Perseguições as religiões afro brasileiras

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL

    CAMPUS DE COXIM - MS

    CURSO DE HISTRIA

    BRUNO FEITOSA HENRIQUE

    SACRALIZAO E RESISTENCIA: A CONSTRUO DO PRECONCEITO RACIAL E AS PERSEGUIES S RELIGIES AFRICANAS NO PERODO DO ESTADO NOVO (1937-1945) NA

    CIDADE DO RIO DE JANEIRO

    JULHO DE 2013

  • BRUNO FEITOSA HENRIQUE

    SACRALIZAO E RESISTENCIA: A CONSTRUO DO PRECONCEITO RACIAL E AS PERSEGUIES S RELIGIES AFRICANAS NO PERODO DO ESTADO NOVO (1937-1945) NA

    CIDADE DO RIO DE JANEIRO

    Trabalho de Concluso de Curso, apresentado a Banca Examinadora como requisito parcial para obteno do titulo de Licenciado em Histria, sob orientao da Prof Ms Dolores Puga Alves de Sousa.

    CAMPUS DE COXIM - MS JULHO DE 2013

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    Sacralizao e resistencia: a construo do preconceito racial e as perseguies s religies africanas no perodo do Estado Novo (1937-

    1945) na cidade do Rio de Janeiro

    Monografia defendida e aprovada pela banca examinadora constituda pelos professores

    ________________________________________

    Prof Ms. Dolores Puga Alves de Sousa - UFMS

    ________________________________________

    Prof Ms. Luiz Carlos Bento - UFMS

    ________________________________________

    Prof Fernanda Reis - UFGD

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    DEDICATRIA

    Dedico este trabalho a pessoa mais especial que conheci na vida. Estania Leandra Feitosa Henrique, minha me. A ela dedico e agradeo por ter me guiado e orientado na vida, e se hoje sou o que sou, dedico inteiramente a ela. Em boa parte deste trabalho, conforme as pesquisas iam avanando, foi necessrio que segurasse as lgrimas, pois este assunto me remete demais a sua presena. A voc, me querida, dedico a minha vitria.

    Dedico tambm a meus dois amores, Maria Aparecida dos Santos Eloy e Ana Alice Eloy Henrique. Vocs so o que me mantm confiante e feliz. A vocs duas dedico tambm esta vitria.

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    AGRADECIMENTOS

    Durante todos esses anos em minha formao acadmica, pude perceber a importncia de se ter como base pessoas que acreditam e que nos motivem a continuar em um caminho estreito, porm de grandes conquistas. desta maneira que gostaria de agradecer primeiramente a Deus que me deu a vida e fora para conquistar meus objetivos, e tambm a todas as pessoas que fazem parte de minha histria, que direta ou indiretamente, me ajudaram na concretizao deste trabalho.

    Agradeo aqui minha esposa Maria Aparecida que me aturou durante os momentos de estresse em virtude de prazos para entregar atividades e outros.

    Agradeo aos meus pais pelo apoio inconteste durante todo o meu perodo escolar no deixando que o desnimo se abatesse sobre mim.

    Aos meus amigos e acadmicos, Gislaine Martins, Deivison de Deus, Fernando Cunha e Tarcisio Ribeiro, que me receberam de forma calorosa quando cheguei no meio do curso e que me ajudarm numa rpida adaptao ao Curso. Muito obrigado!

    A todos os professores, sem exceo, que contriburam muito para a pessoa que me tornei e para a minha formao como historiador.

    A professora Dolores Puga Alves de Sousa, minha orientadora, que sempre me acolheu e se mostrou solcita para com todas as minhas dvidas.

    A professora Eliene Dias que me deu uma luz inicial acerca do tema a ser pesquisado neste trabalho.

    A professora Fernanda Reis que mesmo residindo em outra cidade nunca se furtou em contribuir comigo em minhas dvidas.

    Ao professor Luiz Carlos Bento que sempre se mostrou disposio em me ajudar em minhas angstias e preocupaes em relao a este trabalho.

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    Ca, oh meu pai Xang Cura a minha dor

    Que o mal de amar Lavo por voc meu ser

    Que pra no deixar nosso amor morrer

    Vou botar na pedreira oferenda Pra que pai Xang me atenda

    Fazendo meu pranto secar A paz que eu carrego de pedra

    E at meu pedao do reino Do meu glorioso orix

    Ca, oh meu pai Xang Cura a minha dor

    Que o mal de amar Lavo por voc meu ser

    Que pra no deixar nosso amor morrer

    Prece a Xang Roberto Ribeiro - 1978.

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    SUMRIO

    INTRODUO ......................................................................................................................10

    CAPTULO 1 - A primazia da raa: dominao e resistncia no contexto da escravido.....................................................................................................15

    1.1 A primazia da raa..................................................................................16 1.2 A cultura enquanto processo de resistncia............................................25

    1.3 Resistncia negra: a recriao da frica pela via religiosa.....................29

    CAPTULO 2 - Ogum ou So Jorge? O sincretismo no processo de sobrevivncia cultural negra e a inveno do baixo espiritismo...................................................36

    2.1 A frica aqui: as relaes sincrticas no contexto brasileiro..............39

    2.2 Entre Kardec e o Preto Velho................................................................50

    2.3 A caa aos charlates: a inveno do Baixo espiritismo....................55

    CAPTULO 3 - Guerra macumba: a loucura e a criminalidade na sociedade do trabalho........................................................................................................63

    3.1 Ventos de modernidade: a ascenso de Getlio Vargas.......................65

    3.2 Igreja Catlica e Estado Novo: o Brasil sob o signo da cruz................70

    3.3 Macumba: o diabo, a loucura e a criminalidade na sociedade do trabalho........................................................................................................74

    Consideraes finais ...................................................................................85

    Referncias bibliogrficas............................................................................89

    Fontes...........................................................................................................92

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    RESUMO

    Este trabalho tem por objetivo discutir a consolidao do preconceito racial no pas e sua associao com as religies afrobrasileiras, colocadas como apangio de criminosos e loucos, sobretudo no perodo compreendido pelo regime ditatorial de Getlio Vargas, o qual, promoveu uma grande aproximao com a Igreja Catlica tendo em vistas a popularizao e consolidao de seu projeto de poder. Para tal, abordaremos a chegada das teorias raciais, suas bases espistemolgicas e sua participao na formao da sociedade brasileira. Em seguida abordaremos o sincretismo religiosos enquanto processo de sobrevivncia cultural. Por fim, ser explicitado o perodo de maior recrudescimento das aes repressoras para com as religies afrobrasileiras que correspondeu ao perodo do Estado Novo.

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    Introduo

    As religies afrobrasileiras podem ser definidas como uma manifestao religiosa que resulta de uma reelaborao das vrias vises de mundo provenientes das matrizes africana, europia e indgena, que aqui se desenvolveram a partir do sculo. XVI, trazidas pelas mos dos cativos da frica1. Entretanto, torna-se muito comum incorrermos no erro de considerar a cultura africana, sobretudo a religiosa, como uma unidade monoltica e uniforme.

    Faz-se mister ressaltar que os cativos africanos no provinham de uma s tribo ou regio. No existia uma unidade tnica, por conseguinte no se observava uma uniformidade tanto religiosa quanto de costumes. Podemos citar os nativos da etnia Jje-Nag (atual Benim) como o grupo tnico que de fato ir difundir e cultuar em solo americano as prticas religiosas advindas do continente negro, inclusive fundando as primeiras casas de culto desta religio no Brasil.

    Em fins do sculo XIX, uma gama de novas idias aporta no Brasil. Tais idias buscavam explicar a sociedade de uma forma geral sob os auspcios do cientificismo naturalista. Preconizava sobre a diferena entre os homens, qualificando-os como pertencentes a espcies diferentes devido tonalidade da pele. Estava estabelecido assim o conceito de raa, que tornar-se-ia uma das bases em que se fundou a sociedade brasileira.

    Baseados nesses conceitos, que propunham a raa como primazia para qualificar os homens, diversos estudos foram propostos como ferramentas para se entender as diversas mazelas que grassavam na sociedade de fins do sculo XIX e incio do XX. Disciplinas como a Antropologia Criminal, que procurava identificar caracteres fsicos que supostamente identificavam um comportamento criminoso futuro, popularizaram-se nesse perodo.

    Essa tentativa de se estabelecer uma previso acerca do comportamento criminoso ou desviante vai recair sobre a populao negra como uma marca de nascena, como se o negro j estivesse predestinado marginalidade. Isso por meio de estudos em voga poca, como por exemplo, de Nina Rodrigues2 que conceituou os transes medinicos das

    1 BASTIDE, Roger. Estudos Afro Brasileiros. Ed Perspectiva. 3 Ed. So Paulo, 1983.

    2RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista do negro na Bahia. Rio, 1939.

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    religies afrobrasileiras como pertencentes sugestionabilidade do negro, este ltimo extremamente ligado s paixes em contraponto com a racionalidade do branco.

    Nesse contexto, a religio do negro deixava de ser uma manisfestao cultural e de culto aos antepassados, para ser inserida na seara das patologias mentais. Essa associao atuava como mais um carter depreciador da figura do indivduo negro. Embasado por essas anlises, o que se observou foi a institucionalizao do preconceito racial, ento referendado pelo discurso cientfico.

    Sobretudo no que tange religiosidade negra, observa-se uma imbricao entre o preconceito de cor e a religio afrobrasileira. A dialtica entre cor da pele e religio um importante fator que dar o tom para o entendimento da sociedade de fins de sculo XIX e incio do XX. Refora esse discurso a penetrao dos preceitos catlicos que atuaram no sentido de demonizar a prtica religiosa africana, estabelecendo uma luta simblica entre o bem e o mal.

    Com a popularizao dos jornais, e ao passo que estes se faziam inserir no cotidiano da sociedade, notcias depreciativas veiculadas naqueles, serviram para ajudar a na construo de esteretipos sobre as prticas religiosas negras e para legitimar perseguies futuras.

    O trabalho com fontes peridicas mostrou-se importante no sentido de nos fornecer um registro dinmico dos fatos ocorridos na poca de escopo deste trabalho. A sociedade de massa se caracteriza pela velocidade de mudana nos aspectos relacionais daquela. Entretanto, necessrio que se proceda a uma crtica acerca deste tipo de fonte.

    Segundo Ana Maria de Almeida Camargo o historiador deve se precaver em relao s armadilhas reservadas pela imprensa, pois, de acordo com a autora, aquele corre um grande risco de ir buscar justamente o que se quer confirmar, sobretudo quando se desloca uma linha ou uma palavra. Por esse vis de anlise prossegue

    A pouca utilizao da imprensa peridica nos trabalhos de Histria do Brasil parece confirmar nossas suposies. Alguns, talvez, limitem seu uso por escrpulo, j que encontram, to em evidncia e abundncia, as "confirmaes" de suas hipteses - e com a mesma facilidade, tambm, argumentos contrrios. A maioria, porm, pelo desconhecimento, pela ausncia de repertrios exaustivos, pela disperso das colees. Quando o fazem, tendem a endossar totalmente o que encontram, aproximando-se de seu objeto de conhecimento sem antes filtr-lo atravs de crtica mais rigorosa.

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    Maria Helena Capelato alerta para a parcialidade dos peridicos o que, frisa, atuam em favor de interesses estando intimamente ligados a uma ordem social. Assim descreve tal atuao

    estudos histricos no Brasil tm dado pouca importncia imprensa como objeto de investigao, utilizando-se dela apenas como fonte confirmadora de anlises apoiadas em outros tipos de documentao. A presente pesquisa ensaia uma nova direo ao instituir o jornal O Estado de S. Paulo como fonte nica de investigao e anlise crtica. A escolha de um jornal como objeto de estudo justifica-se por entender-se a imprensa fundamentalmente como instrumento de manipulao de interesses e de interveno na vida social; nega-se, pois, aqui, aquelas perspectivas que a tomam como mero "veculo de informaes", transmissor imparcial e neutro dos acontecimentos, nvel isolado da realidade poltico-social na qual se insere.

    Por essa anlise, podemos observar que o uso do jornal como fonte ao passo que nos permite uma viso mais prxima do cotidiano, se deve faz-lo com ressalvas, pois, se trata de uma abordagem que fatalmente est relacionada a interesses na ordem social.

    Aps a implantao do regime ditatorial de Getlio Vargas no poder em 1937, o Estado Novo, inicia-se o perodo de maior perseguio ao candombl e s religies de matriz africana. Essa transformao poltica e econmica pela qual passava o Brasil fez

    surgir alguns movimentos contrrios aproximao entre a elite e o povo. Segundo Ana Cristina de Souza Mandarino:

    A busca pela instaurao de uma nova ordem mais prxima das aspiraes daqueles que pensavam a necessidade de um Brasil moderno, no condizia com uma sociedade onde a presena de negros e de seus rituais impuros pudessem proliferar.

    Assim podemos observar a poltica do Estado Novo que enveredou-se pelo controle do aspecto cultural e o fez de forma incisiva. No se podia pensar na construo de um novo pas, de um pas moderno se esse ainda se encontrava arraigado a prticas tribais e atrasadas. Modernizar significava por excelncia se aproximar de aspectos europeus e rechaar todo lao que o ligasse frica.

    Significava tambm criar mecanismos e aparatos jurdico-legais para reprimir essas manifestaes culturais e seus seguidores. Fato natural, se pensarmos que Vargas afirmava ter o Brasil nascido sob o signo da cruz. A unio entre o poder temporal e o poder secular representou uma luz de oficialidade aos ditames da Igreja Catlica no Brasil da dcada de 1930.

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    Os cultos afrobrasileiros associavam-se a criminalidade, loucura, devassido e luxria. Acreditava-se, tambm, que a mistura entre negro e macumba, quando combinados, promoviam loucura e criminalidade. Essa forte influncia de teorias evolucionistas marcou todo o estudo e norteou a temtica sobre a cultura negra na poca. Os negros eram, pois, considerados elementos de segunda classe e sistematicamente associados a uma srie de desvios de carter e mental. Todo macumbeiro era associado a um possvel criminoso ou delinquente3

    Assim, o objetivo do presente trabalho discutir a consolidao do preconceito racial no pas e sua associao com as religies afrobrasileiras, colocadas como apangio de criminosos e loucos, sobretudo no perodo compreendido pelo regime ditatorial de Vargas.

    No primeiro captulo abordaremos a insero das teorias raciais, suas bases epistemolgicas e sua penetrao no seio da sociedade do final do sculo XIX. Veremos a adoo de princpios eugnicos como forma de se evitar a miscigenao em uma populao j extremamente miscigenada. A seguir, passaremos a tica da cultura como elemento de resistncia face dominao sociopoltica.

    No segundo captulo explanaremos sobre o sincretismo como forma de resistncia e de permanncia da religiosidade negra. O sincretismo afrocatlico4 marcou, pelo vis religioso, permanncias que se observam at os dias atuais, no tocante a celebraes e cerimnias em que se imbricam elementos tanto africanos quanto catlicos. Posteriormente, ser adentrada a questo das religies afrobrasileiras enquanto componentes do baixo espiritismo e, por conseguinte, alvo de perseguies por parte dos aparatos jurdicos e policiais.

    No terceiro captulo abordaremos a questo da guerra macumba, ou seja, o recrudescimento das aes persecutrias com os cultos afrobrasileiros. Para atingirmos o

    3MANDARINO, Ana Cristina de Sousa. (No) deu na primeira pgina: macumba, loucura e criminalidade. ARACAJU. Editora UFS: Fundao Ovido Teixeira, 2007.

    4Sincretismo afrocatlico refere-se a interpenetraes culturais e religiosas no mbito do catolicismo com as prticas ritualsticas africanas. Para mais ver VALENTE, Waldemar. O sincretismo afrobrasileiro. So Paulo, 1953.

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    objetivo proposto operaremos uma breve contextualizao do perodo da dcada de 1930 com a implantao do regime estadonovista, personificado na figura de Getlio Vargas. Verificaremos tambm como se deu a aproximao desse regime poltico com as aes da Igreja Catlica, a qual atuou como um elemento legitimador, ou antes, popularizador das premissas polticas de Vargas.

    Finalizando, procuraremos estabelecer um paralelo entre o preconceito fundado nas premissas racialistas de tericos como Agassiz e Gobineau, e as aes polticas que buscavam a interdio simblica do negro, e de seus aspectos culturais, sobretudo o seu aspecto religioso, sob a gide de um regime autoritrio que se propunha civilizador e modernizante.

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    CAPTULO 1 - A PRIMAZIA DA RAA: DOMINAO E RESISTNCIA NO CONTEXTO DA ESCRAVIDO.

    Quando se fala em cultura africana, e, mais precisamente, em religies afrobrasileiras, o que se tem em mente de incio algo associado ao demonaco, ao subversivo, ao status de segunda classe. Esse prisma nos foi legado por todo um processo de aculturao e desqualificao ao qual os cativos africanos, ao pisarem no solo brasileiro, foram submetidos. Coisificados, destitudos de seu capital cultural e poltico se viram impelidos a reconstruir de forma simblica a sua terra de origem em um ambiente hostil.

    Sob os auspcios do sistema capitalista mercantil que grassava no mundo durante os sc XVIII e XIX, principalmente, em que a atividade comercial que obteve maior pujana foi o comrcio escravista, atividade muito rentvel, sobretudo durante o perodo aqui aludido. Conquanto se fazia necessrio, ainda, um aspecto que legitimasse esse sistema para que pudesse operar de forma legal, tanto do ponto de vista jurdico quanto do ponto de vista moral, perante a sociedade da poca.

    Nesse aspecto mister destacar o papel de primazia que a Igreja Catlica desempenhou no perodo. Tal instituio implantou o primeiro aspecto de interdio simblica cultural. Quando pisavam em solo brasileiro, os escravos eram de imediato batizados, caracterizando assim uma condio de ilegalidade de seus aspectos religiosos nativos. Eram tambm alfabetizados em outro idioma e entregues aos seus senhores.

    Segundo os dogmas do Catecismo da Igreja Catlica, o primeiro dos sacramentos de iniciao crist o batismo. Ele o caminho do reino da morte para a vida, a porta da Igreja e o comeo de uma comunho duradoura com Deus. Nesse sacramento, o homem une-se a Cristo, pois seria uma aliana com Deus e a condio prvia para receber os outros sacramentos. Com o batismo, acreditava-se que os escravos sofreriam uma transfigurao sob a tica da religio. Em suma, atravs do sacramento batismal estariam se libertando de um poder maligno. Para tal, era condio sine qua non esquecerem suas crenas, seus costumes e seu passado.

    Entretanto, mesmo com a obrigatoriedade de professar a f europia hegemnica, os escravos continuavam a cultuar seus deuses. Tal prtica se deu por dois aspectos:

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    inicialmente a converso, que se promovia por intermdio do sacramento do batismo, era feita de forma superficial, tnue e frequentemente era delegada aos proprietrios dos engenhos e fazendas. Posteriormente, por meio de incentivos a prticas de cnticos e rituais de dana, em que se acreditava salutar no sentido de amenizar tenses, promover-se-ia um momento de refrigrio, mas, sobretudo, evitar revoltas.

    O fato de promover essa tentativa de converso forada permite inferir que se desenvolveu um processo de tentativa de aculturao em relao ao cativo. Contudo, advm dessa assertiva alguns questionamentos: houve mesmo um processo de aculturao no Brasil? Se sim, de que forma se engendrou tal processo? Esse foi um processo singular ou ocorreu tambm em outros empreendimentos coloniais? So questes que ensejam uma anlise um pouco mais detalhada sobre o termo em questo.

    Seguindo essa linha analtica, mais que um processo de negao de constituio do negro como sujeito histrico, um outro subterfgio se constituiu, advindo do alm mar, o qual formatou a diviso social do sc XIX e lanou as bases de um preconceito institucional e o estabelecimento do lugar social destinado ao negro africano. Nascidas no seio da onda cientificista do perodo anteriormente aludido, as teorias raciais configurar-se-iam como um arcabouo terico importante, no qual adquire um significado primordial o conceito de raas humanas.

    1.1 A primazia da raa.

    A dcada de 1870 foi marcada como um perodo de advento de um novo iderio de concepo social influenciado pelo cientificismo e baseado nos conceitos das Cincias Naturais. No perodo que se sucedeu aps a chegada da Famlia Real, tem-se o surgimento de instituies tanto de carter cultural quanto cientfico. Segundo Lilia Moritz Schwarcz, em O espetculo das raas5, com a chegada da corte portuguesa no Brasil iniciava-se propriamente uma histria institucional local. Em outras palavras, a Colnia passava a se ver como centro produtor de cultura e era necessria uma produo cientfica que se conformasse com o novo panorama do Brasil.

    5SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetculo das Raas cientistas, instituies e questo racial no Brasil

    1870-1930. So Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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    Aps a independncia nacional essa necessidade se acentuou, sobretudo no sentido de se produzir uma Histria da nao que se apresentasse independente de Portugal, em que pese a presena de um monarca portugus no comando, e que corroborasse com a situao de nao independente do Brasil. Dessa forma, tm-se por exemplo a criao dos Institutos Histricos e Geogrficos, cuja funo seria a de produzir uma historiografia que se revelasse distinta da portuguesa, mas sob os auspcios de uma classe dirigente local.

    Sediado no Rio de Janeiro, o IHGB surgia como um estabelecimento ligado forte oligarquia local, associada financeira e intelectualmente a um monarca ilustrado e centralizador. Em suas mos estava a responsabilidade de criar uma histria para a nao, inventar uma memria para um pas que deveria separar, a partir de ento, seus destinos dos da antiga metrpole europia6.

    Depreende-se ento que, quando da criao da historiografia brasileira, mais que, de fato criar uma Histria para a nao, estava em jogo a manuteno do status quo dos protagonistas da sociedade. Nesse sentido, conceitos que se mostrassem hierarquizantes, ou ainda, que se revelassem legitimadores de diferenas sociais, viriam ao encontro das proposies dos setores dominantes. Posteriormente, no contexto ps escravido, sob esta tica, as teorias raciais tornaram-se o embasamento terico que pautaram os conceitos de estruturao da sociedade. O que se pode dizer que as elites intelectuais locais no s consumiram esse tipo de literatura, como a adotaram de forma original. Diferentes eram os modelos, diversas eram as decorrncias tericas7.

    Tais premissas trouxeram em seu bojo perspectivas de cunho positivo-evolucionista, envolvendo o conceito de raas humanas Estas ltimas vieram a se configurar como o cerne de suas questes e, por conseguinte, determinaram a configurao da sociedade brasileira de ento, primordialmente, quando se relaciona o conceito de civilizao ao de raa. Em outras palavras, este ltimo encerrava em si um pressuposto de cidadania, de pertencimento.

    Em meio a um contexto caracterizado pelo enfraquecimento e final da escravido, e pela realizao de um novo projeto poltico para o pas, as teorias raciais se apresentavam enquanto modelo terico vivel na justificao do complicado jogo de interesses que se montava. Para alm dos problemas mais prementes relativos substituio de mo de obra ou mesmo conservao de

    6 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetculo das Raas cientistas, instituies e questo racial no Brasil

    1870-1930. So Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 24.

    7 Idem, p.18.

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    uma hierarquia social bastante rgida, parecia ser preciso estabelecer critrios diferenciados de cidadania8

    Condio primeira estabelecida para cidadania, o conceito de raa se funda como o grande demarcador das diferenas sociais. Entretanto, os pressupostos que formavam a base terica do racialismo no puderam ser aplicadas no Brasil sem que houvesse algumas adaptaes estruturais em seus postulados. Tais reformulaes se operaram pelo fato de a realidade local ser bem distinta da europia, afinal, desde muito o Brasil se fez por meio da miscigenao, o qual era um fenmeno que grassava fortemente nos sculos XVIII e XIX e

    que, tambm, era sumariamente condenado sob a tica dessas teorias.

    O que se processou foi um esvaziamento dessas para que se pudessem articular as caractersticas que melhor se encaixassem no projeto nacional em formao e, por conseguinte, apagar seus antagonismos. na interface desses conceitos que o pensamento racial brasileiro se estrutura e se estabelece.

    Do darwinismo social adotou-se o suposto da diferena entre as raas e sua natural hierarquia, sem que se problematizassem as implicaes negativas da miscigenao. Das mximas do evolucionismo social sublinhou-se a noo de que as raas humanas no permaneciam estacionadas, mas em constante evoluo e aperfeioamento, obliterando-se a idia de que a humanidade era una. Buscavam-se, portanto, em teorias formalmente excludentes, usos e decorrncias inusitados e paralelos, transformando modelos de difcil aceitao local em teorias de sucesso9

    Assim, importante ressaltar que esse pensamento racial brasileiro promoveu uma adaptao do que conformava ao seu projeto de formao e descartou o que lhe era problemtico, configurando assim um esvaziamento das teorias racialistas.

    Para que haja uma compreenso mais aprofundada dessa questo explicitar-se-o as principais concepes de organizao da sociedade, sob a tica racial, que, conforme j mencionado nesse trabalho, mesmo se mostrando heterodoxas, tornaram-se pilares para as interpretaes posteriores e puderam coexistir, no Brasil, por meio de resignificaes estruturais com a finalidade de adequar o novo iderio realidade local.

    O ponto nevrlgico da questo racial remete discusso sobre a origem da humanidade. As anlises subsequentes se ativeram e se desenvolveram luz desta questo:

    8SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetculo das Raas cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870-1930. So Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.18.

    9 Idem.

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    afinal, a humanidade teria uma nica origem ou seria proveniente de espcies diferentes? Notadamente as teorias possuam um carter hierarquizante. Por um lado, propunham uma evoluo em estgios diferenciados e, por isso, questes ligadas ao desenvolvimento do pas puderam se consolidar. Por outro lado, pressupunham uma hierarquizao por diferenciao biolgica, atribuindo posies diferentes na escala evolutiva humana, para justificar diferenas sociais.

    O evolucionismo se torna o grande paradigma do perodo da dcada de 1870 em diante. O que vai se configurar como o ponto de divergncia entre as teorias a origem da humanidade. Pela perspectiva de Rousseau e sua literatura humanista, fortemente tributria dos ideais Iluministas do sculo XVII, tinha-se uma origem nica da humanidade, na qual todos os homens nasceriam iguais, estando apenas diferenciados pelo seu estgio de evoluo social.

    Dentro dessa tica evolucionista, o conceito de perfectibilidade funcionava como um axioma, o qual seria o destino da humanidade. A perfectibilidade em Rousseau consistia em resistir aos ditames da natureza ou acordar neles uma especificidade propriamente humana. A noo do bom selvagem10 ser gestada sob esse vis.

    Em contraposio ao uso que esse conceito adquiriu durante o percurso do sculo XIX, por parte dos darwinistas sociais a viso humanista dissertava sobre a capacidade imanente da humanidade em se superar. Via de mo dupla, a perfectibilidade no supunha o acesso obrigatrio civilizao ou ao estado desta ltima, conforme supunham os tericos raciais do sculo XIX.

    Ser triste para ns vermo-nos forados a convir que seja essa a fonte de todos os males do homem, que seja ela que, fazendo com que atravs dos sculos desabrochem suas luzes e seus erros, seus vcios e virtudes, o torna com o tempo tirano de si mesmo e da natureza11

    A noo de perfectibilidade apresentava diferentes contextos e formas de interpretao. Sob os auspcios da literatura Iluminista no se observa uma viso linear, um

    10A Teoria do bom selvagem tem origem na Revoluo Francesa e seu principal teorizador Jean Jacques Rosseau. Um dos postulados mais importantes desta teoria a de que todos os homens nascem livres e iguais e so, por natureza, bons e bem formados. Para mais ver LEOPOLDI, Jos Svio. Rousseau - estado de natureza, o bom selvagem e as sociedades indgenas. ALCEU - v.2 - n.4 - p. 158 a 172 - jan./jun. 2002. 11ROSSEAU, Jean Jacques apud SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetculo das Raas cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870-1930. So Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.44.

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    sentido definido para onde a humanidade tem de forosamente caminhar. Entretanto, no discurso determinista, este conceito imbrica-se com o de progresso, o que faz com que apresente um resultado totalmente diverso de sua matriz terica.

    Por outra tica, tem-se o argumento da origem humana partindo de diferentes matrizes genticas. Ou seja, os homens eram diferentes por natureza, logo existiriam distintas espcies humanas. Assim, a diversidade humana seria justificada por meio de causas naturais primeiro. Essa viso se mostra mais evidente a partir de meados do sc XVIII, perodo que coincide com um maior afluxo de visitas ao novo mundo.

    Premissas como a infantilidade do continente americano, pelo vis de Buffon12, sobre a debilidade da fauna da nova terra com seus pequenos animais, pequenos homens em comparao Europa e de Cornelius De Pauw13, com seu conceito de degenerao de espcies se tornam base dos argumentos que vo se configurar como referencial terico da literatura determinista do sc XIX.

    Assim, no que tange ao contexto cientfico do sc XVIII, estas novas perspectivas vo se destacar. De um lado se posta a viso humanista tributria da Revoluo Francesa que prega a naturalizao da igualdade humana. E, de outro, tem-se um posicionamento incipiente sobre as diferenas bsicas existentes entre os homens. Somente a partir do XIX esta postura determinista vai se tornar mais influente e, por conseguinte, estabelecer associaes mais rgidas entre os gentipos e vcios ou virtudes.

    A partir do sculo XIX o conceito de raa propriamente dito ser introduzido por Georges Cuvier14, inaugurando a noo de reconhecimento de diferenas fenotpicas

    12Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon foi um naturalista, matemtico e escritor francs. As suas teorias influenciaram duas geraes de naturalistas, entre os quais se contam Jean-Baptiste de Lamarck e Charles Darwin. Para mais ver CAMPOS, Rafael Dias da Silva. O Conde De Buffon e a Teoria da degenerescncia do Novo Mundo do Sculo XVIII. Maring, 2010.

    13Com Buffon e De Pauw possvel, portanto, localizar o ponto de arranque para que a tese da inferioridade da Amrica se transforme em uma histria ininterrupta, culminado nas teorias cientficas do sculo XIX. A partir dessa nova lgica, a Amrica representar no mais o modelo ideal, mas o estgio mais atrasado e primitivo dessa evoluo reinventada. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetculo das Raas cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870-1930. So Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.44.

    14Georges Cuvier, cujo verdadeiro nome era Jean Leopold Nicolas Frderic Cuvier, foi um dos mais importantes naturalistas da primeira metade do sculo XIX, tendo desenvolvido mtodos e programas de pesquisas para vrias reas da Histria Natural. Para mais, ver FARIA, Felipe A. Georges Cuvier: histria

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    imutveis entre os homens. Destarte disso, surge uma nova orientao cientfica que era marcada por uma quebra paradigmtica e exigia uma nova postura cientfica, deixando de lado o cronista do sc XVI e instaurando o primado do naturalista do XIX. Assim, delineava-se uma viso de contraposio ao Iluminismo e, por extenso, sua viso igualitria da humanidade. A gnese do discurso racialista, desta forma, surgia estabelecendo uma dicotomia entre dois grupos que postulavam sobre a origem da humanidade.

    Aqueles que acreditavam na origem una da humanidade eram cunhados de monogenistas. Estes baseavam sua crena nos preceitos da bblia, na qual os diferentes tipos humanos eram produto de uma maior perfeio ou detrao do den, mas todos filhos do mesmo casal gerador da humanidade. A noo latente que estava contida era de um gradiente, onde era garantido um desenvolvimento em maior ou menor grau, mas acima de tudo, semelhante.

    Ao passo que os poligenistas pressupunham a existncia de distintos centros de criao que dariam como resultado as diferentes raas humanas. A estes centros seriam atribudas espcies humanas que somente ali seriam capazes de se reproduzir e desenvolver. Esse separacionismo tpico dos preceitos poligenticos. Sob a perspectiva proveniente da tica de Louis Agassiz15, numa espcie de ampliao da teoria Humboldtiana de suas zonas geolgicas, esta classificao, pressupe que o criador determinou cada animal para habitar certa provncia no globo e que esse, em circunstncias de regularidade, no migra para outras16.

    Para Agassiz, tributrio dos preceitos de Cuvier, existiam trs premissas bsicas: a fixidez das espcies (as espcies seriam as mesmas desde o seu surgimento), o catastrofismo (o surgimento de espcies contemporneas teria se dado por um evento

    natural em tempos pr-darwinianos. Revista de Histria, Cincias, Sade v.17, n.4, out.-dez. 2010, p.1031-1034. FIOCRUZ. Rio de Janeiro.

    15Louis Agassiz veio ao Brasil em 1865. Era suo e adotou os Estados Unidos da Amrica como segunda ptria. Agassiz era um naturalista com slida formao. Teve contato estreito com figuras emblemticas como Von Martius, Georges Cuvier e Alexander Von Humboldt. Na Amrica, tornou-se um arauto do poligenismo. Para mais,ver SOUSA, Ricardo Alexandre Santos de. Agassiz e Gobineau - as cincias contra o Brasil mestio. Rio de Janeiro, 2008. Dissertao (Mestrado em Histria) Casa de Sade Oswaldo Cruz FIOCRUZ.

    16Idem.

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    catastrfico que fez desaparecer as espcies antigas) e o criacionismo (uma nova criao no mesmo lugar sem que houvesse qualquer elo com as anteriores). Este embate terico s arrefeceu aps o advento da obra de Charles Darwin, A origem das espcies (1859).

    O pressuposto darwinista configurou-se como um cabedal terico que serviu tanto a monogenistas, quanto a poligenistas. O darwinismo forneceu uma nova relao com a natureza e, aplicado a vrias disciplinas sociais antropologia, sociologia, histria, teoria poltica e economia - formou uma gerao social-darwinista17. Essa gerao vai adotar as prticas poligenistas e condenar uma nova realidade social, a saber, a mestiagem, a qual se mostrava antagnica premissa da fixidez da espcie.

    Segundo a tica polignica, os mestios corporificavam a degenerao proveniente do cruzamento racial por carregarem em si os piores genes de suas raas formadoras. A miscigenao seria contrria premissa da fixidez das espcies propostas pelos polignicos. A miscigenao parecia fortalecer o argumento poligenista. Seleo natural

    em Darwin, para aqueles, implicava em pensar em degenerao social.

    O jornal Correio da Manh, peridico extremamente ligado classe mdia e possuidor de forte carter oposicionista situao poltica de ento, na sua edio de 29 de junho de 1918, publicou um pequeno extrato do romance A Mulata (1896) da autoria de Dom Carlos Malheiros Dias, o qual ensejava na referida obra, operar uma crtica sociedade brasileira da poca, mais particularmente elite da corte.

    Aqui mesmo em nosso meio o sangue negro degenerado foi injetado numa dosagem completa de Pravaz; e de todo esse enorme cruzamento de raas, dessa procreao (sic) sob o sol candente dos trpicos, as nevroses rebentaram como flores dos clice ao calor...18

    Dessa forma v-se que a questo da mestiagem aparece associada com mazelas tanto sanitrias, quanto sociais. A perspectiva darwinista social via a miscigenao de

    17SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetculo das Raas cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870-1930. So Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.55.

    18Mais conhecido como o autor do romance A mulata (1896), foi Historiador, jornalista, diplomata, ficcionista, contista e cronista. Escreveu ainda as obras Filho das hervas (1900), Os Telles de Albergaria (1901), Paixo de Maria do Cu (1902), O grande Cagliostro (1905) e A vencida (1907). Para mais, ver CARRIJO, Fabrizia de Souza. Carlos Malheiros Dias. Revista Convergncia Lusada Nmero 26 jul/dez de 2011. USP.

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    forma extremamente pessimista por supor que caracteres adquiridos no seriam capazes de ser transmitidos por meio de um processo de evoluo social (SCHWARCZ, 1993).

    Partindo do pressuposto de trs teses: imutabilidade das raas, continuidade de caracteres fsicos e morais e preponderncia da raa em relao ao indivduo, o objetivo era o de prevalecer os tipos puros e legar miscigenao uma pecha de degenerao no s racial como social. Agassiz sustenta o argumento pessimista em relao miscigenao,

    quando da ocasio de sua viagem ao Brasil

    Aqueles que pem em dvida os efeitos perniciosos da mistura de raas e so levados, por uma falsa filantropia, a romper todas as barreiras colocadas entre elas deveriam vir ao Brasil. No lhes seria possvel negar a decadncia resultante dos cruzamentos que, nesse pas, se do mais largamente do que em qualquer outro. Veriam que essa mistura apaga as melhores qualidades quer do branco, quer do negro, quer do ndio, e produz um tipo mestio indescritvel cuja energia fsica e mental se enfraqueceu19

    Assim, a construo de um sujeito, no qual estariam reunidas uma gama de caractersticas negativas, que pari passu, associar-se-iam a questes de cunho social, mostrou-se um subterfgio de excluso social. Em outras palavras, o estabelecimento do mestio enquanto degenerado, possuidor de mazelas capazes de corromper a sociedade, fortalecia o discurso generalizador do preconceito em relao raa do indivduo em um contexto marcado pelo liberalismo, promovendo uma convivncia paradoxal.

    No bojo das proposies mencionadas promovido o surgimento de um ideal poltico, o qual versava sobre a possibilidade de se intervir na reproduo da populao com vistas a produzir nascimentos controlados e desejveis. o advento da Eugenia20 que vai atuar como prtica poltica proibitiva de casamentos inter-raciais, implantar restries a alcolatras, dentre outros segmentos problemticos.

    Transformada em um movimento cientfico social vigoroso a partir dos anos 1880, a eugenia cumpria metas diversas. Como cincia, ela supunha uma nova compreenso das leis da hereditariedade humana, cuja aplicao visava a produo de nascimentos desejveis e controlados; enquanto movimento social, preocupava-se em promover casamentos entre determinados grupos e

    19AGASSIZ, Louis apud SOUSA, Ricardo Alexandre Santos de. Agassiz e Gobineau - as cincias contra o Brasil mestio. Rio de Janeiro, 2008. Dissertao (Mestrado em Histria) Casa de Sade Oswaldo Cruz FIOCRUZ, p. 94.

    20O termo eugenia eu: boa, genus: nascimento foi criado em 1883 pelo cientista britnico Francis Galton. Para mais ver MAGGIE, Yvonne; REZENDE, Claudia Barcellos (Org.). Raa como retrica: a construo da diferena. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001.

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    talvez o mais importante - desencorajar certas unies consideradas nocivas sociedade21.

    Os preceitos eugnicos se convertem numa das bases mais slidas das premissas social darwinistas. Assim o progresso22 estaria reservado s sociedades puras livres. Gobineau23, possivelmente o autor racial de maior penetrao no Brasil, teorizou sobre a ascenso e queda das grandes civilizaes promovendo uma culpabilizao dos aspectos tnicos

    Ento foi quando de indues em indues tive de me deixar convencer da evidncia: que a questo tnica domina todos os demais problemas da histria constitui sua chave, e a desigualdade das raas cujo concurso forma uma nao, para explicar todo o encadeamento dos destinos dos povos24.

    Gobineau postulava sobre a origem humana a partir de uma raa primria, portanto pura, que aps poderosas aes cosmolgicas deu origem a trs raas secundrias: a branca, amarela e negra. A mistura produzida entre essas raas secundrias promoveria o aparecimento de uma raa terciria, ou de um subgnero ou de um produto degenerado e assim de forma sucessiva, quanto mais fosse miscigenada, mais degenerada seria.

    Ainda de acordo com o autor, essa degenerao promovida pela mistura de raas seria responsvel pela decadncia das grandes civilizaes e o desaparecimento de seus elementos componentes. Este, segundo Gobineau, um elemento em comum com relao a todos os chamados grandes povos. Essa degenerao seria explicitada da seguinte forma

    Penso, pois, que a palavra degenerado, ao aplicar-se a um povo, deve significar e significa que este povo j no possui o valor que antigamente possua, porque

    21SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetculo das Raas cientistas, instituies e questo racial no Brasil 1870-1930. So Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 60.

    22O progresso aqui est para os darwinistas, assim como conceito de evoluo social est para os evolucionistas sociais.

    23O Conde Joseph Arthur de Gobineau era um diplomata e tpico literato com vrios talentos. Seus escritos iam desde a antropologia social, at romances, novelas, poesias e j com idade avanada descobriu-se escultor, sendo algumas de suas obras feitas por encomenda do Imperador D. Pedro II. A obra pela qual o Conde Gobineau seria mais conhecido no se trata, no entanto, de uma obra artstica e sim do Essai sur lingalit ds races humaines, em que procura especular a razo para a ascenso e queda de todas as grandes civilizaes, o que, como percebemos pelo prprio ttulo, se daria devido questo tnica. Para mais ver SOUSA, Ricardo Alexandre Santos de. Agassiz e Gobineau - as cincias contra o Brasil mestio. Rio de Janeiro, 2008. Dissertao (Mestrado em Histria) Casa de Sade Oswaldo Cruz FIOCRUZ, p. 35. 24GOBINEAU, 1937 apud SOUSA, Ricardo Alexandre Santos de. Op. Cit. P. 10.

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    no circula em suas veias o mesmo sangue, gradualmente depauperado com as sucessivas misturas. Dito de outra forma, que com o mesmo nome no conservam a mesma raa que seus fundadores; enfim, que o homem da descendncia, o qual chamamos degenerado, um produto diferente do ponto de vista tnico dos heris das grandes pocas25.

    A civilizao que anteriormente se mostrava pujante, vigorosa, mostra-se a seguir enfraquecida. Depauperada, pelas palavras do autor, de seus ideais, de seus valores, devido ao fenmeno da mestiagem. Este tipo de pensamento iria compor o cabedal terico das prticas deterministas quando da formao social brasileira. E atuaria de forma incisiva sobre o estabelecimento da imagem e da posio do negro nesse contexto de ps escravido.

    A questo da representao da figura do negro no uma caracterstica interna, mas, algo imposto. Atuar na direo de promover uma exarcebao daquilo que diferente, como se o intuito fora o de procurar no oprimido as razes de sua opresso.

    Observa-se que o conceito de negro e, posteriormente, o de mulato se d a partir da diferenciao desses, mas partindo do ponto de vista do branco que os via como uma raa subalterna, desprovida de civilidade e que encerrava em si preceitos de barbrie e congneres. A raa passa ento a ser o elemento diferenciador por excelncia que vai pautar toda a gide da esfera de relaes sociais e, tambm, nortear as caractersticas de pertencimento e de excluso da sociedade.

    Nesse ponto o negro passa a reunir um conjunto simblico de valores, negativos ressalte-se, que vai caracteriz-lo e criar um antagonismo para com o seu dominador, o seu opressor. Ser-lhe- arbitrariamente imposto um arcabouo de valores e padres socioculturais diametralmente distintos do branco. Tal imposio se exerce por parte do dominador como estratagema de dominao.

    A representao negativa estabelecida pelo vis de um discurso do dominador, conquanto j mencionado, que pode estabelecer assim o seu lugar elegendo o seu opositor, o qual deseja se afastar. Estabelece assim, por um lado, uma forma de excluso social, e, por outro, um conjunto de atributos e caracteres indesejveis, criando portanto um modelo para toda a sociedade aque se quer pertencer.

    25GOBINEAU, 1937 apud SOUSA, Ricardo Alexandre Santos de. Agassiz e Gobineau - as cincias contra o Brasil mestio. Rio de Janeiro, 2008. Dissertao (Mestrado em Histria) Casa de Sade Oswaldo Cruz FIOCRUZ, p. 18.

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    Aps essa breve anlise pode-se inferir que a construo de uma representao ou de uma imagem obedece a alguns critrios que so subordinados a questes de prticas sociais, as quais se constituem por manipulaes simblicas que vo funcionar como reprodutoras de esteretipos, atribuindo-lhes valor simblico, o que tem por intuito legitimar a dominao.

    Muito embora o africano, no Brasil, tenha conservado diversos de seus elementos, inegvel que estes influenciaram e foram influenciados. Ressalte-se, ainda, a insero nos processos econmicos do capital mercantil. Esta circularidade cultural, bem como o seu cotidiano num ambiente hostil de uma sociedade que se desejava nathuraliter christiana26, obrigou o negro a reelaborar a sua viso de mundo, o seu entendimento acerca da vida. Sendo assim, a cultura dita africana, aparece como uma reelaborao mesclada de sua matriz.

    Basta que pensemos em como se deu a formao da Umbanda. Esta rene em seu bojo elementos religiosos africanos, aspectos do Cristianismo e do Espiritismo Kardecista. Pode-se inferir diversas razes para tal fenmeno. Entretanto, parece ser mais plausvel essa hibridizao com outras vertentes. No se pode omitir o fato de que o negro assim chegado era batizado segundo os preceitos catlicos, recebia um nome cristo e tinha sua identidade violentada em detrimento de uma poltica econmico-social.

    Em outro cenrio, temos a questo do estabelecimento do espiritismo Kardecista de carter extremamente elitizado, matriz europia, criado sob os auspcios da sociedade burguesa e que estava em consonncia com o discurso evolucionista de sua poca, tendo sido assim, denominado Alto Espiritismo (tolerado e praticado por elementos das classes mdia e alta) para se diferenciar do baixo espiritismo, de matriz essencialmente negra. Esta questo se revela extensa, e, por isso, ser tratada em captulo prximo.

    1.2 A cultura enquanto processo de resistncia

    O conceito de aculturao, necessrio frisar, no encerra em si o pressuposto de uma lei ou regra geral para todos os processos, quaisquer que sejam os encontros culturais. Ao contrrio. Os particularismos que vo definir como vai ocorrer e qual a caracterstica

    26Naturalmente crist. Para mais, ver DUPRONT, Alphonse. A Religio Catlica: possibilidades e perspectivas. Trad. H . C. Lima Vaz. So Paulo: Ed. Loyola, 1995, 93 pp.

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    do processo de aculturao. O historiador francs Natan Watchel27, estudioso dos processos de aculturao, adota uma perspectiva culturalista ao afirmar que aculturao todo fenmeno de interao social que resulta do contato entre duas culturas e no, necessariamente, a simples sujeio de um povo sobre outro.

    Inicialmente, o estabelecimento do termo buscou designar todos os fenmenos de interao que resultam do contato entre duas culturas28. Porm, convencionou-se pensar esta questo como sendo uma via na qual as sociedades colonizadoras europias impunham s suas colnias no Novo Mundo, suas estruturas poltico-culturais. Esta no uma viso equivocada, antes parcial. Aculturao compreende, tambm, um conjunto de prticas que resultam em um processo no qual grupos de indivduos, possuidores de diferentes culturas, quando em contato, resultam em mudanas nos padres originais de ambos os grupos.

    Por outro lado tem-se o vis proposto por Alfredo Bosi, autor de A dialtica da colonizao (1992), o qual adota um vis estruturalista ao afirmar que esse conceito s aplicado em uma situao de sujeio de um padro tecnolgico ou cultural a outro tido como superior. Contudo, h uma aproximao quando ambos concordam que preciso que o contato seja entre sociedades de fora dspar.

    O processo de aculturao pressupe uma adoo voluntria de um conjunto de prticas culturais, por parte de uma sociedade de menor capital tecnolgico em comparao com a outra, e estes elementos uma vez adotados sofrem uma reorientao e adquirem um novo sentido dentro da tica da sociedade doravante chamada dominada.

    Em suma, esse processo enseja uma introduo de um elemento estranho sociedade em questo, modificando-a. Todavia, esta mudana se processa resignificando este elemento luz das suas prticas tradicionais, ou seja, um mesmo elemento introduzido em diferentes realidades pode produzir diferentes resultados.

    A intensa coexistncia e interpenetrao de culturas to dspares durante o perodo colonial, no Brasil, geraram processos que mesclavam aspectos sociais e culturais. O

    choque da conquista desencadeou a sobreposio conflitiva entre conquistadores e

    27WATCHEL, Natan. (In) LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs). Histria Novos Problemas. 1976. 28Idem, p. 113.

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    conquistados. As diferenas culturais provenientes desse embate iriam desencadear tanto ajustes ou negociaes, quanto na sujeio do outro.

    Sob outra perspectiva, tem-se o vis de Canclini29 que postula sobre o processo de hibridizao cultural. Tal processo enseja uma espcie de mistura, ou, melhor dizendo, uma juno de matrizes culturais distintas. No se trata de um conceito fechado. Observa-se em seu bojo uma dupla via, pois se por um lado permite pensar a perpetuao de antigas matrizes culturais, correndo o risco de se apagar determinadas tradies, por outro, possibilita uma tolerncia s diferenas culturais, em decorrncia da coexistncia entre arcabouos culturais distintos.

    Canclini pontua que o processo de hibridismo cultural se caracteriza como o processo sociocultural em que estruturas ou prticas, que existiam em formas separadas, combinam-se para gerar novas estruturas, objetos e prticas30. O hibridismo reconhece na fuso de elementos aparentemente dspares a essncia de sua dinmica.

    Para o autor, o processo de hibridizao garantiria a sobrevivncia da cultura em posio de inferioridade nas relaes de poder de determinada sociedade, e levaria a um processo de modernizao da cultura de elite. uma prtica multicultural, possibilitada pelo encontro de diferentes culturas. O autor v, ainda, a questo da cultura como algo no mais genuno, mas sim, representado31.

    Segundo a tica de Bhabha32, o hibridismo seria um processo agonstico e antagonstico, resultante do conflito e da tenso da diferenciao cultural. O hibridismo em Bhabha funciona como uma ameaa autoridade colonial. Resulta da contestao do discurso hegemnico dominante no qual a autoridade do colonizador subvertida atravs da ironia do colonizado, que exige que suas diferenas culturais sejam observadas,

    29Nstor Garca Canclini (Argentina, 1939) Doutor em Filosofia pelas Universidades de Paris e de La Plata. Lecionou nas Universidades de Austin, Duke, Stanford, Barcelona, Buenos Aires e So Paulo.

    30CANCLINI, Nstor Garca. Culturas Hbridas - estratgias para entrar e sair da modernidade. Traduo de Ana Regina Lessa e Helosa Pezza Cintro. So Paulo: EDUSP, 1997. p.283-350:

    31As representaes so entendidas como classificaes e divises que organizam a apreenso do mundo social como categoria do real. So variveis segundo as disposies dos grupos ou classes sociais, aspiram universalidade, mas so sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as formam. O poder e a dominao esto sempre presentes.

    32BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998

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    produzindo assim, um discurso hbrido. O hibridismo seria, sob esse vis, um processo resultante do choque, do embate, no se tratando de um simples processo de adaptao e resignificao cultural.

    De acordo com a perspectiva de Stuart Hall, a hibridizao acontece no contexto da dispora e no processo de traduo cultural33 que os indivduos vivenciam para se adaptar s matrizes culturais diferentes da sua matriz de origem. Nesse processo de adaptao, o hibridismo no um processo que traz ao sujeito a sensao de se completar ao dialogar com outras culturas, pelo contrrio, seria o momento quando o sujeito percebe que sua identidade est sempre sendo reformulada, resignificada e reconstruda, num jogo constante de assimilao e diferenciao para com o outro, permanecendo sua indeciso sobre qual matriz cultural mais o representa.

    notrio que o colonizador conseguiu impor sua cultura s sociedades dominadas, mas logrou xito em faz-lo lanando mo de estruturas pr-existentes no interior dessas sociedades. Por exemplo, nos grandes agrupamentos astecas e incas, os espanhis substituam os antigos senhores no alto da hierarquia e exerciam o controle das massas por intermdio dos chefes locais. Ao passo que nos agrupamentos mais dispersos o subterfgio foi reunir em torno das propriedades coloniais grupos indgenas diversos, o que favoreceu a aculturao34.

    Observam-se ento duas situaes: a primeira a da questo de quanto mais prximo ao colonizador, seja pela proximidade de estrutura poltico-social, seja pela proximidade fsica mesmo - haja vista o esquema do sistema produtivo do Brasil Colnia previr o cativeiro dentro da propriedade do colono -, mais rpida e mais incisiva a assimilao dos novos valores, o que no significa uma aceitao pacfica e subserviente desses.

    A manuteno dos ritos simblicos dos cnticos, das oferendas, das danas dentre outros, mostra que, mesmo sob o jugo de um sistema que desqualificava o negro e o alijava

    33Stuart Hall define como traduo cultural, o processo de negociao entre novas e antigas matrizes culturais, vivenciado por pessoas que migraram de sua terra natal. Elas tem diante de si, uma cultura que no as assimila e, ao mesmo tempo, no perdem completamente suas identidades originrias. Mas precisam dialogar constantemente com as duas realidades.

    34WATCHEL, Natan. (In) LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs). Histria Novos Problemas, 1976, p. 115.

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    como sujeito poltico da sociedade, a aceitao se deu em nvel superficial, no conseguindo destruir o cabedal simblico africano.

    o que se apreende, em seguida, sobre a adequao do negro, enquanto estratagema de resistncia, aparentemente se conformar com os ditames do dominador. Assim, para o foco do trabalho, foi conveniente a anlise sob o ponto de vista culturalista para que se pudesse observar como o processo do, doravante chamado, encontro de culturas dinmico e exorta uma dialtica entre as mesmas postas em contato.

    A fim de responder aos questionamentos propostos observa-se que houve um processo de coexistncia e interconexo de culturas durante o perodo colonial, processo este muito particular ao cotidiano de ento, no sendo nico, sob os auspcios de uma lei geral. Ao contrrio do que apregoa o senso comum, esse processo no inviabilizou o surgimento de resistncias por parte dos dominados. Assim como existem diferentes aculturaes ou resultantes de interconexes de culturas, tanto quanto diferentes forem os espaos, tambm o so os processos de resistncia exercidos35.

    1.3 Resistncia negra: recriao da frica pela via religiosa

    Anteriormente, j se abordou a questo do negro, enquanto produto de uma reelaborao e reproduo social, em confronto com o branco opressor. Essa via das relaes sociais que vai ditar a reproduo cultural que traz consigo elementos segregatrios. Essa recriao contnua das categorias baseadas no estatuto de raa dita os chamados lugares sociais.

    Nessa concepo de lugares sociais determinados, ao negro cabia o pertencimento sociedade, mas de forma anexa. Em outras palavras, trabalhava para aquela, mas no a integrava de fato e de direito. Desta forma, a religio vai atuar no espao compreendido pela necessidade primeira de socializao com seus congneres, em um meio hostil e como vlvula de escape para a sua dura realidade.

    Roger Bastide, ao analisar de forma conjuntural a sociedade negra latino-americana, sob os aspectos de cultura negra, cultura africana e cultura escrava, pontua que

    35WATCHEL, Natan. (In) LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs). Histria Novos Problemas, 1976, p. 114.

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    embora a sociedade africana tenha se desarticulado, esta sempre conseguia uma maneira de se reorganizar enquanto processo de resistncia.

    Em primeiro lugar, a sociedade negra nunca foi uma sociedade desagregada. Mesmo onde a escravido - e depois, as novas condies urbanas de vida destruram os modelos africanos, o negro reagiu, reestruturando sua comunidade. Ele no vive como homem de natureza, mas cria novas instituies e do-se novas normas de vida. Cria-se uma organizao prpria, separada da organizao dos brancos.

    Desde os tempos coloniais, o fator religioso representou para o negro mais do que a profisso de sua f ancestral. Significava um fator aglutinador em torno do qual se operaria a recriao de seus costumes, um lugar tenente. Segundo Bastide, ao analisar justamente esse aspecto afirma que

    O candombl recriava para o negro um mundo ao qual ele podia, com certa regularidade, se retirara da sociedade branca opressora e dominadora, uma pequena frica fora da sociedade, o terreiro como substitutivo da perdida cidade africana e da famlia que no pde ser refeita no Brasil nos moldes africanos36.

    Ainda sob a mesma tica, afirma que o culto a seus Orixs pressupunha um retorno sua ancestralidade, s suas origens, longe do sofrimento de opresso e no-pertencimento sociedade. Bastide apresenta esta temtica em que

    O candombl punha a disposio do negro brasileiro um mundo tambm negro, comunitrio-familiar, justaposto ao mundo do branco, de modo que o fiel pudesse passar de um mundo para outro como se fossem dimenses ortogonais de uma mesma realidade, em que o no-religioso significava a adversidade a que o negro estava sujeito pela realidade histrica da escravido37

    Como toda estratgia de dominao e controle de uma populao conquistada, fazia-se necessrio, para solidificar tal estratagema, dividir o inimigo, evitando assim que este pudesse se articular de forma eficaz, e, por intermdio desse subterfgio, exercer o domnio por excelncia e sufocar qualquer foco de rebelio. Esta assertiva se coaduna com o fato de a religio ser um fator importante de preservao cultural ou, ainda, tnica, de estabelecimento de uma continuidade e tambm de uma preservao de identidades socioculturais.

    36BASTIDE, Roger. Estudos Afro Brasileiros. Ed Perspectiva. 3 Ed. So Paulo, 1983, p. 155.

    37Idem, p. 116.

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    Entretanto, conforme j citado, no se observa nessas reunies negras um carter conspiratrio ou por assim dizer revolucionrio, e sim mais pelo vis de sociabilizao e congraamento.

    Segundo Arim Soares do Bem, citando Delacampagne38, o negro j fazia parte do imaginrio demonolgico da Europa, tendo por base desse conceito discursos de mote religioso, ao analisar no somente suas prticas rituais, mas tambm pela cor de sua pele, da qual se acreditava ser estes seres humanos descendentes de um filho amaldioado de No, cuja figura foi supostamente desserrada para uma regio denominada Bilad-al-Sudan, o que em rabe significa terra dos negros.

    Embora no se possa afirmar que tal situao apresentada, tenha influenciado de forma contumaz para as mazelas dos cativos africanos, inegvel que atravs de prticas discursivas semelhantes a estas tenha corroborado sobremaneira para que a instituio escravido se sedimentasse e obtivesse uma legitimao que perpassasse os limites do comrcio de seres humanos.

    Elemento demonizado por excelncia, a religio africana, passou a sofrer toda uma srie de perseguies e a represso passa a ser legitimada, baseada, sobretudo, no arcabouo cultural catlico, este dominante, e tambm pelas vertentes semi-dominantes, como o protestantismo crescente.

    A partir, ento, desse vis paroquial, a demonizao constitui uma prtica poltica e cultural na qual o Brasil se converteu em um processo recorrente de destituio do universo simblico, imaginrio e cultural de negros e outros grupos no hegemnicos na sociedade. Para o opressor essa destituio do universo simblico tornou-se mais vantajoso do que extinguir ou anular o oprimido39.

    Ao passo em que, se falarmos partindo do ponto de vista do outro, este maniquesmo, ou seja, a luta entre o bem representado pela Cristandade ocidental e o mal, as prticas africanas, torna-se desfocado pelo fato de, ao contrrio da maioria das religies

    38

    DO BEM, Arim Soares. Cultura, Poltica e Racismo. Revista Princpios Nr. 34, Outubro de 1994, So Paulo, n.34, p. 44-51, 1994.

    39OLIVEIRA, Sidney. Psicanlise e Umbanda: a demonizao do Exu como interdio simblica e intolerncia religiosa. Revista Brasileira de Histria das Religies. ANPUH, Ano III, n.8, Set 2010.

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    ocidentais, a figura do ser que representa malefcio, ou todas as caractersticas de tais, no existe na cosmogonia africana40. notrio que os processos de desqualificao, desconstruo ou distoro do universo simblico mostram-se instrumentos poderosos de dominao e opresso.

    Fernand Braudel afirma que a mentalidade algo que o tempo gasta muito lentamente. Tal definio no poderia ser mais pertinente. inegvel que a Histria das dominaes sempre remete a um quadro de desqualificao, degradao e por fim, destruio de saberes, de elementos culturais pr-existentes, os quais so considerados inferiores ou no dignos de coexistncia. A assertiva que coaduna com o postulado de Braudel que essa interdio opera de tal forma que vai se solidificando at atingir quase que um estatuto de paradigma.

    Sobretudo quando se parte de um ponto de vista eurocntrico-cristo, possvel perceber que os saberes produzidos se fundam como verdades absolutas, e, que por se portarem como tais rechaam e negam o estabelecimento de postulados difusos de seu universo de significao. Segundo a perspectiva de Arim Soares do Bem, no que tange a esta problemtica afirma que:

    Nesse sentido, (d)enuncia o carter ocidentalocntrico de saberes e subjetividades construdos a partir do universo de significao europeu, os quais ao se ufanarem por terem fundado verdades universais, nada mais alcanaram seno o rebaixamento de outras subjetividades, que se viram, assim, coagidas a retroalimentar como restos de sombra e silncio o prprio sistema que as submeteram41.

    Em suma, o dominador impe o seu universo de significao, rebaixando a cultura pr-existente, que, em lugar de desaparecer, funciona como uma justificao para a prtica do domnio. uma questo de pertena anexa, ou seja, faz parte da sociedade, mas no est inserido nessa.

    40No cotidiano dos terreiros no se mostra a preocupao em explicar a origem do mundo, tampouco reveste-se de uma perspectiva teleolgica. O mote central so os problemas corriqueiros da existncia humana. Tambm no se verifica o maniquesmo inerente ao cristianismo, onde existe um lugar destinado danao eterna. Para mais, ver PRANDI, Reginaldo, Os candombls de So Paulo: a velha magia na metrpole nova. So Paulo, Hucitec, 1991.

    41DO BEM, Arim Soares. Cultura, Poltica e Racismo. Revista Princpios Nr. 34, Outubro de 1994, So Paulo, p. 44-51, 1994.

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    Tal caracterstica formadora da identidade europia-ocidental-crist, a qual verifica a condio de sua existncia ao no reconhecimento ou no pertencimento do outro, como verifica Stuart Hall, ao caracterizar o processo de construo da identidade europia, onde conceitua que

    A conscincia do ocidente no formou-se apenas a partir de um processo interno, mas atravs da conscincia da Europa de suas diferenas com relao aos outros mundos e do modo como ela se representa em relao a esse outro42

    Destarte todo o panorama exposto, bem claro que essa dicotomia entre Europa e no-Europa contribuiu para que todo o arcabouo cultural proveniente do outro se reduzisse a um aspecto folclrico ou demonaco. Tal separao ideolgica acentuou os preconceitos j existentes no imaginrio europeu, e, por conseguinte, as barreiras e interdies simblicas pr-existentes.

    Tambm Ianni atribui conscincia de alienao vivida pelo escravo o elemento que solidificou a questo do estabelecimento das prticas religiosas africanas no Brasil. Muito embora essa conscincia fosse mais evidente aqui ou acol, a religiosidade atuou como um amortecedor social para evitar tenses maiores naquela sociedade antagnica.

    Por intermdio de Roger Bastide, em seus Estudos Afro Brasileiros, observamos o estabelecimento de uma dupla conceituao das religies negras e que servem de indcio para mostrar duas formas de organizao negra distintas: so as chamadas religies em conserva e as religies vivas.

    Contra o esvaziamento incessante de que objeto, da parte da sociedade circundante, a cultura negra resiste, imobilizando-se, com medo de que se viesse a mudar um pouco, isto seria para ela o fim. Isto quer dizer que a religio se mostra cristalizada. A religio vivida, mas ela no viva, no sentido de que no evolui, de que no se transforma com o correr do tempo, de que permanece esttica no cumprimento do que foi ensinado pelos antepassados. Por isso, conceituada como uma religio em conserva.

    O mesmo no se d com relao a outras religies afroamericanas, em particular com o culto dos Vodus do Haiti. Na verdade, existem tantos Vodus quanto so as regies da ilha e, para uma mesma regio, variaes sensveis de um lugar de culto a outro. Enfim,

    42HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

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    tendo-se tornado o Vodu, em vistas da falta de luta contra a cultura europeia, a expresso de organizao, dos bens e das aspiraes da sociedade, mudar, por conseguinte, na medida em que se modificarem as estruturas. A religio mostra-se viva, porque encontra meios de se resignificar, de se reelaborar conforme o contexto social exige.

    Em torno da problemtica sobre qual seria o tipo de cultura do negro no Brasil, Melville Jean Herskovits, antroplogo americano que firmemente estabeleceu Estudos africanos e Estudos afroamericanos na academia americana, sugere que mesmo com toda a influncia e contribuio de outros elementos no africanos, aquela se mantm ainda africana propriamente dita, vez que tais aspectos exteriores seriam apenas uma estratgia de camuflagem. Por outro lado, Bastide explicita que a religio negra no africana, mas sincrtica, pois as exigncias dos empreendimentos capitalistas escravocratas acabaram por destruir ampla e completamente a cultura africana.

    Essa anlise requer a compreenso do contexto da escravido, ou melhor, do contexto social. O processo escravocrata representou a aculturao do escravo africano e, conforme mencionado anteriormente, a transmutao desse em negro. Essa aculturao ensejou no negro a necessidade de se estabelecer subterfgios que pudessem permitir o culto aos seus ancestrais. Tomar como base os estratagemas do sincretismo e diz-los a expresso ltima da religio parece um tanto quanto distorcido. Em que pese o fato de esta ser uma religio de vencidos43, faz-se necessrio observar o esforo de resistncia. Segundo Bastide

    A religio do vencedor se tornava a nica religio pblica vlida para a massa total da populao, enquanto a religio vencida (e aqui tornamos a encontrar as alternativas do comportamento coletivo) se degrada em magia ou se metamorfoseia em religio de mistrios, fundada na iniciao e no segredo. Ambos os fenmenos so encontrados no Brasil, bem como no resto das duas Amricas negras. O candombl se refugia no segredo, celebra-se nos bairros das cidades, em casas isoladas ou em esconderijos das florestas tropicais; tende a se tornar um culto de mistrio; nele no se entra obrigatoriamente por pertencer-se a uma linhagem, mas por uma iniciao voluntria. Mas esse segredo inquieta o branco: ele sente que, no recinto das seitas fechadas, manipulam-se foras temveis, e como nem sempre ele tem a conscincia tranquila em suas relaes com o negro, receia que tais foras sejam manipuladas contra ele. Receio absolutamente sem fundamento. Com efeito, os escravos se serviram de Exu, de Ogum ou das ervas de Ocem para lutar contra a opresso econmica e racial da classe dominante44

    43IANNI, Octvio. Escravido e Racismo. HUCITEC. So Paulo, 1978, p. 72

    44BASTIDE, Roger apud IANNI, Octvio. Escravido e Racismo. HUCITEC. So Paulo, 1978, p. 73.

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    O sincretismo foi por excelncia o subterfgio que concedeu ao negro poder expressar sua cultura religiosa, mas tambm foi responsvel pela interpenetrao de elementos exteriores quela. Influenciou e foi influenciado sobremaneira45. Os reflexos dessa convivncia podem ser observados, por exemplo, nos dias atuais, nos quais os santos catlicos foram apropriados de tal maneira pelos praticantes do candombl e umbanda, que no mesmo dia em que se comemora um determinado santo, dependendo da regio do pas comemorado tambm o do orix correspondente. Sem dvidas, fato dessa hibridizao cultural experimentada pelos escravos de outrora.

    Nesse sentido, o negro procurou inserir-se na sociedade branca e catlica misturando seus aspectos culturais aos de seus dominadores. Essa mimetizao de cultos africanos com catlicos tornou-se uma ferramenta poderosa de resistncia, em que atravs da dissimulao de submisso aos preceitos catlicos, subsistia o culto aos ancestrais divinizados da frica. Embora se tenha existido um processo de dominao, esta no se deu de forma pacfica.

    45A questo do sincretismo ser abordada no 2 captulo desse trabalho. Por ser uma questo mais densa, ser necessrio explicitar melhor o conceito em captulo parte.

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    CAPTULO 2 - OGUM OU SO JORGE? O SINCRETISMO NO PROCESSO DE SOBREVIVNCIA CULTURAL NEGRA E A INVENO DO BAIXO ESPIRITISMO

    Nesse captulo, sero abordadas duas temticas fundamentais para a compreenso do contexto social em que o negro brasileiro de incio de sculo vivenciou, para que seja adentrada a problemtica desejada por este trabalho. A primeira se refere ao sincretismo afrocatlico46, o qual marcou, pelo vis religioso, permanncias que se observam at os dias atuais, no tocante a celebraes e cerimnias em que se imbricam elementos tanto africanos quanto catlicos.

    Posteriormente, ser adentrada a questo das religies afrobrasileiras enquanto componentes do baixo espiritismo e, por conseguinte, alvo de perseguies por parte dos aparatos jurdicos e policiais. Esse termo gestado sob a tica de diferenciar a prtica de um culto esprita, de vertente kardecista, das prticas ritualsticas afrobrasileiras, arrogando para si o carter de espiritismo doutrinrio e propagador da caridade entre os homens. Embora no se tenha estabelecido como consenso, todas as religies se mostram sincrticas em sua conformao enquanto tais, pois so a representao de grandes snteses, integrando elementos de diversas procedncia, os quais vo se resignificar com vistas a formar um novo todo47 O sincretismo tem como possibilidade a sua anlise enquanto apangio do fenmeno religioso. No se deseja com isso promover uma reduo ou desmerecimento de qualquer religio. Ao contrrio. atestar que a prtica religiosa, assim como demais elementos culturais, constitui-se em uma sntese integradora abarcando distintos contedos de distintas origens. Ou seja, longe de ser um fenmeno depreciador ou negativo, o sincretismo surge como um encontro de diversos pontos de vista que convergem para um ponto em comum. No Brasil, que o escopo desse trabalho, o sincretismo afrocatlico se consolidou como um processo amortecedor de uma situao de conflito. No no sentido blico, propriamente dito, mas de conflito sociopoltico e cultural.

    46Sincretismo afrocatlico refere-se a interpenetraes culturais e religiosas no mbito do catolicismo com as prticas ritualsticas africanas. Para mais ver VALENTE, Waldemar. O sincretismo afrobrasileiro. So Paulo, 1953.

    47FERRETTI, Sergio Ferreira. Repensando o Sincretismo. So Paulo/So Lus: EDUSP/FAPEMA, 1995.

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    O sincretismo afrobrasileiro foi uma estratgia de sobrevivncia e de adaptao, que os africanos trouxeram para o Novo Mundo. Ainda no continente africano, nos contatos pacficos ou hostis com povos vizinhos, era comum a prtica de adotar divindades entre conquistados e conquistadores. Desde a chegada dos contingentes escravos ao Brasil, as religies afrobrasileiras, que aqui se configuraram, fizeram-se sincrticas, estabelecendo paralelismos entre divindades africanas e santos catlicos, adotando o calendrio de festas do catolicismo e valorizando a frequncia aos ritos e sacramentos da Igreja Catlica48. O culto catlico aos santos, de um catolicismo popular de cunho politesta, apresentou grande verossimilhana ao culto dos pantees africanos. Na conformao das religies afro no Brasil, pode-se observar um forte carter tributrio em relao ao catolicismo. O que se observou foi uma grande imbricao entre os membros dos cultos catlicos e afrobrasileiros. No sob a perspectiva de assimilao da religio dominante para a dominada, mas antes numa relao de troca, de dupla influncia de uma para com a outra49. A Revista da Semana, edio de 03 de maio de 1941, traz uma reportagem sobre a festa de So Jorge, no Rio de Janeiro, onde discorre sobre a grande popularidade desse santo.

    Uma extensa fila formada pelo povo ia da igreja at quasi o edifcio da Prefeitura. Ali estavam pretos, brancos, mulatos, chineses, alemes, soldados, jardineiros, toda uma diversidade humana. O santo-soldado popular em todo o Rio de Janeiro, desde as altas camadas catlicas, s espritas e as da macumba, em que ele celebrado sob o nome de Ogum50.

    Observa-se, com isso, a fora do processo de sincretismo ocorrido no Brasil. Sob a gide da hagiologia catlica, congregam-se espritas e macumbeiros. A associao entre So Jorge e Ogum to intensa que santo e orix praticamente se fundem em um s. De acordo com o peridico, a popularidade da divindade Ogum/So Jorge to grande que se torna impossvel definir qual seria o objeto de culto. Observa-se, tambm, o lugar destinado aos cultos afrobrasileiros, denominados como macumba, em uma posio de inferioridade, abaixo das chamadas altas classes

    48PRANDI, Reginaldo. Referncias sociais das religies afrobrasileiras: Sincretismo, branqueamento, africanizao. Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, v. 4, n. 8, p. 151-167, 1998.

    49CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Hbridas estratgias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. So Paulo: UNESP, 2011.

    50Revista da semana, 03 de maio de 1941, p. 3, destaque meu.

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    catlicas e da vertente esprita. Nota-se uma tentativa de se estabelecer o lugar social51 dos praticantes das religies afrobrasileiras, abaixo de uma espcie de aristocracia catlica e da classe mdia esprita. Nesse contexto de imbricao de adorao, outra divindade de extrema popularidade Iemanj, a qual mais comumente sincretizada com Nossa Senhora dos Navegantes ou Nossa Senhora do Rosrio, dependendo da regio. Trata-se de uma entidade ecumnica, pois desde muito j congrega as mais variadas classes sociais e tambm adeptos de outras religies em seu culto.

    Nas rampas da praia, nas dunas alvas, entre as relvas, coqueiros e cajueiros, a multido em at a orla do mar para fazer suas oferendas grande e soberana Iemanj. Na crena dos homens de cr ela a Rainha do Mar; no esprito dos homens brancos que tem palcios e carros de luxo ela Janana, ou Nossa Senhora do Rosrio, produto de estranho e invencvel sincretismo religioso que se formou na Bahia pela aculturao dos negros africanos nas senzalas do senhor branco52

    Depreendem-se dois fatos de tal assertiva. Inicialmente percebe-se que embora se intente estabelecer uma diviso de camadas sociais por intermdio da diferenciao racial, pois, se para os homens de cr (sic) Iemanj se apresenta como a Rainha dos Mares, por outro ela para os homens brancos possuidores de palcios e carros de luxo, a divindade se apresenta como a catlica e branca N. S. do Rosrio, ou ainda Janana (referncia indgena). Ou seja, o lugar outorgado aos negros, ou homens de cor, j poderia ser identificado por essa passagem. Posteriormente, a publicao acaba por se render ao ecumenismo da celebrao afirmando que tal imbricao era produto de um estranho, porm, invencvel processo de associao. Em outras palavras, j no mais se podia separar o culto catlico dos cultos de outra vertente nessa cerimnia. Destarte isso, percebemos a necessidade de que se explane de uma forma mais pormenorizada as caractersticas desse processo associativo.

    51O conceito de lugar social refere-se s posies de referncia imputadas socialmente aos sujeitos e por estes assumidas, caracterizando-se assim como posio simblica e no referncia topogrfica. Para mais, ver ZANELLA, Andra Vieira, LESSA, Clarissa Terres, DA ROS, Slvia Zanatta. Contextos Grupais e Sujeitos em Relao: Contribuies s Reflexes sobre Grupos Sociais In Psicologia: Reflexo e Crtica, 2002, 15(1), pp. 211-218. UFSC. 52Revista da semana, 03 de maio de 1941, p.5.

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    2.1 A frica aqui: as relaes sincrticas no contexto brasileiro

    antes de tudo limitado o consenso de que o sincretismo foi um processo simples de ocultao da cultura africana, representada pela sua f, e nesse se deu a transfigurao dos orixs em santos catlicos, nica e exclusivamente pelo contato entre uma religio dominante e outra dominada. O estabelecimento das religies de culto afro no Brasil fiel tributrio do catolicismo e das idiossincrasias crists. O culto catlico dos santos apresentou-se como uma formatao religiosa que se adaptava ao culto do panteo africano dos orixs. Entretanto, o culto a essas divindades africanas s adquire impulso e se desenvolve com chegada do africano ao cativeiro colonial. Segundo Reginaldo Prandi53, isso se deu porque a ritualstica da religio africana original era construda sob a base familiar, no culto aos antepassados, sejam ligados por meio de laos de parentesco direto ou por respeito a uma autoridade da tribo ou aldeia. Sob os auspcios da dispora, essa estrutura de culto familiar veio a se perder. Na frica, quem cuidava da ordem do grupo era o egungum, o ancestral do povoado54. Ao se desarticularem as estruturas sociais tribais africanas, o lugar de primazia no culto deslocou-se dos antepassados, os quais passaram a ser cultuados marginalmente nesse contexto, e passou para os orixs. Essas divindades tm como caracterstica estar ligadas a foras da natureza, executar uma funo regente em relao determinada atividade laboral, participar de forma ativa na construo da identidade humana, enfim, toda uma relao de interao mais fsica com o homem. Assim, essas divindades convertem-se no novo cerne do culto africano. Inicialmente, faz-se primordial ressaltar que o sincretismo no um fenmeno estritamente localizado, tampouco recente. Segundo Nina Rodrigues55, o catolicismo j unira na sua hagiografia as lendas crists e os mitos pagos no seu processo de expanso e

    53PRANDI, Reginaldo. Referncias sociais das religies afrobrasileiras: Sincretismo, branqueamento, africanizao. Horizontes Antropolgicos, Porto Alegre, v. 4, n. 8, p. 151-167, 1998.

    54 Idem.

    55RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista do negro na Bahia. Rio, 1939.

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    consolidao enquanto prtica religiosa. Assim, pode-se afastar o conceito de pureza do campo inter-relacional religioso entre o catolicismo e o fetichismo africano56.

    necessrio, ainda, que se compreenda que para que houvesse essa imbricao era necessrio que esse processo j estivesse no decurso mental do negro. De fato, esse esquema mental se deu ainda no continente africano, prosseguiu durante a travessia e, por fim, no Brasil. Em outras palavras, o que aportou na Colnia no foi uma cultura africana

    pura, mas sim, misturada entre suas congneres. o que se depreende pela tica de Arthur Ramos57, ao afirmar que as sobrevivncias africanas no se mostram em estado de pureza. Alis, desde os primeiros tempos da escravido, as culturas negras se apresentaram misturadas. Misturadas e deformadas pela influncia da condio de escravo. Os cultos africanos chegavam ao Brasil mais ou menos misturados, como, alis, chegavam os demais traos culturais negros. Tal fato se deveu quer seja pela aproximao fsica, quer seja pela aglutinao de estoques culturais diversos na prpria frica58. Negros de vrias procedncias uniam-se pela nostalgia, pelo sofrimento comum, arrancados de forma brutal da sua terra, como se no fossem criaturas humanas. Irmanavam-se pelo mesmo sentimento de dvida e de pavor, nas vicissitudes de uma migrao forada, ante o destino que os aguardava em local incerto e no sabido. Em sua maioria, os contingentes tnicos transladados para a Colnia eram praticantes do fetichismo ou o culto dos fetiches, isto , atribuio de poderes mgicos ou sobrenaturais a objetos da natureza, podendo ser pedra, animal, planta, rvore, dentre outros, os quais o homem deificava e passava a adorar como coisa sagrada.

    O entrelaamento de culturas negras umas com as outras prosseguiu, sob o novo aspecto e ativado por um novo estmulo, no curso das acidentadas e demoradas viagens para a Colnia. Tal estmulo foi o cativeiro, com todos os seus efeitos desfiguradores. Assim, condio primeira de contato intercultural, a escravido vai atuar como um amlgama no sentido de, forado o contato e sendo precedido de uma predisposio mental, fomentarem-se as prticas sincrticas. A situao colonial, ao promover contatos

    56Para mais ver BASTIDE, Roger. Estudos Afro Brasileiros. Ed Perspectiva. 3 Ed. So Paulo, 1983.

    57RAMOS, Arthur. O negro brasileiro. 2 ed., 1940

    58VALENTE, Waldemar. O sincretismo afrobrasileiro. So Paulo, 1953, p. 24

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    forados entre tribos de diferentes etnias com diferentes arcabouos culturais e vivendo em um ambiente hostil possibilitou essa imiscuio. Sob esse prisma, mister que se discorra sobre o padro de permanncias culturais negras no Brasil. Conforme anteriormente mencionado, diferentes foram as populaes africanas transladadas para a Colnia. Foram trs grandes padres de cultura negra estudados at a atualidade. So elas a Fanti-Ashanti, Fon e Iorub59. Segundo Valente, no Brasil, os padres sobreviventes foram as culturas sudanesas, banto e guineano-sudanesas islamizadas. O padro sudans foi o mais influente e o que determinou maiores permanncias. Do tronco cultural proveniente desse padro, podem-se destacar os grupos nag (Iorub), jeje (Daom) e mina (Fanti-Ashanti). Estes grupos apresentavam um aparelhamento cultural que estava em nvel de organizao mais sistematizado, ou mais prximo de um esquema cristo de organizao religiosa de organizao que o dos bantos60. Essa sistematizao se refletiu de modo muito particular no tocante difuso religiosa. Por isso, essa etnia se destacou, nesse aspecto, em meio s demais populaes negras no Brasil. Dentre seus grupos constituintes, tem-se uma proeminncia dos grupos nag e jeje. Sobretudo no que tange questo religiosa, esses agrupamentos quase se fundiram a ponto de Nina Rodrigues chamar de cultura nag-jeje61. Dessa forma, pode-se compreender, ento, que os processos sincrticos se deram entre as prprias culturas africanas, em um primeiro momento, e que possibilitou uma sistematizao de cabedais culturais distintos, operando no limiar mental da populao negra uma abertura pela qual se processou mais familiarmente o sincretismo com os elementos do catolicismo. O sincretismo um processo que se prope resolver uma situao de conflito cultural. Nesse processo, a principal caracterstica a luta pelo status, ou seja, o esforo empreendido no sentido de conseguir uma posio que se ajuste idia que o indivduo ou o grupo tem da funo que desempenha dentro da sua cultura62.

    59Para saber mais ver Valente, Waldemar. O sincretismo afrobrasileiro. So Paulo,1953.

    60O aparelhamento cultural dos negros sudaneses se mostrou superior, no sentido de adaptao nova estrutura social, em relao ao dos bantos. Essa organizao foi uma fora poderosa que serviu de base para outras fuses. Fuso esta inicialmente entre os grupos nag e jeje e, posteriormente, para outras. Idem. 61RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista do negro na Bahia. Rio, 1939, p. 25.

    62BASTIDE, Roger. Estudos Afro Brasileiros. Ed Perspectiva. 3 Ed. So Paulo, 1983, p.11.

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    Caracteriza-se fundamentalmente por uma intermistura de elementos culturais. Uma ntima interfuso, uma verdadeira simbiose, em alguns casos, entre os componentes das culturas que se pem em contato. Simbiose que d resultado numa fisionomia cultural nova63, na qual se associam e se combinam, em maior ou menor grau, as marcas caractersticas das culturas originais. O fenmeno do sincretismo depende ou opera sob a gide de duas condies, a saber, uma exterior, de efeito alegrico ou superficial, e que atua apenas no campo das aparncias. J a outra condio afeta s questes ligadas a modificaes internas do campo mental.

    Normalmente, o que se observou no decorrer de processos sincrticos foi, inicialmente, uma fase de ajustamento a novas condies ou ao novo sistema cultural. Entretanto, nessa fase, no se realiza uma alterao em nvel de subconsciente. Em outras palavras, essa alterao se processa apenas superficialmente e se pode perceb-la por intermdio de mudanas de vestimentas, ritualsticas, dentre outras. Ao passo que em outro momento em que j se sedimentaram aspectos dos dois sistemas postos em contato, j se podem observar modificaes comportamentais consolidadas, independentemente da vontade das comunidades. Tal como se fosse um aspecto cultural inato a essa nova comunidade que surge por meio dessa interpenetrao sociocultural.

    Por esse vis, e segundo Waldemar Valente64, o sincretismo abrange, no seu desenvolvimento, como processo de interao cultural, e, na sua funo de prevenir, reduzir ou anular os conflitos, duas fases distintas de adequao ao sistema cultural distinto. Tais fases podem ser comparadas aos processos de acomodao e assimilao65. Durante a primeira fase do processo de estabelecimento do sincretismo procede-se a um trabalho de ajustamento de ordem quase ou mesmo exclusivamente exterior e que, em geral, processa-se rapidamente. Dele no participam e nem se desvelam alteraes de carter interno ou psquico66. A mudana de traje, por exemplo, est nesse caso. Entretanto,

    63BASTIDE, Roger. Estudos Afro Brasileiros. Ed Perspectiva. 3 Ed. So Paulo, 1983, p.11.

    64VALENTE, Waldemar. O sincretismo afrobrasileiro. So Paulo, 1953, p.35

    65 Idem, p.12.

    66 Idem, p.13.

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    o indivduo ou o grupo que se acomodou, em face de uma situao de conflito cultural, continua a manter ligao, de forma voluntria, com os valore