Perseguido Pela Lua - Colégio Sagrado Coração de Maria
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8/8/2019 Perseguido Pela Lua - Colégio Sagrado Coração de Maria
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Persegu ida Pela Lua
Colégio do Sagrado Coração de Maria – LisboaTexto: Marta Trindade
Ilustrações: Maria Ventura
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A estrada deslizava ao seu lado, cada vez mais depressa; as árvores fugindo do caminho iluminado
apenas pelos faróis médios da Navara, a carrinha que os pais lhe haviam oferecido dois anos antes. Clara
segurava o volante com ambas as mãos trémulas, as lágrimas correndo-lhe o rosto magro e pingando sobre
as calças de veludo negro. O pé pisava o acelerador cada vez com mais força e a estrada conduzia-a a lugarnenhum, entre a vereda de árvores e sombras que se lhe impunha. A Navara sulcava o alcatrão enegrecido e
gasto do tempo, por onde tantas outras mágoas e histórias e pessoas haviam antes passado, perseguida pelo
quarto crescente de lua no azulão do céu, e Clara parecia nem dar conta do silêncio ensurdecedor que a
rodeava, cortado apenas pelos soluços que a sacudiam brutalmente.
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Valera a pena? Não podia deixar de se perguntar. Valera a pena ter abdicado de tudo aquilo que a fazia
feliz, de tudo quanto gostava, para o final que inevitavelmente chegara? O que deixara por viver nos últimos
seis anos? Que lugares deixara por visitar? Que pessoas deixara por conhecer, que momentos – que vida –
deixara por viver?
E tudo para que Rita, a sua querida e pequenina irmã, acabasse num caixão de madeira clara igual a
tantos outros, pequeno para desdizer o seu tamanho interior de pessoa crescida, de coração grande, de uma
doce vontade de abraçar o mundo inteiro. Valera a pena? Não podia, não conseguia deixar de se perguntar.
O que são seis anos de dor e tristeza para quem os vive? E novamente o rosto da irmã batia à porta do seu
pensamento, contorcido de sofrimento, chorando de medo e da dor que lhe causavam os longos e penosos
tratamentos. Apesar de todas as tentativas, Clara não conseguia apagar as imagens da irmã mais novaenroscada numa cama perdida de hospital, os seus bracinhos finos e o corpo magro desvanecendo-se numa
camisa de noite demasiado larga, as pálpebras outrora leves e pestanudas pesando-lhe sobre os olhos
brilhantemente febris. Já mal se lembrava dela longe do hospital, em casa, brincando alegremente como as
outras crianças, num mar de bonecos e jogos espalhados por todo o quarto.
Do dia em que ela nascera, recordava-se bem. Clara tinha apenas cinco anos, mas lembrava-se de o pai
a ter ido buscar à escola numa tarde chuvosa de Fevereiro, agarrando-lhe na mão com um grande sorriso.«Vais conhecer a tua irmãzinha», dissera-lhe, e a felicidade transbordava da sua voz, a alegria de ser pai
novamente tombando-lhe dos olhos aveludados. Clara não tinha a certeza do que ia acontecer, mas aquela
luz no rosto do pai, o brilho dos seus olhos, prometia que não seria nada de mal. A mão grande dele prendia
com força a sua pequenina, balouçando-a enquanto andavam.
Já não sentiam a chuva, ou talvez ela tivesse parado; não estava certa. Recordava o riso do pai ao dizer:
«Águas de Verão!». Mas era Fevereiro, e as árvores e os jardins estavam despidos à sua passagem, epequenas linhas de geada circundavam os vidros do carro. Clara ia sentada no banco de trás, olhando pela
janela e procurando memorizar cada rua e cada prédio porque sentia que era importante, que era um dia que
seria bom recordar mais tarde.
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«Flores» disse ela de súbito, apontando para a berma da estrada «olha, papá, flores!». O pai encostou o
carro na rua vazia àquela hora e abriu-lhe a porta para que saísse. Junto ao alcatrão rebentavam pequenos
malmequeres coloridos, anunciando a precocidade da primavera que se avizinhava, e eles colheram dois: um
para a irmãzinha que acabara de nascer e outro para a mãe. Clara sorriu e guardou cuidadosamente as floresno bolso da gabardine amarela.
Quando o pai quis partir de novo, porém, o carro não pegou. Clara lembrava-se da fúria dele ao rodar a
chave na ignição, praguejando contra Deus e o mundo e os carros e as flores na berma da estrada. Então a
menina riu e exclamou:
«De bicicleta, podemos ir de bicicleta, papá!». E o pai abanou a cabeça. No porta-bagagens estava ainda
uma pequena bicicleta cor-de-rosa oferecida por uns amigos que já não a utilizavam, que tinham concordado
guardar para quando Clara crescesse um bocadinho mais. «É demasiado pequena para mim» explicou-lhe o
pai, tentando novamente fazer andar o carro.
Mas o motor ronronava durante alguns segundos e voltava a adormecer num pesado silêncio, e nenhum
deles via a hora de saírem dali para ver a bebé recém-nascida. Por isso, ao fim de alguns minutos, o pai
disse-lhe: «Salta, Clarinha, vamos mesmo de bicicleta».
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Clara recordava esse dia como um dos mais felizes da sua vida. O dia em que a sua irmã nascera, longe
ainda de sonhar tudo aquilo por que havia de passar anos mais tarde. Seguira com o pai em direção ao
hospital pendurada às suas cavalitas, enquanto ele pedalava como um aranhiço numa velha e minúscula
bicicleta cor de rosa. O sol punha-se devagar no horizonte, e o céu que horas antes albergara nuvens
cinzentas carregadas de chuva estava agora limpo e pintado em tons torrados de laranja e amarelado.
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Agora, que guiava sozinha e sem rumo fugida do funeral da irmã, apenas essas memórias lhe atenuavam
um pouco a dor. A chuva recomeçara a cair em bátegas grossas, e os limpa pára-brisas rangiam a cada
movimento, varrendo o vidro em grandes semicírculos. As lágrimas não cessavam de lhe lavar o rosto, e a lua
permanecia decidida a segui-la, em quarto crescente, onde quer que fosse.
Lembrava-se do sorriso da mãe com o malmequer preso no cabelo, da face engelhada de Rita dormindo
a seu lado. Só que, agora, já não havia Rita, e a mãe não tinha motivos para sorrir durante muito tempo. A
estrada estava vazia como estivera no dia em que haviam pedalado até ao hospital, no dia em que o pai a
abraçara com força, ao chegar, e lhe segredara ao ouvido: «vai correr tudo bem». Clara sentira a barba dele
fazendo-lhe cócegas no rosto e rira com confiança porque, de súbito, tinha a certeza que sim, que ia,
realmente, correr tudo bem.
Ao longe, viu um carro estacionado à beirinha da estrada. Parecia ali estar ao abandono, e a rapariga
abrandou para ver se seria precisa ajuda. Parou a Navara ao lado do carro e saiu, protegendo o rosto com o
braço. Parecia que o céu se tinha aberto, que as nuvens se haviam rasgado para deixar cair um dilúvio sobre
a terra encharcada. Apesar de ser quase Novembro, Clara reparou, no escuro, que uma mão cheia de
malmequeres pontilhava a berma da estrada.
Ergueu o olhar para o carro e aproximou-se, verificando que estava vazio. Prestes a voltar para a
carrinha, uma silhueta prendeu-lhe a atenção. Junto a uma árvore ali perto, fora deixada uma pequena
bicicleta cor de rosa, demasiado pequena para um homem adulto, demasiado grande para uma menina de
cinco anos. Uma bicicleta cor de rosa do tamanho ideal.
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Um vulto apareceu por trás dessa árvore. As barbas longas e o olhar brilhante fizeram-na reconhecer o
pai, que abriu os braços para a receber. Clara caiu naquele abraço firme e apertado, o seu porto seguro em
criança, e respirou profundamente o aroma peculiar da alfazema que, apesar da chuva, sempre perfumara as
camisas dele.
Não soube por quanto tempo ali ficou, muda e quieta, respirando alfazema e tristeza. Afastou-se apenas
quando, lentamente, a chuva abrandou até cessar por completo. E murmurou baixinho: «Águas de Verão».
O pai olhou-a e sorriu, um sorriso sem a luz e a vida que o caracterizava. Devagar, retirou do bolso um
malmequer apanhado da berma da estrada e prendeu-o carinhosamente no cabelo de Clara.
Abraçou-a novamente. A barba fazia cócegas no rosto de Clara, como quando era pequenina, e o quarto
crescente de lua que os seguira até ali olhava-os do azul do céu. No silêncio das árvores que os envolvia, a
menina ouviu-o segredar:
«Vai correr tudo bem».