jaguaribe, uma comunida-de periférica da Ilha de Itamaracá, no Litoral Norte do Estado, que ainda vive da pesca e do verão. “Chegando em Jaguaribe, é só perguntar onde é minha casa que todo mundo sabe.” E sabe mesmo. “Pegue à direita e vá em frente. A casa dela tem uns nomes no muro”, diz um ilhéu. São os nomes da própria artista, grafados em mosaico na parede. Uma batida na porta, e a mulher de 1,87m de altura atende com um sorriso largo e um abraço forte. Morena da beira do mar, queimada do sal e do sol, Lia é doce.

A conversa é no terraço, de frente ao jardim. As paredes da pequena casa guardam emolduradas as lembranças dos 50 anos de carreira. Entre re-portagens e cartazes, ela também eterniza seu amor pelo marido, Antônio. As fotografias dos dois são intercaladas por pequenas frases de declara-ções deamor. “Acho que vi um gatinho” é uma delas. Uma foto de Mestre Salustiano relembra a amizade dos dois. No jardim, entre plantas e flores, estão esculturas de pássaros, sapos, golfinho e de Nossa Senhora da Graças.

IEMANJÁ, RAINHA

Como boa filha de Iemanjá, Lia gosta de azul e de enfeites. Usa cola-res, pulseira e brincos. Adora batom. Da Rainha das Águas, diz que her-dou o amor pelo mar, mas não frequenta o candomblé. “Só vou num ter-reiro quando estou precisando de ajuda. Aí faço uns trabalhos. Não faço o mal para ninguém, só peço ajuda para mim.” Transitando pelo sagrado e o profano que se unem na cultura afro-brasileira, Lia é amiga do padre

da capela de Jaguaribe, a quem prometeu só come-çar suas apresentações após às 21h, quando termina a missa. O templo está localizado bem pertinho do Centro Cultural Estrela de Lia. “Às vezes a gente es-tava ali com a ciranda, aí tinha maracatu, tinha coco. Tudo quase na porta da igreja. E o padre coma hóstia na mão. Eu via a hora o santo cair. Aí ele pediu para eu só começar quando a missa acabasse”, explica.

Nas lembranças que tem da infância em Itamaracá, Lia guarda as imagens e a alegria das noites de pastoril e cavalo-marinho na praça de Jaguaribe. Entre seus 21 irmãos, ninguém canta, dança nem participa dos brinque-dos. Só ela. Desde criança se interessou pela ciranda. Aos 12 anos, já dava entrevista a jornais e rádios e aos 18 se firmava como cantora. Atualmente a senhora de sorriso largo faz da beira do mar seu palco e sua inspiração. Há três quarteirões de casa fica o Centro Cultural Estrela de Lia, na areia da praia. Às noites de sábado, o lugar recebe a famosa roda de cirandeiros,

Ouça a música Eu sou Lia

Já fui à Alemanha,

Paris, Lisboa. Menino, eu já bati o mundo, Jesus!”“

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com cerca de 500 pessoas, entre ilhéus e turistas.A cantora fez da sua vida uma roda de ciranda. A velhice

que chega lhe aflige. Há um medo do esquecimento, como também há um medo do ócio. À beira das águas, ela compõe suas músicas. Sentada na praia, escreve as letras que são apa-gadas pelas ondas, e reescritas, e cantadas. “É da areia para o cérebro, do cérebro para o papel. Depois eu canto.”

Há 15 anos, Lia tinha medo de subir no palco dos roqueiros. Agora tem medo do futuro. Ela se ressente da falta de um suces-sor. A artista conta que teve quatro filhos, “mas nenhum quis cirandar”. Todos morreram recém-nascidos. Já perdeu a espe-rança que depositava no sobrinho Ezaquiel, 22 anos: “O negócio dele é futebol”, lamenta. “Tanta coisa que você tem. Seu traba-lho, sua força, sua luta. E você vai embora e não tem ninguém que diga ‘eu vou cantar hoje, vou fazer o trabalho dela, vou fazer o show dela’. Infelizmente, cada cabeça é um mundo.”

Às noites de sábado, a cantora realiza sua famosa roda de ciranda, no Centro Cultural Estrela de Lia, em Itamaracá

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noVe disCos, um dVde CinCo FilmesSELMA DO COCO

“Ra-rá. Êêêê, tchá. Ra-rá. Tchá, tchá, tchá, tchá”. Dona Selma do Coco, 78 anos, entoa essa onomatopeia em toda música que canta. Repete-a

também, intercalando às suas respostas, durante a entrevista. Virou uma fórmula, um cacoete indispensável quando ela sobe ao palco ou assume a postura da figura pública que conquistou fama no Estado, no Brasil e fora daqui, graças ao melô da rolinha fujona, sucesso no final dos anos 1990. Assim como Lia de Itamaracá, a coquista também foi redescoberta pela mídia nacional numa edição do Abril pro Rock, em 1997, um ano antes que a amiga. A projeção conquistada colocou a ex-tapioqueira do Alto da Sé em pontes aéreas até então inimagináveis por ela.

Aquela noite continua bem viva nas lembranças da senhora cuja boca

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reluz ouro a cada sorriso desde os 15 anos. Ela escancara com orgulho o pivô dourado que já vi-rou refrão de uma de suas músicas: “Moreninha do dente de ouro, parece um tesouro a boqui-nha dela. Se eu pudesse e tivesse dinheiro, eu ia em Barreiros e casava com ela”. O show no APR foi, de certa forma, fruto da ligação que a cantora alimentava com Chico Science (1966-1997). O ícone do manguebeat gostava de be-ber da fonte do trabalho, da experiência e da sa-bedoria de Selma do Coco, como afirma o crí-

tico musical José Teles, no livro Do frevo ao manguebeat. Acostumada a cantar na praieira e popular Festa da Lavadeira, Dona Selma padecia do mesmo medo que afligia Lia em relação aos roqueiros.

“O único show que eu fiz em que fiquei cismada de ninguém me derrubar do palco foi o Abril pro Rock. Ali é dose, né? É um perigo para não cair do palco. Misturar coco com rock, Ave-Maria, não foi fácil, não. Eu fui porque sou doida mesmo. Ra-rá. Sempre penso assim: se perdi, perdi; se ganhei, ganhei. Menino, o povo gostou mais do meu show do que do show dos ro-queiros. Os roqueiros ficaram arretados comigo. Pegaram os panos de bun-da e foram embora. Ra-rá. Eu dei tanta entrevista depois daquilo”, recorda.

Antes desinibida e alegre, Dona Selma tem se dobrado ao tempo e às in-tempéries da vida. Tornou-se uma mulher de humor retraído, demora a se soltar e traz o sorriso acompanhado por um olhar evasivo. Na casa em que mora com uma nora e as netas, passa os dias sentada em frente à televisão: “Se chegar gente, eu converso. Se não chegar, eu não converso”. Quando não está se apresentando, ela rima na cabeça a saudade que guarda do filho Zezinho, que era seu braço direito, amigo e produtor musical. Ele morreu em abril de 2010. “Nem sempre a gente tem o que quer. Não vou dizer que não sou feliz. Dependendo do meu Deus,eu sou feliz, e do meu coco. Só não sou mais feliz porque eu tinha uma pessoa que vivia do meu lado, era tudo na minha vida, mas Deus levou.”

“MORRE QUEM CANTA, MAS A CULTURA NÃO MORRE NUNCA”

Ela recebe a equipe de reportagem numa sala pequena, no térreo de uma casa de primeiro andar bem conhecida entre os moradores do Largo do Amparo, no sítio histórico de Olinda. Sarcástica e com respostas curtas no início da conversa, Dona Selma atropela palavras ao narrar lembranças com uma voz cansada, marcada pelo peso da idade. Diz que chegou à mú-sica encaminhada pela família. “Meu pai e minha mãe. Minha avó e meu avô. Todos eles cantavam. Quando eu cantei o primeiro coco, tinha na base de uns dez anos.” Mas ainda não pensava na música como um ganha-pão.

Nascida em Vitória de Santo Antão, Dona Selma – o sobrenome Ferreira

Dona Selma do Coco, durante apresentação na Festa da Lavadeira, na Praia do Paiva, em 2005

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Durante seu anonimato, Dona Selma trabalhou como tapioqueira no Alto da Sé, em Olinda

da Silva ela quase nem se lembra de usar – veio para o Recife aos 10 anos e por muito tempo foi apenas mais uma entre os milhares de mo-radoras do bairro da Mustardinha, Zona Oeste do Recife. “Eu vivia abandonada. Ninguém me conhecia na rua. Hoje todo mundo me conhe-ce. Tu me conheceria se eu morasse lá ainda?”, pergunta a coquista.

O anonimato saiu de sua vida quando ela pas-sou a vender tapioca no Alto da Sé, em Olinda. Foi peneirar a goma de mandioca e fazer a ale-

gria dos turistas. “Tapioqueira, antes, só tinha na Sé. Agora tem em todo canto. Como o coco de roda. Antes só havia perto de onde tinha escravi-dão. Agora tem em tudo que é lugar. Mas não tem a mesma qualidade”, alfineta. “Aliás, tem. Não vou nem dizer que não tem qualidade, pra não dar confusão”, desconversa. Ra-rá.

Era exatamente na Sé que a coquista dialogava sobre música e cultura com Chico Science. Na febre dos anos 1990, que misturava lama e caos, alfaia e guitarra, Dona Selma viu seu trabalho ser aproximado do pop – o mesmo processo que contagiou a ciranda de Lia de Itamaracá. Nesse pe-ríodo, as duas se tornaram grandes amigas. “Quando eu estou arretada, esculhambo com ela. Digo: ‘canta aí, nêga safada’”, comenta Dona Selma, numa gargalhada. A mulher, que não tem papas na língua, começa a se sol-tar na entrevista. Trinta minutos depois, ela se convence de que a reporta-gem chegou para conversar. Mas alerta: “Não gosto de dar entrevista não. Estou gostando de dar entrevista a vocês porque eu gostei de vocês”. Rá-rá.

Em 60 anos de carreira, Selma do Coco já gravou nove discos, um DVD, fez participação em trabalhos de outros artistas e em cinco filmes per-nambucanos. Ela sabe todos os números de cor. Em casa, há uma sala só para guardar discos, títulos, troféus e recordações– espaço que ela e a nora pretendem transformar em um pequeno museu. “Morre quem canta, mas a cultura num morre nunca.”

ESTOU ENSINANDO E VOU ENSINAR

A neta Polyana, aos 9 anos, olha de lado a avó fazendo pose para as fotos. A menina talvez não compreenda algumas frases tristes, ditas displicente-mente, entre gargalhadas, por Dona Selma. “Eu estou morrendo.” A mulher que já gravou disco na Alemanha, conheceu a Europa e fez shows no Brasil inteiro aos poucos vai preparando a neta mais nova para cantar. Já tem ou-tras netas que lhe acompanham nos palcos, mas Polyana agora é a sua prio-ridade. “Vou colocar ela para dar três palavras para o vídeo de vocês. Vou co-locar ela aqui do meu lado. Eu estou ensinado e vou ensinar. Porque, quando eu morrer, ela vai ficar com a mãe dela tomando conta do meu trabalho.

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A metodologia que naquela casa se segue não tem mistério. É sem ro-deios. Cantar coco é abrir a boca e cantar. Aprender a letra e sair entoan-do. A única exigência da matriarca é que a pessoa tenha energia e ritmo. “Num é todo mundo que tem não”, diz Dona Selma. “Rará”, solta Poly ao finalizar uma das músicas, no colo da avó, imitando a coquista.

A senhora já não tem a mesma força que antes. Nos shows, alterna-se ao microfone com outras pessoas. A idade vai dando os seus sinais. Algumas lembranças começam a lhe escapar da memória. Saudosista, ela confron-ta o presente com um certo ressentimento sobre o vaivém da cultura pop. “As pessoas chamam para os shows quem tem fama, quem é bonita, quem todo mundo conhece. Se você pudesse escolher entre eu e aquela menina da Bahia (Ivete Sangalo), para contratar para um show, escolheria quem? Aí é uma questão de gosto.”

Dona Selma, que em 2011 ganhou o prêmio Afro-latino como destaque de mulher negra do País – ficou em segundo lugar, depois da atriz Zezé Mota e à frente da cantora Margareth Menezes –, agora leva uma vida cal-ma, depois de ter se dedicado à família e à música. A vaidade virou apenas obrigação de quem é famosa, deixou de ser um prazer. “Eu era vaidosa. Agora num sou mais não. Sou velha, desarrumada. Estou arrumada agora para dar entrevista. Você pega essa matéria e vai botar no jornal. O povo vai me ver. Não posso estar rabugenta no jornal. Eu tenho que ajeitar o pi-xaim, pra ver se chego à metade do que era.” Ra-rá.

Ouça a música Moreninha do dente de ouro

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peripéCiAs de um VAlenteGALO PRETO

Tomaz Aquino Leão, Mestre Galo Preto, enfrenta uma vida de adver-sidades e superação. Uma confusão o levou a um período de ostracis-

mo num momento decisivo para sua carreira. Em 1992, às vésperas das eleições, o embolador e coquista foi preso acusado de liderar um grupo de extermínio, em Peixinhos, uma das comunidades da periferia de Olinda. Foram dois anos, dois meses e seis dias na cadeia. Ele sabe de cabeça. Não havia prova que o condenasse. Nenhuma testemunha sequer. Mas ficou a raiva e a vergonha. Nesse período, Galo Preto deixou de ver e viver a eclo-são do manguebeat, a época em que uma nova geração em Pernambuco exaltou os mestres da cultura popular.

Nascido em Bom Conselho, no distrito de Princesa Isabel, no Agreste,ele

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chegou ao Recife aos 12 anos. Veio com o irmão, o cantador Preto Limão. “Fomos morar no bairro de Campo Grande. Meu pai não vivia em casa e meu irmão terminou sendo um segundo pai. Naquela época, Preto Limão fazia uma dupla de embolada com outro irmão nosso, Curió, cantando nas praças e nos mercados do Recife. Muita gente me confundia com eles. Ma seu não gostava de cantar na rua, de rodar o chapéu para pedir dinheiro”, lembra o artista, hoje com 78 anos.

O jovem Tomaz, recém-chegado ao Recife, em 1947, sem ainda ter sido batizado com apelido artístico, foi vender frutas nas ruas da capital e ter-minou chamando a atenção do influente poeta Ascenso Ferreira. “Como eu gostava de futebol e música, meu irmão me colocou para trabalhar como ambulante. Disse que não queria que eu virasse vagabundo. Mas eu saía vendendo fruta fazendo rima. E passava todo dia na porta de Ascenso Ferreira,até que um dia ele me chamou e disse que gostava da minha músi-ca. Ele me deu um cartão de Zil Matos, que tinha um programa de rádio na época, e fui atrás. Lá cantei minha primeira música, que eu tinha feito aos nove anos, chamada A pinta.” Dali pra frente, a vida foi de altos e baixos.

Galo Preto resolveu seguir carreira solo, sem a parceria de Curió, após participar do programa de rádio. Participou de caravanas culturais de uma emissora local. Terminou sendo enganado e voltou sem cachê. Na década de 1970, época em que as televisões lo-cais veiculavam programação musical, o artista – àquela altura também tocando jazz – alimentou parcerias com nomes importantes da música bra-sileira, como Jackson do Pandeiro, Cauby Peixoto, Arlindo dos Oito Baixos e Luiz Gonzaga. Com sua cantoria, foi criar jingles em repente para as cam-panhas políticas de Miguel Arraes. “Eu era pro-curado por todo mundo, porque o repente fazia

sucesso com o povo. E dizem que nessa arte eu sou bom”, brinca o artista.Décadas depois, se Galo Preto perdeu o bonde da história por conta de

sua prisão – quando tinha tudo para estar no elenco de artistas populares das edições históricas do Abril pro Rock, como Lia de Itamaracá e Dona Selma do Coco, em 1997 e 1998 –, ao tentar refazer a vida, ele foi valente. Sem desistir da carreira, Galo Preto conseguiu aos poucos abrir seu espaço na atual cena musical pernambucana.

Em 2007, a convite da Secretaria de Saúde de Olinda, o coquista foi in-tegrar um grupo de músicos locais que participou de uma campanha pu-blicitária, ao lado de Beth de Oxum, Dona Selma, Aurinha do Coco e Zeca do Rolete; e depois foi personagem-tema do documentário O menestrel do coco, de Wilson Freire. De rima em rima foi limpando o seu nome, recon-quistando a fama. Na semana passada, ele fez shows, em São Paulo, divi-dindo o palco com o cantor pop pernambucano Otto.

Sempre elegante, mestre Galo Preto não dispença roupa e chapéu brancos

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Senhor elegante, ele não dispensa a roupa clara. Em toda apresentação, está sempre com terno, calça e chapéu. “Recentemente eu estava com um empresário que começou a dizer para o povo que eu era de candomblé, só porque me visto todo de branco. Como sou negro, me ligavam a um preto velho. Mas não sou do candomblé nem tenho nada contra. Só não quis que alimentassem uma mentira”, conta.

Hoje o mestre mora na casa da filha, com ela e o genro. Ele se casou cinco vezes, mas agora está viúvo. Galo Preto tem um herdeiro musi-cal: o filho Telmo Anum, de 39 anos, que é guitarrista e percussionis-ta. O título de Patrimônio Vivo, no caso de Galo Preto, foi mais do que um reconhecimento artístico, um incentivo ao seu trabalho. Para ele, foi uma resposta à sociedade.

Ouça a música Preto é bonita cor

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músiCA CorrendonAs VeiAsMAESTRO DUDA

O frevo, para o maestro Duda, não é um simples gênero musical – ou um patrimônio da humanidade, como o próprio músico é do Estado

de Pernambuco. O gênero sempre esteve na trajetória e no cotidiano do múltiplo instrumentista mais do que como acordes, partituras e arranjos. Duda é capaz de se magoar com o frevo, demonstrar seu amor por ele, te-mer o futuro, dar conselhos para o presente. São duas personalidades for-tes, talvez, em uma relação de amor incondicional e mágoa reticente. Aos 78 anos, o maestro deve seu prestígio em Pernambuco ao frevo, mas a ale-gria do título traz também o ressentimento com o pouco reconhecimento das suas outras composições.

Porque, além de mestre do frevo, José Ursicino da Silva, nome de cartório

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de Duda, é um maestro múltiplo, que passeia, como todo bom mestre, do erudito ao popular. A música faz parte do seu corpo, como se corresse no seu sangue. Mais do que contagiado pelo vírus da música, Duda acredita que já nasceu com ele; estava fadado aos instrumentos, notas, partituras, suítes, arranjos e, claro, suor. “Quando criança, aprendi a tocar em uma banda, a mesma em que meu pai tocava, a mesma em que meu avô tocava. Não tinha internet, porque hoje todo mundo nem sai dela. Naquele tempo não tinha internet, não tinha televisão, música era o que eu tinha pra fazer. Eu não tinha outra opção, não”, aponta.

Diz logo que a sua história, que começa em Goiana, pode ser facilmente encontrada na internet. E pode mesmo, nas mais diversas formas, de enci-clopédias de música até duas dissertações de mestrado. “Mas, se você qui-ser, conto novamente.” Pernambucano e paraibano ao mesmo tempo, Duda se considera um “meeiro”, por ter nascido a 62 km de Recife, perto do limi-te com a Paraíba. O começo na música, seguindo os passos paternos, foi na banda Saboeira, a grande rival do grupo Curica. Ali, aos oito anos, conheceu o saxofone, seu companheiro de décadas que lhe introduziria ao frevo, à partitura e a todo o universo musical. Dois anos depois, aos 10, já mostrava a sua criatividade precoce: depois de ver um filme com o mesmo nome no cinema, compôs Furacão, o seu primeiro frevo, com “um arranjo simples”.

A partir dali, foram mais de 500 discos gravados. Veio para o Recife em 1950 tocar na lendária Jazz Acadêmica, fundada por Capiba. Sua trajetória se confunde com o frevo, mas ultrapassa em muito o gênero. A Suíte nor-destina, por exemplo, já foi executada por orquestras americanas, japone-sas e alemãs – “e todas as bandas brasileiras”. “As orquestras sinfônicas do mundo todo e as bandas sinfônicas e filarmônicas do Brasil inteiro tocam músicas minhas. Tem frevo no meio. Mas tem baião, tem xote, tem mara-catu, tudo que é música nordestina tem”, conta. “O maestro Júlio Medalha disse em uma entrevista que, se eu tivesse nascido nos Estados Unidos, eu seria um Quincy Jones”, revela, com orgulho.

Nas composições eruditas, quase sempre arranja um modo de ressaltar sua origem, carregando-as do popular. Só que sua capacidade de arranja-dor não para aí. Vai de hinos de colégio (“Vez ou outra paro um estudante do Colégio Bandeira, na frente de casa, digo ‘venha cá’ e peço pra ele can-tar o hino, só para brincar. Depois digo que eu compus”) até arranjos para CDs de igrejas, de suítes a frevos de rua. “Música para mim tem que ser boa. Pode ser erudita, popular, sacra, evangélica.”

FREVO NÃO É PARA OUVIR SENTADO

Ao explicar uma música, Duda para o que estiver dizendo e começa a cantarolar. Acompanha a voz com a mão, como se regesse a si mesmo. A melodia é um idioma à parte para o maestro, uma linguagem afetiva, em que ele é capaz de contar a história do Brasil, homenagear um filho ou um

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amigo, representar uma região, contar suas dores ou alegrias. A música é essa linguagem particular para Duda; o frevo, a sua primeira e

mais dúbia paixão. O ritmo é parte da sua vida. Compôs um para cada um de seus filhos. Um dos mais famosos é em homenagem àquele que seguiu seus passos na música, Nino Pernambuquinho, hoje professor do Conservatório Pernambucano. O problema é que, como o frevo quase não é lembrado fora do período carnavalesco, o maestro se ressente da falta de trabalho. “Só se lembram de mim no Carnaval, durante três dias. E o resto do ano?”, diz. “Para tocar aqui em Pernambuco, tenho que enfatizar mais o frevo, o resto da minha obra é esquecida. Afinal, santo de casa não faz milagre.”

Nesse vaivém sentimental, em determinado período da vida deixou de compor frevos. Até nas suítes com ritmos populares, escolhia o maracatu e a ciranda. É a mágoa que continua viva. Duda, no entanto, não consegue esconder por muito tempo a relação íntima com o mais pernambucano dos ritmos: se preocupa com seu futuro como se ele fosse um filho que vai se-guir aqui quando o maestro se for.

Outro desapontamento é não ser chamado para mais atividades. O título de Patrimônio é um orgulho, mas ele não quer ser entronizado em um título: quer continuar tocando o tanto quanto possível. “Já que eu estou vivo, sou patrimônio e estou me locomovendo, me usem! Estou pronto para trabalhar, eu preciso trabalhar”, avisa. “Apesar de estar com 78 anos de idade, eu estou vivo”, brinca. Seu sonho é poder não só tocar, mas ensinar seu conhecimen-to sobre o frevo para alunos, até para conectá-los com a essência do ritmo.

“Estão descaracterizando o frevo. A juventude está pensando que o que é feito hoje é o frevo de verdade. É preciso que se conheça o frevo, não se pode colocar ele numa vitrine, tombar, como uma igreja, um museu”, alerta. O problema, para ele, não é a modernização do ritmo, mas sim ver o frevo ser valorizado cada vez mais no palco e não na rua. “Por mais moderno que um frevo seja, é a orquestra na rua que toca ele como ele é. Não tem solis-ta, não, é só a orquestra tocando frevo”, ensina, lamentando que, em 2012, entre os três primeiros lugares do concurso municipal, nenhuma canção era de rua – todas seguiam arranjos que só serviriam para shows. “O frevo é contagiante, o frevo é para balançar o povo, não é formal. Ficar sentado ouvindo frevo como num velório? O frevo não foi feito para isso”, sentencia.

DIOGO GUEDES

Ouça a música Suíte nordestina, executada pela Orquestra do Maestro Duda

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CAso de Amor Com o FreVoMAESTRO NUNES

Em 2003 o maestro Nunes, com a autoridade dos seus então 72 anos, lançou dois álbuns de frevos, um de rua, outro canção. Ambos com

composições inéditas. Algo raro, numa época em que o ritmo andava por baixo, vivendo de regravações. Ele repetiria o feito cinco anos depois, quan-do completou seis décadas dedicadas não apenas ao gênero, mas aos diver-sos ritmos pernambucanos.

Obviamente ele é mais conhecido pelos frevos instrumentais que compôs, alguns quase de domínio público, como é o caso de Cabelo de fogo, que divide com Vassourinhas (de Joana Batista e Matias da Rocha) o título de marcha-frevo mais executada nas ruas do Estado du-rante o Carnaval. É uma melodia que todo conterrâneo conhece de

Fotos: Marcos Michael/JC Imagem/22-1-2007

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cor, embora boa parte não saiba o nome do autor.Nascido em Vicência em 26 de junho de 1931, Patrimônio Vivo de

Pernambuco desde 2009, José Nunes de Souza tem uma trajetória artísti-ca muito parecida com a de outros grandes nomes do frevo, como Levino Ferreira, Capiba, José Menezes. Começou a tocar ainda de calças curtas, passou por bandas de música do interior e veio desaguar no mar.

No Recife passou por diversas agremiações musicais, como Banda União Operária, Banda Manoel Óleo, União Operária da Macaxeira e Banda do Liceu de Artes e Ofícios, onde fez curso formal de música. Também tocou na banda do Cassino Americano, no Pina, e foi funcionário da Banda da Cidade do Recife. Sua ligação com o Partido Comunista do Brasil o levou à trabalhar não apenas com as citadas orquestras operárias, como a ser um

dos mais atuantes músicos do Movimento de Cultura Popular, o MCP, criado no primeiro governo Miguel Arraes.

Militância que não justifica, mas explica um pouco o ostra-cismo pelo qual o maestro Nunes passou ao longo dos anos. Ele tocou frevo na Assembleia Legislativa, na posse de Miguel Arraes como governador em 1960, como também esteve no pa-lácio do Campo das Princesas no dia 1º de abril de 1964, quando o Exército ocupou o local e prendeu o governador. Ele costu-mava contar que seguiu em passeata até o palácio para se soli-darizar com o governo eleito pelo povo. No caminho, os mani-festantes esbarraram nas forças militares que, embora o grupo que protestava estivesse desarmado, dispararam os mosquetões contra aqueles que faziam resistência ao golpe. No extinto pro-grama do apresentador Roger de Renor na TV Universitária, Nunes contou que correu da Praça da República, onde fica o Palácio do governo, até a Praça do Entroncamento. Quando che-gou em casa, criou logo um frevo. Depois passou alguns meses escondido no campo para não ser morto.

Além de ter trabalhado em vários projetos do MCP, que em-pregava a cultura popular para politizar, alfabetizar e, claro, di-

vertir, Nunes militava no PCB a ponto de dar uma de gazeteiro vendendo o jornal Novos Rumos, órgão do partido que funcionou de 1959 a 1964 e dava destaque aos acontecimento sem Pernambuco. Essa atuação o levou a ser demitido da banda municipal e amargar o isolamento de ser oposição, num tempo em que muita gente fazia questão de ser situação.

Numa curta entrevista disponível no YouTube, Nunes afirma que nun-ca compôs pensando em dinheiro. Atendia o apelo da música, que cor-re no seu sangue desde que nasceu: “Aceito a música como se fosse uma mulher que eu amasse e, ao mesmo tempo, ela fosse ingrata para mim”.Talvez ingrata, mas nem por isso deixou de ser fonte de inspiração. Uma fonte mais que generosa, que lhe rendeu cerca de três mil composições. No citado álbum 60 anos de frevo, Nunes, a exemplo do fez Lamartine

Entre os frevos clássicos compostos por Nunes, estão Cabelo de fogo e É de perder o sapato

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Babo,homenageia diversas agremiações carnava-lescas, dedicando-lhes frevos inéditos. Foi o caso dos títulos Este cachorro é feio, mas não morde, para a troça Cachorro Feio de Santo Amaro, ou Pra você doutora Mércia, feito para a Turma da Jaqueira Segurando o Talo. Entre seus clássicos mais consagrados estão Cabelo de fogo, É de per-der o sapato (que batizou o álbum duplo dedicado ao centenário do frevo em 2007), e Mosquetão. Esta última é acitada composição inspirada nos episódios que viveu no fatídico 1º de abril de 1964,

quando fugiu para não morrer dos tiros disparados pelos soldados, que feriram e mataram manifestantes. A vingança do maestro foi um frevo: “Onde o coronel usava o mosquetão, eu usava a alegria”.

Uma alegria que ele espalhou pelo Carnaval, apesar de durante muito tempo ter sido subestimado como compositor, pela estrutura simples dos seus frevos, nos quais incorriam poucos acidentes na execução. No en-tanto, a geração que já há algum tempo dá as cartas no frevo tem Nunes como uma das principais influências, chegando a estudar com ele, como Francisco Amâncio de Souza, o Maestro Forró: “Com uma habilidade tal-vez inconsciente, Nunes começou a compor de uma maneira que sua mú-sica pode ser executada por uma orquestra de qualquer nível. Muita gen-te criticava, mas acabou que a minha geração – eu, Spok e muitos outros músicos – passou pela escola de Nunes. Meu primeiro professor de música sugeriu que os alunos fossem ensaiar na escola de Nunes, ali no Pátio de Santa Cruz. Fui várias vezes. Ele foi de grande importância para o frevo. Conseguiu criar um frevo instrumental bonito, simples e de fácil execução, o que é uma tarefa muito difícil”.

A escola de frevo do Maestro Nunes, dirigida principalmente para crian-ças, filhos de integrantes de agremiações carnavalescas, foi uma das res-ponsáveis pela renovação de instrumentistas no Carnaval pernambuca-no. Na sua oficina na Casa do Carnaval, no Pátio de Santa Cruz, ele cui-dava com zelo e paciência da restauração de antigas partituras de fre-vo. Aos 82 anos, infelizmente, o maestro do povo foi pego pelo mal de Alzheimer. Fica a dúvida se realmente esqueceu a música, “mulher amada e ingrata”, que o tratou com carinho e desprezo ao longo de mais de sete décadas de vida a ela dedicadas.

JOSÉ TELES

Maestro Nunes tem parcerias com grandes nomes do frevo pernambucano, como Levino Ferreira, Capiba e José Menezes

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meu time é umA FilArmôniCASOCIEDADE MUSICAL CURICA

Maria nem quis ver a novela, tirou os bobes dos cabelos e saiu de casa às pressas para não se atrasar. Antônio foi direto do trabalho. Francisco

levou os netos. Severina e João saíram correndo da escola, assim que as aulas acabaram. Todo mundo foi chegando de mansinho, se sentando nas cadeiras de plástico para assistir à apresentação. Todo mundo foi se cum-primentando. Todo mundo se conhecia. Bastou o maestro abrir a pasta de partituras e erguer a batuta para os cochichos silenciarem. E começou o concerto em Goiana, na Zona da Mata Norte.

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Patrimônio Vivo de Pernambuco, a banda filarmônica Curica se or-gulha também do outro título: é a mais antiga em atividade da América Latina. O grupo, inicialmente com 15 músicos,foi fundado em 1848 por José Conrado de Souza Nunes, na Igreja de Nossa Senhora do Amparo dos Homens Pardos, para tocar nas festas católicas da cidade. A origem do nome da agremiação tem duas versões. Há quem diga que uma senhora chamada Iria, ao ouvir o som que a banda fazia na rua, disse ao maestro que a música parecia o grito de uma curica (um pássaro de canto estri-dente). Outros afirmam que Iria, escutando uma das polcas do repertório, achou que o refrão soava como “cu-ri-ca-cá”.

Se nenhuma dessas versões prevalece sobre a outra, é consenso que a fi-larmônica acabou se transformando em um mimo dos moradores. Não de todos, mas de uma parte deles. Os goianenses dividem sua paixão entre duas bandas, a Curica e a Saboeira, fundada anos depois, em 1855. “Filarmônica de interior é que nem time de futebol da capital: cada família torce por uma”, explica Edson Júnior, presidente da Curica.

Edson e a família são exemplos dessa devoção à banda. Ele chegou à agre-miação ainda criança, sonhava em ser músico. Lembra-se daquela época com orgulho. “A gente mal tinha instrumento e uniforme, se mantinha a partir da ajuda dos sócios-colaboradores. Quando eu ia fazer a cobrança, não dava nem um salário mínimo. Cada um contribuía com R$ 4, R$ 2”, diz.

Durante dois anos, ele ficou na filarmônica estudando teoria musi-cal, já que seus pais não tinham dinheiro para comprar instrumento. Um convite do maestro da Saboeira fez com que ele saísse da Curica e fosse para o grupo rival. “Lá eu teria instrumento. A Saboeira sempre teve mais condições, porque é uma banda de comerciantes, gente rica. A Curica é do povo mais humilde, dos operários”, explica o músico. “Depois que aprendi a tocar e com o dinheiro que juntei, comprei o trompete e voltei para minha banda de origem.”

Orgulho é uma palavra-chave dentro da Curica. Na história que é repassada pelas gerações de mú-sicos, uma das lembranças sempre recontada é a do dia em que a banda tocou com o batalhão da Guarda Nacional que recebia o imperador Dom Pedro II, quando ele visitou Goiana em dezembro de 1859. Essa presença em momentos importantes da história nacional, aliada à sua resistência em fazer música no interior, terminou fortalecendo a imagem da Curica no restante do Brasil e fora

do País. Em 1944, a filarmônica recebeu a visitado musicólogo uruguaio Francisco Curt, para pesquisar de perto, na sede da banda, partituras do século 19.

Patrimônio Vivo de Pernambuco desde 2005, atualmente o grupo se reúne para os ensaios na rua da Igreja de Nossa Senhora de Rosário dos

Ouça a música Vassorinhas, composta por Matias da Rocha e Joana Batista

Filarmônica do interior é

que nem time de futebol da capital: cada família torce por uma.”Edson Júnior, maestro da Banda Curica

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Negros, no Centro de Goiana. A casa-sede foi uma doação recebida no dia do centenário da filarmô-nica. O acervo do repertório da Curica reúne cer-ca de 800 peças, entre músicas religiosas, clássi-cos da MPB, composições barrocas e dobrados. Quando chega o Carnaval, os 60 músicos se di-videm também nas orquestras de frevo que ani-mam as festas locais.

Um dos integrantes mais jovens da Curica é Victor, 14 anos, há quatro dentro da filarmônica.

São 165 anos que o distanciam da primeira geração do grupo. “Ninguém me incentivou. Eu mesmo quis vir. Minha mãe não gosta que eu faça par-te, porque quer que eu vá estudar, mas eu me esforcei e entrei. No começo é difícil. Mas,quando a gente se acostuma, passa”, diz. Tímido, o pequeno trompetista vai se entrelaçando aos mais experientes e é um dos desta-ques das retretas. Dois dias por semana ele tem aula de música na sede da banda. De Goiana já viajou para Maceió e Portugal,a fim de se apresentar. Cursando o nono ano do ensino fundamental, o menino que adora tocar frevo – “O meu preferido é Vassourinhas” – sonha com o futuro: “Quero ser da Marinha ou do Exército, mas sem deixara música de lado. Meus amigos da escola acham isso chato, falam para eu sair. Mas eu não vou sair, não. Gosto de futebol, mas prefiro a banda”.

Victor, trompetista, é um dos integrantes mais novos da Banda Curica

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FestA no interiorEUTERPINA DE TIMBAÚBA

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Toda a cidade estava lá para assistir à estreia. Em Timbaúba, Zona da Mata, o povo se aglomerava na Praça Dona Guiomar (hoje Praça João

Pessoa) para ver a primeira apresentação da banda Filarmônica Euterpina de Timbaúba. Fundada em fevereiro de 1928, só dez meses depois ela fazia seu primeiro dobrado, no mesmo lugar em que havia sido criada, como se fosse um grito de independência dado pelo professor José Mendes da Silva, na época aos 23 anos. “Existia a Sociedade Musical Primeiro de Novembro, mas a banda sozinha já não dava conta da demanda dos eventos da cidade. As apresentações eram muitas e havia muitos músicos por aqui”, lembra o atual presidente da Euterpina de Timbaúba, Eder Gomes.

Batizada com um nome que faz alusão à deusa da música, Euterpe, a banda filarmônica é um orgulho de timbaubenses. A sede do grupo fica no centro da cidade, ao alto, de onde se pode ver parte do comércio e das ave-nidas principais. A banda surgiu em nove de fevereiro de 1928. Atualmente as coisas vão bem para a filarmônica, mas nem sempre foi fácil. Em 1962, enquanto o Brasil fervilhava por causa dos movimentos político-sociais e

conflitos partidários, a falta de incentivo público fez com que a Euterpina de Timbaúba fechasse as portas. “Foram problemas externos, de persegui-ção política; e internos, de divergências da própria diretoria”, diz Eder. Só em 1989 é que o grupo foi re-montado, por decisão de ex-integrantes e com aju-da de sócios e colaboradores, agora na sede atual.

O prédio de dois galpões, que aos poucos vai sendo reestruturado, guarda as lembranças e a

história da música de Timbaúba. Aqui 42 músicos com idades de 17 a 65 anos redescobrem todo dia o prazer da arte e lutam para se modernizar. Desde 1995 à frente da regência da banda, o maestro Josivânio Rique de Lima, 41 anos, deu uma revirada no repertório das apresentações, incor-porou novos arranjos e canções contemporâneas às retretas, incluindo uma feliz releitura de Toque de Luanda, criada a partirdas partituras do Maestro Forró, da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério.“O público jovem não estava muito interessado nas nossas apresentações. Mudamos o repertório da banda, tocamos músicas mais jovens e fazemos algumas coreografias desde que o novo maestro assumiu.”

O resultado é que, além de concertos mais atrativos, o grupo ganhou mais alunos. A cada mês, graças a um projeto municipal, a Euterpina e a Primeiro de Novembro circulam pelos bairros mais carentes da região levando música para todos. A banda de Timbaúba é Patrimônio Vivo de Pernambuco desde o final de 2012. Além da filarmônica, o grupo também tem uma orquestra de frevo, criada em 2010.

Mudamos o repertório da

banda, tocamos músicas mais jovens .”Eder Gomes, presidente da Euterpina Timbaúba

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sAlVos pelA retretAORQUESTRA CAPA-BODE“As bandas de interior equivalem aos conservatórios da capital.” A

afirmação é feita por João Paulo Ferreira da Hora, 42 anos, pre-sidente e maestro da Banda Euterpina Juvenil Nazarena, de Nazaré da Mata. Ele é o próprio exemplo de suas palavras. Foi no grupo que começou a dar os primeiros passos como músico. Hoje ganha o País como integrante da banda do cantor Siba.

A Juvenil Nazarena foi criada no dia 1º de janeiro de 1888. À época, Nazaré era uma cidade pequena, onde existia um grêmio dos comercian-tes locais – músicos nas horas vagas. Por isso surgiu a ideia de se criar uma banda. Como é tradição no interior, o grupo passou a celebrar o aniversá-rio de fundação comum churrasco de bode. O animal era capado meses antes. “Quando o povo da cidade via os músicos passarem, dizia: ‘lá vão os capa-bode’”, diz João, explicando a origem do nome popular que a banda recebeu na cidade: Capa-Bode.

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Num bonito casarão, em frente à Praça do Frevo, fica a sede do grupo, onde acontecem ensaios e reuniões. Tem fachada de platibanda com de-senho marcante e dentro um lindo piso de ladrilho hidráulico. Há cinco anos o lugar passou por uma reforma para consertar o telhado, danificado pelas chuvas. Nas paredes, as recordações desses 125 anos de história estão enfileiradas em fotografias e pôsteres, ao lado de uma imagem de Santa Cecília, padroeira dos músicos.

Manter uma banda filarmônica não é tarefa fácil nem barata. Os custos para comprar e manter os instrumentos são altíssimos. Graças ao título de Patrimônio Vivo, que concede uma bolsa mensal à Capa-Bode, a situ-ação melhorou um pouco, segundo João Paulo. “A gente pode dar uma gratificação aos músicos. O trabalho é de inclusão social. A gente prepa-ra o cidadão, dá uma profissão. Os professores que estão aqui muitas ve-zes trabalham voluntariamente. Mas eles precisam ganhar alguma coisa, têm família”, diz ele, que também é representante comercial. “Tiramos muita gente do meio da rua e formamos profissionais. Há pessoas que sa-íram daqui e hoje são professores do Conservatório Pernambucano ou tocam em grupos de renome.”

Além da banda, a Juvenil Nazarena mantém uma escola de formação na qual atende crianças a partir dos 8 anos. Ao todo, são 60 alunos. Eles tam-bém se dividem em uma orquestra de frevo. Uma das maiores dificuldades da agremiação, no entanto, é a preservação de sua memória. Com mais de um século de existência, a filarmônica deixou de registrar vários fatos do passado e agora não tem como resgatá-los.

Além de maestro da Capa-Bode, João Paulo integra a banda do cantor Siba

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reFerênCiA no sAmbAPAGODE DO DIDIO pagode, no bar do Didi, acontece. Não é agendado. Tudo começa com

um encontro de amigos. Há 32 anos, Valdemir de Sousa resolveu dei-xar o trabalho de gerente no restaurante português Adega da Mouraria, no Bairro de Santo Antônio, para abrir seu próprio negócio. Levou consi-go um violão, a coragem de viver um sonho e a ousadia de ser seu próprio chefe. Ele nem esperava que as suas partituras de clássicos da MPB da-riam lugar às rodas de samba que já trouxeram ao Recife grandes nomes nacionais antes mesmo de se tornarem famosos.

No apertado estabelecimento da estreita Rua Ulhoa Cintra, em meio ao caos do Centro do Recife, seu Didi relembra a vida de festas. Enquanto arruma o bar para mais uma noite de rodas de samba, que tomam o es-paço de quinta a sábado, das 18h às 23h, o senhor de cabelos grisalhos vai fazendo listas. “Aqui eu deixo todos os meus instrumentos: violão, cava-quinho, reco-reco, pandeiro. Mais tarde os meninos chegam e pegam os

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instrumentos, aí vira pagode”, diz. Foi assim que as coisas começaram.

Recifense, Didi viveu a infância na Bomba Grande, Zona Oeste da capital, onde brincava à beira do rio. Em casa, acompanhava a boemia do pai, que virava a noite tocando boleros, tangos, valsas e sambas no violão. O menino gostava de ver o pai e seus amigos tocarem. Observava cada nota, prestava atenção nos acordes e aprendeu as-sim, só de olhar. O pai não queria. “Naquela épo-

ca, andar com violão debaixo do braço era perigoso. Você podia ser preso e era descriminado. Hoje a turma tem respeito.”

Já adulto, dominando o violão, Didi foi trabalhar na Adega da Mouraria. Antes havia sido almoxarife, datilógrafo e auxiliar de escritório. Na Adega da Mouraria, viu passar nomes importantes da música nacional e lusitana: Jair Rodrigues, Cauby Peixoto, Amália Rodrigues, Pery Ribeiro e Agnaldo Timóteo. Na mesma época, era aluno do Conservatório Pernambucano.

Foi no beco estreito do bairro de Santo Antônio que Didi conseguiu unir suas paixões: a música e um restaurante só seu, de onde tirou sus-tento para criar os três filhos. “Hoje eu sou a referência do pagode em Pernambuco”, diz, com orgulho de ser pagodeiro.

O estabelecimento fica numa rua estreita do centro do Recife, de quinta a sábado vira uma grande roda de pagode

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um outro rei do bAiÃo JOÃO SILVA João Silva, 78 anos, confirma o velho ditado sobre a força que as coisas

parecem ter quando precisam acontecer. Roupa do couro como único patrimônio, 16 anos incompletos, resolveu se mandar para o Rio de Janeiro, a então feérica capital federal. “Queria ser artista de todo jeito”, lembra ele, que morava com a mãe no bairro recifense de Cajueiro. “Grande m...”, gar-galha ele, dono de um humor tão indomável quanto o talento. “Peguei uma carona em Garanhuns e fui-me embora até Alagoas.”

No caminho se ofereceu para trabalhar num trem. Como pagamento, teria a passagem. “O sujeito perguntou quem conhecia o Rio e eu disse logo que conhecia.”João nunca tinha saído de Pernambuco. O candidato a artista chegou ao Rio para entregar a planilha de passageiros da viagem e, sonho maior, conseguir uma vaga na Rádio Nacional. Morou por três dias num albergue público. “Se eu não arrumasse emprego, teria que sair de lá.”

Menos de três luas depois, tinha arrumado não só ocupação como

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moradia. “Fui trabalhar na oficina de uns portugueses e fiquei moran-do por lá. Lavava a roupa e ficava de cueca, esperando secar”, diz ele. Uma semana depois, os primeiros sinais concretos da prosperidade: já tinha dinheiro para mudar de trajes.

A arte lhe deu mais que camisas. Comum a carreira ascendente nos tem-pos áureos da rádio brasileira, iria se tornar um dos maiores parceiros de Luiz Gonzaga, conterrâneo que só conheceria na Cidade Maravilhosa. O filho de Januário gravaria, ao longo da vida, nada menos que 140 canções assinadas por João. Uma pequena parte, contudo, de seu enorme cancio-neiro. Com mais de mil composições, ele costuma ser regravado por gente como Ney Matogrosso, Gilberto Gil, Ivete Sangalo... “Ivete é uma danada, uma beleza de cantora”, diz ele, que teve a sua Nem se despediu de mim gravada recentemente pela sacolejante diva baiana. “É também uma amiga arretada. Vai longe na conversa de safadeza”, brinca.

Gonzaga é tão importante na vida de João como ele o foi na trajetória do amigo. “Faz uma falta arretada, um buraco que ninguém tapa”, diz ele, os olhos marejados ao se lembrar do Velho Lua. Quando João se tornou um bem-sucedido cantor de baiões na Rádio Nacional, Gonzaga já era majesta-de. Mas, contraditoriamente, vendia muito pouco.

Atuando como produtor, João disparou as ven-das do Trio Nordestino, que alcançou a marca de 280 mil unidades. Gonzaga, apesar da fama, ven-dia mirradas 2,5 mil cópias por álbum. “A BMG me chamou para produzir o disco de Gonzaga. E eu disse que, se não desse um disco de ouro a ele, nunca mais precisavam falar comigo”, lembra o homem que aprendeu a tocar violão sozinho, aos

10 anos. Sua escola foram os cabarés de Arcoverde.João Silva se dispôs a mexer, justamente, no espírito lírico do Rei do

Baião. “Gonzaga era um gênio, foi quem criou o baião. Mas só cantava la-mento, Asa-Branca, o sofrimento do retirante... Eu disse que o povo queria mais era esquecer, não lembrar o sofrimento.” Na ocasião, houve a primei-ra das muitas brigas entre os dois. “Ele disse que não ia gravar embolada, que aquilo não era coisa para ele. Mas faltavam só dois dias para entrar no estúdio e eu disseque, se ele não gravasse, eu sairia do disco.” Com seis músicas de João programadas para o álbum Danado de bom, Gonzaga não teve escolha. Ou aceitava as imposições, ou ficava com o disco esvaziado de última hora. “Eu ainda disse a ele: ‘Olhe, se eu tivesse chegado antes, quem era o rei do baião era eu, e não tu!’.” No que Gonzaga assentiu: “E era mesmo!”.

Rebelde, João exigiu também o desmonte de um esquema mais ou me-nos comum nas gravadoras. “Os caras gastavam uma fortuna. Ninguém

Gonzaga era um gênio, foi

quem criou o baião. Mas só cantava lamento, Asa-Branca, o sofrimento do retirante... Eu disse que o povo queria mais era esquecer, não lembrar o sofrimento.”

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sabia para onde ia aquele dinheiro.” Com um disco drasticamente mais barato, ele impôs a aplicação da verba economizada. “Eu disse: vão pegar o dinheiro e fazer dois Fantásticos e um Globo de ouro.” Estrategista impa-gável do marketing, Silva dirigiu Gonzaga num clipe em que ele aparecia na caçamba de um pau de arara, anunciando o caminho inverso. “Gonzaga dizia no vídeo que ia largar tudo e voltar ao sertão, que aquele era o último disco dele. Gonzaga era um artista, um ator, chorou logo”, ri.

Disco pronto, João Silva voltou para Arcoverde tremendo de inseguran-ça. “Passava os dias bebendo, com medo de não chegar ao Disco de Ouro”, diz. Mas o álbum Danado de bom (1984) vendeu nada menos que 1,6 mi-lhão de cópias. “Gonzaga só aprendeu a ganhar dinheiro comigo”, ri, mais uma vez, dando um trago comedido no cigarro que fuma com cada vez mais parcimônia. “Em três meses, Gonzaga vendeu três discos de ouro!” Coautor de Sanfoninha choradeira, Pagode russo e Nem se despediu de mim, João Silva seria o grande parceiro de Gonzaga a partir daí. O que ajudou o mestre a ganhar um prêmio Shell.

João não ficou rico. Mas consegue, como poucos, viver de direitos auto-rais, com mais de duas mil composições gravadas por grandes nomes da MPB. Os 49 anos devida no Rio, precisamente no subúrbio de Duque de Caxias, não foram suficientes para mudar o sotaque nitidamente pernam-bucano do compositor. “E eu sou besta?! Tem gente que nem chega no Rio e já está entronchando a boca”, ri mais uma vez.

Há seis anos, João Silva voltou ao Recife. Veio em busca de paz interior. “Fiquei viúvo da mulher com quem passei minha vida toda, o maior amor, minha grande amiga na vida”, diz. Como não conseguisse recobrar as for-ças, ouviu os conselhos de um amigo psicanalista. O terapeuta disse para arrumar as malas, largar as lembranças e a condição de viúvo coitado a que estaria confinado na comunidade em que vivia. “Minha mulher era tão arretada que disse que, se ela morresse antes, eu chorasse um pouqui-nho, mas arrumasse logo um rabo de saia”, diz ele, as lágrimas rompendo a moldura das pálpebras, ao se lembrar de dona Sebastiana Gomes.

Virou Patrimônio Vivo de Pernambuco há quatro anos. “O dinhei-ro até que é bonzinho. Mas bom mesmo é o reconhecimento, o prestí-gio, né?”, diz ele, que até largou a boemia. “Tinha todos os defeitos do bê-bado, ficava rico e chato. Agora que sou patrimônio, tenho que manter a compostura!”, gargalha.

BRUNO ALBERTIM

Ouça a música Pagode russo, composta por João Silva e Luiz Gonzaga

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no ritmo dA orquestrAsAnFôniCACAMARÃO

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Reginaldo Alves Ferreira, Mestre Camarão, tinha 7 anos quando fez seu primeiro grande show. Foi submetido ao crivo dos sanfoneiros da sua

família, numa das reuniões no quintal da Fazenda Camalaú, no interior da Paraíba. Tinha sido levado pelo pai, Antônio, e a mãe, Josefa. Foi tão apro-vado que tomou gosto. Continua um nota 10 até hoje, sempre que empunha a sanfona sobre os palcos – agora maiores e na presença de outros públicos.

Nascido na véspera de São João de 1940, o músico, que foi apelidado aos 18 anos pelo cantor Jacinto Silva, por causa das suas bochechas avermelha-das, é natural de Brejo da Madre de Deus, no Agreste de Pernambuco. Ele aprendeu sanfona olhando o pai tocar. Aproveitava a ida de Antônio à lavoura para ensaiar algumas notas no instrumento. Aos 10 anos, foi para Caruaru. Aos 18, já fazia parte do elenco de músicos contratados da Rádio Difusora.

O trabalho em Caruaru foi ampliando a bagagem de Camarão. Em 1961, mesmo ano em que representou o Estado na festa de aniversário de Brasília com o Trio Nortista (ele, Jacinto Silva e Ivanildo Peba), gravou seu pri-meiro disco, pela Rozenblit. Foi numa das apresentações na Difusora que

Camarão tocou com nomes como Hermeto Pascoal e, claro, o onipresente Luiz Gonzaga. Novamente o Rei do Baião deixa sua marca imprescindível na história dos Patrimônios Vivos de Pernambuco. O Velho Lua levou Camarão para gravar dois discos com ele, em 1969 e 1970, na RCA.

“Nossa amizade durou enquanto ele foi vivo. Luiz Gonzaga também lutou pelos sertanejos, pela famí-lia dele, por Exu. Foi quem levou a (rodovia) BR até em cima da Serra do Araripe. Ele chegou a trocar shows por alimentos, na época de seca, para levar para o povo dele”, lembra o sanfoneiro, em entrevista no camarim da TV Jornal, no Recife.

No entanto, o que transformou Camarão em um grande mestre foi sua ousadia e inovação. O sanfoneiro criou em 1968 a primeira banda de forró do País, a Bandinha do Camarão, em que introduziu ao ritmo– até então compassado pela zabumba, o triângulo, o pífano e a sanfona – instrumen-tos de sopro como tuba, trombone e clarinete. No mesmo ano lançou a Orquestra Sanfônica, projeto no qual a sanfona deu base também para o frevo e o maracatu. Era um encontro de família.

Atualmente Camarão dá aulas na escolinha Acordeon de Ouro, que criou em casa, no bairro da Estância, no Recife. Ensina as primeiras lições do instrumento a crianças e adultos. Com três filhos, todos músicos,ele ga-rante a continuidade da sua obra, mas padece de uma saúde fragilizada. Há quatro anos, fez uma cirurgia para a retirada dos rins e hoje precisa se submeter a três sessões de hemodiálise por semana.

Em 1968, Camarão criou a primeira banda de forró do País, a Bandinha do Camarão

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Artes

CÊNICAS

CINEMA

&

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As fotografias e os pôsteres pendurados na parede do terraço de casa estão entre as histórias de que o cineasta Fernando Spencer ainda se

lembra com mais facilidade. Aos 86 anos, sentado na sua cadeira de balan-ço, o artista e jornalista enumera momentos e fatos da sua vida numa con-versa emaranhada de saudosismo. Junto à TV, na qual o grande nome do Super 8 pernambucano hoje assiste a desenhos e clássicos da sétima arte, estão algumas das homenagens que ele recebeu nos últimos anos: troféus, certificados, cartas de honra ao mérito. Uma celebração ao homem que de-dicou sua vida ao cinema.

Os olhos, na infância, descobriram a alegria e os movimentos da sé-tima arte nos trejeitos de Charles Chaplin e nas aventuras dos caubóis

CineAstA dAstrês bitolAsFERNANDO SPENCER

Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem

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Fernando Spencer começou a sua carreira em 1969 com o curta A busca

Assista ao filme Evocações... Nelson Ferreira de 1987, com roteiro de Fernando Spencer e Flávio Rodrigues

norte-americanos. Descendente de alemães, Spencer era levado pelo pai, Nicodemes Brasil Hartmann, aos cinemas do Recife. Aos 12 anos, ganhou seu maior presente: um projetor de fil-mes de 35 mm. Ali nascia uma paixão para a vida toda. Ele montou no quintal de casa o Cine Metro, para 20 pessoas.

Em 1969, o cineasta começou a carreira de rea-lizador. Filmou em preto e branco A busca, o pri-meiro de seus 44 curtas-metragens, rodado em

16 mm. Nos anos 1970 ele descobriu o Super 8, uma bitola que tinha pelí-culas mais baratas e fáceis de manusear, dispensando um aparato técnico muito caro e sofisticado. Virou uma referência no formato, enfaticamente defendido nas críticas que publicava no Diario de Pernambuco, jornal pelo qual ele teve a honra de entrevistar nomes como Alfred Hitchcock. “Era, sim, mais fácil de fazer cinema nos anos 1970 e 1980. Mas hoje há a van-tagem do apoio da prefeitura e do governo, coisa que não se tinha, antes”, diz o senhor que, como mestre, acompanha o que tem sido feito no cinema local. Não se contém ao elogiar como “elegante e bom” o cineasta Kleber Mendonça Filho, de O som ao redor: “Ele sabe onde bota as ventas”.

Spencer se tornou um grande cronista da cultura e do comportamento pernambucano, contextualizando seus filmes num Recife de folguedos e de desenvolvimento urbano. O diretor vive há 20 anos no calmo e poético bairro Poço da Panela, na Zona Norte da cidade. “É um lugar muito bom de morar, mas confesso que esse aumento de prédios às vezes me impressiona. Está havendo um exagero”, diz ele, que agora busca recursos para trans-formar em digital dois filmes rodados na década de 1970: um sobre Manuel Bandeira e outro, feito em parceria com o escritor Ariano Suassuna, sobre os sons do Recife.

Atualmente, Spencer mora com uma filha e um neto. Há quatro meses, ficou viúvo. Sua mulher, Inês, faleceu dentro de casa. Agora, a saudade não deixa o cineasta em paz. “Já nem escuto mais música, porque me lembro dela. A gente passava a tarde ouvindo bolero, valsa, orquestras”, desabafa.

Em janeiro do ano passado, para custear o tratamento médico dele e da esposa, o cineasta vendeu parte do seu inestimável acervo à Fundação Joaquim Nabuco. “Me arrependo, mas eu precisava”, conta o cineasta das três bitolas, como ficou conhecido por já ter rodado em Super 8, 16 mm, 35 mm. A esses formatos, ele também somou trabalhos em vídeo e digitais.

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Eles foram para provocar. Chegaram com palavras complicadas, expres-sões acadêmicas, teorias e metodologias estranhas para quem vivia ali.

Aliás, desconhecidas pela maioria mesmo daqueles que subiam ao palco para interpretar. O que a trupe de professores e atores vindos da universi-dade da capital levou para o Agreste foi pura provocação.

O Festival de Teatro Universitário chegou a Caruaru rasgando a história da cidade em dois eixos, como aqueles que dividem a humanidade entre antes e depois de um grande acontecimento, estabelecendo o fim e o início

o tAblAdo é espelho do poVoTEATRO EXPERIMENTALDE ARTE

Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem

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de uma época. Era junho de 1962. E, dali por dian-te, amador passou a ser uma palavra incômoda – ou, usando a linguagem de Bertolt Brecht, o termo passou a causar estranhamento. Naquele tempo, o Teatro de Amadores de Caruaru atraía as atenções e os olhos da sociedade ainda imune à febre da televisão. No Recife chegava a notícia de um festival universitário com oficinas, palestras e espetáculos que, embora sim-ples, prezavam por um trabalho ainda desconhecido por ali: a preparação cênica e corporal dos atores.

Até então fazer teatro em Caruaru seguia uma receita: escolher o tex-to, dividir os papéis e correr para o ensaio. Tudo errado. Aquelas oficinas mostraram isso. Apontaram o quanto era importante preparar o ator teo-ricamente, mesmo que ele tivesse muito talento. Todo aquele escarcéu foi a gota d’água e o impulso que faltava para a criação do Teatro Experimental de Arte (TEA). “Naquele momento, vimos o quanto estávamos atrasados na nossa maneira de fazer teatro”, lembra a atriz Arary Marrocos, que co-meçava a dar as primeiras lições como professora nas escolas caruaruen-ses, quando a cidade vivia o auge de uma produção teatral.

Arary seguiu os passos do marido, Argemiro Pascoal, que foi o nome à frente da fundação da companhia. Argemiro e seu grupo pediram ajuda ao professor Joel Pontes, que integrava a equipe dos acadêmicos. Eles solici-taram e o mestre topou. “Arranjamos hospedagem e durante dois meses, a cada final de semana, vinha um professor do Recife para cá nos dar au-las. Parte do Teatro de Amadores não quis. Quem queria terminou saindo e fundando o TEA, em 17 de julho de 1962.”

Durante 16 anos, os ensaios e encontros do Teatro Experimental ocor-reram no auditório da Rádio Difusora de Caruaru. Em 1978 os ensaios passaram a ser realizados na garagem da casa de Arary e Argemiro. O casal decidiu então que era hora de construir uma sede própria. Tudo aos poucos,tijolo por tijolo, moeda por moeda. Hoje o pequeno palco ita-liano – com uma plateia de 60 cadeiras de plástico, coxias e camarim – guarda nas paredes preenchidas por fotos e cartazes a memória de uma história de mais de cinco décadas.

Desde a criação, o TEA encenou 54 espetáculos, além de promover cur-sos e oficinas de teatro, palestras, debates e seminários. Levou ainda a sua arte a 65 cidades brasileiras. Em agosto do ano passado,o grupo entrou em uma nova fase. Argemiro morreu, aos 83 anos, deixando para Arary e o filho Fábio a tarefa de sustentar um sonho de teatro numa cidade em que os palcos que interessam à grande plateia já são outros: os do forró.

TEATRO PARA TODOS

A criação do TEA foi resultado de uma reverberação de ideias. Havia, sim,

Cena da peça Morte e vida severina, encenada pelo TEA em 1977, sob direção de Agemiro Pascoal

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o desejo de se profissionalizar. Mas o impulso de tudo foi a vontade de fazer do tablado o espelho do povo. Quando a caravana acadêmica chegou a Caruaru, Pernambuco assistia ao crescimento do Movimento de Cultura Popular (MCP). Germano Coelho lançava sua cartilha político-cultural com base nos rebuliços que fervilhavam nas ruas e praças da Europa.

Argemiro Pascoal estava entre os artistas que par-ticiparam da reunião do MCP no Recife. Nascido em Bezerros, ele se mudou para Caruaru aos 18 anos e lá iniciou a carreira teatral. O a-bê-cê da Cultura

Popular chegava à cena do Teatro de Amadores da cidade e, posterior-mente, do TEA através de montagens de textos norteadas pelos pensa-mentos brechtianos. A primeira peça encenada pelo grupo, em 1963, foi Um elefante no caos. O texto de Millôr Fernandes causar a frisson três anos antes no Rio de Janeiro e em São Paulo, mergulhando no teatro do absurdo, refletindo sobre as hipocrisias e a corda bamba dos momentos que antecediam o Golpe de 1964.

O TEA é referência nas artes cênicas pernambucanas. Além de for-mar atores, o grupo foi responsável pelo fortalecimento da cena teatral no interior, criando festival estudantil e mostra com espetáculos nacio-nais. Mas nem tudo são luzes na ribalta. Este ano, Arary recusou o convi-te do Festival de Teatro de Curitiba, um dos mais importantes do Brasil, por falta de verba para arcar com as despesas de viagem, hospedagem e alimentação durante a estada da trupe no Paraná. Em 2012 eles haviam participado da mostra, mas conseguiram o dinheiro com muito sacrifí-cio, pedindo ajuda a empresários locais. A bolsa de Patrimônio Vivo ofe-rece ao grupo apenas uma parte da verba necessária para sua sustenta-ção. Arary se vê dividida entre os cálculos do escritório de contabilidade e as aulas de história do teatro no TEA.

Em 2012, o grupo participou do Festival de Teatro de Curitiba com a peça Auto da Compadecida

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Era mais uma noite de calouros no Circo Democratas e Margarida Pereira de Alcântara queria participar do concurso. Tinha decidido

cantar o bolero Coração materno, de Vicente Celestino, um dos seus pre-feridos. Ela precisava ganhar o corte de tecido e o par de sapatos. Quando pisou no picadeiro, era evidente o seu nervosismo. De repente, uma vaia. Ninguém tinha pago ingresso para ver aquela menina com pouco mais de 9 anos, franzina, catadora de crustáceo, malvestida e descuidada fazer qual-quer coisa. Da plateia, alguém gritava para ela sair e ir tomar banho. “Era preconceito daquele povo. Pedi o microfone e disse que eu estava malves-tida porque não tinha condições de me arrumar e que catava siri para que meus irmãos não precisassem ir para porta deles pedir esmola.”

A meninA que FugiuCom o CirCoÍNDIA MORENA

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O silêncio na arquibancada evidenciou a perplexidade do público. Alguém ensaiou bater palmas, e começaram a surgir novos gritos, desta vez diziam que a menina já tinha ganhado. Talvez a resposta dada já bastasse e lhe tivesse feito vencedora. “Eu disse que eles não podiam dizer que eu tinha ganhado sem cantar. E cantei. Todo mundo parou para escutar.” É possível que a menina nem soubesse o que significavam aqueles tristes versos sobre a ingratidão de um filho. Sua voz firme e seu jeito precoce aumentaram o espanto de quem a assistia e garantiram de vez a premiação. O pano, ela dividiu com as duas irmãs e fez uma roupa para usar com os sapatos no Natal, que estava próximo. Tudo que ganhasse era lucro. Havia perdido o pai há pouco tempo e partilhava com a mãe as tarefas de casa para sus-tentar os quatro irmãos mais novos. Na escola, sequer terminou a quarta série. O Circo Democratas foi embora e a menina ficou.

Pouco tempo depois, uma nova trupe mambembe aparece na vida de Margarida. Um macaquinho na porta de casa, de manhã cedo, assustou a

mãe da menina, que naquela época já tinha 10 anos. O animal tinha fugido do circo que aca-bara de chegar à Vila São Miguel, no bairro de Afogados, comunidade onde ela morava. Margarida foi devolvê-lo ao grupo e conquis-tou a amizade da dona do circo, que depois foi convidada para ser sua madrinha de crisma. A recompensada menina foi ir a todos os espe-táculos de graça. “Logo na primeira apresen-tação que eu fui, a contorcionista me chamou atenção. O nome dela era Linda Morena. Eu olhei e disse: ‘Eu vou fazer aquilo que ela faz. Vou fazer até melhor’. E todo dia eu ia lá ver.”

No dia em que o Circo Itaquatiara foi em-bora, a menina deixou a casa e seguiu com a trupe, auto batizando-se de Índia Morena. O pouco dinheiro que ganhava nas apresentações era o su-ficiente para ajudar a mãe e os irmãos.

Índia, a mais famosa contorcionista do Estado e uma das artistas Patrimônio Vivo de Pernambuco, reside hoje em uma casa simples e pe-quena, em Muribeca dos Guararapes, uma comunidade pobre da Região Metropolitana do Recife, bem próxima a um aterro sanitário. As paredes rachadas chamam a atenção para o perigo em que vivem a artista e sua fa-mília. Ela mora com o marido, uma filha e um neto. Enquanto aguarda o início da reforma a ser bancada pelo Governo do Estado, a mulher guarda entulhados, nas estantes da sala, pastas com recortes de jornais, troféus, car-tas de autoridades, prêmios, fotos e vídeos que durante os quase 60 anos de carreira formam o acervo de uma vida dedicada à arte circense. Na véspera desta entrevista, ela tinha ganhado o título de Mulher Evidência – concedi-do pela Câmara Municipal do Jaboatão dos Guararapes. Um dia depois, foi

Em dezembro de 2011, um incêndio destruiu o trailer do circo da artista. Só restou a lona

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titulada cidadã jaboatonense. “Parece ser um dos maio-res reconhecimentos da minha vida. O que eu não tive na juventude estou recebendo agora na velhice.”

Em dezembro de 2011, um incêndio destruiu o trailer do seu Gran Londres Circo. Um dos artistas da trupe acendeu uma vela e terminou dormindo. “Conseguimos salvar a lona por sorte, porque estava longe. Agora estou sem me apresentar.” Em quase seis décadas, é a primeira

vez que ela fica longe do picadeiro. Índia passou por 50 companhias,integrou o Garcia e o New American Circus, que a levaram à Argentina, ao Paraguai e à Bolívia. Além de contorcionismo,a artista já se apresentou no trapézio voador, na escada giratória e no arame vertical. Aos 69 anos, ela é mestre de cerimônias; mas decidiu também se aventurar na corda bamba social da defesa da classe mambembe.

Com uma vida marcada por tristezas – seu ex-marido, pai de dois dos seus filhos,que morreram ainda bebês, a traiu com uma parceira de circo –, Índia foi parar no hospital. Um problema de pulmão,há cerca de 30 anos, deixou a artista internada. “Eu passei dois meses hospitalizada. Aí, como eu fiz amizade como pessoal, o médico me deixou ficar mais um mês, para eu me recuperar melhor. Foi quando conheci Maviael, também internado por causa do pulmão”, conta. Maviael é o seu atual marido.

Hoje os dois compartilham o amor, a responsabilidade de cuidar da família e do circo. O casal pretende inaugurar um circo-escola e tam-bém está à frente da Associação dos Proprietários e Artistas Circenses do Estado de Pernambuco. O trabalho é duro, requer sacrifícios, recur-sos e valorização. “Eu tenho lutado é por uma classe de minorias. Hoje eu tenho lutado por alcoólatras, drogados, esquecidos e abandonados. Ser artistas de circo não é fácil”, desabafa.

Eu tenho lutado por

uma classe de minorias. (...) Ser artista de circo não é fácil.”

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GRAVURA

CORDEL

&

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pelejAs de um mundo FAntástiCoMESTRE DILA

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Lampião é moreno, chocho e tem olhos azuis. Em Caruaru, no Agreste de Pernambuco, vive escondido em uma casa pequena, com dois quar-

tos apertados e uma sala minúscula, longe de luxos, pratarias, ouros e cou-ros. As paredes frágeis guardam o cangaceiro de traços fortes e pele ama-deirada em tons de verde, preto e azul. Lampião está vivo com esses traços e cores dentro da memória e da obra de José Soares da Silva, Mestre Dila. O xilogravurista e cordelista, que nasceu em 23 de setembro de 1937 (em-bora durante a entrevista ele diga ter nascido em 12 de agosto do mesmo ano) no vilarejo Pirauá, no município de Macaparana, Zona da Mata Norte do Estado, veio ao mundo dez meses antes de Lampião desaparecer (ou morrer assassinado pelas volantes, como narra a história).

Na sua memória de infância, entretanto, ainda sobrevivem não só o se-nhor do cangaço, como detalhes de sua fisionomia e seus feitos. Há 60

anos, Dila descobriu os versos da poesia popular e os desenhos en-talhados na madeira com o pai caricaturista, Domingos Soares da Silva, num sítio na cidade natal. A ligação com cangaceiros também seria herança paterna: Meu pai e alguns dos meus irmãos eram do cangaço. Conheciam Lampião. Eu vi Lampião”. Dila teve 11 irmãos.

Na casa em que mora no Centro de Caruaru – cidade para a qual se mudou desde 1952 –, Mestre Dila empilha as marcas de Virgulino em uma estante de cinco prateleiras, no canto da sala, perto da por-tade entrada. Nas matrizes de madeira e borracha em que talha formas, rostos, animais e palavras, reconstrói com a imaginação as aventuras e as histórias de mitos nordestinos. “Eu gosto de escrever sobre Lampião. É o que vende mais. Sempre falei sobre o cangaço. Escrevia e vendia bem. Tinha pessoas da família dos cangaceiros que compravam de uma vez só uns 100 ou 200 folhetos para distribuir.”

É por detrás do Parque Luiz Gonzaga, principal polo das festas juninas de Caruaru, que fica a casa de Dila. Na fachada há uma placa com sua foto. A casa de dois quartos, de sala e cozinha espremidas,

é um destino de turistas. Eram mais numerosos quando se vendia cordel em dezenas. Hoje a pessoa compra no máximo dois ou três, ao preço de R$ 1 cada. A tradição ensaia desaparecer, mas o desejo de mantê-la viva não para de aflorar.

Os rostos sorridentes nos porta-retratos espalhados pela sala, sob a in-tercessão dos santos e santas enfileirados ao lado da televisão, já não têm nome. Dila, entre olhares baixos e risos de canto de boca, teima com a memória, mas fica nas reticências. Aos 76 anos, as únicas certezas que ha-bitam sua cabeça são escritas em rimas. Nas mais de seis décadas como cordelista e xilogravurista, percorrendo as feiras livres de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Alagoas, a vida lhe rendeu bons causos. Nesse caminho, revelou-se sua fé em padre Cícero Romão e frei Damião, além do seu res-peito por Lampião.

O poeta ainda se recupera de um acidente vascular cerebral (AVC), sofrido

Capa de cordel escrito e ilustrado pelo mestre Dila

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em junho de 2012. Depois de cinco dias internado no Hospital Regional do Agreste, em Caruaru, ele passou a viver sob cuidados da esposa, dona Valdeci, e dos seis filhos. Dila passou meses se mandar e falar. Agora vai aos poucos reaprendendo tudo, com calma e timidez. A mulher pede para que encare a câmara,mas o rosto continua curvado sob a mesinha em que trabalha diariamente,das 8h às 16h. Há muito o que se falar de Lampião, não há tempo para perder.

A vida que Dila leva como poeta popular é a mesma de muitos outros artistas. Para ele, pouco importa a origem dos folhetos no medievo euro-peu. A tradição chegou a esses homens do interior nordestino como ex-pressão de uma cultura oralizada, rimada e ritmada, sob tom de humor e sarcasmo, que foi ganhando espaço nas feiras. Debaixo do sol, com varais de livretos, os cordelistas contam suas narrativas, provocam o público, re-criam o épico e o mítico. No caso de mestre Dila, sua técnica foi cada vez mais aperfeiçoada.

Ele descobriu os artifícios da fabricação de carimbos e passou a usar a borracha na produção de seus trabalhos. Dila lançou um modo par-ticular de imprimir seus cordéis (o que o pesquisador pernambucano Roberto Benjamin chama de “folk-off-set”): seja nas cores diversas que usa em uma só matriz ou nas combinações de várias formas separadas e depois unidas em um conjunto único. A partir dos anos 1970, ele inova e passa a imprimir folhetos coloridos.

Autor de cordéis como O sonho de um romeiro com o padre Cícero Romão e A bagagem do Nordeste, o poeta usa o dinheiro que recebe como Patrimônio Vivo de Pernambuco para ajudar a manter a casa e a comprar os remédios para hipertensão e diabetes. Ele torce para que o dinheiro não atrase. A família se vira como pode. Na sua casa, Dila mantém a editora Art Folheto São José. Além de imprimir os livretos populares, faz rótulos de bebida.

“LAMPIÃO MORREU HÁ DOIS ANOS,NUM INTERIOR DE MINAS GERAIS”

Há sempre um segredo prestes a ser revelado pelo artista. O homem que no passado tagarelava, mas hoje vive de poucas palavras, é dono de uma doçura,mansidão e carinho emaranhados de mistério. A conversa é quase sempre uma visita às memórias. Esquecido pela plateia que o aplau-dia nos anos 1970, o mestre já chegou a ser internado três vezes para tra-tamento psiquiátrico. A fantasia lhe rendeu, socialmente, o nome de lou-co. Mas seu talentos e sobressai. Dentro do mestre poeta,um mundo se move, e a figura de Lampião retorna frequentemente: homem moreno, chocho e com olhos azuis.

O universo dos bandos armados que espalhavam o medo pelo Sertão nordestino no embrião da República (início do século passado), com re-latos de saques a fazendas, ataques a comboios e sequestros, é tão bem

Assista ao vídeo com Mestre Dila

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desenhado aos olhos de Dila que arrebatam as grades do inconsciente dele para se erguer com veracidade nos ouvidos de quem escuta a fala do poeta. Os netos dele, seus sucessores, já não sabem falar de cangaço. Não sabem porque não entendem nada sobre o tema – é o mestre que diz. Na verda-de, Dila parece estar tão a par do que narra, que agora conta uma histó-ria de um Nordeste muito seu. Um Nordeste que talvez só ele conheça. Uma história da qual ele é próprio dono.

Lampião – que para Mestre Dila é uma espécie de Dom Sebastião, o rei português Desaparecido numa batalha contra os mouros e eternamente aguardado – talvez nunca tenha sido tão cultuado quanto dentro desta casa pequena e apertada. Sentado, encostado na parede, com o rosto que vez ou

outra escapa do flash fotográfico, Dila olha a rua e suspira. Ensaia dizer algo. Os segredos e as histórias vão se moven-do dentro dele com as reticências. Um silêncio de quem quer lembrar ou procura a fala: “Morreu há dois anos,num inte-rior de Minas Gerais. Vivia escondido por lá. Muita gente se passava por ele, inclusive aquele que mataram em 1938”, diz, retomando a conversa. O rosto moreno, o corpo cho-cho, os olhos azuis de Virgulino Ferreira da Silva jamais vão sair das lembranças de Dila, que continua a vida talhando madeiras, contado histórias e criando seus próprios fatos: “Para realizar, eu não tenho mais nada”.

TRECHO DE CORDEL

Caruaru de hoje

Deus criou Caruaru!José Rodrigues de Jesus

Lembra 150 anos;Caruaru me conduz

De 1952Me dando conforto e luz

Ipojuca corta ao meioDa fazenda CaruaraAonde Rodrigues SáA sua terra não paraA igreja da conceiçãoPonto zero não é rara

Dr. José Carlos FlorêncioMuitos e Pontes Vieira

Vanguarda, A Defesa, Agreste,E locutores têm fronteira

E o saudoso LídioTeve voz bem lisonjeira

Luiz Gonzaga de OliveiraO saudoso Lula da Vanguarda

Me ensinou artegrafiaGilvan José da Silva, cada camarada,

Como Edvaldo Barros,Ivan Galvão e todas gráficas na parada

Caruaru tem a bençãoQue Deus deu a cada filho

Apenas sou cordelistaAdotado e sem empecilho

Meu pai foi igual a mim

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Aquela pequena sala do burocrático prédio da reitoria da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Recife, nunca serviu como cená-

rio para tantas fotografias como foi naquele dia da coletiva de imprensa convocada pelo professor e escritor Ariano Suassuna. Ainda mais quan-do o cheiro do livro recém-lançado por ele dava pano para as mangas aos jornais do País. Quatro repórteres corriam a caneta sobre o bloquinho de papel. Ariano desta vez não era o foco do encontro, só adjetivava sua desco-berta: um ilustrador que nunca sequer havia escutado falar d’O Romance da Pedra do Reino, nem mesmo do escritor paraibano, virou notícia no Brasil. “O melhor gravador popular do Nordeste”, dizia Suassuna. J. Borges ja-mais esqueceu tudo aquilo – e jamais foi esquecido.

Xilogravurista e cordelista, o mais pop dos artistas Patrimônios Vivos mora em Bezerros, numa boa casa às margens da BR 232, principal rota que liga o Litoral ao Sertão de Pernambuco. J. Borges nasceu num sítio

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a 16 km do centro da cidade, em 1935. “Eu comecei a tra-balhar aos 16 anos, na agricultura, com o meu pai. Aí fo-mos morar na Zona da Mata Sul, em Ribeirão e depois em Escada. Foi lá que comecei a trabalhar com cordel, fazer gravura”, diz José Francisco Borges, 78 anos.

“Chegava nas cidades, colocava o tripé com folhetos e abria a mala. Depois comprei um alto-falante. Quem tinha isso era chamado de ‘camelô rico’. Pobre declamava era no peito bra-

bo. Às vezes, a polícia dava uma bronca, proibia o som. Era uma confusão. Eu vendia bastante”, relembra.

Em meados da década de 1970, Suassuna vivia um auto-exílio. Mas re-solveu abrir uma exceção. Precisava conhecer aquele homem que sabia tra-duzir tão bem a sua obra através da xilogravura. “Mandou me levarem até ele. Eu tive sorte.” A entrevista foi numa terça-feira. “No sábado da mesma semana, já começaram a chegar carros lá em casa e até hoje eu não tive

mais sossego na vida”, brinca J. Borges, que só estudou dez meses e abandonou a escola ainda na infância, por determi-nação da avó, que temia que o neto fosse atacado pelo papa--figo nas ruas de Bezerros.

Foi tudo muito rápido. Nem o próprio J. Borges se dava conta do quanto sua vida ia mudando. Famoso, é talvez o Patrimônio Vivo que mais sabe o valor comercial do seu trabalho. Calcula o preço de cada peça feita na grande prensa que ocupa um es-paço enorme de uma das salas anexas ao seu ateliê. Já levou sua arte para a Europa, países da América Latina e do Norte, ilustrou obras do uruguaio Eduardo Galeano, mas continua gravando as coisas de Pernambuco, “porque os turistas que-rem as coisas daqui”.

“A palavra do velho (Ariano Suassuna) é muito forte. Ele me chamou de melhor gravador popular do Nordeste, na opi-nião dele. E o povo acreditou, rapaz. O povo é besta. Depois ele começou, nas andanças dele, dizendo que eu era o melhor do Brasil. Agora, que ele já não sabe mais o que diz, fala que sou o melhor do mundo”, brinca J. Borges, antes de confessar a razão de tudo isso: “Trabalho no meu traço, nunca mudei. E nunca saí de dentro da minha região”.

TRECHO DE CORDEL

Em 2012, J. Borges ilustrou o livro que reunia contos dos Irmãos Grimm da editora Cosac Naify

A chegadada prostituta

ao inferno

Todas as religiõespra ela escala uma penase o homem lhe abraça

a mulher casada condenamas sabemos que Jesus

perdoou a Madalena

Falar sobre prostitutaé um caso muito sérioque é um ser sofredorsua vida é de mistério

e para sobreviversempre usa o adultério

Perante a sociedadeela é marginalizada

existe umas mais calmase outras mais depravadas

e quem tem mais ódio delasé a própria mulher casada

Ela vive aqui na terraenfrentando um sacrifíciose vende para os homensmuitas se entrega a o vícioenquanto nova se estraga

e faz da miséria ofício

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A VidA seVerinAde um poetA

JOSÉ COSTA LEITE

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Ele nasceu na Paraíba, viajou o Nordeste todo, foi à França, mora em Pernambuco e

está apaixonado por Mossoró. Todo dia é sem-pre igual: Marinês e Gonzaga cantam na vitrola enquanto o cordelista vai colocando em versos, num papel, a criatividade que ferve dentro dele nos 365 dias do ano. “Ninguém vira poeta. A gen-te nasce poeta”, garante José Costa Leite, que, aos 86 anos, conta todos os causos do mundo.

Costa Leite – “tão importante para o Brasil quanto Goeldi”, segundo o seu conterrâneo

Ariano Suassuna – é natural de Sapé, um município de pouco mais de 50 mil habitantes na Zona da Mata paraibana, mas chegou a Pernambuco aos 8 anos, ficando até hoje em Condado. Como um daqueles personagens reti-rantes de João Cabral de Melo Neto, ele e sua família fugiam de uma seca ainda mais estorricante: o pai acabara de ser envenenado a mando de um feitor de usina. “Foi após uma briga por causa de jogo do bicho. O meu pai passava bicho, e o feitor foi dizer que tinha tirado o prêmio, mas na verdade o talão do jogo dele era de um dia anterior. Ele mandou envenenar meu pai.”

Sem jamais frequentar uma escola, o menino foi observando nas feiras públicas as rimas dos poetas. Foi assim, garante, que aprendeu a escre-ver. Costa Leite viveu a infância como um adulto. Foi cambista, mascate e camelô de feira. Em 1947 começou a vender cordel pelas ruas e dois anos depois criou suas próprias histórias: Eduardo e Alzira e Discussão de José Costa com Manuel Vicente. Aos poucos, também foi aprendendo a ilustrar suas rimas com xilogravura, tornando-se, anos depois, uma das grandes referências dos traços nordestinos talhados em madeira.

Atualmente, José Costa Leite já não vai mais às feiras. Vive em casa com a esposa e um neto, mas passa o dia no seu ateliê, nos fundos da residên-cia, escrevendo e ilustrando. Não trabalha sem ouvir as músicas de Luiz Gonzaga e Marinês. É aí que se lembra também do tempo em que com-punha canções, algumas delas gravadas em três LPs pelo Conservatório Pernambuco de Música. “Ave-Maria, hoje, sem voz, não canto nem rapa-riga”, brinca o senhor, que atualmente aproveita o tempo livre para conti-nuar viajando pelo Nordeste, só que agora é por puro divertimento.

O tempo vai dando sinal de fim para o ofício de cordelista. Entulhados em quatro prateleiras num quarto dentro de casa, o escritor guarda 10 mil folhetos, além de matrizes. Não sabe o que fazer com o acervo: “Por favor, anuncie isso na sua matéria. Preciso do dinheiro. Vendo tudo por R$ 20 mil”.

José Costa Leite aprendeu a escrever observando as rimas dos poetas nas feiras públicas

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CERÂMICA

PINTURA

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entre rAíZes e AsAsZÉ DO CARMO

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Antigo Testamento, livro de Gênesis, 2,7: “O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de

vida e o homem se tornou um ser vivente”. Zé do Carmo, que completa 80 anos em dezembro de 2013, é temente a Deus. Nunca quis ser Deus, mas passou a fazer do barro a imagem e semelhança do universo divino. Em Goiana, cidade da Zona da Mata Norte do Estado, o artista vive entre ima-gens sacras e lembranças barrocas. Sua mãe queria que ele fosse padre. O desejo materno, no entanto, perdeu para o preconceito. Diante da imagem de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, o padre renegou o menino de 12 anos. O seminário dificilmente aceitaria um padre negro. Restaria a sacris-tia, aceita como um amém. Mas entre as Ave-Marias, hóstias e novenas,

o menino desafiava os dogmas com a inocência de quem não aceita que dois mais dois são quatro antes de ouvir uma boa explicação. “Por que numa igreja dedicada aos negros as ima-gens dos anjos e dos santos tinham rostos de gente europeia?”, indagava, recriminado pela mãe por heresia.

Aos 6 anos, José do Carmo Souza aprendeu em casa o ofí-cio de artista. Sua mãe, Joana Izabel de Assunção, era lava-deira e uma das mais famosas ceramistas de Goiana. O pai, Manuel de Souza dos Santos, era padeiro e nas horas vagas fazia máscaras de papel machê para serem vendidas nas fei-ras livres. Dos primeiros contatos com o barro foram surgin-do criaturas com feições humanas, que, com toques de ima-ginação de criança, anunciavam uma arte classificada depois de irreverente, desafiadora e nordestina.

“Quando eu era pequeno, costumava ir com os outros meni-nos caçar passarinho,derrubar com badoque. Minha mãe di-zia que eu não fizesse aquilo. Por isso eu geralmente ficava só olhando os pássaros. Um dia, quando voltei para casa, resolvi colocar asas em um dos bonecos que eu tinha feito. E ficou como um anjo. Minha mãe reclamou, disse que aquilo era errado.”

Era tudo muito complexo para a cabeça de uma criança. Havia um due-lo entre o que pensava ser certo e errado. Enquanto andava por entre os bancos da igreja, sob as estátuas santas que compunham a decoração, Zé, menino, não conseguia associar as palavras de igualdade das pregações aos rostos que, a dois palmos dos seus olhos, destoavam dos termos proferidos na igreja. Não dava para entender que os anjos não tivessem as expressões nordestinas, caboclas. E porque harpas, e não sanfonas? Incompreensível também para sua mãe, que logo se opôs à arte do filho. Talvez ela tam-bém tivesse a mesma dúvida, mas preferia silenciar e aceitar com mais um amém tudo o que o padre, a Bíblia e o papa diziam: é assim e acabou-se. “Minha mãe me proibiu de fazer imagens.”

Atualmente, Zé do Carmo deixou o barro para se dedicar às pinturas

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“EU GOSTO DE PROVOCAÇÃO”

A região em que vive Zé do Carmo é uma das referências pernambu-canas dos artistas santeiros. Como elenca o jornalista Jamildo Melo no li-vro Artesanato em Pernambuco, publicado pela Assembleia Legislativa do Estado em 2003, um dos nomes mais conhecidos de Goiana, na década de 1940, foi o mestre Doca, que formou vários artistas como seus discípulos, incluindo o próprio Zé e também seu irmão Antônio.

Por muito tempo, Zé do Carmo seguiu a fórmula comum a muitos dos artistas da cidade. Fez santos, anjos, animais e utensílios de barro com uma forma dogmática. Aos 9 anos, ganhou de um vereador goianen-se um forno para dar acabamento às peças. Mas dentro daquele menino que se dividia entre a arte e a fé havia uma provocação, um desejo de ir além, de criar e mudar.

Com a morte de sua mãe, o mestre passou a ditar suas próprias regras: pôde, de vez, fazer seu artesanato no modelo em que sempre quis. Mas foi na década de 1980 que o nome do ceramista virou, de fato,assunto nacional e até internacional. “(O então arcebispo de Olinda e Recife) Dom Helder Câmara me procurou e pediu para que eu fizesse umas peças para dar de presente ao papa João Paulo II, que estava vindo para Pernambuco”, lembra. Preparadas as peças, novamente a heresia– assim vista pela Igreja – assombrava a arte de Zé do Carmo. “Fiz um trio de arcanjos tocado-res de pífanos e um anjo do cangaço, como um Lampião. Dom Helder mandou voltar o Lampião, avisou que não ia dar ao papa. ‘Como já se viu, um anjo cangaceiro?’, ele me disse.”

Era julho de 1980 quando João Paulo II veio a Pernambuco. Os anjos tocadores de pífanos, segundo a Cúria do Recife, foram entregues a Sua Santidade. O presente rejeitado por Dom Helder, o cangaceiro de asas de 1,5 m, é a única lembrança concreta que o artista tem da visita. A obra está na entrada do ateliê de Zé do Carmo, no Centro de Goiana. Sentado numa escrivaninha de madeira,imerso entre pilhas de pastas e papéis, cercado por miguéis, gabriéis e rafaéis que ocupam as prateleiras, o mestre é uma figura representativa da cidade. Sua casa recebe visitantes diariamente. O senhor mora com a esposa e o filho – ninguém divide o ofício com ele.

São dois espaços com esculturas entulhadas e um sonho de transfor-mar tudo aquilo num museu. O artista, com o tempo, foi guardando pe-ças da sua mãe e de seu irmão. Preserva também as suas próprias– hoje pura lembrança do trabalho que fazia no passado: “Passei muita fome vi-vendo de arte”. Há décadas, Zé trocou a cerâmica pela pintura – após via-gens para exposições no Sudeste e no exterior, e de fugas para tentar uma vida melhor na utópica São Paulo dos retirantes, de onde voltou em 1972. Rendeu-se às telas e às frases de efeito. Um dos seus xodós mais recentes é o Zumbi anjo – o Moisés do quilombo: a figura heroica negra dos Palmares que representa a liberdade de povos. “Mostrei ao padre e ele reclamou.

Assista ao vídeo com Zé do Carmo

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Disse que não tem nada a ver comparar Zumbi com Moisés. Eu disse que tem sim: do mesmo jeito que Moisés libertou o povo do Egito, Zumbi libertou os escravos das senzalas”, explica, em tom ao mes-mo tempo cético e crente, o homem que sobrevi-ve dos quadros e da bolsa vitalícia que o governo do Estado lhe paga mensalmente.

Sua história é contada em uma conversa circular. Ele vai levando o interlocutor de quadro em quadro. Junto de uma pintura, uma fotografia. Gilberto Freyre, aqui, é louvado como “o doutor Gilberto”, o “padrinho” do Vovô Vitalino –que é um Papai Noel caboclo que desfila pelas ruas locais no final do ano.

Entre Pai-Nossos e Ave-Marias, Zé do Carmo vai seguindo sua arte, contrariando a muitos com sua fé. A discordância lhe dá fôlego. Enquanto continua a se ajoelhar e comungar todos os domingos, sob a companhia das imagens da Igreja do Rosário dos Pretos, segue firme no seu jeito nordes-tino de ver o divino. Sobre os dogmas, é pedra: “Eu gosto de provocação”.

Mostrei ao padre e

ele reclamou. Disse que não tem nada a ver comparar Zumbi com Moisés.”

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CAstigo que deu A rAZÃo de ViVer

MARIA AMÉLIA

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Num final de tarde, véspera do dia de Santo Antônio, debruçada so-bre uma mesa pequena, com as mãos engelhadas pelo tempo, Maria

Amélia relembra, tocando o barro, da sua infância, de seus primeiros pas-sos como ceramista. Atualmente, ela é a única mulher ceramista que tem o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco. No seu rosto manso, os pro-blemas de saúde deixaram marcas, sequelas de um acidente vascular cere-bral (AVC). No seu corpo curvo, o derrame deixou dores diárias. Mas nada tirou de dentro dela a menina que continua redescobrindo no barro força e vitalidade.

Maria Amélia, hoje com 90 anos, começou a esculpir aos 8. Era uma brin-cadeira, um “castigo” do pai oleiro, que levava a filha para evitar qualquer traquinagem da menina e lhe entregou uma bacia com água, um paninho e barro. “Ele me mandou sentar e ficar fazendo uns bichinhos.” Era um pai amoroso, coruja, que achava lindas as lagartixas desengonçadas que a filha

fazia para passar o tempo.Nas idas semanais às feiras (sobretudo à de

Carpina), nas quais a família vendia panelas, bacias e jarros, Amélia foi descobrir a inspiração para suas obras. Com sua delicadeza e simpatia, a artista re-produz imagens de anjos e santos com desenho naïf. São lindos e bem trabalhados, com traços de rostos simples e rechonchudos,embora imponentes. Santo Antônio, São José, Santa Luzia e São Jorge, os prefe-ridos de Amélia.

Patrimônio Vivo de Pernambuco desde 2011, ela segue se recuperando do AVC sofrido em agosto de 2012. “Dói tudo. Agora está doendo até na mão. Às

vezes nem posso trabalhar”, lamenta. “Eu não consigo ficar longe do barro. Mesmo quando estou com muita dor ou muito aperreada, chego aqui, pego a argila e me esqueço dos problemas. Ficar parada é muito ruim. É triste.”

No dia da entrevista, Maria Amélia dividia com o filho a tarefa de pre-parar novas peças para serem vendidas na Feira Nacional de Negócios do Artesanato (Fenearte), que acontece anualmente em Olinda. Viúva, a artista tem apenas um filho, Ricardo, de 45 anos. “Eu quero deixar minha profis-são para Ricardo. Ele trabalha, viu? Ele me ajuda. Faz peça, dá acabamen-to. Ele faz tudo certo. Meu pai deixou para mim, e eu vou deixar para ele. Queria que meu neto pegasse, mas ele é preguiçoso”, comenta, queixosa.

Diariamente, nos intervalos do trabalho – agora já mais raros –, Maria Amélia também faz fisioterapia. Uma das mais antigas ceramistas de Tracunhaém, ela orgulha a cidade, mas não abre mão de sua simplicidade e bom humor. Mesmo em meio à queda na venda de artesanato – crise que começou no fim da década de 1990 –, Amélia sempre se mostrou positiva. E continua. Se diz feliz, não se cansa de viver. E redescobre sempre a força no seu grande amor: a arte do barro.

Hoje aos 90 anos, a artista começou a escupir aos 8

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São Francisco de Assis escora as lembranças lentas de Zezinho de Tracunhaém. “Vou começar pelo começo. Num é melhor?”, diz o artis-

ta – que incorporou ao codinome artístico o nome da cidade que fornece o barro que lhe deu fama. Nascido em Vitória de Santo Antão, deixou de se chamar José Joaquim da Silva para assumir outra terra em sua graça. Principal escultor entre os santeiros da Zona da Mata Norte, Zezinho, aos 74 anos, já não dá mais passos largos sozinho. Ele precisa da ajuda dos fi-lhos para atravessar a rua e chegar até o ateliê. A memória responde com hiatos aos estímulos da entrevista.

Zezinho chegou ao artesanato por acaso e necessidade: se tornara pai de uma família que nasceu da aventura de dois jovens. “Aos 20 anos, num domingo,

o FrAnCisCAnoZEZINHO DE TRACUNHAÉM

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noite de lua clara que só o dia, raptei Maria. A gente queria se casar, o pai dela não deixou. Resolvemos fugir. Fomos para Vitória e ficamos morando no sítio da minha irmã, numa cocheira transforma-da em casa. Só depois meu sogro me aceitou e me chamou para trabalhar com ele em Nazaré.”

Em 1966 – quando ganhava a vida arando solo massapê –, em passagem rápida pela vizinha Tracunhaém, descobriu as obras de Lídia Vieira, o primeiro destaque da arte sacra produzida na Zona da Mata Norte. Zezinho percebeu que dava

para ganhar dinheiro e decidiu se arriscar. “Fiz umas coisas bem-feitas. Um dia, a jornalista Mariette Pessoa, da Gazeta de Nazaré, foi à minha casa, viu as peças e me convidou para expor na biblioteca da cidade”, recorda. A primeira Exposição de Arte Popular de Nazaré foi a vitrine de Zezinho. Ele vendeu todas as 60 estátuas pequenas de personagens do cotidiano que apresentou. Com os 120 mil cruzeiros que recebeu, comprou uma casa para morar e outra que transformou em ateliê.

Zezinho ganhou cada vez mais fama no Estado e no exterior – pela deli-cadeza e precisão das suas criações, em tons particulares de terracota. Seu carro-chefe é a produção de peças sacras– “adoro esculpir São Francisco de Assis, pela bondade dele” – mas também envereda por outros mundos. Uma Iemanjá cheia de curvas e rica em detalhes está na catalogação que o próprio artista fez por muitos anos, detalhando peça por peça que produziu.

Com o destaque que ganhou, o analfabeto Zezinho virou porta-voz dos ceramistas. Não se furtou a criticar a falta de união entre os profissionais de Tracunhaém quando, em 1999, a crise os afetou – embora ele, ao contrário, vivesse um bom momento na sua carreira. Hoje, 14 anos depois e também sofrendo com a diminuição na venda do artesanato, Zezinho sustenta a fa-mília com suas peças – agora produzidas com ajuda dos filhos e da esposa – e o auxílio que recebe como Patrimônio Vivo. E alimenta um sonho: co-nhecer o exterior. “Quero dar curso lá fora”, diz o senhor, apaixonado pela família e crente na bondade de São Francisco.

As obras de Zezinho ganharam fama no Brasil e no exterior pela sua delicadeza e precisão em tons de terracota

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No radinho de pilha, no canto da sala, Roberto Carlos canta As canções que você fez pra mim. Mestre Nuca falava sobre Maria. A vida não

tem sido fácil para ele, e as saudades de sua mulher dificultam ainda mais. Tudo agora são lembranças e passos lentos. “Eu me sinto sozinho. Preciso arrumar uma nova companheira, alguém que me faça companhia. Depois que Maria morreu, fiquei muito só. Preciso conversar para que os pensa-mentos ruins não cheguem”, diz o ceramista, que ficou famoso no País por causa dos seus leões de barro.

Aos 76 anos, Nuca esconde o sorriso de canto de boca, ao mesmo tempo em que resmunga por não conseguir mais fazer suas peças. O lado esquer-do do corpo ficou paralisado após um acidente vascular cerebral (AVC). O coração lhe pregou várias peças.

Na casa pequena onde mora em Tracunhaém, Manoel Borges da Silva

leÃo do norteMESTRE NUCA

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construiu uma família de artistas. Dos cinco fi-lhos que teve com Maria, três atuam na cerâmica. Ele nasceu num engenho de Nazaré da Mata em agosto de 1937, mas se mudou para Tracunhaém aos 3 anos. Aos 8, vendia bonecos de barro na fei-ra de Carpina. Foi aperfeiçoando o trabalho. Em 1968, apaixonado pelo Sport Club e influenciado pelo leão da bandeira do Recife, resolveu repre-sentar os bichinhos na argila. As peças, com uma postura altiva e a juba lisa, destoavam da arte fei-

ta na cidade naquela época, quando o barro só dava forma a santos e anjos. “Criei minha família com a minha arte.”

Para falar sobre a carreira, o ceramista vai, aos poucos, puxando os fatos na memória. Em suas melhores lembranças estão a amizade com o ex-go-vernador Jarbas Vasconcelos, um bom comprador, e com a colecionadora e arquiteta Janete Costa. Entre as recordações que hoje doem, estão o amor por Maria e a saudade que ela deixou. Em dezembro de 2012, Nuca ficou viúvo. Foi ela quem deu a ideia de transformar as jubas lisa em pequenos cachos, que se tornaram uma marca registrada do artista.

Morando sozinho, o mestre tem reaprendido a cuidar de si. “O derrame é uma doença triste. Quando não mata, deixa paralítico. Tudo que aconteceu comigo foi por cau-sa da pressão alta. Ela mandava eu cuidar, eu não cuida-va. Agora tenho tomado os remédios.” Ele junta o salário

de aposentado e a bolsa do Patrimônio Vivo para comprar medicamentos. A fisioterapia, que fazia três vezes por semana no hospital da Restauração, no Recife, ele abandonou: “Ficava muito ruim para ir e voltar”. Mas garante que continua a repetir os exercícios que aprendeu no tratamento.

O que mais o incomoda é não poder trabalhar. Em meio à sauda-de de Maria e à impossibilidade de criar, Nuca confessa uma alegria, a de ver seu trabalho reconhecido. “Ser Patrimônio me enche de orgulho. Me deixa feliz saber que represento Pernambuco”, diz o homem que, mesmo triste, parece ter força de leão.

Viúvo desde 2012, Nuca guarda hoje recordações e saudades da sua mulher Maria

Criei minha família com

a minha arte.”“

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Tudo dói. Mas o boi está quase de pé. As costas doem. Mas o casamen-to já está pronto. As pernas e os braços estão cansados. Mas as mãos

continuam remexendo o barro. Tem um Nordeste enfileirado na prateleira de ferro,num ateliê pequeno, imprensado entre as casas de fachadas cho-chas, numa rua estreita e ainda mais apertada pelo aglomerado de gente que se aperta dançando forró. É São João no Alto do Moura, em Caruaru, e Manuel Eudócio, 82 anos, vai se guardando timidamente entre as miniatu-ras de gente que ele faz com as mãos todos os dias. Vai guardando com ca-rinho as suas crônicas coloridas cheias de arquétipos de um povo que vive de saudade e alegria,mesmo quando a vida nem sempre é festa.

“Tive cobreiro em janeiro. Era dor de morrer. Tomei tanto remédio, in-jeção no nervo. Eu sofri tanto no mundo. Emagreci seis quilos. Estou to-mando remédio ainda. Mas sinto dor, cansaço, fraqueza”, diz o artista que,

nos pAssos do mestreMANUEL EUDÓCIO

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além de ser Patrimônio Vivo de Pernambuco, carrega o título de discípulo do Mestre Vitalino. Ele começou na cerâmica aos oito anos. Como muitos, iniciou numa brincadeira. Sua avó, que era louceira, enquanto fazia panelas, dava a ele um pedaço de barro para passatempo. Ali foram surgindo pequenos cavalos desajeitados, mas vivíssimos aos olhos criativos de uma criança.

Nascido no Alto do Moura, Manuel, tímido e orgulhoso, observava de longe o jeito do renoma-do Mestre Vitalino trabalhar. “Ele veio morar aqui

bem pertinho e vi suas peças. Nunca fui pedir para ele me explicar como fazia. Adolescente, eu ia olhando e aprendendo por mim mesmo. Até que comecei a trabalhar direitinho. Aqui tinha bem pouquinha casa e na estra-da nem passava carro. Completou 65 anos que trabalho nessa arte.”

As referências da infância foram ganhando forma na argila. Eudócio, que dançava os olhos vendo as apresentações de reisado, resolveu levar o uni-verso do folguedo para o barro. Uma maneira, segundo ele, de eternizar o brinquedo. “É tão difícil ver um reisado. Quando eu era menino, o reisado começava de noite e ia até o outro dia. A gente só parava para tomar café.” No seu ateliê, a festa foi recriada em mais de 200 peças.

Ao lado de nomes como Vitalino e Zé Caboclo, Manuel Eudócio foi res-ponsável pela valorização da cerâmica produzida no Alto do Moura, que ganhou espaço no rol da arte popular. Protestante, o artista leva uma vida tranquila, em casa, ao lado dos filhos que prometem continuar seu traba-lho. Para quem costumava dizer que, “quando completasse 50 anos, ia fa-zer como Pelé e pendurar as chuteiras”, seu Manuel hoje faz o contrário. “Quando eu adoeço, fico ainda mais doente porque não posso trabalhar.” Entre dores e analgésicos, o mestre segue a vida sem abandonara arte. “Não posso parar”, diz. E se emociona ao falar de Mestre Vitalino, que, segundo ele, morreu abandonado. “Ele estava doente, ninguém queria socorrer.

Usando referências de folguedos nordestinos, Manoeu Eudócio já criou peças vendidas no Brasil e no exterior

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AGREMIAÇÕES

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CoreogrAFiAs dos brinCAntes

CABOCLINHO SETE FLEXAS

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Há nove anos, quando visitava o Recife, a bailarina alemã Pina Bausch se encantou pelo compasso apressado e marcado pelos pés dos ca-

boclos da tribo Sete Flexas.“Ela disse que a gente foi o único balé descalço de que ela gostou”, lembra o mestre José Alfaiate, 89 anos,com um sorriso de canto a canto no rosto. O senhor de voz cansada e jeito calmo criou há 45 anos uma das mais importantes agremiações carnavalescas do Recife, que mantém até hoje numa estreita viela no bairro de Água Fria, na Zona Norte, uma das mais mestiças comunidades da cidade.

Seu José começou a brincar caboclinho muito cedo, aos 10 anos. Apaixonado pelas cores e pelos sons das tribos dançantes, fitava os desfi-les dos Carijós e Canindés. “Eu era fã de Carijós”, lembra. Criado só pela mãe porque o pai morreu quando ele tinha 2 anos, José Alfaiate passava o ano se divertindo nos ensaios das agremiações. Chegou até a entrar para o clube Tabajara, mas não saía no Carnaval porque não tinha dinheiro para comprar a fantasia. “Naquela época, era cada um por si, todo mundo que

comprasse suas roupas. Como eu não tinha con-dições, não desfilava.”

Ao som dos atabaques, preacas (arcos e fle-chas), tarol e caracaxás, o Sete Flexas desfila pe-las ruas do Estado puxado pelas loas (cânticos), colorido com lantejoulas, penas e penachos ver-des e brancos. A jurema – uma mistura de ca-chaça, vinho,champanhe, folhas de alfavaca e mel – limpa o corpo dos brincantes enquan-to a fumaça do cachimbo do pajé abre os ca-minhos e protege o grupo. Os cortejos são for-mados por caciques,curandeiros, guias, curu-mins e caboclos. Nas apresentações eles execu-

tam coreografias temáticas: há as danças do cipó, da rede, da caça e do casamento de uma tribo com outra.

Paulinho Sete, filho de José Alfaiate, coordena tudo. Sempre ao lado do pai, o rapaz é quem vai se preparando para no futuro assumir o cabocli-nho. Criado dentro da agremiação, ele entende e conhece todos os passos e ritmos do folguedo. Foi Paulinho que dançou para Pina Bausch e ensinou à bailarina as coreografias dos caboclos. Em 2005, Pina o convidou para dançarem seu balé, na França. O Sete Flexas é uma das bases de pesqui-sa do dançarino e músico Antônio Carlos Nóbrega, que também convidou Paulinho,na época aos 14 anos, para dar aulas no Teatro Brincante, a escola de artes cênicas do multiartista em São Paulo.

Até conquistar esse reconhecimento entre bailarinos e se tornar Patrimônio Vivo de Pernambuco, a agremiação enfrentou uma longa tra-jetória, que começa em 1968. Quando tinha pouco mais de 40 anos de ida-de, o alfaiate foi tentar uma vida melhor em Maceió, Alagoas. Por lá, numa visita a um centro de umbanda, fez um pedido ao caboclo Sete Flexas e foi

Seu José Alfaiate se lembra até hoje dos elogios que a bailarina alemã Pina Bausch fez ao Sete Flexas, há nove anos, quando ela esteve no Recife

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prontamente atendido. Para agradecer à entidade espiritual, José criou a tribo e deu-lhe o nome do caboclo. “No ano seguinte boteio brinquedo na rua, lá em Maceió. Foi tudo muito simples, as roupas eram camisas de meia e tênis. Ainda assim, ganhamos o prêmio de estandarte mais bonito. Em 1970, voltei para o Recife e registrei o Sete Flexas. Eu trabalhava para o ca-boclinho dos outros e nunca tinha direito a nada. O meu, lutei, pedi muita comissão (dinheiro) no meio do mundo – naquele tempo nem o governo nem a prefeitura ajudavam. Saía batendo nas portas pedindo.”

Assim como o candomblé está para o maracatu, a umbanda está para o caboclinho, que os brincantes consideram uma fonte de energia e proteção. Fiel, José Alfaiate conta que, já morando na capital pernambucana, teve um sonho no qual via médiuns sentados em tendas, incorporando espíritos.“Eu me acordei manifestado, tinha baixado o Sete Flexas”, afirma. “Conheço muito ele hoje. Sempre aparece para mim. É alto, tem cabeça comprida, rosto afilado, com expressão de um índio. Ele é um caboclo sozinho, não tem uma tribo. É um caboclo mestiço.”

A cada Carnaval, uma semana antes das festas, José faz oferendas ao ca-boclo protetor. Leva para mata mel e frutas,a fim de pedir proteção. Em 45 anos de existência, a agremiação só passou por uma situação de conflito.“Eu tive num terreiro nagô e, por sim e por não, mandei botar o jogo. A mulher disse que Sete Flexas queria uma obrigação: uma lebre na mata. Comprei uma, fui com a mãe de santo cortar o bicho na mata e fiz um pedido. Isso foi para limpar a frente do clube no Carnaval. Mas no dia do desfile, quan-do a gente saiu na rua, veio outro bloco,e foi uma briga, uma confusão enorme. Tinha garoto pequeno manifestado com Exu. Pense”, recorda o alfaiate. “Naquele dia a gente estava indo para o Cabo, depois seguia para a passarela de desfile na Avenida Dantas Barreto, no Recife. Tinha uma criança manifestada que dizia que eu ia morrer se fosse para a passarela. Quando cheguei ao Cabo, tive que comprar vela e passar no meu corpo. Nunca peço nada para derrubar ninguém, principalmente meus amigos que têm clube. Minha devoção é pedindo paz”, afirma José.

Assista ao vídeo com José Alfaiate e Paulinho Sete Flexas

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orgulho de umA missÃo CumpridACLUBE INDÍGENA CANINDÉ

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Uma felicidade espontânea ilumina o rosto de dona Juracy Simões a cada quinze dias. Numa cadeira no alpendre da casa onde nasceu e

vive, no coração da Bombado Hemetério, observa as evoluções das mui-tas crianças, jovens e alguns curiosos de fora da comunidade no treino do caboclinho Canindé. “Nasci em Canindé, cresci com Canindé. Canindé é minha vida, minha herança”, diz ela, o sorriso involuntário aumentado no rosto a cada vez que pronuncia o nome da agremiação.

Com 116 anos de história, o Canindé é o mais antigo caboclinho de Pernambuco em atividade – e, portanto, do mundo. Na casa, vida e entida-de se misturam. Num quarto ao lado da cozinha da casa ampla, a imagem de papel machê e fibra de vidro repousa a maior parte do ano em meio às fantasias e alegorias. Só sai para os desfiles ou, de quando em quando,para os rituais espirituais de homenagem e agradecimento.

A escultura, afinal, simboliza a entidade transcendente de um caboclo consagrado pela jurema sagrada, uma manifestação religiosa tipicamente brasileira que funde práticas do candomblé africano ao kardecismo e ao-

xamanismo indígena – para alguns, a mais an-tiga religião do Brasil. “Canindé tem força e nos protege”, diz dona Juracy, também zeladora espi-ritual da agremiação. Brincadeira e religiosidade unidas, os caboclos mais respeitosos costumam frequentar os terreiros de Jurema para saudar e honrar a divindade tratada como Rei Canindé.

Durante os ensaios, o som dos cultos evangéli-cos de domingo na comunidade são abafados pela música hipnótica, mântrica e harmônica do cabo-clinho. A gaita conferindo melodia à marcação do tarol e do também percussivo caracaxá. São eles que conduzem os passos do cortejo relativamente

simples, vestido de penas em alusão à ascendência indígena: porta-bandeira, caciques, puxantes, batedores de flechas, tapuias, curumins, rei e rainha.

Segundo uma apostila que o próprio grupo elaborou para repassar aos membros sua história centenária, Canindé foi fundado pelos estivadores Elesbão e Eduardo, na Rua das Crianças, não na Bomba, mas em Afogados, no distante março de 1897. No princípio, era formado unicamente por crian-ças. Adolescente do grupo, Manoel Rufino, antigo rei de outro caboclinho, recebeu dos fundadores a missão de assumir e manter a tribo.

Além de organizar o grupo, promoveu, dentre outras inovações, a pre-sença de adultos no cortejo. Em princípios do século passado, Rufino se mu-dou com a Tribo Canindé para a Bomba do Hemetério. Mas nem tudo era harmonia. Como estivesse desrespeitando ou negligenciando princípios sa-grados do caboclinho, Rufino começou a receber críticas sucessivas até sua expulsão, por parte de outros dirigentes, na década de 1950. Os principais descontentes com a atuação de Rufino eram os próprios irmãos, Severino e

Washington Guedes, Juracy e Nana

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Miguel Batista da Silva. Expulso, Rufino participou de várias agremiações, sem nunca se fixar em uma delas. Virou o que se chama de “caboclo corre--campo”. Severino Batista da Silva, o mestre Bibiano, assumiu a direção. Ele é o pai de dona Juracy, a menina que veio ao mundo no meio da cultu-ra do caboclinho em 1945. Com o acidente vascular cerebral que acometeu seu pai em 1984, a herdeira assumiu a agremiação. “Foi muito difícil, mas Canindé mostrou sua força para seguir”, diz ela. Mestre Bibiano passou dez anos como presidente de honra de Canindé até 1994, ano de sua morte.

“Juracy é a primeira mulher a dirigir um caboclinho em Pernambuco e, portanto, no Brasil”, diz o amigo,professor de música e gaiteiro da Tribo Canindé, Washington Guedes. Ele e a sobrinha Nana são os parceiros dire-tos e constantes de dona Juracy na condução da agremiação. “São os her-deiros de Canindé”, aponta a líder. Dona Juracy não teve filhos.

Com ela, Canindé, organizado, profissionalizado, passou a acumular tí-tulos até não mais poder. Foi o início do tempo também de muitas viagens ao exterior e da consagração de Canindé como horsconcours entre as agre-miações tradicionais do Carnaval do Recife. Embora tenha sido, em 1935, um dos fundadores da Federação Carnavalesca de Pernambuco, Canindé já não desfila mais em busca de troféus. Ao longo da trajetória, acumulou nove títulos consecutivos do Carnaval de Pernambuco.

“Canindé já cumpriu sua missão,não pode competir mais. Já fez seu papel na passarela”, diz dona Juracy. “Não existe como competir com um caboclinho como Canindé”, diz ela, enquanto prova uma fatia da melancia na bandeja que será servida aos brincantes assim que terminem de treinar as manobras e passos simbolizando movimentos de guerra, aproximação e recuo, entre tribos rivais. Caboclinho é dança guerreira.

BRUNO ALBERTIMAssista ao vídeo com Juracy Simões

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Era 19 de outubro de 1996 quando,no sítio do famoso Pai Adão, em Água Fria, bairro da periferia do Recife, os atabaques anunciavam uma

mudança importante. No lugar em que reside a matriz do culto nagô em Pernambuco, Afonso Aguiar era escolhido presidente do Maracatu Leão Coroado, o mais antigo maracatu-nação do Estado em atividade ininter-rupta – que em dezembro completa um século e meio. Naquele ano,a agre-miação não havia desfilado por falta de integrantes. Por causa da crise, os orixás foram consultados. Nanã escolheu e avisou a Mestre Luiz de França. Herdeiro do folguedo criado pelo seu pai, ele entregou seu tesouro antes que fosse tarde,antes que tudo virasse peça de museu.

Nanã, a senhora poderosa que sabe como afastar a morte, é uma das

Com A bênÇÃo de nAnÃMARACATU LEÃO COROADO

Fotos: Ricardo B. Labastier/JC Imagem

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mais respeitadas orixás. Talvez por isso não hou-vesse o que temer, pois o futuro do Leão Coroado estava em suas mãos. Mestre Luiz perguntou, Nanã ordenou. O veterano pediu para que Afonso tam-bém consultasse a divindade, e ela reiterou a ordem: o maracatu precisava de um novo presidente,e essa pessoa tinha que ser Afonso.

A transição foi mediada pela Comissão de Folclore da Cidade. Os folcloristas e pesquisado-res Roberto Benjamin e José Fernando de Souza e

Silva e o babalorixá Manuel Papai estavam à frente da cerimônia. Manoel, su-cessor de Adão no terreiro, era uma provável indicação para ser o novo presi-dente, mas não quis a responsabilidade. Afonso aceitou, embora não soubesse nada sobre maracatu. Entretanto, já era naquela época um dos privilegiados sábios dos mistérios da tradição iorubá, da religião nagô, o candomblé.

Com tantos atributos de fé, Afonso é intransigente com o lado profano da festa: “Maracatu é mais religião do que Carnaval”. Há 17 anos à frente dana-ção, ele rege os tambores do Leão Coroado – fundado em 8 de dezembro de 1863, no centro da capital pernambucana – seguindo à risca todo o aprendi-zado que herdou de Luiz de França.

Atualmente, o folguedo se localiza em uma das mais conhecidas comu-nidades da periferia de Olinda. Em Águas Compridas, as ruas são estreitas e espremem ainda mais as casas – ora trepadas em dois andares, ora ras-teiras, com portas e janelas escancaradas. São bairros como esse que abri-gam boa parte das pessoas e dos grupos culturais descendentes de negros em Pernambuco. Foram empurrados, pela especulação imobiliária, para lugares cada vez mais distantes do centro.

Por uma viela e outra, chega-se à sede do Leão. A voz forte de Afonso dá as boas vindas. Na garagem da casa simples, acontece a conversa. Basta um olhar ao redor para perceber que naquele espaço tudo respira mara-catu. O estandarte da agremiação, vermelho e branco – cores de Xangô –, saúda quem chega. A peça,guardada com cuidado, envolvida em um saco plástico para proteger da poeira que sobe da rua sem calçamento, foi um dos objetos que o presidente recebeu durante a cerimônia de transição, em 1996. Junto com ele vieram duas calungas, bonecas que guardam os espí-ritos dos ancestrais, os eguns protetores da nação.

Com ajuda do pesquisador Roberto Benjamin e dos outros integrantes da Comissão de Folclore, Afonso conseguiu restaurar os instrumentos e as roupas, recolocando o Leão Coroado na rua no Carnaval de 1997. Atualmente quem es-cuta a agremiação de longe logo reconhece a batida de suas alfaias, dando gin-ga a cerca de 90 integrantes. O toque de Luanda, com a cadência mansa e lenta da percussão,relembra o som que embala as toadas – ou recados, na linguagem afrorreligiosa – do candomblé. O nome da nação tem ligação clara com o título dado ao Estado após a guerra contra os holandeses no século 17, na Insurreição

O Leão Coroado é o mais antigo maracatu-nação de Pernambuco em atividade ininterrupta

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Pernambucana (1645-1654). O “coroado”, por sua vez, refere-se à sua realeza.A cor da pele, os cabelos brancos e a voz forte do Mestre Afonso são um re-

trato de tudo o que ele representa e honram as heranças deixadas pelo povo africano. Nada que se aprenda em livros: religião e cultura foram repassadas oralmente de uma geração para outra. Os princípios da cultura afro-brasilei-ra guiam o Leão Coroado, cuja fé é depositada em Xangô. “Há grupos por aí que estão fazendo da cultura um trampolim de artista: é mestre tal, música de mestre tal. No Leão Coroado, nós não estamos preocupados com essa fama. Queremos é preservar a tradição”, diz o presidente, babalorixá ortodoxo.

Por causa do desvirtuamento religioso, Afonso retirou o Leão do circui-to oficial do Carnaval do Recife, em que há disputa entre maracatus. A deci-são causou polêmica, mas, segundo o mestre, foi uma abertura de caminhos para a nação. Por não se render à pasteurização e às mudanças estruturais às quais muitas nações têm aderido– como a renúncia dos instrumentos típicos e a abertura para integrantes não iniciados no candomblé –, ele optou por sair das competições. “Hoje os maracatus saem por aí com toques dos abês... É bo-nito demais, só que não é coisa de maracatu. No toque do candomblé, da nação nagô, não há abês. Todos usam abês e dizem que são nagôs. Fazem isso por causa da competição. Mas eu não vou me passar para uma coisa dessas”, justifica.

Quando Nanã aprovou a nomeação de Mestre Afonso na presidência do Leão Coroado,marcou o início de mais uma etapa na história do grupo – que ao lon-go dos seus 150 anos chegou a ter sua existência pos-ta em xeque. A agremiação assistiu à modernização do Estado e sofreu seus impactos. Fundada por um estiva-dor, nasceu no centro da capital, em meio a atividades portuárias, mas teve a sede transferida. Passou por Afogados e Água Fria até chegar a Águas Compridas.

Embora distante do centro, o maracatu sempre refaz, no Carnaval, os caminhos do passado. Sob a proteção da calunga Isabé, o Leão Coroado entoa cânticos saudando os orixás. No Recife, concentra suas celebrações no Pátio do Terço, ponto de encontro de todas as nações. Quando o baba-lorixá Afonso recorreu à sabedoria dos santos do terreiro sobre a possi-bilidade de deixar o concurso do Carnaval, não imaginava que seria tão abençoado. Depois disso tudo mudou. O Leão Coroado foi reconhecido como Patrimônio Vivo de Pernambuco,recebeu o prêmio Cultura Viva, do Ministério da Cultura, e se tornou um dos grupos que mais viajou pelo mundo como representante da cultura afro-brasileira.

“Eu defendo a cultura da gente, embora seja difícil. Graças a Olorum e aos orixás, nós ainda temos essa bolsa de R$ 2 mil, do Patrimônio Vivo, que nos dá um jeitinho para caminhar, restaurar as roupas, os instrumentos, ajudando também nas nossas viagens.” Como o dinheiro das apresentações (cobram ca-chê de R$ 5 mil) não dá para remunerar os integrantes, cabe ao mestre cativar o apoio dos membros. “Aqui todo mundo desfila por amor”, orgulha-se.

Veja galeria com fotos do Leão Coroado

Maracatu é mais

religião do que Carnaval.”Afonso Aguiar, mestre e presidente do Leão Coroado“

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destino trAÇAdono brinquedoESTRELA DEOURO DE ALIANÇA

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Lourenço relutou e renegou mais de três vezes antes de aceitar o seu des-tino. Nunca gostou de maracatu e reforçou o desinteresse quando foi

estudarem Aliança. Ele fora mordido pelo bicho da urbanização, epidemia na Zona da Mata Norte de Pernambuco. “Quem iria namorar gente de ma-racatu?”, pensou. Queria ser da Marinha. Não adiantou. O caminho escrito pela vida deu conta de desaguar seu rio num oceano de encanto. Em 1991, décadas depois da fuga, Lourenço voltou de vez ao sítio Chã de Camará para assumir a herança deixada pelo pai, o mestre Batista: entre terras e plan-tações, havia um maracatu de baque solto, o Estrela de Ouro de Aliança.

O pai de Lourenço era nome conhecido na região. Nasceu em 1934, seis anos depois de Aliança se emancipar. Batista era filho único e cresceu sob os cuidados da mãe, dos avós e do tio materno. Em casa, foi descobrindo a cultura popular. As festas da família sempre foram entranhadas pelos fol-guedos. Sua mãe, Joana, entretanto,nunca deixou que entrasse para o brin-quedo. Mas era impossível conter o brincante que vivia em Batista. Em 1º de janeiro de 1966, um ano depois da morte de Joana, ele fundou o Maracatu

Estrela de Ouro. Tesouro que preservou até sua morte, quando o legou para Lourenço.

“Ele via em mim a continuação. Como eu não quis, respeitou minha decisão. Fui morar no Recife aos 17 anos e voltava em Aliança de vez em quando. Ia ver meu pais e apresentar no Recife, mas nunca quis saber de participar.” Hoje, José Lourenço, 59 anos, refaz quase diariamente o tra-jeto da capital até a sua cidade natal. Nesse cami-nho, da janela do carro, vê que a estrada que cor-ta o canavial não é mais de barro. Parte do verde é coberta pela poeira das construções e duplica-ções da rodovia. Agora, mais do que nunca, vá-

rios bichos da urbanização picaram a Zona da Mata. Mas essas estradas de cana-de-açúcar ainda abraçam as cores e o reluzir de uma tradição mística e sedutora, ritmada pelos chocalhos dos homens caboclos.

Foi desse feitiço que Lourenço não conseguiu escapar. Mesmo sem mui-tos recursos, ele investiu todo o dinheiro que tinha no maracatu. Aos pou-cos, em parceria com o produtor cultural Afonso Oliveira, foi criando e aprovando projetos em editais públicos – estaduais e federais. Em 1998, o Estrela de Ouro gravou uma das faixas do CD Maracatu atômico. De 2000 a 2005, o grupo foi vice-campeão do Carnaval do Recife. Em 2004, o sítio Chã de Camará – que abriga também um cavalo-marinho, um boi, um gru-po de coco e uma ciranda – foi titulado Ponto de Cultura pelo Ministério da Cultura, recebendo por isso, no período de três anos, cerca de R$ 185 mil. Com essa verba, Lourenço fez a reforma do espaço, a manutenção das roupas e dos instrumentos e comprou equipamentos audio visuais. A in-ternet, agora, é uma porta sempre aberta para quem vive no local. Antes

O sítio Chã de Camará é um Ponto de Cultura que além do maracatu abriga um cavalo-marinho, um boi e um grupo de coco e ciranda

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de terminar essa entrevista, uma foto do encontro já estava no Facebook do maracatu.

Lourenço não consegue esconder que foi arre-batado. O mesmo brilho que se destacava nos olhos do mestre Batista há 60 anos ressurge na mirada do filho. “Hoje eu acredito em destino”, responde o homem, que não sabe para quem vai deixara tradi-

ção. No Recife, suas duas filhas também não se interessam pelo folguedo. Uma estuda medicina; a outra, direito. Mas é ele quem diz: “Nunca se sabe o que a vida prepara para a gente”.

No sítio Chã de Camará, anexo à sede do Estrela de Ouro, há o Centro Nossa Senhora da Conceição – Pai Mário, do babalorixá que também é rei do brinquedo. O espaço abriga os rituais cuja essência é guardada como um segredo pelos participantes do maracatu. A cada Carnaval, os brin-cantes passam por ritos de purificação espiritual, que incluem abstinên-cia de sexo e de bebida alcoólica. No caso do Estrela de Ouro, a cerimônia não é obrigatória. Só participa quem quer.

Para tocar o folguedo, Lourenço conta ainda com a ajuda de dois mestres. Negro de rugas bem desenhadas e sorriso cativante, Zé Duda, 75 anos de vida, 65 de maracatu, puxa as toadas. O tímido Zé Luiz é o mestre dos caboclos de lança. O primeiro é alfabetizado só no folguedo. Nunca aprendeu a ler. “Estudar endoida. Eu lá tinha tempo? Só pensava em maracatu.”Desconfiado, o segundo tem olhos que escapam ao interlocutor e traz uma peixeira presa à cintura. Com a cabeleira amarela, caminha com seus homens como um guardião. Guerreiros misteriosos cortam o canavial sob a proteção sagradadas golas reluzentes, bordadas à mão com lantejoulas de cores vivas. Das linhas estreitas traçadas sob a poeira, eles fazem um caminho de arte, tradição e fé.

Nunca se sabe o que a vida

prepara para a gente.”José Lourenço, presidente do Estrela de Ouro de Aliança

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Mestre Gilmar consegue associar,de forma espontânea, omaraca-tu ao significado das três palavras escritas nas paredes da sede

do Estrela Brilhante de Igarassu: “amor, vida, paz”. Negro, descenden-te de escravos africanos, ele aprendeu que esses atributos estão nas bati-das das alfaias que marcam, a cada cortejo, o compasso das baianas, da rainha e da dama do passo.

Aos 5 anos, Gilmar começou a brincar maracatu. Aos 16, já ocupava a função de mestre. Além de ditar o ritmo das alfaias, também comanda o

A dinAstiA dosreis do CongoESTRELA BRILHANTEDE IGARASSU

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coco de roda que movimenta as noites de sexta fei-rado município, na Região Metropolitana,a 30 qui-lômetros do Recife. Ensaios do Estrela Brilhante são raros. Só quando há uma nova loa. “O pessoal do ma-racatu mora aqui, já toca há muito tempo,não precisa ficar ensaiando”, afirma.

O Estrela, uma das agremiações mais antigas do Brasil, foi fundado em 1824. No seu livro Viagens ao Nordeste do Brasil, escrito no início do século 19, o pes-quisador inglês Henry Koster conta que o grupo teria

começado na Ilha de Itamaracá, numa das cerimônias de coroação dos Reis do Congo, da qual participavam escravos e negros livres, sob a sombra dos vigá-rios da paróquia. É a origem do maracatu de baque virado em Pernambuco.

A genealogia dos batuques do conhecidíssimo folguedo de Igarassu – que já foi tema de matérias na TV, pauta de jornais locais e do exterior e fi-gurante de novela – começou com o bisavô de Gilmar, seu João Francisco. Ele repassou as alfaias e o estandarte para Manoel Próspero de Santana, seu genro, casado com Dona Mariú. Foi ela, no entanto, que se transfor-mou na grande estrela da nação, em que esteve desde os 12 anos no posto de dama-regente, ou dama do passo. Era como uma guardiã, que portava a calunga Emília, na qual estão os ancestrais pretos-velhos da nação. A bo-neca, dedicada a Oxum, é cuidadosamente vestida de amarelo, com muitos acessórios, e guardada a sete chaves.

Dona Mariú morreu em 2003, aos 104 anos de idade, cinco anos antes tinha entregado à filha, Olga Santana, o posto de matriarca do maraca-tu. No seu centenário,em entrevista ao JC, Mariú explicou que, por es-tar debilitada fisicamente,entregou a agremiação à filha. “Tive 19 filhos. Nasceram 16 de tempo e três foram abortos, mas só criei nove. Somente dois entraram no maracatu – Olga e um outro que já morreu. Se ainda fos-se vivo, teria entregado o maracatu a ele. Organizar a brincadeira é muito serviço para Olga sozinha”, declarou.

Gilmar nasceu sob o matriarca do Estrela Brilhante. Viu sua avó en-tregar o folguedo à mãe. E ficou ao seu lado desde então. No último dia 3 de agosto, Dona Olga morreu, aos 74 anos, após sofrer dois infartos.

Gilmar assumiu seu destino e, além de mestre, acei-tou o posto de novo presidente da agremiação.

A vida não estava fácil para a matriarca. Em no-vembro de 2011, quando ela deu entrevista ao JC sobre a calunga Joventina – a primeira boneca do maracatu, foi roubada há mais de 100 anos, recu-perada e hoje é exposta no Museu do Homem do Nordeste –, as sequelas de um acidente vascular cerebral nublavam as suas lembranças, embara-lhavam passado e presente.

Em agosto de 2013, após a morte de Dona Olga, Gilmar assumiu o posto de presidente do Estrela Brilhante de Igarassu

A agremiação, fundada em 1824, tem sua origem nas cerimônias de coroação dos Reis de Congo, na Ilha de Itamaracá

Foto: Beto Figueiroa/JC Imagem/28-2-2006

Foto: Ricardo B. Labastier/JC Imagem/8-11-2011

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Com um estilo de comando menos apaixonado que suas antepassa-das, Gilmar dá início a uma nova fase na história do Estrela Brilhante de Igarassu. Dita as regras lançando sobre o grupo um olhar muito centrado na música e nos batuques – em detrimento à religiosidade do folguedo. “Eu não gosto muito de falar sobre religião. Tem gente que fica dizendo que para participar de maracatu tem que estar na macumba. Não tem nada a ver. Eu tenho minha religião, eu gosto, faço minhas obrigações. Mas mara-catu é só um folguedo, é uma brincadeira. Por isso que a gente tenta sepa-rar uma coisa da outra”, diz o novo presidente. Na agremiação, que ainda preserva a separação entre o masculino e o feminino – mulher não toca; homem não dança –, o sagrado não é exposto ao público.

Se no passado, no início de tudo, há quase 200 anos, o racismo assombra-va o maracatu, hoje o que preocupa os brincantes é a falta de envolvimento da comunidade – que dona Mariú já disse ter sido a grande força do Estrela Brilhante. “Ainda existe gente batendo na tecla de que maracatu, coco e ciranda é coisa de negro, de pobre e catimbozeiro. Coisa de rico e branco é ópera, música clássica e MPB. Juntar o povo que gosta de maracatu está cada dia mais complicado. Adolescente só gosta de brega. A gente tem uns jovens que tocam, mas são da nossa família”, diz o mestre, que ministra oficinas na sede do grupo, em outros Estados e fora do País. “Para assumir o maracatu é preciso conhecê-lo, estudar, saber tocar todos os instrumentos”, afirma.

Um maracatu que corre o risco de se esvaziar é motivo de apreensão. É preciso atrair os jovens de volta para o folguedo. O Estrela Brilhante de Igarassu tem papel de destaque na cultura pernambucana e não se pode permitir que a sua história se perca.

Veja a galeria com fotos do Maracatu Estrela Brilhante de Igarassu

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o CAlungA de iemAnjáO HOMEM DA MEIA-NOITEo CAlungA de iemAnjáO HOMEM DA MEIA-NOITE

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Às 18h do Sábado de Carnaval, pontualmente, começa uma festa que quase ninguém conhece. Uma celebração em surdina, trancada a sete

chaves. Inebriado pela cachaça, um homem cumpre a tarefa mais misterio-sa de Olinda: vestir o Homem da Meia-Noite. Talvez haja música ou oração como trilha sonora. Alguns objetos – que não podem ser revelados de jeito nenhum – são jogados no chão. Representam oferendas, pedidos de prote-ção, num ritual para abrir caminhos. Há apenas uma mulher entre vários homens. E só uma criança entre vários adultos. “Seriam para Iemanjá os

pedidos?”. “Digamos que sim. Digamos que o ca-lunga tem força própria, mas que Iemanjá o prote-ge”, responde Luiz Adolpho, presidente do Clube de Alegoria de Crítica O Homem da Meia-Noite. A agremiação carnavalesca, uma das mais famosas de Pernambuco, ganhou fama no Brasil e no mun-do graças ao carisma do seu gigante. O Homem da Meia-Noite é Patrimônio Vivo de Pernambuco.

O bloco surgiu em Olinda em 7 de janeiro de 1931, de uma dissidência da troça Cariri – que abria a fo-lia da cidade nos primeiros raios de Sol do domin-go de Momo, por volta das 5h, desde 1921. Um en-canador, um marceneiro, um pintor de parede, um sapateiro e um encadernador de livros romperam com a agremiação e montaram seu próprio brin-quedo. Saíram de forma tímida à meia-noite do sá-bado. Como estandarte, apenas um relógio e uma chave gigantes. “Aí ficou uma rixa entre a gente e o Cariri, para saber quem abriria o Carnaval de Olinda”, lembra Luiz Adolpho, 49 anos, há 11 à fren-te do grupo – foi eleito presidente em 2002, após a morte do pai, Tárcio Botelho, que por 11 anos ditou as regras do bloco.

Só em 1932 a cidade foi apresentada à personifi-cação do galanteador que dá nome à agremiação, O Homem da Meia-Noite. Luiz explica que a peça é um calunga e não recomenda que o tratem por

“boneco”. Ele já nasceu gigante, com 3,5 metros e 50kg, no dia de Iemanjá, 2 de fevereiro. Saiu à Rua do Amparo pela primeira vez embalado por uma orquestra de frevo, acompanhado por, naquele momento, dezenas de fo-liões. Inspirado na curiosa figura de um boêmio que circulava pelas ruas olindenses às madrugadas e pulava as janelas das donzelas para seduzi-las, O Homem da Meia-Noite estampa um sorriso largo, como brilho de um dente de ouro, embelezado por um elegante fraque e uma gravata borbo-leta, além de uma inseparável cartola.

“O Homem foi feito por seu Benedito Bernardino da Silva, um dos

Na virada do sábado para o domingo, O Homem da Meia-Noite desfila pelas ladeiras de Olinda

Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem/18-2-2012

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fundadores do bloco, e outros dois carpinteiros. Benedito era músico tam-bém e compôs o hino. Algumas pessoas acreditam que a saída do calunga no dia de Iemanjá à meia-noite, um horário místico, foi planejada. Outros dizem que foi coincidência”, diz o presidente. Defensor da tese de que O Homem da Meia-Noite nasceu propositalmente naquele dia e hora, Luiz Adolpho leva adiante uma trajetória de misticismo. “Há muitas coincidên-cias ao longo desses anos na vida de quem faz parte dessa história. Uma delas é que a segunda sede do clube ficava na Rua do Amparo, número 301, onde hoje eu moro. Comprei essa casa sem saber disso. Ou seja, O Homem saía do quintal da minha casa”, conta Luiz, num tom de voz tão enigmático quanto os fatos que ele cataloga.

Nesses 82 anos da agremiação, O Homem da Meia-Noite se tornou fi-gura sincrética em meio a uma festa profana. A multidão que se aglomera à porta da pequena casa de fachada estreita e colorida em verde e bran-co, no Sábado de Zé Pereira, aguarda a pontualidade do senhor misterio-so. Essa é quarta sede do grupo, a definitiva. Em pleno pátio da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, na Cidade Alta de Olinda, no bairro do Bonsucesso, a saída da troça é sempre um momento único, que vai além do frevo e dos clarins, e termina entrando em um patamar religioso.

Quem está do lado de fora nem sequer imagina o que existe do lado de dentro da sede. Um ritual é preparado, bem antes, para a saída do calunga. Desde o momento em que é vestido até os minutos que antecedem a meia--noite, o gigante é envolvido em um clima de adoração. “Para se ter uma noção, eu só toco no Homem quando ele já está totalmente vestido. Porque antes disso só toca nele quem bebe cachaça. Eu não bebo”, explica o presi-dente, que se nega a entrar em detalhes sobre a cerimônia de preparação do desfile. “Quando ele sai por essa porta,há quem trema, há quem chore, há quem fique encantado. É sempre muita emoção.”

ALÉM DO CARNAVAL

Luiz Adolpho nunca se imaginou presidented’O Homem da Meia-Noite. Só decidiu concorrer às eleições para o posto quando seu pai mor-reu. Quis honrar o nome de Tárcio, já que uma outra chapa falava mal dele. Concorrendo com o bonequeiro Sílvio Botelho, Luiz ganhou. Desde 2002, ele se divide entre a sala de aula e as responsabilidades com o bloco. Professor de educação física em quatro escolas da cidade, o carnavalesco lançou uma administração com caráter bem político.

“Nossa gestão foi responsável por abrir as portas de O Homem da Meia-Noite para além da comunidade. Demos nova dimensão a ele. Fizemos par-cerias com jornalistas e pessoas públicas; cuidamos da estrutura da sede e da própria imagem do calunga.” No ano passado, após a morte do al-faiate oficial d’O Homem, Seu Brasil, a figurinista pernambucana Xuruca Pacheco foi convidada para assumir o posto, que a partir de então será

Ouça o Hino do Homem da Meia-Noite, interpretado pelo Coral Mocambo

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renovado a cada ano (o nome de 2014 é guardado em segredo, bem como o tema que o bloco vai abordar).

Em outubro de 2002, quatro meses depois de tomar posse, Luiz Adolpho criou o projeto Gigante Cidadão, que oferecia aulas de dança, música e te-atro para 70 crianças e jovens das comunidades próximas ao Largo do Amparo e do Bonsucesso, em Olinda. A ação, que chegou a ser ponto de cultura, acabou em 2009, mas o presidente já pensa em sua retomada, as-sim como também planeja a criação de uma escola de frevo, a primeira da cidade para formar tanto músicos quanto passistas. Segundo Luiz, o caráter social pesou positivamente na hora da seleção do bloco como Patrimônio Vivo de Pernambuco em 2006. “Não foram só a história e a tradição. O lado social foi decisivo para nos transformar em patrimônio”, afirma.

Graças à bolsa vitalícia, o clube teve a sede reformada, onde ficam expos-tos quadros, fotografias e uma réplica do gigante feita pelo conhecidíssimo pai dos bonecos olindenses, Sílvio Botelho. Além disso, um pequeno mu-seu, no primeiro andar, reúne troféus, reportagens e vídeos sobre o bloco. O espaço fica aberto à visitação de quinta a domingo, a partir de novembro até o Carnaval. “Não ficamos abertos o ano inteiro por falta de segurança pública e de uma estrutura de turismo da Cidade Alta, o que é uma pena.”

O Homem da Meia-Noite virou também números e contabilidade. Figura tarimbada e recorrente quando o assunto é representar Olinda ou o Carnaval pernambucano, o calunga é o ícone mais lembrado, junto com a sombrinha de frevo. Essa demanda também pode custar caro. A figura do galanteador foi patenteada pelo clube. “Dependendo de como ele está sendo usado, a gente cobra direitos de imagem. Porque havia umas em-presas de publicidade que faziam campanha tendo a figura do calunga em destaque sem pagar nada. Agora esse dinheiro é também mais uma forma de a gente manter o bloco”, explica Luiz.

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Nossa Senhora já intercedeu por todos eles: a menina que queria ser médica passou no vestibular; o homem acidentado, que por pouco

não foi degolado pela carcaça do carro, ficou sem sequelas. Nossa Senhora sai todo ano da senzala para a igreja. Há mais de 200 anos que o manto azul e branco é carregado pelos negros nas ruas de Floresta, sob o forte sol do Sertão das manhãs de 31 de dezembro. A mãe de Cristo intercedeu por todos eles. Mercedes, João, Maria,Antônio, José, Celina, os quase 60 marianos dobram os joelhos diante da imagem da mulher branca, mãe

sAlVe A Virgem mAriA dos negrosCONFRARIA DO ROSÁRIO

Fotos: Ricardo B. Labastier/JC Imagem

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também dos escravos que trocaram o iorubá pelo latim. Aqui são todos confrades, crentes na Virgem Maria.

Em frente à Igreja de Bom Jesus dos Aflitos, na calçada da pequena casa de número 111, eles vão se sentando. Vão arrastando os bancos para fora, enfileirando as cadeiras de balanço. É final de tarde na cidade cujo pas-sado é marcado pela troca de farpas, tiros e juras de morte entre as famí-lias Novaes e Ferraz, que assombra os moradores desde 1913. Dezenas de pessoas foram assassinadas por questões políticas. A última cena trágica no município foi em 1999, quando o então prefeito Oscar Ferraz Filho foi morto ao sair da missa. Mas Nossa Senhora, aquela da imagem veneravel-mente guardada no armário de madeira antiga, protege todos.

A casa da Confraria do Rosário é centenária: foi doada pelos senhores aos descendentes do povo negro escravizado,que hoje dobram os joelhos e re-zam a Salve-Rainha. Os fazendeiros deram essa casa aos escravos para que

eles ficassem aqui durante a fes-ta; para não se misturarem com o povo branco. Maria das Mercês tem certeza disso. Historiadora e professora do ensino fundamen-tal da rede de escolas públicas de Floresta,ela é rainha perpétua da confraria e vive essa história des-de criança.

“Não temos uma eleição para ser perpétuo. Cada posto é passa-do de geração em geração. A últi-ma rainha foi minha tia (Lúcia de Amaro), que passou o posto para mim, como a avó dela passou para ela”, explica Mercês. “Minha tia

sempre participou das reuniões. Eu também, desde pequena. Até que ela adoeceu e descobriu que estava com ‘cê-á’ (Mercês teme pronunciar a pa-lavra câncer, a doença que matou sua tia). Numa reunião ela disse que os postos dela seriam meus.”

Em 2009, quando Lúcia foi obrigada pela vida a deixar de ser majestade para sempre, a sobrinha assumiu a coroa. Hoje é rainha e juíza de rainha. Mas até 2024 emprestará o trono a outras mulheres, devotas que alcança-ram graças pela intercessão de Nossa Senhora e prometeram, como retri-buição, serem rainhas. “O posto de rei e de rainha tem sempre uma pessoa fixa. João é rei perpétuo, mas a gente só assume a coroa quando não tiver ninguém pagando promessa”, explica.

Na Confraria do Rosário de Floresta do Navio, há leis e estatuto. Para ser confrade, a pessoa tem que frequentar por dois anos ininterruptos as reuniões do grupo. Participar de todas as atividades. Fielmente. Depois

Festa da Confraria do Rosário acontece em Floresta, no Sertão de Pernambuco, há mais de 200 anos. Na foto, registro da celebração na década de 1960

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desse tempo, o conselho superior – formado por juízes (ou conselheiros, anjos da guarda, prote-toras, guias) da bandeira, da rainha, do rei e dos espadachins, e pelas próprias majestades– decide se abre ou não a “porta do céu” da confraria para aquele cristão.

A TRINDADE LANCEIRA

Na aspereza da geografia sertaneja, no passado acre da escravidão, o canto dos negros que traba-

lhavam nas grandes fazendas da região aos poucos foi domesticado pela catequese. Nas terras das propriedades Curralinho, Paus Pretos e Fazenda Grande, às margens dos rios Pajeú e São Francisco, surgiu a povoação de Floresta. Na segunda metade do século 18, o chão rachado daquele Sertão guardava, temporariamente, o gado que vinha da Bahia para abastecer os engenhos de açúcar pernambucanos. Os negros trazidos do Congo aravam o solo e cuidavam dos bichos.

Das senzalas vinham orações. No único dia livre do ano, os escravizados louvavam a liberdade agradecendo à Virgem Maria. O primeiro registro oficial da procissão data de 1792, mas a devoção deve ter começado antes.

É madrugada ainda, no dia 31 de dezembro, quando os confrades saem às ruas em cortejo. O rei vai buscar a rainha. Os espadachins abrem o ca-minho, riscando as espadas no chão, tirando faísca do atrito. Os fiéis aplau-dem, acompanham o itinerário com fanfarras. No final, todos se confra-ternizam ao som de maracatu e frevo. Todo mundo quer tocar no manto da realeza. “A roupa abençoa quem a toca”, dizemos que creem. Foi assim

que Dona Ursulina, 64 anos, obteve uma graça.“Faz 20 anos. Meu irmão foi para o Recife e, no

caminho, sofreu um acidente. O carro capotou e fal-tou um milímetro para ele não ser degolado pelas ferragens”, lembra. Ursulina se ajoelhou. Rezou o terço e pediu a intercessão da mãe de Cristo. “Se meu irmão sobrevivesse, eu seria rainha. E ele ficou bom.” A gratidão foi recompensada com um vestido lindo, daqueles vistos nas revistas de moda, cheio

de pequenos espelhos e lantejoulas, reluzindo o brilho do sol – que parece mais perto daquela gente do que da gente de qualquer outro lugar. Ursulina, hoje juíza da rainha, é também um catálogo ambulante de quase todas as promessas dos outros. Lembra-se de tudo.

A história de Rosa Ferraz, por exemplo, Ursulina sabe de cor e salteado. Já faz tempo, a moça rica estudava no Recife e queria ser médica. Pediu para que Nossa Senhora a ajudasse a passar no vestibular. Aprovada, a futura doutora prometeu ser rainha por um ano. Rosa fez o oposto dos

Imagem de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos guardada na sede da Confraria

Nós, negros, botamos

muito luxo. (...) É a tradição: muito brinco e leque.”Dona Ursulina, juíza da rainha

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confrades pretos: vestiu a roupa mais simples. “Nós, negros, botamos mui-to luxo. Enquanto Rosa foi de alpercatinhas, bem simplezinha. Ela é bran-ca. Nós, negros, somos amostrados. É a tradição: muito brinco e leque.”

O bê-a-bá católico apostólico romano, entre credos e ladainhas, foi en-raizado no sangue dos descendentes dos primeiros confrades. Foi assim com Manoel Cassiano, 27 anos, que já nasceu dentro da Confraria. Nem imagina como é viver fora do grupo. Repassa a criação para o filho. Ele e os outros mais jovens são a extensão de uma ponte que liga passado e fu-turo. Entendem que têm uma responsabilidade de levar adiante uma fé tão particular, de uma irmandade criada ainda na época da escravidão como fruto de uma catequização dos povos negros.

Aqui só se fala no Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mun-do. O Cordeiro que, sob a forte intercessão mariana, ilumina e protege os negros de uma cidade de terra acre, de sol desabrido e de seca severina. Nossa Senhora já intercedeu e continua intercedendo por todos eles.

Veja galeria com fotos da Confraria do Rosário

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MEMORIAM

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Senhores e senhoras donos do seu tempo, os Patrimônios Vivos de Pernambuco representam para a arte do Estado um novo capítulo da

história de sua cultura. São como pontes, que unem passado e presente, corpo e movimento, memória e criação. Inscrevem, com suas obras, no-vas tradições pernambucanas. Quatro desses mestres já se foram, mas deixaram para o futuro um legado que a morte não consegue apagar. Refundaram a vida.

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MESTRE SALUSTIANO (1945-2008)

Famoso no Brasil e mundo afora, Mestre Salustiano foi um dos mais conhecidos brincantes merecedores do título. Patrimônio eleito em 2005, entre os primeiros nomeados, sua história foi coroada de desafios, perseverança e glórias. Saiu da Zona da Mata para Olinda na década de 1960. Trazia con-sigo o maracatu de baque solto e o cavalo-marinho que fize-ram parte da sua infância,presentes do avô João Salustiano.

Mestre Salu deixou também sua herança, preservada até hoje pelos 15 filhos. Aprendizado que rompeu a barreira do divertimento e virou lição de vida.

Num sítio na Cidade Tabajara, na periferia olindense, Salu construiu sua fortaleza. Além de moradia, o espaço se transformou há dez anos na Casa da Rabeca, onde acontecem apresentações culturais,palco de resistência dos ca-boclos de lança. O chão é de cimento batido, as paredes decoradas e o teto com bandeirolas, tudo cercado de casas onde mora parte da família de brincantes. Após a morte do mestre, em agosto de 2008, aos 62 anos, de problemas car-díacos provocados pela doença de Chagas, os filhos dele assumiram também a liderança do Maracatu Rural Piaba de Ouro. A memória e o trabalho de Salu são guardados com orgulho pelos herdeiros, entre rabecas e fotografias. Eles pretendem criar um museu, o Centro de Referência da Cultura Popular Mestre Salustiano, onde o material ficará exposto para pesquisa e visitação.

ARLINDO DOS OITO BAIXOS (1941-2013)

Nos anos 1960, num sábado de show na Exposição de Animais do Recife, Arlindo dos Oito Baixos viu seu ídolo pela primeira vez bem de pertinho. Luiz Gonzaga pisava no mesmo espaço em que ele acabara de se apresentar. O Rei do Baião pediu um sanfoneiro no palco e Arlindo foi chamado para tocar de novo. Quando acabou, o Velho Lua, já famoso, elogiou o jovem. Foi assim que o destino selou uma longa amizade entre os dois sanfoneiros.

Patrimônio Vivo de Pernambuco nomeado em 2012, Arlindo começou a tocar sanfona ainda na infância, em

Sirinhaém, na Zona da Mata Sul. Aos 18 anos, foi tentar a carreira de músi-co e, aos 23, dividia seu tempo entre shows e o trabalho como barbeiro em Beberibe, no Recife. Um dia, pediu a Luiz Gonzaga para gravar um disco. O ídolo concordou em apadrinhá-lo, desde que ele trocasse seu acordeom por um de oito baixos. Batizado pelo Rei do Baião, nascia então Arlindo dos Oito Baixos, não apenas um exímio instrumentista, como também o melhor con-sertador e afinador de sanfonas de Pernambuco. Depois de uma vida inteira dedicada à música nordestina, ao forró em especial, Arlindo morreu no dia 23 de outubro deste ano, por problemas de saúde decorrentes da diabetes.

Filhos e netos do Mestre Salustiano dão continuidade ao trabalho de valorização da cultura popular, na Cidade Tabajara, em Olinda

Arlindo era referência na tradição da sanfona de oito baixos

Foto: Priscilla Buhr/JC Imagem/18-2-2013

Foto: Alexandro Auler/JC Imagem/13-12-2007

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ANA DAS CARRANCAS (1923-2008)

No Sertão pernambucano, na divisa do Estado com a Bahia, Ana das Carrancas fez sua história, continuada com firmeza no trabalho de duas de suas três filhas: Ângela Lima e Maria da Cruz. A artista – Patrimônio Vivo em 2005 – nasceu no município Santa Filomena, em Pernambuco, e morreu em 2008, aos 85 anos, após uma parada cardio-

vascular. Ela sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) em 2004 e viveu os últimos dias com a saúde muito debilitada. Filha de uma índia e de um descendente de escravos, ela aprendeu em casa a arte do barro. Sua mãe, para sustentar a família durante os períodos de seca, fazia jarros e pane-las para vender nas feiras do interior. Fugindo da estiagem, Ana chegou a Picos, no Piauí,onde se casou, teve duas filhas, adotou a terceira, enviuvou e se casou novamente, com José Vicente de Barros.

Em 1954, o áspero clima sertanejo lhe fez descobrir Petrolina, cidade à beira do perene Rio São Francisco, onde juntou o barro à lenda das car-rancas, imagens que protegiam os barqueiros contra os maus espíritos. “Mamãe era uma mulher batalhadora. A gente só não passou fome porque ela sempre trabalhou, buscou alguma coisa para fazer. Ela foi uma super mãe”, lembra Maria da Cruz. De expressões fortes e traços bem definidos, as carrancas de Ana foram ganhando fama não só por desobedecerem à tradição das peças de madeira (a maioria produzida na região), mas tam-bém por uma peculiaridade: as figuras sombrias e lendárias que ela criava ganharam olhos vazados. Uma homenagem que a artista fez ao marido, que era cego. Toda a obra deixada por Ana está atualmente reunida no Centro Cultural Ana das Carrancas, em Petrolina, criado na antiga casa da artista. Administrado por suas filhas, o espaço recebe diariamente es-tudantes e turistas que vão conhecer o legado marcado na cerâmica.

CANHOTO DA PARAÍBA (1926-2008)

Embora não fosse pernambucano, o músico Canhoto da Paraíba foi nomeado Patrimônio Vivo com muito orgulho para o Estado, em 2005. Nascido em Princesa Isabel, no Sertão paraibano, numa família em que música era quase sobrenome, o neto de clarinetista e filho de violonista se transformou em uma referência do choro brasileiro. Ele chegou a Pernambuco em 1958, após morar por seis anos em João Pessoa. Sonhou alto e começou a carreira musical ainda adolescente, aos 16 anos, em 1953, quando assinou con-trato com a Rádio Tabajara, na capital do Estado vizinho.

A influência do avô e do pai e a convivência com artistas

O músico incorporou à sua obra elementos de ritmos regionais

Ana das Carrancas recebendo o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, em 2005, acompanhada da filha Maria da Cruz

Foto: Alexandre Belém/JC Imagem/30-1-2006

Foto: Rodrigo Lôbo/JC Imagem/31-1-2006

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da sua terra natal tornaram-no um músico completo. Canhoto, ele ficou co-nhecido também pela maneira com a qual dedilhava o violão, de modo in-vertido, sem alterar a ordem das cordas – já que dividia o instrumento com os irmãos destros. A cultura popular pernambucana influenciou grande parte de suas composições. O músico incorporou à sua obra elementos de ritmos como frevo, xaxado, xote e baião, e ganhou a admiração de nomes como Paulinho da Viola, Radamés Gnattali e Baden Powell.

Canhoto da Paraíba morreu em abril de 2008. Morava com a filha na ci-dade de Paulista. Dez anos antes, já tinha se afastado da carreira musical, após sofrer uma isquemia cerebral.

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bAstidores

Assista ao vídeo sobre a produção do especial Pernambuco Vivo

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