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Universidade Federal de Santa Catarina Programa de Pós-graduação em
Engenharia de Produção
PERSPECTIVAS DO SETOR COURO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
Tese de Doutorado
Janis Elisa Ruppenthal
Florianópolis 2001
Universidade Federal de Santa Catarina Programa de Pós-graduação em
Engenharia de Produção
PERSPECTIVAS DO SETOR COURO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
Janis Elisa Ruppenthal
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Engenharia de Produção da Universidade Federal de Santa Catarina
como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em
Engenharia de Produção
Florianópolis 2001
ii
Janis Elisa Ruppenthal
PERSPECTIVAS DO SETOR COURO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
Esta tese foi julgada e aprovada para a
Obtenção do título de Doutor em Engenharia de Produção no Programa de Pós-graduação em
Engenharia de Produção da Universidade Federal de Santa Catarina
Florianópolis, 25 de abril de 2001
Prof. Ricardo Miranda Barcia, Ph.D
Coordenador do Curso BANCA EXAMINADORA
Prof. Alberto Souza Schmidt, Dr.
Prof. Dorval Olívio Mallmann, Dr.
Prof. Bruno Hartmut Kopittke, Dr
Orientador
Prof. Nelson Casarotto Filho, Dr.
Prof. Jorge Ninow, Dr.
iv
Agradecimentos
À Universidade Federal de Santa Catarina e ao Programa de Pós-graduação em
Engenharia de Produção pela oportunidade de realização desse curso,
Ao Professor Orientador Dr. Bruno H. Kopittke, por ter acreditado
nesse trabalho,
Aos membros da Banca Examinadora, por suas contribuições,
Aos colegas do Departamento de Engenharia Industrial da Universidade Federal
de Santa Maria, em especial ao Prof. Dr. João Hélvio Righi de Oliveira,
pela amizade e apoio,
À minha família, pelo apoio e incentivo constante em todas as etapas
desse trabalho,
Aos meus pais, por nunca medirem esforços para possibilitar o meu acesso a
educação e ao conhecimento,
Ao meu marido, por estar sempre ao meu lado,
A todas as pessoas que direta ou indiretamente contribuíram para a realização
desse trabalho,
E, finalmente, a Deus, pela vida.
v
Sumário
Lista de figuras ................................................................................................. p.viii
Lista de tabelas .................................................................................................. p.xi
Lista de reduções .............................................................................................. p.xii
Resumo ............................................................................................................ p.xiii
Abstract ............................................................................................................ p.xiv
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................p.1
1.1 Considerações iniciais...................................................................................p.1
1.2 Contextualização...........................................................................................p.5
1.2.1 Considerações iniciais sobre a análise de filière ....................................p.6
1.3 Objetivos .......................................................................................................p.8
1.4 Ineditismo e inovações..................................................................................p.9
1.5 Relevância e contribuições............................................................................p.9
1.6 Desenvolvimento e estruturação .................................................................p.10
2 CONTEÚDO TEÓRICO CONCEITUAL ............................................................p.11
2.1 Introdução ...................................................................................................p.11
2.1.1 O enfoque sistêmico e mesoanalítico da análise de filière...................p.13
2.2 Análise de filière ..........................................................................................p.17
2.2.1 A noção de macro e micro-filière..........................................................p.22
2.2.2 A noção de filière principal e filière auxiliar ..........................................p.23
2.3 Aplicações da análise de filière ...................................................................p.24
2.3.1 A análise de filiére como ferramenta de análise e formulação
de políticas públicas e privadas...........................................................p.24
2.3.2 A análise de filiére como ferramenta de descrição
técnico-econômica..........................................................................p.25
2.3.3 A análise de filiére como metodologia de análise da
estratégia de empresas .......................................................................p.26
2.3.4 A análise de filiére como espaço de análise das
inovações tecnológicas........................................................................p.29
vi
2.4 Operacionalização da análise de filière .......................................................p.31
2.4.1 Análise da evolução histórica...............................................................p.31
2.4.2 Leitura técnica da filière .......................................................................p.33
2.4.3 Leitura econômica da filière .................................................................p.35
2.4.4 A filière ideal.........................................................................................p.36
3 SUSTENTABILIDADE E ABORDAGEM ECOSSISTÊMICA.............................p.38
3.1 Um novo paradigma para as organizações .................................................p.38
3.2 O pensamento ecossistêmico .....................................................................p.40
4 METODOLOGIA................................................................................................p.50
4.1 Natureza e caracterização da pesquisa ......................................................p.50
4.2 Instrumentos de coleta e análise de dados .................................................p.52
4.3 Limitações do estudo...................................................................................p.57
5 A FILIÈRE COURO...........................................................................................p.59
5.1 Características do setor couro.....................................................................p.59
5.2 Histórico dos principais agentes da filière ...................................................p.68
5.2.1 Tradição pecuária do Rio Grande do Sul .............................................p.68
5.2.2 A produção da carne ............................................................................p.72
5.2.3 Histórico da industrialização da filière ..................................................p.73
5.2.4 Histórico das relações ambientais da filière .........................................p.85
5.3 Análise técnico-econômica dos curtumes ...................................................p.90
5.3.1 Influência da pecuária ..........................................................................p.94
5.3.2 Frigoríficos .........................................................................................p.104
5.3.3 Curtumes............................................................................................p.107
5.4 Análise técnico-econômica dos fabricantes de
calçados de couro.................................................................................p.129
5.4.1 Caracterização do segmento calçadista.............................................p.129
5.4.2 Análise do processo produtivo dos calçados de couro.......................p.135
5.4.3 Considerações importantes................................................................p.150
5.5 Distribuição e mercados.......................................................................p.162
5.5.1 Mercado interno de couro ..................................................................p.163
5.5.2 Mercado interno de calçados .............................................................p.164
5.5.3 Mercado interno de componentes......................................................p.167
5.5.4 Mercado interno de artefatos de couro...............................................p.168
5.5.5 Mercado interno de máquinas............................................................p.169
vii
5.5.6 Mercado externo de couro .................................................................p.172
5.5.7 Mercado externo de calçados ............................................................p.180
5.5.8 Relações comerciais na filière............................................................p.186
5.5.9 Infra-estrutura de transporte...............................................................p.190
5.5.10 A nova visão do setor.......................................................................p.191
6 PERSPECTIVAS DO SETOR .....................................................................p.195
6.1 A concepção do setor ideal teórico............................................................p.195
6.2 A questão ambiental..................................................................................p.201
6.2.1 Impactos ambientais ..........................................................................p.203
6.2.2 Eliminação ou substituição do produto perigoso ................................p.204
6.2.3 Tecnologias limpas.............................................................................p.206
6.2.4 Meio ambiente e competitividade.......................................................p.217
6.3 Competitividade.........................................................................................p.218
6.3.1 Forças competitivas ...........................................................................p.218
6.3.2 Clusters e competitividade .................................................................p.222
6.3.3 O cluster coureiro-calçadista gaúcho .................................................p.223
7 CONCLUSÃO..............................................................................................p.231
8 FONTES BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................p.237
9 ANEXOS......................................................................................................p.243
9.1 Instrumento de coleta de dados ................................................................p.244
viii
Lista de figuras
Figura 1: Representação esquemática da filière couro .......................................p.7
Figura 2: Interrelação entre análise de filiére, mesoanálise e
enfoque sistêmico...............................................................................p.14
Figura 3: Fatores do meio-ambiente que integram a mesoanálise....................p.16
Figura 4: Representação da Análise de filiére ...................................................p.20
Figura 5 – Conceito de macro e micro-filière .....................................................p.22
Figura 6: Mudanças nas ciências da natureza ..................................................p.43
Figura 7: Diagrama da filière principal e auxiliar da filière couro .......................p.60
Figura 8: Exportações de calçados por estado do Brasil...................................p.65
Figura 9: Exportações de couro por estado do Brasil........................................p.65
Figura 10: Exportação de couro por tipo – Brasil 1999......................................p.66
Figura 11: Fábrica de calçados do começo do século XX.................................p.76
Figura 12: Primeira missão comercial do setor..................................................p.80
Figura 13: Estação Piloto de Tratamento de Efluentes de Curtumes ................p.89
Figura 14: Central de resíduos ..........................................................................p.89
Figura 15: Micro-filiére do setor de curtumes ....................................................p.93
Figura 16: Defeitos nos couros.........................................................................p.96
Figura 17: Cicatriz de parasita sobre pele vacum..............................................p.96
Figura 18: Participação do número de curtumes por região............................p.102
Figura 19: Distribuição de curtumes por Estado..............................................p.102
Figura 20: Importação de couros por estado...................................................p.109
Figura 21: Estágios de transformação da pele em couro ................................p.112
Figura 22: Etapas da industrialização do couro...............................................p.113
Figura 23: Conservação das peles ..................................................................p.114
Figura 24: Operação de remolho.....................................................................p.115
Figura 25: Operação de depilação e caleiro....................................................p.116
Figura 26: Descarnagem manual ....................................................................p.117
Figura 27: Operação de descarne ...................................................................p.118
Figura 28: Operação de divisão.......................................................................p.119
Figura 29: Operação de descalcinação ...........................................................p.120
ix
Figura 30: Operação de píquel e curtimento ...................................................p.121
Figura 31: Operação de rebaixamento ............................................................p.121
Figura 32: Operação de acabamento ..............................................................p.122
Figura 33: Operação de acabamento final ......................................................p.124
Figura 34: Fulões de madeira..........................................................................p.126
Figura 35: Consumo Mundial de Material para Solado....................................p.138
Figura 36: Produção do calçado......................................................................p.139
Figura 37: Micro-filière do calçado...................................................................p.140
Figura 38: Montagem e partes do calçado ......................................................p.141
Figura 39: Operação de corte manual .............................................................p.145
Figura 40: Operação de acabamento ..............................................................p.149
Figura 41: Estilo Made in Brazil .......................................................................p.150
Figura 42: Evolução do abate e consumo aparente ........................................p.163
Figura 43: Produção Brasileira de Calçados ...................................................p.166
Figura 44: Evolução da Balança Comercial de Artefatos de Couro.................p.170
Figura 45: Exportações do setor de máquinas ................................................p.170
Figura 46: Evolução da Balança Comercial de Couro .....................................p.173
Figura 47: Exportações brasileiras de couro por tipo em valores ....................p.173
Figura 48: Exportação de couro bovino wet-blue – situação física..................p.174
Figura 49: Exportação de couros wet-blue - situação monetária.....................p.174
Figura 50: Exportação de couros crust e acabados – situação física..............p.175
Figura 51: Exportação de couros crust e acabados – sit. monetária ...............p.175
Figura 52: Destino das Exportações de Couros ..............................................p.176
Figura 53: Exportação global de couros por estados ......................................p.178
Figura 54: Evolução das importações de couro...............................................p.178
Figura 55: Origem das Importações de Couro Brasileiras...............................p.179
Figura 56: Evolução da Balança Comercial de Calçados................................p.182
Figura 57: Destino das Exportações Brasileiras de Calçados .........................p.182
Figura 58: Países exportadores para os Estados Unidos................................p.183
Figura 59: Exportação de calçados por estado do Brasil ................................p.185
Figura 60: Origem das Importações de Calçados ...........................................p.185
Figura 61: Exportação por vias de acesso ......................................................p.190
Figura 62:Transição para o modelo integrado.................................................p.197
Figura 63: Micro-filière ideal da pecuária.........................................................p.198
x
Figura 64: Micro-filière ideal do couro .............................................................p.199
Figura 65: Micro-filière ideal da manufatura do couro .....................................p.200
Figura 66: Desperdício e armazenamento de
materiais desnecessários ....................................................................p.202
Figura 67: Evolução do ciclo vicioso para o ciclo virtuoso...............................p.219
Figura 68: Ambiente de competitividade .........................................................p.220
Figura 69: Forças influenciadoras do cluster ...................................................p.228
Figura 70: Cluster coureiro-calçadista gaúcho ................................................p.229
Figura 71: Desenvolvimento do cluster ...........................................................p.235
xi
Lista de tabelas
Tabela 1: Bovinocultura de corte – produção, exportação ................................p.63
Tabela 2: Maiores Produtores Mundiais de Calçados .......................................p.64
Tabela 3: Evolução prevista do rebanho brasileiro............................................p.92
Tabela 4: Cálculo do valor de um bovino formulado pelos frigoríficos...............p.94
Tabela 5: Exportações de couro pelo Brasil .....................................................p.98
Tabela 6: Curtumes por estado brasileiro........................................................p.104
Tabela 7: Evolução da produção de couros ....................................................p.107
Tabela 8: Estimativa da procedência de peles por região do Brasil ................p.107
Tabela 9: Qualidade do couro produzido.........................................................p.108
Tabela 10: Exportações brasileiras de couro...................................................p.108
Tabela 11: Participação dos estados na exportação de couro .......................p.108
Tabela 12: Procedência das Importações de Couro – Brasil...........................p.109
Tabela 13: Mercado mundial de calçados – Produção....................................p.131
Tabela 14: Evolução salário médio na indústria de calçados – Brasil .............p.133
Tabela 15 - Salário Mensal em US$................................................................p.134
Tabela 16: Materiais Disponíveis para Fabricação de Calçados.....................p.136
Tabela 17: Empresas de Componentes para Couro e Calçados....................p.167
Tabela 18: Demonstrativo do setor..................................................................p.171
Tabela 19 - Principais Países Produtores de Calçados...................................p.180
Tabela 20 - Importações de Calçados dos Estados Unidos ...........................p.183
Tabela 21 - Saldo da Balança Comercial Brasileira de Calçados....................p.184
xii
Lista de Reduções
Siglas ABAEX – Associação Brasiléia dos Exportadores de Calçados
ABECA – Associação Brasileira dos Estilistas de Calçados
ABICALÇADOS – Associação Brasileira das Indústrias de Calçados
ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas
ABRAMEQ – Associação Brasileira das Indústrias de Máquinas e Equipamentos
para Couro, Calçados e Afins
AICSUL – Associação das Indústrias de Curtume da Região Sul
APEX – Agência de Promoção a Exportação
ARIPE – Aterro Industrial de Resíduos Perigosos
ASSINTECAL – Associação Brasileira das Indústrias de Componentes para Couro e
Calçados
BNDES – Banco de Desenvolvimento do Extremo Sul
CICB – Centro das Indústrias de Curtumes do Brasil
CNI – Confederação Nacional da Indústria
CTCCA – Centro Tecnológico do Couro Calçados e Afins
DECEX – Departamento de Comércio Exterior
FEEVALE – Federação de Estabelecimentos de Ensino Superior do Vale dos Sinos
FEPAM – Fundação Estadual de Proteção Ambiental
FENAC – Feira Nacional do Calçado
FIERGS – Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
MDIC – Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio
NUCEX – Núcleo de Comércio Exterior
SECEX – Secretaria de Comércio Exterior
SEDAI – Secretaria de Desenvolvimento e Assuntos Internacionais
SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
UTRESA – Usina de Tratamento de Resíduos Sociedade Anônima
xiii
Resumo
RUPPENTHAL, Janis Elisa. Perspectivas do setor couro do Estado do Rio Grande do Sul. Florianópolis, 2001. 244f. Tese (Doutorado em Engenharia de
Produção) – PPGEP-UFSC, 2001.
Pesquisa que trata sobre a questão das relações entre o meio ambiente e a
competitividade face a globalização dos mercados e à introdução da variável
ambiental, em um importante setor da economia brasilieira: o setor couro. Como
metodologia de suporte utilizou-se a análise de filière, que alia visão macro com a
visão por processo em uma perspectiva sistêmica e mesoanalítica, a partir do
contexto de sistema industrial couro-calçados, envolvendo todos os estágios, desde
a pecuária até a comercialização, integrando ainda a variável ambiental. A utilização
da análise de filière levou a descrição do histórico de industrialização da filière e de
suas relações ambientais, identificando a lógica de sua evolução, assim como
também permitiu a organização e estruturação dos dados sobre o setor. Em
decorrência da análise definiu-se a filière ideal, e a partir dessa definição identificou-
se um diagnóstico das perspectivas para o setor. Nesse ponto, o trabalho converge
para questões de estratégias e competitividade, particulamente na linha de Michael
Porter, pois passa-se a considerar que o complexo industrial coureiro-calçadista
gaúcho, objeto desse estudo, é um verdadeiro cluster, e que a competitividade das
empresas, consideradas isoladamente, está diretamente relacionada com o
desenvolvimento da competitividade de todo o cluster.
Palavras-chave: Análise de filière, couro, competitividade, meio ambiente, perspectivas
xiv
Abstract
RUPPENTHAL, Janis Elisa. Perspectivas do setor couro do Estado do Rio Grande do Sul. Florianópolis, 2001. 244f. Tese (Doutorado em Engenharia de
Produção) – PPGEP-UFSC, 2001.
This research is about the relations between environment and the competitivity in
face of markets globalization and introduction of the environmental variable, in an
important sector of Brazilian economy: the leather sector. As support methodology it
was used the Filière Analysis, wich allies macro vision with a vision by process in a
systemic perspective, from the leather-shoes industrial system context,
comprehending all the stages, since cattle raising to commercialization, embracing,
yet, the environmental variable. The Filière Analysis usage led to the description of
the Filiére industrialization review and of its environmental relations, identifying the
logic of its evolution, allowing, also, the organization of the data on the sector. The
analisys defined the ideal Filière, and from this definition it was identified a diagnosis
of perspectives for the sector. At this point, the research converges to strategy and
competitivity questions, specialy in Michael Porter`s line, for then, the south brazilian
leather-shoes industrial complex is considered a real cluster, and the enterprises
competitivity, considered in isolation, is directly related to the competitivity
development of the whole cluster.
Key-words: Filière analisyis, leather, competitivity, environment, perspectives
1 INTRODUÇÃO
1.1 Considerações iniciais
Com o acirramento da concorrência internacional e a globalização da economia,
a partir da década de 70 ao nível mundial e do início dos anos 90 no Brasil, o padrão
de acumulação de capital entrou em crise e começou-se a buscar novos padrões,
novos modelos de organizações, para fazer frente a estes novos desafios de
competitividade através dos quais as empresas poderiam sobreviver.
Nesse panorama que apresenta o mundo em constante evolução, as empresas
além de se preocuparem com a gestão eficiente em suas operações internas, devem
também estar atentas ao ambiente no qual estão inseridas, apresentando
capacidade de responder às alterações do mesmo.
No decorrer das últimas décadas as mudanças ambientais têm se tornado mais
freqüentes e rápidas, envolvendo questões econômicas, tais como as fases dos
ciclos econômicos (prosperidade ou recessão), a inflação, a distribuição de renda, a
internacionalização das economias; culturais, como as mudanças nos estilos de vida
das pessoas; e tecnológicas, como o surgimento de tecnologias que têm efeitos nos
processos de produção e na capacidade de inovar das empresas. Tem-se ainda
mudanças no comportamento do governo, no sentido da regulação das atividades
econômicas, bem como através de políticas que venham incentivá-las (Martinet;
Ansoff, in Carvalho Jr, 1995).
O setor couro é de extrema importância na economia brasileira, tanto pelo
volume de exportações como pela geração de empregos. O Brasil possui o maior
rebanho bovino comercializável do mundo (aproximadamente 130 milhões de
cabeças) e um dos maiores parques produtivos em frigoríficos e curtumes. Segundo
BNDES, nas variáveis geração de emprego e crescimento econômico, o setor ocupa
o quarto lugar, sendo responsável pela geração de aproximadamente 700 mil
empregos (diretos e indiretos). O Brasil também está entre o cinco maiores
produtores e exportadores de calçados do mundo, ao lado da China, Indonésia e
Itália.
2
O Rio Grande do Sul contribui com uma parcela significativa das exportações
brasileiras de couro, sendo responsável por aproximadamente 80% do volume total
de calçados exportados pelo país e por aproximadamente 40% do volume total de
couro exportado, voltando-se ainda para a oferta de matéria-prima aos produtores
locais de calçados e artefatos.
O Rio Grande do Sul mantém vantagens competitivas em razão da configuração
do complexo industrial gaúcho. A região do vale do rio dos Sinos é o maior pólo de
empresas industriais e de serviços ligadas ao setor couro do mundo. Encontram-se
nesse cluster, fabricantes de máquinas e equipamentos, insumos, componentes,
atividades comerciais e de exportação. Além das mais antigas e tradicionais escolas
e centros de formação do país ligadas ao setor. A Escola de Curtimento do SENAI
localizada em Estância Velha, durante décadas foi a única da América Latina.
Ainda pode-se dizer que o setor couro possui importante efeito multiplicador
sobre os setores produtores de plásticos, metais, químico, metal-mecânico, eletro-
eletrônico e outros.
A indústria do couro começou com a imigração, promovida por D. Pedro dos
artesões italianos para a região de Franca – SP e dos artesões alemães para a
Região do vale do rio dos Sinos no Rio Grande do Sul, em 1824. Quatro anos após,
já haviam dez curtumes implantados e funcionando no Rio Grande do Sul. E em
1858, havia uma rua só de curtumes em Novo Hamburgo, fato que marca a primeira
aglomeração industrial do setor couro no estado. Regionalmente, na última década,
esse núcleo produtivo expandiu-se em direção aos vales dos rios Caí, Paranhana e
Taquari. O Vale do Rio dos Sinos, destaca-se como grande exportador e, em função
disso, está numa posição de vulnerabilidade, pois está sujeito à concorrência
internacional de países que apresentam melhores condições de competitividade.
Os fatores conjunturais associados ao processo de abertura da economia
brasileira e aos demais aspectos macroeconômicos, somados à forte
competitividade, conseqüência do processo de globalização que vem transformando
o cenário econômico mundial, surpreenderam as empresas, desestabilizando os
mercados interno e externo, provocando quedas sucessivas nos volumes de
negócios do setor acarretando uma série de dificuldades para manter-se atuante
com alguma rentabilidade.
3
Do ponto de vista interno da economia, podem ser identificados como principais
fatores, as desigualdades tarifárias, onde há distintas tarifas de exportação e
importação de couro em vários estágios de produção e mecanismos de drawback,
resultando em exportação de produtos de baixo valor agregado dos produtos e
gerando falta de matéria-prima para a indústria local de calçados e artefatos. Outra
dificuldade enfrentada pelo setor é a baixa inovação tecnológica que inicia com a
pecuária (qualidade genética, métodos de criação, transporte inadequado). Apesar
do grande número de abates, os mesmos apresentam indicadores de baixa
qualidade em relação às peles produzidas, gerando desperdícios de matéria-prima,
mão-de-obra e energia e gerando resíduos. Nos curtumes há defasagem de
processos produtivos, além do baixo grau de integração com os demais agentes da
cadeia, associado ainda a problemas logísticos, devido ao deslocamento da fronteira
agropecuária em direção ao centro-oeste do país. Outro fator importante é o
desenvolvimento de produtos sintéticos que vem substituindo a aplicação de couro
natural.
Do ponto de vista externo da economia, o principal fator pode ser identificado
como o crescimento da concorrência asiática, que ultimamente vem absorvendo
parcela significativa do mercado brasileiro de calçados no exterior, principalmente
nos Estados Unidos, onde o calçado fabricado pela China custa, em média U$
7,50/par, enquanto o brasileiro custa, em média, U$ 10,50/par.
Como decorrência dessas dificuldades enfrentadas, surgiram indicadores
extremamente preocupantes para o setor, assim como para a economia como um
todo: aumento do índice de inadimplência, fechamento de estabelecimentos
industriais, aumento da taxa de desemprego, transferência de empresas do Rio
Grande do Sul para outros Estados e acirramento da guerra fiscal entre Estados.
Investimentos em modernas máquinas e equipamentos tem sido feitos, porém
essa ação não é suficiente para aumentar a competitividade do setor. A reversão
dessa situação para uma retomada de crescimento, exige a implantação de medidas
que contribuam para a melhoria da produtividade e da atuação mercadológica do
setor como resultado da adaptação das empresas a esse ambiente de mudanças.
O setor busca soluções para sanar suas deficiências técnicas e organizacionais,
através de alternativas de produção mais eficientes, inclusive com menor geração de
resíduos, e maior integração com fornecedores e clientes. Acredita-se que os
4
ganhos decorrentes dessa coordenação integrada do complexo couro poderão ser
expressos em termos de aumento de competitividade.
Surge, assim, a necessidade de incorporação de novos procedimentos e novos
conhecimentos no setor produtivo. Com a globalização dos problemas ambientais,
empresários de todo mundo, em menor ou maior grau, estão sob pressão para
adotar políticas ambientalistas e incorporá-las aos processos produtivos e ao seu
planejamento estratégico como matéria de rotina. Assim vários aspectos importantes
tais como legislação, mudanças políticas, sociais e, tecnológicas, fornecedores,
clientes, a opinião pública, além da própria competição, levam os responsáveis pelas
organizações a dar mais atenção ao meio ambiente.
A exigência de uma postura ambiental das empresas materializa-se através da
crescente hostilidade de mercados internacionais aos produtos que não satisfazem
aos padrões ambientais estabelecidos. É fato indiscutível o advento de medidas
legais restritivas, cada vez mais severas, contra produtos contaminados ou
provenientes de países que não cuidam adequadamente de seu meio ambiente
(Donaire in Santos, 1996).
As ações efetivas não podem ser pontuais e desorganizadas, frutos de pressões
de órgãos ambientais, e sim devem estar integradas à própria cultura organizacional,
como processos pró-ativos que representem a forma rotineira e antecipada de
impedir quadros de risco, sanções legais e, sobretudo de melhorar o desempenho e
os resultados da organização.
Esta mudança de paradigma, onde as empresas passam a ter outras funções e
responsabilidades além daquelas inseridas na atividade econômica e produtiva, têm
levado à uma alteração nas considerações inerentes ao processo de tomada de
decisão, considerações estas que eram apenas de âmbito técnico e econômico, e
que passam a ter um caráter mais amplo incorporando a variável ambiental.
Frente às transformações ocorridas e à importância da variável ambiental, surge
uma importante questão relacionada a competitividade e à própria sobrevivência
(sustentabilidade) do setor couro no Estado e no País. Desse modo, considera-se
interessante investigar:
Qual é a relação entre a variável ambiental e a competitividade do setor couro?
5
Em resposta a essa problemática, procurar-se-á comprovar a hipótese de que:
A consideração da variável ambiental poderá levar o setor couro a um aumento de competitividade e abertura de novos mercados.
1.2 Contextualização
As novas exigências de um mercado cada vez mais competitivo e globalizado e,
paralelamente, a valorização da questão ambiental impõe uma visão ampla da
atuação da empresa, envolvendo uma macro visão de setores industriais.
No caso do setor couro essa visão deve iniciar desde a pecuária, passando pelos
frigoríficos, curtumes, fabricantes de calçados e artefatos, até a comercialização. E
em todas as etapas devem ser considerados os resíduos
Como uma nova abordagem, surgiu a reengenharia, para a reconcepção dos
sistemas produtivos, trazendo dois aspectos de grande utilidade para as novas
exigências apontadas: a visão por processo e seu aspecto drástico. A proposta da
reengenharia é, entretanto, muito restrita limitando-se ao ambiente da empresa.
Nesse contexto, surge a análise de filière como uma ferramenta de grande
utilidade, pois alia a visão macro com a visão por processo. Entretanto, a dificuldade
de interpretação e a insuficiência da literatura existente, tem sido um entrave a uma
divulgação mais ampla desta ferramenta.
De acordo com Kopittke (1996), o interesse inicial despertado pela análise de
filière decorreu da necessidade encontrada pelos interessados em detalhar as
análises estratégicas propostas por Porter (1991). Quando se deseja especificar em
que consistiria uma estratégia de dominação pelos custos em um determinado setor,
as dificuldades começam pois serão necessários conhecimentos de dados que não
se encontram estruturados em nenhuma publicação. Mesmo que se disponha de
dados sobre um setor, seria ainda necessário prever comportamentos dos
empresários, algo que só será possível em um contato mais direto com os mesmos.
Ao enfocar a estratégia competitiva das nações Porter (1993) conclui que a
competitividade de uma nação não é medida em termos absolutos mas dentro de
uma perspectiva setorial. O detalhamento de propostas estratégicas para um
determinado setor industrial necessita, pois, de conhecimentos profundos sobre o
mesmo. Assim, a análise de filière é uma proposta para se atingir essa meta.
6
Nesse trabalho procurar-se-á estudar o setor couro utilizando a abordagem de
análise de filière. Essa perspectiva será dada com a análise a partir de um contexto
de sistema industrial couro-calçados, o qual envolve todos os estágios, desde a
pecuária até a comercialização. Procurar-se-á estabelecer, a partir da literatura, um
referencial teórico, aplicando-o como base na análise de casos de empresas do
setor couro do Estado do Rio Grande do Sul. Assim, através da utilização da
abordagem de filière, ao invés da preocupação somente com fornecedores e
clientes, analisar-se-á, também, os principais atores do setor, ressaltando sua
influência na estratégia de produção das empresas e sua preocupação sobre as
questões ambientais.
1.2.1 Considerações iniciais sobre a análise de filière
Para efeito de contextualização do trabalho, será definido rapidamente o conceito
de filière e a estruturação da filière a ser abordada. Ambos os temas estarão
amplamente desenvolvidos no prosseguimento desse trabalho.
Segundo Toledano in Gomes (1993), a filière originou-se das matrizes de input-
output, permitindo a identificação e o posicionamento de fluxos de produtos e
serviços entre os principais segmentos industriais que normalmente possuem uma
forte relação tecnológica. Além disso, essa análise coloca em evidência os diferentes
graus de interrelação entre os segmentos dentro da cadeia produtiva em estudo.
Apresenta-se a seguir um esquema ilustrativo básico da filière couro, com a
finalidade de ressaltar a produção de resíduos nos diversos estágios (figura 1).
O aparecimento da noção de filière pode ser explicado por preocupações teóricas
em montar instrumentos adaptados para a descrição de sistemas produtivos. O
termo filière pode ser entendido como a rede de interrelações entre os vários atores
de um sistema industrial, a qual permite a identificação do fluxo de bens e serviços
através dos setores industriais envolvidos, desde a matéria-prima até o consumidor
final da cadeia produtiva em consideração. No caso da filière abordada, tem-se a
pecuária, frigoríficos, curtumes e fábricas de calçados, artefatos, vestuário,
estofados, distribuição, venda ao consumidor.
7
Figura 1: Representação esquemática da filière couro
Segundo Floriot (1982), existem três elementos determinantes na constituição de
uma filière, são eles:
• Uma sucessão de operações de transformação dissociáveis e ligadas entre si
pelo encadeamento de processos e tecnologia, suscetíveis de modificação em
função do estado de conhecimento científico e das modalidades de organização
do trabalho;
• Um conjunto de relações comerciais e financeiras que se estabelecem entre
todos os estágios das operações de transformação. Aparece, então, um fluxo de
trocas no seio da filière, que se orienta ou se restringe pelas condições técnicas e
de mercado;
• Um conjunto de ações econômicas que define a importância dos meios de
produção e que participa na determinação das estratégias mais convenientes.
A operacionalização de uma filière passa pela determinação dos pontos abaixo
relacionados, que serão abordados em detalhes no capítulo dois:
8
• A noção da evolução histórica da filière;
• A leitura técnica da filière;
• A leitura econômica da filière;
• A noção de filière principal e auxiliares (tecnologicamente ligadas);
A escolha da análise de filière como ferramenta para o problema a pesquisar
deve-se a possibilidade que se abre de analisar não só o setor principal, mas
também as interrelações com as indústrias ligadas, enfocando-se a variável
ambiental.
1.3 Objetivos
Incorporar a variável ambiental na gestão da empresa tem sido a preocupação de
empresários que buscam assegurar sua entrada ou permanência no mercado,
principalmente no momento em que se prega a globalização. Assim, são relevantes
as ferramentas capazes de auxiliar esse processo de integração.
O objetivo geral dessa pesquisa é estudar a relação entre a variável ambiental e
a competitividade do setor couro utilizando a metodologia de análise de filière.
A análise de filière é uma ferramenta capaz de proporcionar uma visão
sistemática do setor ao qual a empresa pertence e seu enfoque voltado à análise
estratégica permite através de métodos próprios situar a empresa dentro do contexto
técnico e econômico do setor.
Com a finalidade de atingir o objetivo proposto são estabelecidos os seguintes
objetivos específicos:
• Identificar as estruturas dos sistemas e subsistemas do setor
• Identificar os atores atuantes do setor
• Identificar a natureza das interações entre os agentes
• Identificar perspectivas em relação à questão ambiental como fator de
competitividade e sustentabilidade do setor.
9
1.4 Ineditismo e inovações
Embora muitos trabalhos e pesquisas tenham sido desenvolvidos abordando o
setor couro Piccinini (1990), Brenner (1990), Santos (1992), Zdanowicz (1992),
Tatsch (1995), Pereira (1997), nenhum deles analisa o setor através da abordagem
de análise de filière. Assim como também não existem estudos que tratem da
problemática da inclusão da variável ambiental como fator de competitividade para o
referido setor.
Outros trabalhos como Guidat (1984), Kopittke (1985), Kliemann Neto (1985),
Batalha (1993), Carvalho Jr. (1995), Santos (1996), Oashi (1999), embora utilizem a
abordagem de análise de filière referem-se a outros setores que não o setor couro.
Assim, a proposta desse trabalho é ampliar esse foco, entendendo-se a dinâmica
da relação do setor couro com a variável ambiental como um processo que apesar
de conflituoso possa representar oportunidades para novos mercados e novos
produtos.
1.5 Relevância e contribuições
No setor couro, tradicionalmente conhecido como de grande potencial poluidor, a
relação com o meio ambiente sempre tem sido conflituosa. E a necessidade do setor
adequar-se às exigências ambientais cada vez mais rigorosas é um assunto
relevante pois envolve a sobrevivência das empresas, o governo e a sociedade. O
envolvimento da sociedade e do governo nesse problema é importante pois os
reflexos sócio-ambientais da consideração da questão ambiental vão muito além dos
limites físicos das empresas desse setor na medida da sua relevância .
As contribuições que se espera fornecer com a realização desse trabalho são de
ordem prática e intelectual. As contribuições intelectuais consistem na revisão
bibliográfica sobre esse importante tema da relação entre o setor couro e o meio
ambiente, dentro de um ambiente dinâmico, interativo e sistêmico possibilitado pela
análise de filière. Já as contribuições práticas referem-se a possibilidade de que a
consideração da questão ambiental possa trazer um aumento da competitividade
10
para o setor e ainda possíveis oportunidades de novos mercados para produtos e
sub-produtos ou até mesmo novos produtos.
1.6 Desenvolvimento e estruturação
O trabalho será desenvolvido nas seguintes etapas: No capítulo 1 são feitas as
considerações introdutórias, as quais envolvem a caracterização do problema, a sua
justificativa e a exposição dos objetivos e da hipótese de pesquisa.
No capítulo 2, são feitas considerações sobre o setor couro, descreve-se o
conteúdo teórico conceitual, como suporte para análise. No capítulo 3, apresentam-
se reflexões sobre a sustentabilidade. No capítulo 4, são apresentadas
considerações sobre a metodologia utilizada para análise.
A seguir, no capítulo 5 são apresentadas considerações gerais sobre a filière
couro e sua evolução histórica. Na seqüência, procede-se a leitura técnico-
econômica da filiére fazendo-se especial consideração a variável ambiental.
Também são apresentadas as suas relações com o mercado.
No capítulo 6, define-se a filière couro ideal, comentando-se suas restrições
técnicas e econômicas atuais, e em decorrência dessas, relaciona-se as tecnologias
limpas viáveis. A seguir comenta-se a relação entre meio ambiente e
competitividade, passando-se a considerar que o complexo industrial coureiro-
calçadista do estado do Rio Grande do Sul é um verdadeiro cluster. Dessa forma,
chegou-se as perspectivas de desenvolvimento do cluster, com a finalidade da
validação da hipótese.
Finalmente, no capítulo 7 são apontadas as conclusões seguidas de sugestões
para trabalhos futuros.
2 CONTEÚDO TEÓRICO CONCEITUAL
Através de uma revisão dos conceitos teóricos sobre a análise de filière,
procurar-se-á evidenciar as potencialidades dessa ferramenta no âmbito geral da
engenharia de produção e no âmbito específico da gerência de produção. Procurar-
se-á mostrar a importância da análise de filière como uma ferramenta capaz de
proporcionar uma visão sistemática do setor. Pois, embora o empresário ou o
gerente industrial estejam constantemente analisando o setor em que atuam, talvez
muitos deles ainda não tenham realizado essa análise de uma forma sistematizada,
dentro dos preceitos da análise de sistemas, destacando-se o aspecto dinâmico sob
a forma de um caráter mesoanalítico e sistêmico.
2.1 Introdução
De acordo com Kopittke (1996), a Analyse de Filière, tem sua origem ligada à
disciplina de economia industrial que surgiu na década de 1930, sendo objeto do
congresso “Colóquio Franco-Britânico de Economia Industrial” onde são divulgados
boa parte dos trabalhos sobre o assunto.
Durante a década de 60 desenvolveu-se no âmbito da escola industrial francesa
a noção de analyse de filière. Embora o conceito de filière não tenha sido
desenvolvido especificamente para estudar a problemática agroindustrial, foi entre
os economistas agrícolas e pesquisadores ligados ao setor rural e agroindustrial,
que ele encontrou seus principais defensores (Batalha,1997).
Carvalho Jr. (1995), diz que desde o início dos anos 70, a noção de filière de
produção vem sendo amplamente utilizada na França por um público bastante
variado, englobando economistas, industriais, especialistas da área de
administração pública e políticos.
Segundo levantamento feito por Oashi (1999), desde os anos 80 a noção de
filière de produção vem sendo discutida amplamente nos circuitos acadêmicos
internacionais, nos estudos relacionados ao conceito de cadeias de produção em
diferentes vertentes da literatura: Perez (1978), Pecquet e Nalbantoglu (1981),
12
Morvan (1985), Labonne (1985), Floriot (1986), Batalha (1997). Onde podemos
ainda acrescentar Kopittke (1985, 1996).
Batalha (1997) admitindo o sacrifício de algumas nuanças semânticas, traduz a
palavra filière para o português pela expressão cadeia de produção e, no caso de
setor agroindustrial, cadeia de produção agroindustrial ou cadeia agroindustrial.
Kopittke (1996) diz que, a palavra filière não tem tradução direta para o português
nem para o inglês ou alemão. Ela deriva de fil que significa fio, e pode-se utilizá-la
para designar coisas diferentes como por exemplo um setor industrial ou uma
conexão de tráfico de drogas. O autor exemplifica que desta forma filière bois poderá
ser traduzido como setor madeireiro e filére Medelin seria a rede de tráfico do
mesmo nome. A palavra filière empresta, portanto, para ambos os casos o sentido
de conjunto de atividades articuladas desde a obtenção da matéria prima até a
comercialização dos respectivos produtos nos diferentes mercados.
No entanto, Kopittke (1996) utiliza como tradução de "filière" a palavra setor e
como referência a definição:
“Uma filière é composta da sucessão de etapas tecnológicas de produção
distintas e separáveis associadas à utilização de um recurso dado (filière
petróleo ou alumínio) ou à obtenção de determinado produto (filière nuclear ou
automóvel)”.
Segundo Toledano in Gomes (1993), a filière originou-se das matrizes de input-
output, permitindo a identificação e o posicionamento de fluxos de produtos e
serviços entre os principais segmentos industriais que normalmente possuem uma
forte relação tecnológica. Além disso essa análise coloca em evidência os diferentes
graus de interrelação entre os segmentos dentro da cadeia produtiva em estudo.
Existem na literatura uma multiplicidade de significados acerca do conceito de
filière. Os enfoques variam geralmente de acordo com a análise feita pelo autor:
alguns procuram ressaltar os aspectos tecnológicos; outros enfatizam mais as
estruturas mercadológicas e ainda os que se detêm mais especificamente nas
questões estratégicas.
Os fundamentos econômicos da análise de filière estão baseados na trilogia
metodológica originada a partir do surgimento nos Estados Unidos, da disciplina de
organização industrial, e que se constitui num campo de pesquisa autônomo:
estrutura, conduta e desempenho.
13
O escopo da organização industrial pode ser definido como a verificação de como
os processos de mercado dirigem as atividades dos produtores ao encontro da
demanda dos consumidores, como esses processos podem falhar, como se ajustam
ou podem ser ajustados, de sorte ao alcançarem um desempenho, o mais próximo
possível, de algum padrão ideal (Scherer & Ross in Rosa, 2000).
Assim o objetivo da organização industrial é determinar quais forças são
responsáveis pela organização da indústria, como estas forças tem se alterado no
tempo e que efeitos podem ser esperados de mudanças na forma de organização da
indústria. Torna-se então necessário, identificar todo um conjunto de atributos ou
variáveis que influenciam o desempenho econômico da organização e detalhar as
ligações entre estes atributos ou variáveis com o desempenho final. Onde a hipótese
fundamental de trabalho da organização industrial é a maximização de lucros.
Logo a existência da noção de filière complementa os estudos de organização
industrial, pois parte do reconhecimento que, no decorrer da produção de um dado
produto, ocorrem relações entre agentes econômicos que se situam em diferentes
estágios da cadeia de produção, as quais auxiliam na descrição e explicação da
estrutura e do funcionamento de uma atividade econômica.
Com a noção de filière entende-se que as condições de funcionamento e o
desempenho de uma empresa ou um setor são condicionados pelo desempenho
dos setores a montante e a jusante, bem como pelas modalidades de relação que
são estabelecidas com estes setores.
2.1.1 O enfoque sistêmico e mesoanalítico da análise de filière
O conceito de filière utiliza a noção de sucessão de etapas produtivas, desde a
produção de insumos até o produto acabado, como forma de orientar a construção
de suas análises, destacando-se o aspecto dinâmico do sistema sob a forma de um
caráter mesoanalítico e sistêmico.
A mesoanálise encontrou nos economistas industriais franceses seus principais
defensores e utilizadores. Ela foi proposta para preencher a lacuna existente entre
os dois grandes corpos da teoria econômica: a microeconomia, que estuda as
unidades de base da economia utilizando as partes para explicar o todo, e a
macroeconomia, que parte do todo para explicar o funcionamento das partes.
14
Portanto, em seu escopo, a mesoanálise pode ser definida como sendo a análise
estrutural e funcional dos subsistemas e de sua interdependência dentro de um
sistema integrado, definição esta que remete diretamente a um enfoque sistêmico.
Do ponto de vista do pensamento sistêmico, sistema pode ser definido como uma
entidade que mantém sua existência através da interação mútua entre suas partes
(Bellinger, 1996). Assim um sistema não pode ser caracterizado apenas pelas partes
que o compõem, mas principalmente pelas interrelações entre elas, que seriam
responsáveis pelas características do todo. Apresenta-se, a seguir um diagrama
sintético ilustrando esses conceitos (figura 2).
Figura 2: Interrelação entre análise de filiére, mesoanálise
e enfoque sistêmico
A dinâmica de sistemas procura elucidar as características gerais dos sistemas,
partindo dos padrões de comportamento entre as partes e das estruturas
determinantes destes padrões.
Em um sistema, as partes influenciam-se umas às outras de maneira mútua, quer
direta ou indiretamente. Tais fluxos de influência, segundo Senge (1990), teriam um
caráter "recíproco, uma vez que toda e qualquer influência é, ao mesmo tempo,
causa e efeito - a influência jamais tem um único sentido".
Uma análise sistêmica tem como pré-requisito a definição de vários aspectos que
caracterizam o problema a ser estudado, isto é, a definição do sistema e de seu
meio ambiente passa necessariamente pela definição do objetivo a ser alcançado
Análise de filière
Mesoanálise
Enfoque sistêmico
15
pela análise. Assim, uma análise em termos de cadeia de produção deve também
definir várias condições que são conseqüência do objetivo a ser atingido. Duas das
mais importantes e mais difíceis destas definições referem-se aos contornos do
espaço de análise a ser estudado e o nível de detalhamento da análise a ser
empreendida.
Uma perspectiva dinâmica e sistêmica que auxilie na compreensão da mudança
de maneira efetiva tem sido há muito tempo estudada (Senge & Sterman, 1994). No
entanto, segundo estes autores, o desafio está em mover-se das generalizações
para ferramentas e processos que auxiliam no tratamento de questões complexas.
Pode-se notar de início que o pensamento sistêmico é uma técnica prática para a
compreensão de questões complexas, para a ação e aprendizado. No entanto,
Senge (1990) diz que o pensamento sistêmico pode ser considerado em três
diferentes aspectos: a prática, os princípios e a essência. Todos estes aspectos
devem ser considerados simultaneamente; além de um conjunto de atividades e
ferramentas, é também um conjunto de princípios teóricos que ajudam a entender os
seus fundamentos lógicos. Mas, para Senge, a essência é diferente. Esforços
empreendidos na essência proporcionariam novas visões de mundo. No caso do
pensamento sistêmico, a experiência de vivenciar interligações ajudaria a perceber a
importância do todo.
Um dos efeitos da consciência sobre a essência do pensamento sistêmico é
ilustrada em Senge (1996) que declara que os estudos em dinâmica de sistemas
levaram à crença de que a maioria dos sistemas possuem uma complexidade infinita
que seria impossível de ser compreendida completamente do ponto de vista da
consciência racional. Por isso, quando há interesse em analisar uma questão, há
que se considerar um conjunto de trocas compensatórias (trade-offs) entre o
aumento da complexidade em considerar-se cada vez mais elementos dentro de
uma situação, contra a possibilidade de deixar-se fora um elemento importante da
realidade buscando a simplificação da análise.
Melesse in Batalha (1997) propõe uma sistemática de análise do sistema
organização-meio ambiente que se coaduna bem com a noção mesoanalítica da
cadeia de produção. Ele parte da premissa de que toda empresa ou toda
administração está inserida em um meio ambiente dinâmico com o qual ela está em
inserção permanente. Assim, uma análise externa do tipo mesoanalítico está atenta
às mudanças do meio ambiente sem deixar de lado a estrutura interna da firma, para
16
que se possa compreender o comportamento global da empresa e sua inserção em
seu meio ambiente político, social, econômico e tecnológico. Na figura 3, apresenta-
se um diagrama sintético ilustrando esses conceitos.
Uma cadeia de produção ou filière deve ser vista como um sistema aberto. Este
enfoque, desenvolvido inicialmente no campo da biologia, está centrado nas
relações existentes entre o organismo (ou a organização) e o seu meio ambiente.
Nesse caso, as fronteiras do sistema são permeáveis permitindo trocas com o meio
ambiente levando ao conceito de estrutura do sistema. A estrutura é percebida como
a maneira pela qual as partes do sistema estão integradas internamente.
Figura 3: Fatores do meio-ambiente que integram a mesoanálise
A definição dos contornos de um sistema-cadeia de produção vai depender do
objetivo determinado pelo analista. No entanto, é necessário admitir que estas
fronteiras mudam ao longo do tempo. E estas mudanças são decorrentes
basicamente de cinco conjuntos de fatores: fatores políticos, fatores econômicos e
financeiros, fatores tecnológicos, fatores sócio-culturais e fatores legais ou jurídicos.
O enfoque sistêmico considera que todo o sistema evolui no espaço e no tempo
em função de mudanças internas e externas ao sistema. Assim, enquanto sistema,
uma cadeia de produção também estará sujeita a mudanças ao longo do tempo.
Essas transformações podem ser o resultado do deslocamento das fronteiras do
sistema, de mudanças no meio ambiente ou ainda um rearranjo interno dos
subsistemas que formam o sistema principal. Esses fatores podem atuar
isoladamente ou de maneira simultânea. Essa característica dinâmica dos sistemas
Setor
MesoanáliseSocial
Econômico
Tecnológico
Político
Meio-ambiente
17
pode ser utilizada para estudar a evolução histórica de uma cadeia de produção e, a
partir deste estudo, elaborar predições sobre o futuro da cadeia em questão.
As ações que as empresas exercem sobre o meio ambiente como resultado de
seus vários agentes internos levam a uma reação do meio ambiente que poderá
traduzir-se, por exemplo, em novas restrições para a política da empresa. Assim, a
empresa deve buscar um equilíbrio dentro dessa dinâmica concorrencial através da
tentativa de obter as respostas mais favoráveis em relação aos objetivos a serem
alcançados. Por sua vez, o meio ambiente concorrencial poderá apresentar
determinadas condições tecnológicas, econômicas, sociais e outras que podem
alterar sua dinâmica de funcionamento. Logo, a análise de cadeias de produção
deve estudar o equilíbrio existente em determinada situação para identificar as
condições que podem alterar este equilíbrio (Batalha, 1997).
De acordo com Lauret & Perez in Oashi (1999), o conceito de filière ou cadeia de
produção contribui para a explicação das estruturas industriais por sua característica
dinâmica e participa na criação de um espaço mesoanalítico de análise. Assim, um
enfoque mesoanalítico permitiria responder às questões sobre o processo de
concorrência e opções estratégicas das firmas bem como sobre o processo
distributivo entre os agentes econômicos.
2.2 Análise de filière
A análise de filière originada na escola francesa de economia industrial, tem tido
por parte dos economistas industriais franceses, muitos esforços de conceituação,
no entanto, a noção de cadeia de produção continua vaga quanto ao seu enunciado.
Bandt in Carvalho (1997), diz que a noção de filière deve comportar três elementos
constitutivos, tais como uma sucessão de operações de transformação, ligadas entre
si por encadeamentos de técnicas e tecnologias; um conjunto de relações
comerciais e financeiras estabelecidas entre os estágios de transformação; e um
conjunto organizado de interrelações.
Para Montiguad in Batalha (1997), as filières são sucessões de atividades ligadas
verticalmente, necessárias à produção de um ou mais produtos correlacionados. Há
três abordagens possíveis: a cadeia na sua totalidade, o estudo de suas estruturas e
relações dentro das cadeias, e o comportamento estratégico das firmas.
18
Segundo Morvan in Oashi (1999), a filière representa a seqüência de operações
que conduz à geração de bens, cuja articulação é amplamente influenciada pelas
possibilidades tecnológicas, sendo definida pelas estratégias dos agentes
maximizadores de renda. As relações entre os agentes são de interdependência ou
de complementariedade, sendo determinadas pelas forças hierárquicas. Em
diferentes níveis analíticos, a filière é um sistema capaz de assegurar a sua própria
transformação.
Floriot in Gomes (1993), procurando sintetizar e sistematizar estas idéias,
enumerou três séries de elementos que estariam implicitamente ligados a uma visão
em termos de filière:
1. Uma sucessão de operações de transformação dissociáveis, capazes de
ser separadas e ligadas entre si por um encadeamento de processos e
tecnologia, suscetíveis de modificação em função do status quo do
conhecimento científico e da organização do trabalho;
2. Um conjunto de relações comerciais e financeiras que estabelecem,
entre todos os estados de transformação, um fluxo de troca, situado de
montante a jusante, entre fornecedores e clientes, que se orienta ou se
restringe pelas condições técnicas de mercado;
3. Um conjunto de ações econômicas que definem a valoração dos meios
de produção e asseguram a articulação das operações.
Assim, uma filière pode ser segmentada, de jusante a montante, em três
macrossegmentos:
• Comercialização, representando as empresas que estão em contato com
o cliente final da filière e que viabilizam o consumo, o comércio dos
produtos finais e a logística da distribuição dos mesmos.
• Industrialização, representando as firmas responsáveis pela
transformação das matérias-primas em produtos finais destinados ao
consumidor.
• Produção de matérias-primas, que reúne as firmas que fornecem as
matérias-primas iniciais6 para que outras empresas avancem no
processo de produção do produto final.
6 Agricultura, pecuária, pesca, extração mineral etc.
19
Os limites dessa divisão, muitas vezes, não são facilmente identificáveis. Além
disso, essa divisão pode variar segundo o tipo de produto e segundo o objetivo da
análise.
Segundo Floriot(1985), a semelhança dos produtos químicos da tabela de
Mendeleiev, os elementos de base, constituídos pelas operações técnicas
elementares de produção, devem ser observados como estando carregados de um
poder explicativo que leva em conta a evolução e a dinâmica dos sistemas
industriais. Essas operações técnicas elementares de produção se combinam dentro
das redes de interdependência técnica, onde as filières correspondentes
representam as seqüências de encadeamentos pertinentes dentro de sua estrutura.
No encadeamento das operações de uma filière uma operação à montante pode
alimentar várias outras situadas à jusante, quando então tem-se ligações
divergentes. Por outro lado, existem também ligações convergentes em que várias
operações à montante originam um número menor de operações à jusante. Também
pode-se encontrar no interior das mesmas, mecanismos de retroalimentação, onde
um produto oriundo de uma etapa intermediária alimentará, nesta mesma filière,
outra operação situada à montante desta operação (Parent in Batalha 1997).
Assim, toda filière se liga, na entrada a uma matéria-prima de base, a qual,
através de uma transformação progressiva, resulta em um produto final, que realiza
uma ou várias funções; essa seqüência é governada por uma lógica de
transformação da matéria-prima que lhe dá uma direção (montante a jusante).
Assim, a lógica de encadeamento das operações, como forma de definir a estrutura
de uma filière, deve situar-se sempre de jusante a montante.
Essa lógica assume implicitamente que as condicionantes impostas pelo
consumidor final são os principais indutores de mudanças no status quo do sistema.
Evidentemente, esta é uma visão simplificadora e de caráter geral, visto que as
unidades produtivas do sistema podem ser responsáveis pela introdução de
inovações tecnológicas que eventualmente aportam mudanças consideráveis na
dinâmica de funcionamento das cadeias agroindustriais. No entanto, estas
mudanças somente são sustentáveis quando reconhecidas pelo consumidor como
portadoras de alguma diferenciação em relação a situação de equilíbrio anterior
(Kopittke, 1997). Na figura 4 apresenta-se esses conceitos na forma de um
diagrama.
20
Ainda ressalta-se que as filières não são estanques entre si, pois um determinado
setor industrial pode apresentar relações ou estados intermediários de produção
comuns à várias filières que o compõem, ocorrendo o que pode ser chamado de
operações-nó. Estas operações são muito importantes do ponto de vista estratégico,
pois representam lugares privilegiados para a obtenção de sinergias dentro do
sistema, além de funcionarem como pontos de partida eficientes para a
diversificação das firmas.
Figura 4: Representação da Análise de filiére
As operações representadas podem ser, do ponto de vista conceitual, de origem
técnica, logística ou comercial. No entanto, a representação gráfica de uma filière
neste nível de detalhe seria de difícil execução prática, com ganhos de qualidade de
informação, em termos de visualização, duvidosos. Assim, é válido que a
representação seja feita seguindo o encadeamento das operações técnicas
necessárias à elaboração do produto final. Os aspectos tecnológicos assumem,
neste caso, um papel fundamental. A estrutura da filière seria composta pela
sucessão de operações tecnológicas de produção, distintas e dissociáveis, estando
elas associadas a obtenção de determinado produto necessário a satisfação de um
mesmo segmento de demanda.
Sistemas de fornecimento de
recursos
Estruturasindustriais
Adequação
Adequação
Sistemas consumidoresEstruturas de
mercado
Montante
Jusante
Exig
ência
s
Exig
ência
s
Matér
ia-pr
ima
Produtos
21
Com relação a aplicação desses conceitos a essa pesquisa, pode-se dizer que
produzir materiais de couro é um processo complexo de múltiplos estágios, e em
cada estágio geram-se resíduos.
Em geral não é difícil decompor um processo industrial de fabricação segundo
algumas etapas principais de produção. Assim, seria razoável considerar que, após
passar por várias operações de fabricação, um produto possa alcançar um estado
intermediário de produção, o qual além de ter estabilidade física suficiente para ser
comercializado deve possuir um valor real ou potencial de mercado. O termo
intermediário diz respeito ao produto final da filière.
A existência destes mercados permite a articulação dos vários macrossegmentos
da filière, bem como das etapas intermediárias de produção que os compõem, e seu
estudo representa uma ferramenta poderosa para compreender a dinâmica de
funcionamento da filière.
Assim, pode-se dizer que o sistema produtivo associado a uma filière, que muitas
vezes escapa das fronteiras da própria firma, teria como unidade básica de análise e
de construção do sistema as várias operações que definem o conjunto das
atividades nas quais a firma está inserida, estando as operações técnicas de
produção responsáveis pela definição da estrutura do sistema. Logo, é o formato
destes caminhos tecnológicos que determinam, em grande parte, a viabilidade e a
oportunidade do aparecimento das operações logísticas e de comercialização. O
posicionamento da firma dentro do sistema, bem como o da concorrência, é
facilmente identificável através da observação das operações pelas quais a firma é
responsável no conjunto das atividades necessárias à elaboração do produto final.
Floriot (1985) diz que a leitura técnica da filière introduz uma abordagem
teleonômica dos sistemas industriais, pois ela subentende um senso de escoamento
dos fluxos da matéria. Esse enriquecimento de montante a jusante se dá pela
agregação de valor ocorrido na passagem pelas diferentes operações técnicas
elementares de produção. A lógica das transformações técnicas que governam uma
filière está contida dentro do campo das possibilidades tecnológicas de valorização
dos recursos, matéria-prima, exprimindo a lógica técnica da filière e questionando
sobre as finalidades e essencialidades de cada filière.
22
2.2.1 A noção de macro e micro-filière
A filière pode ser classificada em macro e micro-filière: a primeira expressa a
idéia da cadeia de relações entre a matéria-prima inicial e o produto final7; a
segunda analisa uma parte da cadeia de relações descrita na macro-filière, a partir
de suas ligações à montante e à jusante na cadeia produtiva. A figura 5 mostra a
distinção entre os dois conceitos.
Figura 5: Conceito de macro e micro-filière
7 Peles até calçados, leite até laticínios entre outros.
Produto final
Setor intermediário
Setor primário
Micro Filières
23
Em termos de desenvolvimento de uma filière, Malsot in Gomes (1993), sugere
que no início do estabelecimento da mesma, não existe domínio completo das
técnicas e características do mercado do produto final, sendo o controle e a
evolução da filière ditado pelos setores iniciais, tanto em termos de capacidade
produtiva como de lançamento de novos produtos. Com o conhecimento do mercado
e desenvolvimento de novos produtores, o controle da filière vai migrando para os
estágios finais da mesma.
Assim, dentro da lógica de desenvolvimento de uma filière o desenvolvimento
tecnológico ou o conhecimento do mercado, traduzidos em inovações de processo
ou produto, podem criar micro-filières ou mercados da macro-filière original, até que
um novo paradigma produtivo se estabeleça e a macro-filière se reestruture.
2.2.2 A noção de filière principal e filière auxiliar
Uma análise detalhada do sistema produtivo, conforme as finalidades e
destinações dos produtos das filières, estabelece uma distinção fundamental em
duas grandes categorias:
• Filières principais - concorrem diretamente para a produção de bens para
as satisfações das necessidades humanas essenciais em evolução.
• Filières auxiliares - concorrem indiretamente para a produção (satisfação
dessas necessidades) na medida em que trazem os meios necessários
para a realização das funções das filières principais.
A definição destas funções permitirá discriminar as filières auxiliares, e sua
análise não deverá perder de vista o fato de que elas são clientes das filières
principais, ou seja, são as que fornecem os meios. Onde esses meios se referem as
funções técnicas e organizacionais que se modificam ao longo do tempo, de acordo
com as mutações e inovações tecnológicas assim como devido a evoluções em
outros níveis do sistema produtivo, tais como mudanças políticas, sócio-econômicas,
legislativas ou técnicas.
Floriot (1985) diz que a distinção entre fins e meios que implica na separação
entre filières principais e auxiliares introduz uma hierarquia dentro do sistema
produtivo. Assim, as filières auxiliares são produtoras dos meios necessários às
filières principais, essencias à vida dos homens, e portanto devem ser subordinadas
24
às mesmas. Nesse sentido Porter (1991), diz que a distinção entre fins e meios é a
base de toda a reflexão estratégica.
2.3 Aplicações da análise de filière
A análise de filière é uma análise de sistemas dirigida para a análise de setores
industriais. Foram, então, criados uma série de conceitos e métodos visando facilitar
e ao mesmo tempo tornar mais abrangentes os trabalhos de análise.
Morvan (1991) aponta cinco principais utilizações para o conceito de filière:
• Metodologia de divisão setorial do sistema produtivo
• Formulação e análise de políticas públicas e privadas
• Ferramenta de descrição técnico-econômica
• Metodologia de análise de estratégias das firmas
• Ferramenta de análise das inovações tecnológicas e apoio à tomada de
decisão tecnológica
Segundo Batalha (1997), os parâmetros utilizados para divisão setorial do
sistema produtivo são variáveis de mercado (relações comerciais) e a tecnologia
como agente explicativo da formação das cadeias é negligenciada em sua
importância. E ainda os resultados obtidos são conseqüência dos números da
contabilidade nacional, o que nem sempre espelha a realidade.
2.3.1 Análise de filière como ferramenta de análise e formulação de
políticas públicas e privadas
A utilização da análise de filière como instrumento de formulação e análise de
políticas públicas e privadas objetiva a identificação dos elos fracos e dos elos
complementares às atividades já existentes de uma cadeia de produção e o
incentivo aos mesmos através de uma política adequada e de mecanismos
governamentais pertinentes, objetivando o desenvolvimento harmonioso de todos os
agentes que atuam na filière levando-a ao sucesso.
Batalha (1997) diz que, uma análise em termos de filière permite uma visão
global do sistema que evidencia a importância de uma melhor articulação entre os
agentes econômicos privados, o poder público e os desejos e necessidades dos
25
consumidores dos produtos finais da cadeia, permitindo, ainda uma melhor
coordenação entre os agentes envolvidos diretamente com as atividades da cadeia
de produção e os agentes de apoio entre os quais destaca-se o governo.
2.3.2 Análise de filière como ferramenta de descrição técnico -
econômica
De acordo com Perez in Oashi (1999), a definição de filière como um conjunto de
operações técnicas constitui-se na concepção mais imediata e conhecida. Este
enfoque consiste em descrever as operações de produção responsáveis pela
transformação da matéria-prima em produto acabado ou semi-acabado. Segundo
esta lógica, uma cadeia de produção apresenta-se como uma sucessão mais ou
menos linear de operações técnicas de produção.
Floriot (1985) diz que dentro da ótica da análise sistêmica, a leitura técnica da
filière permite uma análise estrutural tanto dos elementos constitutivos básicos (as
operações técnicas elementares de produção) como as interrelações tecnicamente
possíveis entre essas (operações convergentes, divergentes, separáveis, não
separáveis, contínuas, descontínuas, substituíveis, intercambiáveis) segundo suas
estruturas técnicas.
Um procedimento que vem complementar esta análise técnica é considerar uma
cadeia de produção não somente como uma ferramenta de descrição técnica, mas
também como ferramenta de análise econômica. Batalha (1997)
A análise econômica, segundo Floriot (1985), dentro da ótica da mesoanálise
reproduz a análise das interrelações tecnicamente compatíveis, tratando-se de uma
análise das relações econômicas fundamentada sobre as possibilidades de inserção
de transações dentro da estrutura técnica da filière.
Portanto, segundo Guidat e Kliemann in Batalha, estes níveis de leitura da cadeia
se completam, existindo a preocupação de estudar, além dos aspectos técnicos, as
relações econômicas que se estabelecem entre os agentes formadores da cadeia.
Assim, o estudo de uma cadeia de produção deveria dar-se em dois níveis: o nível
técnico e o nível econômico.
Dentro desta ótica técnico-econômica a filière representa a soma de todas as
operações de produção e de comercialização que foram necessárias para passar de
uma ou várias matérias-primas de base a um produto final.
26
Por outro lado, Morvan (1991) propõem que uma análise das cadeias de
produção seja baseada em três fatores diversos: a tecnologia, os mercados e os
produtos. Segundo este enfoque, a superposição destes três elementos definiria
uma cadeia de produção dentro de uma visão estática. A visão dinâmica seria
representada pela consideração simultânea destes três aspectos ao longo do tempo.
Assim, uma modificação em qualquer destes fatores poderia afetar diretamente os
outros dois e, desta forma, ressaltar a dinâmica interna de funcionamento da cadeia
de produção.
2.3.3 Análise de filière como metodologia de análise da estratégia de
empresas
A estratégia de filière consiste na análise do posicionamento da firma em vários
níveis da filière, ou mesmo em exercer um poder sobre um ou mais estágios sem
ocupá-los diretamente. A empresa para adotar uma estratégia de filière deve partir
do reconhecimento da existência de complementaridade e interdependência entre os
elementos que compõem a filière, e da existência de sinergia pela proximidade dos
agentes e das operações que eles executam (Morvan, 1991). A consideração deste
fato na formulação da estratégia pode conduzir à obtenção de vantagens
tecnológicas, pela integração de operações e de processos, adequação de fluxos e
redução de estoques. Vantagens comerciais podem advir mediante a integração das
trocas, criação de mercados cativos ou da internalização das condições de mercado.
De acordo com Batalha (1997), os atores econômicos, dentro de uma cadeia de
produção, irão posicionar-se de forma a obter o máximo de margens de lucro em
suas atividades, ao mesmo tempo que tentam se apropriar das margens dos outros
atores presentes. Este jogo representa o principal fundamento da estratégia
industrial. Assim, a definição de uma estratégia em face da concorrência tem por
objetivo posicionar a firma na melhor situação possível para se defender contra as
forças da concorrência ou posicioná-la ao seu favor.
Segundo Carvalho Jr.(1997), a filière entendida como um mesossistema engloba
um conjunto organizado de relações mantidas pelos agentes que o compõe. Os
agentes representam diferenças quanto à natureza de suas atividades, estágios de
produção e características organizacionais, sendo ligados por um conjunto de
relações mercantis e não mercantis, inseridas numa moldura organizacional e
27
institucional. Esses agentes, ao desempenhar suas atividades, buscam alcançar
alguns objetivos, mediante suas ações estratégicas, resultando na ocorrência de
interações e conflitos com os outros agentes de seu mesossistema.
Alguns autores, utilizando o raciocínio mesoanalítico, propuseram-se a verificar o
processo de diversificação através de estratégias baseadas no conceito de cadeia
de produção, considerando não somente as relações diretas entre os agentes
econômicos, mas o conjunto das articulações que constituem a cadeia, evidenciando
mais facilmente as sinergias tecnológicas e comerciais entre as várias atividades
constitutivas da cadeia. Nesse sentido a diversificação de uma empresa pode
orientar-se segundo duas direções diferentes: Diversificação dentro dos setores
ligados às atividades existentes e penetração em uma cadeia de produção na qual a
empresa está ausente.
2.3.3.1 Penetração em uma cadeia de produção na qual a empresa está ausente
A filière alvo de diversificação é escolhida através de considerações financeiras,
levando-se em conta os custos globais de entrada e a atratividade da atividade a ser
desenvolvida.
A estratégia de obter o controle da filiére permite influenciar a dinâmica
concorrencial da mesma com o objetivo de conseguir vantagens competitivas. A
dominação de toda a filière ou somente parte dela, pode-se dar de forma mais sutil
que a apropriação pura e simples das unidades que a compõem, ou seja, ela não
passa necessariamente por uma estratégia de integração vertical.
2.3.3.2 Diversificação dentro dos setores ligados às atividades existentes
A observação sobre a integração técnico-econômica através das relações
comerciais diretas e indiretas e das relações tecnológicas, define a filière na qual a
empresa está inserida, posicionando-a dentro do sistema. A seguir delimita-se os
setores-alvo para diversificação, considerando-se os seguintes fatores: a
proximidade técnico-econômica e a avaliação estratégica. Batalha (1997)
Os fatores de proximidade técnico-econômica, avaliam as eventuais vantagens
ligadas a entrada em outro setor em função das ligações comerciais e tecnológicas
28
com a atividade atual da empresa. Estes fatores mostram os pontos fortes e fracos
específicos da empresa em outros setores da filière, em função das atividades já
desenvolvidas, e podem ser considerados ligados ao desenvolvimento de sinergias
internas e externas a firma.
Os fatores de avaliação estratégica, representam fatores ligados a dinâmica do
sistema tais como rentabilidade, barreiras a entrada, mobilidade estratégica dos
atores além de outros.
Batalha (1997) diz que, estas considerações representam uma integração entre
os fatores de análise clássicos da moderna estratégia industrial e os fatores ligados
a sinergia técnica e econômica que são próprios às cadeias de produção.
Morvan (1991) opõe a estratégia de filière às estratégias "clássicas", sendo
citadas as estratégias de concentração, de integração, diversificação e enfoque.
Segundo ele, com a estratégia de concentração, a empresa procura obter um menor
custo e uma maior parcela de mercado, com base nas economias de escala e de
tamanho. Na estratégia de integração prevaleceria a busca de sinergia nos domínios
da produção e da comercialização. Estas duas estratégias baseiam-se
fundamentalmente em considerações físicas. As estratégias de diversificação
privilegiam considerações financeiras pela multiplicação dos produtos e a divisão
dos riscos e a estratégia de enfoque visa valorizar um avanço tecnológico e melhorar
o fluxo de caixa no curto-prazo.
Segundo Carvalho Jr. (1997), já a estratégia de filière consiste em gerir um
conjunto, considerando a totalidade dos elementos que o constituem e tomando
consciência de sua complementaridade:
“Unindo preocupações físicas (organizando os fluxos de tecnologia e os fluxos
de produtos) e preocupações financeiras (repartindo os capitais entre as
atividades) para que o conjunto funcione melhor. O domínio de uma filière
confere às firmas dominantes um poder que lhes permite operar nas melhores
condições e introduzir benéficas operações de diversificação numa lógica de
reequilíbrio, numa base não financeira, mas sobretudo econômica e
tecnológica.”
29
2.3.4 Análise de filière como espaço de análise das inovações
tecnológicas
Nos trabalhos de Garrouste, Floriot & Overnay in Batalha (1997), a noção de
filière adapta-se perfeitamente ao estudo dos mecanismos do processo de
inovações tecnológicas que geram perturbações transmitidas a jusante e a
montante.
Nesse sentido Carvalho Jr.(1997) complementa que as perturbações que são
transmitidas pela jusante e que sobem na filière são ligadas às modificações de
mercados e podem ter como causas:
• a evolução da demanda em volume, por qualquer razão: substituição,
concorrência internacional, mudança de necessidades.
• a evolução dos preços: uma alteração dos preços, além de agir sobre a
demanda, pode também conduzir a empresa que teve uma redução nos
seus preços, a pressionar seus fornecedores a baixarem seus preços.
• a evolução dos produtos, o que pode representar ameaças ou
oportunidades para outros estágios da filière.
As perturbações que descem a filière referem-se às condições de abastecimento
e podem ter como causas:
• a evolução das quantidades de matéria-prima disponível, em decorrência
de ocorrências de ordem econômica, tecnológica ou política.
• a evolução dos custos de abastecimento, cuja repercussão depende das
relações de força na filière.
• a modificação da qualidade dos abastecimentos que pode acarretar uma
mudança na qualidade dos produtos finais e influenciar as vendas da
filière.
Assim, segundo Batalha (1997), os desequilíbrios estruturais ocasionados pelas
inovações tecnológicas seriam o resultado de três fatores principais: processo
cumulativo ou seja mecanismos de retroalimentação que conduzem a melhoria
contínua, institucionalização da pesquisa no interior das firmas e interação entre
mercado e tecnologia.
30
Dessa forma, Turnemine in Batalha (1997), complementa que as análises não
devem ser baseadas somente em sistemas técnicos8, mas que também sejam
contempladas análises oriundas de fatores econômicos e financeiros, fatores
socioculturais e políticos e fatores legais e jurídicos.
A importância da tecnologia e das inovações tecnológicas devem ser ponderadas
segundo a presença na cadeia de produção dos tipos de tecnologias classificadas,
segundo Le Duff & Maisseau in Batalha (1997), em tecnologias de base,
tecnologias-chave e tecnologias emergentes.
• As tecnologias de base são as operações necessárias a atividade
principal de cadeia, facilmente disponíveis e sem impacto competitivo
importante.
• As tecnologias-chaves são operações determinantes do ponto de vista do
impacto concorrencial porque estão associadas às operações-chaves da
cadeia de produção.
• As tecnologias emergentes são operações ligadas a tecnologias
importantes do ponto de vista da evolução futura do sistema.
Uma cadeia de produção formada por um sistema técnico composto de
tecnologias de base9 e onde a presença, atual ou futura, de tecnologias-chaves ou
emergentes é negligenciável terá poucas restrições tecnológicas que possam
influenciar a concorrência.
Cabe ressaltar que as inovações tecnológicas são cada vez menos específicas a
uma única cadeia de produção. Elas assumem cada vez mais um caráter
transversal, na medida em que atingem várias cadeias de produção ao mesmo
tempo.
As transformações tecnológicas impostas ao sistema encontram, na maioria das
vezes, origem externa a atividade considerada inicialmente. Este é particularmente o
caso da cadeias de produção agroindustriais que encontram em outros setores da
economia suas principais fontes de inovação tecnológica.
Ainda, Batalha (1997) classifica uma inovação tecnológica segundo o grau de
perturbação que ela ocasiona na cadeia de produção em dois tipos principais:
Inovação tecnológica com tecnologia específica e efeitos locais com conseqüências
quase que exclusivamente sobre uma cadeia de produção e a inovação tecnológica
8 Ligações entre operações técnicas segundo uma rede hierarquizada que evolui progressivamente ao longo do tempo.
31
com tecnologia de efeito difuso, com capacidade de alterar a dinâmica concorrencial
de várias cadeias de produção ao mesmo tempo.
A noção de cadeia de produção tem sido utilizada por vários autores para estudar
o processo de inovação tecnológica, enquanto variável suscetível de dinamizar a
concorrência no interior de uma cadeia de produção.
Uma representação em termos de cadeia de produção permitiria apresentar as
operações técnicas ao lado das operações comerciais e logísticas, de tal forma que
seria muito mais fácil para as partes envolvidas exprimirem-se e argumentarem suas
idéias em face de uma visão de conjunto.
2.4 Operacionalização da análise de filière
Floriot (1982) enfatiza que a implementação de uma análise de filière deve utilizar
as seguintes noções fundamentais: a noção de evolução histórica do setor, as
leituras técnica e econômica do setor e as noções de filière principal e filière auxiliar.
2.4.1 Análise da evolução histórica
Segundo Borges (1993), a análise da evolução histórica do setor possibilita a
identificação dos comportamentos dominantes explicáveis em termos de lógicas de
desenvolvimento, permitindo uma melhor compreensão dos comportamentos dos
empresários e de suas perspectivas estratégicas. Podendo-se observar ainda a
valorização dos recursos simultaneamente com a sofisticação de produtos e serviços
fornecidos aos consumidores.
Assim, a análise da evolução histórica da filière, tem como objetivo colocar em
evidência as diferentes lógicas de desenvolvimento, ajudando a definir a estrutura
técnico econômica da filière e suas relações com o ambiente.
9 Processos de produção largamente conhecidos e disponíveis para as empresas.
32
A evolução dos setores industriais, é freqüentemente baseada em um recurso
criado e funciona, em uma fase inicial, quase que exclusivamente para a exploração
deste recurso10. Nesta etapa, a lógica dominante do setor é a lógica de exploração
dos recursos existentes e a preocupação com um melhor beneficiamento ou com as
reais necessidades do mercado são inexistentes.
Depois dessa primeira etapa, os setores tendem a evoluir e surgem
sucessivamente as seguintes lógicas de desenvolvimento:
- lógica de valorização dos recursos;
- lógica industrial de elaboração de produtos e serviços
- lógica de comercialização de produtos e serviços e
- lógica de desenvolvimento sustentado
Na segunda etapa os recursos disponíveis já estão quase todos em poder das
empresas e visualiza-se o limite ou mesmo o esgotamento dos mesmos. A terceira
etapa pode ser atingida pela evolução dos sistemas produtivos que permitem
agregar mais valor aos produtos e assim fornecer produtos mais elaborados ao
mercado. A quarta etapa mostra um amadurecimento do setor em termos de
competitividade e supõe uma horizontalização da indústria, inexistente nas fases
iniciais onde a verticalização é a regra. Finalmente a última etapa decorre, entre
outros fatores, do amadurecimento social e do mercado ambos exigindo respeito ao
meio ambiente.
A identificação da lógica de desenvolvimento permite ao analista uma melhor
compreensão dos comportamentos dos empresários do setor e de suas perspectivas
estratégicas. Em um setor na etapa de exploração de recursos a estratégia
dominante será a de se assegurar as melhores fontes da matéria prima. Na segunda
etapa há uma preocupação em adquirir equipamentos que permitam utilizar melhor
os recursos ou fornecer novos produtos. Na terceira fase é necessária uma
preocupação com a otimização dos processos como um todo e não apenas com
equipamentos isolados. Já existe uma terceirização a qual será aprofundada na
quarta etapa.
10 Foi assim para o setor madeireiro catarinense e, também foi assim para o setor madeireiro amazonense e para o setor petrolífero americano: todos eles foram criados e funcionaram, por um certo tempo, para explorar os recursos (florestais ou petrolíferos) regionais
33
A seqüência de etapas da evolução dos setores mostra uma intensificação no
processo de valorização dos recursos simultaneamente com a sofisticação de
produtos e serviços fornecidos aos consumidores. O ambiente competitivo é o fator
dominante na dinâmica das evoluções dos sistemas industriais.
A combinação da teoria das etapas de evolução de um setor com a teoria da
evolução das empresas de um modo geral e/ou a consideração da evolução do
conhecimento técnico oferece uma boa referência para vislumbrar o futuro da
evolução tecnológico-administrativa e obter elementos para a análise estratégica
(Kopittke, 1996).
Assim, a análise histórica difere das análises econômicas tradicionais, já que esta
última preocupa-se em justificar a existência dos sistemas econômicos sem levar em
consideração as lógicas que trouxeram o sistema ao estágio atual. O enfoque de
filière permite materializar lógicas de decisão que prevaleceram na sua organização
e estrutura, as quais ajudam a explicar o seu desempenho.
Nesse sentido, o aparecimento de novos mercados freqüentemente se explica
pela passagem de uma lógica de desenvolvimento a uma nova lógica, seja por
esgotamento da antiga lógica, seja pelo surgimento de novas tecnologias, seja pelo
aproveitamento das oportunidades oferecidas pelo meio-ambiente externo à filière,
seja pelo surgimento de novos mercados.
Finalmente, a análise da evolução histórica deve identificar as relações inter-
industriais existentes entre os atores da filière em estudo e outros sistemas
industriais, responsáveis por prover as funções técnicas necessárias à
transformação técnica dos produtos dentro da filière.
2.4.2 Leitura técnica da filière
A leitura técnica de uma filière permite identificar os elementos técnicos que
constituem a estrutura tecnológica básica de produção do sistema industrial em
questão. Segundo Floriot (1982), esses elementos técnicos da produção combinam-
se em uma rede de interdependência técnica, que representa o encadeamento
técnico das operações de transformação dentro da filière, algo como uma ordem de
produção dentro de uma fábrica.
34
Essa estrutura tecnológica desde a matéria-prima até o produto final representa o
que Floriot (1982) chama de technotecture. A mesma subentende um fluxo de
matéria-prima que vai agregando valor através das diferentes operações técnicas de
transformação, do estágio inicial ao estágio final da filière.
A leitura técnica permite questionamentos e uma análise estrutural do sistema
produtivo do tipo: o sistema é o mais eficaz levando-se em conta as tecnologias
disponíveis? Existe uma integração entre os diferentes estágios técnicos da filière? E
outros.
Essa lógica de análise técnica, no entanto, não pode ser feita dissociada de uma
análise econômica que viabiliza a sobrevivência da filière a curto e longo prazos. Ou
seja, a partir das várias relações técnicas existentes no interior da filière surgem
diferentes relações econômicas e comerciais que precisam ser analisadas com o
intuito de verificar a competitividade do sistema industrial em questão (Gomes;
1993).
Ainda, segundo Kopittke (1996), os custos, a escala e a lógica identificados a
partir da seqüência das operações técnicas de produção, são elementos capazes de
explicar a evolução e a dinâmica dos sistemas industriais. A principal tarefa desta
abordagem é dissecar, de acordo com a profundidade necessária, todas as etapas
de processo de fabricação, desde a matéria prima até o cliente. A investigação visa
uma racionalização do todo identificando:
• gargalos;
• aspectos estratégicos tais como economia de escala, tecnologias
alternativas e competitividade internacional;
• desperdícios;
• problemas de qualidade;
• economia de matéria-prima e energia;
• reaproveitamento de recursos (água) do processo;
• reciclagem;
• problemas de qualidade ambiental.
Os setores produtivos de bens e serviços de consumo humano, chamados de
principais, dependem de setores auxiliares que lhes fornecem os meios necessários
ao preenchimento de suas funções. Estes setores auxiliares freqüentemente
introduzem inovações e/ou novas tecnologias em um setor dado. É pois necessário
35
identificar as relações entre o setor a ser analisado e os setores auxiliares,
tecnologicamente ativos correspondentes.
Ainda Floriot (1982), acrescenta que através do exame dos intercâmbios
tecnológicos, o que implica em uma reconcepção global das filières e de suas
estruturas técnicas, consegue-se identificar as inovações tecnológicas de maior
impacto sobre a filière inteira.
2.4.3 Leitura econômica da filière
Kopittke (1996) diz que, a leitura econômica verifica as possibilidades de inserção
de transações nos diversos estágios da filière pois é em torno delas, expressas sob
forma de mercados, que se articulam os agentes econômicos. As possibilidades de
"terceirização ou de comercialização de co-produtos, sub-produtos ou de produtos
ainda não acabados devem ser examinadas neste contexto.
Essa articulação da estrutura técnica pelos mercados representa uma certa
segmentação do sistema produtivo global da filière. Nesse sentido, os mercados
intermediários apresentam-se como local de confronto entre os diferentes agentes
da filière. Além dos mercados principais, ligados diretamente aos produtos do setor,
deverão ser considerados os mercados de equipamentos e insumos para o setor -
os assim chamados mercados auxiliares.
Assim, os mercados intermediários principais representam as diferentes
possibilidades de articulação econômica que surgem dentro da filière principal, bem
como o grau de flexibilidade em que esses mercados se articulam com a estrutura
técnica. A estrutura desses mercados constitui-se em um indicador do grau de
internalização de trocas dentro da filière, representando o grau de integração vertical
da filière, entendida em termos de relações econômicas.
Os mercados intermediários auxiliares representam as diferentes possibilidades
de articulação econômica externa à filière principal. Dentro desse enfoque os
diferentes mercados possíveis aparecem no interior da filière podendo interromper
até mesmo o fluxo dentro da filière.
Observa-se então que, a partir da estrutura técnica da filière pode-se definir a
estrutura econômica, que coloca em evidência uma lógica técnico-econômica,
responsável juntamente com a evolução histórica, pela definição completa da filière
(Gomes; 1993).
36
2.4.4 A filière ideal
Floriot (1982) propôs uma metodologia para a reconcepção dos sistemas,
indústrias com tecnologias coerentes, visando estruturas econômicas, sociais e
humanas mais eficientes do que os sistemas atuais. Esta metodologia da filière ideal
consiste das seguintes etapas:
Concepção do setor ideal teórico: o setor ideal tal como ele deveria ser
desconsiderando-se, neste estágio, todas as restrições científicas, tecnológicas,
econômicas, organizacionais e humanas. Este ideal teórico é uma utopia, por outro
lado, a tentativa de se orientar uma construção progressiva a partir deste ideal
teórico é uma exigência dos processos interativos. A tentativa ideal deve seguir-se
da introdução de uma sucessão de restrições descritas abaixo.
• Do ideal teórico ao ideal tecnológico: investigar as tecnologias que
tornariam possível o ideal teórico, restringindo, portanto, o campo do
ideal teórico ao campo das possibilidades tecnológicas.
• Do ideal tecnológico ao ideal econômico: determinar se o ideal
tecnológico é economicamente viável levando-se em conta os anseios
dos consumidores, restringindo, portanto, o campo do ideal tecnológico
ao campo das possibilidades econômicas aceitáveis pelo cliente situado
a jusante da filière.
• Do ideal econômico ao ideal realizável: pergunta-se neste estágio se é
economicamente viável e socialmente aceitável, a longo prazo, para o
conjunto dos parceiros sócio-econômicos envolvidos pelo setor atual?
Restringe, portanto, o campo do ideal econômico às alternativas lógico-
técnicas, tendo em vista a aceitabilidade dos participantes sócio
econômicos em função da dinâmica social da região ou do país e a
viabilidade, a longo prazo, em função da dinâmica industrial internacional.
Por fim, dentre as alternativas lógico-técnicas ideais realizáveis concebidas,
seleciona-se a que servirá de base para a elaboração da lógica-técnica
recomendada, levando-se em conta:
37
• Os pesos econômicos e as estratégias atuais e futuras das filières;
• As lógicas de ação e os relatórios financeiros, econômicos, técnicos e
sociais dos diferentes agentes envolvidos;
• O dinamismo das empresas que lideram o mercado e suas reações e
capacidades de promover mudanças capazes de afetar suas estruturas;
• Os potenciais de desenvolvimento organizacional e humano das
empresas e dos grupos sócio-profissionais envolvidos, levando em conta
a inércia de seus comportamentos e mentalidades.
• A quinta e última etapa da metodologia consiste em escolher, dentre as
alternativas existentes, aquela que tiver probabilidade de ser aceita pelos
agentes econômicos envolvidos e conseguir a sua adesão. Ou seja trata-
se de assumir uma postura ativa em relação a comunidade e vender a
idéia desenvolvida.
3 SUSTENTABILIDADE X ABORDAGEM ECOSSISTÊMICA
Nos últimos anos, muito têm se falado sobre a questão ambiental e sua inegável
e irreversível incorporação aos sistemas produtivos. Nesse capítulo procurar-se-á
mostrar que, a transposição efetiva para um novo modelo, deverá pautar-se na
compreensão de um novo discurso ecológico, sob a perspectiva dinâmica e
sistêmica.
Assim, a noção mesoanalítica e sistêmica da análise de filière, pautada no
desenvolvimento da teoria geral dos sistemas está diretamente associada e
integrada às tentativas e construções de modelos de conotação holísticos e sistemas
ecológicos. Portanto, como resultado desse novo paradigma, as organizações
devem compreender a sustentabilidade sob a abordagem ecossistêmica.
3.1 Um novo paradigma para as organizações
A necessidade de uma mudança de paradigmas no gerenciamento das
organizações fica bastante evidente após a análise de algumas das atuais práticas
empresariais e sua inadequação à realidade mundial (Pauli, 1996; Callenbach,
1993). A questão da globalização, das mudanças tecnológicas, mudanças no
mercado, nas ideologias e valores sócio-econômicos, nas expectativas dos
consumidores, na educação e na realidade econômica e política internacional,
contribui no sentido de que se busque uma nova maneira de atuar no mercado.
Diante desse quadro a noção de esgotamento dos modelos que até então têm
sido adotados11 parece ser a alternativa política mais coerente com a força do apelo
da mudança. Considerá-los uma opção real a ser refutada condiciona outras
correntes de opinião a buscarem concepções mais satisfatórias de desenvolvimento.
11 Modelos pontuais e determinísticos.
39
É nesse contexto que emerge a questão do desenvolvimento sustentável e sua
abrangência conceitual, situando-se sua conotação no atual momento da relação
entre os povos e a economia globalizada. Assim, os elementos que compõem o
desenvolvimento sustentável são a preservação da qualidade dos sistemas
ecológicos, a necessidade de um crescimento econômico para satisfazer as
necessidades sociais e a equidade entre gerações presentes e futuras. Desta forma
percebe-se que os ideais do desenvolvimento sustentável são mais amplos do que
as preocupações específicas, como a racionalização do uso da energia, ou o
desenvolvimento de técnicas substitutivas do uso de bens não renováveis ou, ainda,
o adequado manejo de resíduos. Em essência, o desenvolvimento sustentável é um
processo de transformação no qual a exploração dos recursos, a direção dos
investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico e a mudança
institucional se harmonizam e reforçam o potencial presente e futuro, a fim de
atender às necessidades e aspirações humanas (Bello, 1998).
Segundo Habermas in Oashi (1999), a fase atual caracteriza-se como uma fase
pré-paradigmática, ou seja, é uma fase de incertezas onde se discute a questão de
novos paradigmas para a ciência. E nessa fase de incertezas é preciso haver uma
comunicação aberta, de modo que todos os elementos possam contribuir para a
harmonização das relações sócio-econômicas da sociedade global.
Para a abordagem de fenômenos econômicos, a partir de uma perspectiva
ecológica, faz-se necessária uma nova dimensão que transcenda a concepção
cartesiana. Assim, os economistas terão necessariamente que rever, de modo
drástico, seus conceitos básicos. Muitos críticos têm previsto o fim da economia
como ciência, tendo em vista que a estrutura do pensamento econômico atual, tão
profundamente enraizada no paradigma cartesiano, representa um modelo obsoleto.
A nova teoria ou conjunto de modelos, envolverá muito provavelmente uma
abordagem sistêmica que integrará a biologia, a psicologia, a filosofia política e
muitos outros ramos do conhecimento humano, em conjunto com a economia,
formando uma vasta estrutura ecológica.
A questão da visão interdisciplinar ilustra perfeitamente as proposições de
MORIN (1991). O que interessa é o fenômeno multidimensional e não a disciplina
que recorta uma dimensão. Tudo o que é humano é às vezes, físico, sociológico,
econômico, histórico, demográfico. Importa, portanto, que seus aspectos não sejam
separados, mas concorram para uma visão poliocular. Não são poucos os
40
pesquisadores que indicam uma nova maneira de conceber o meio ambiente como
um objetivo científico, que vá do particular ao geral, do simples ao complexo, do
disciplinar ao interdisciplinar.
Segundo Teixeira in Oashi (1999), seria nessa direção que se poderia conceber a
constituição de um paradigma científico em torno das questões que envolvem o meio
ambiente. Fundamentado a partir de uma visão sistêmica, o possível novo
paradigma em torno da questão do meio ambiente evidenciaria uma articulação das
diferentes percepções disciplinares em termos de seus respectivos sistemas12.
O enfoque sistêmico é também abordado por Constanza et al in Oashi, dentro de
sua definição de economia ecológica. Para os autores, a economia ecológica pode
ser definida como um campo transdisciplinar que estabelece relações entre os
ecossistemas e o sistema econômico. Seu objetivo é agregar os estudos de ecologia
e economia, buscando extrapolar suas concepções convencionais, procurando tratar
a questão ambiental de forma sistêmica e harmoniosa, buscando a formulação de
novos paradigmas. A economia ecológica é, portanto, dinâmica, sistêmica e
evolucionista. Seu foco principal é a relação do homem com a natureza e a
compatibilidade entre crescimento demográfico e disponibilidades de recursos.
Os problemas ecológicos do mundo, a exemplo de todos os outros grandes
problemas do nosso tempo, não podem ser entendidos isoladamente. Eles são
problemas sistêmicos interligados e interdependentes. Assim, sua compreensão e
solução requerem um novo tipo de pensamento sistêmico. E nesse contexto surge a
concepção do pensamento ecossistêmico.
3.2 O PENSAMENTO ECOSSISTÊMICO
Pode-se dizer que sistemas ecológicos, tentativas e construções de modelos de
conotação holísticos estão diretamente associados ao desenvolvimento da teoria
geral dos sistemas, que contêm elementos que favorecem sua aplicabilidade. De
maneira geral, a abordagem de sistemas, segundo Moran in Milioli (1999), visa: 1)
definir metas e objetivos; 2) estabelecer limites conceituais para distinguir o sistema
e o ambiente; 3) definir os componentes e processos a serem considerados e 4)
12 Sistema econômico, ecossistema, sistema técnico de produção, hidrossistema, sistema social e assim por diante.
41
levar a uma consideração formal de como cada componente está relacionado a
todos os demais.
No entanto, quando da adoção de modelos, a preocupação colocada está
relacionada aos riscos de simplificação da realidade e à idéia de equilíbrio estático e
determinístico. Assim, tanto ecologistas como sociólogos têm salientado que os
modelos de equilíbrio, tão facilmente formulados no passado, não são assim tão
confiáveis ou vantajosos como se pensava. Nesse sentido, uma noção mais realista
seria conceitualizar as sociedades humanas como sistemas adaptativos complexos.
Os sistemas fechados caracterizam-se por elos muito pequenos com o resto do
mundo e por uma capacidade interna mínima para mudanças. Os sistemas abertos,
por outro lado, enfatizam que os fluxos internos são capazes de alterar
significativamente os componentes internos do sistema. Os fluxos de informação
acerca do estado do mundo externo acarretam processos de retroalimentação, os
quais, ao contrário de restabelecerem o equilíbrio ao sistema, o conduzem por novos
caminhos que aumentam a sua capacidade de ajuste a condições de mudança. Um
dos desafios na elaboração de modelos é lidar com a forma como as mudanças
ocorrem, em vez de procurar obter modelos que não representam as demandas de
sobrevivência enfrentadas pelos organismos vivos.
Essa ótica e nova percepção da realidade, que trabalha com a interdependência
dos fenômenos físicos, biológicos, psicológicos, culturais, econômicos e político-
institucionais, faz com que o mundo seja visto pela concepção sistêmica em termos
de relações e de integração. Segundo Capra (1982):
“Os sistemas são totalidades integradas, cujas propriedades não podem ser
reduzidas às de unidades menores. Em vez de se concentrar nos elementos
ou substâncias básicas, a abordagem sistêmica enfatiza princípios básicos de
organização. Os exemplos de sistemas são abundantes na natureza. Todo e
qualquer organismo - desde a menor bactéria até os seres humanos,
passando pela enorme variedade de plantas e animais - é uma totalidade
integrada e, portanto, um sistema vivo... Mas os sistemas não estão limitados
aos organismos individuais e suas partes. Os mesmos aspectos de totalidade
são exibidos por sistemas sociais...e por ecossistemas que consistem numa
variedade de organismos e matéria inanimada em interação mútua. O que se
preserva numa região selvagem não são árvores ou organismos individuais,
mas a teia complexa de relações entre eles.
42
Todos esses sistemas naturais são totalidades cujas estruturas específicas
resultam das interações e interdependência de suas partes. A atividade dos
sistemas envolve um processo conhecido como transação - a interação
simultânea e mutuamente independente entre componentes múltiplos. As
propriedades sistêmicas são destruídas quando um sistema é dissecado,
física ou teoricamente, em elementos isolados. Embora possamos discernir
partes individuais em qualquer sistema, a natureza do todo é sempre diferente
da mera soma de suas partes.”
Porém, uma das lições oferecidas pela teoria de sistemas é a necessidade de se
mostrar, com cuidado, especificidades do sistema explicitamente, identificando
hierarquia, limites, entre outros, dentro de um contexto de tempo e espaço. Parte
desse processo possibilita a identificação de assuntos importantes no sentido de
contextualizar uma avaliação de integridade.
Assim, para Kay in Milioli (1999), a idéia de integridade ecológica também é
possível quando, aliada aos assuntos biológicos e físicos, incorporam-se
externalidades dos sistemas sócio-econômico e político. Esta perspectiva vem ao
encontro da necessidade de se incluir questões e assuntos da sociedade e de
valores em qualquer avaliação de integridade ecológica. A importância destes
aspectos está diretamente relacionada ao fato de que quando as pessoas
especificam sistemas, estas, muitas vezes, não estão tratando necessariamente de
especificações baseadas em critérios da ciência objetiva, mas com a maneira de
olhar o mundo, sendo que estes aspectos sempre refletem um sistema de valor.
Porém, integridade deve ser analisada em contexto especifico. Em outras
palavras, em um contexto onde sejam analisadas características físicas, biológicas,
sociais e culturais da área geográfica especifica, onde o humano é parte integrante
do ecossistema em questão.
Segundo Kay & Schneider in Milioli (1999), a revolução que aconteceu na ciência,
nas últimas duas décadas, é tão profunda quanto a que aconteceu entre 1890 e
1910, com os trabalhos de Ludwig Boltzmann, Albert Einstein, entre outros. A
revolução da passagem do século estava relacionada à maneira de como vemos o
mundo através do microscópio e não mudou como a percepção do mundo no
cotidiano. A revolução atual, por sua vez, está relacionada à maneira como olhamos
o mundo, numa perspectiva macro, e como isto afeta nossas vidas, no dia-a-dia,
nossas instituições e nossas decisões.
43
As mudanças da ciência da natureza no presente exploram uma perspectiva
teórica a partir da dinâmica, da incerteza, da diversidade e da complexidade.
A idéia e o conceito de natureza, ao se transformar, incorporam também os seres
humanos, seus valores e cultura. Também influenciam, definitivamente, o
desenvolvimento das ciências, levando ao que se traduz, segundo Prigogine e
Stengers (1997), em uma "nova aliança" entre natureza, economia e sociedade. Na
figura 6 apresenta-se um diagrama para ilustrar esses conceitos.
Ao ressaltar a importância da teoria dos sistemas para o entendimento do
ecossistema, Morin (1984), a partir de sua perspectiva ecológica generalizada,
chama a atenção para a dimensão complexa dos ecossistemas desenvolvendo um
novo pensamento ecossistêmico. O autor critica a noção conceitual de ecossistema
criada até então pela ecologia, ao somente englobar o ambiente físico (biótipo) e o
conjunto das espécies vivas (biocenose) existindo e interagindo num espaço e num
nicho determinado.
Figura 6: Mudanças nas ciências da natureza
Em sua ótica, torna-se cada vez mais fundamental avançar o que considera
historicamente ignorado pelo pensamento clássico. Ou seja, ressaltar o homem
enquanto um sistema e como este pode ser considerado dentro de um pensamento
ecossistêmico.
Morin (Ibid.) diz que quanto mais evoluído, isto é, complexo e rico for um sistema,
mais aberto ele será. Assim, o homem é o sistema mais aberto de todos, o mais
dependente na independência. E, nesse contexto, entende-se como ecossistema
não só a natureza mas também o ecossistema técnico-social, que se sobrepõe ao
primeiro e o torna ainda mais complexo.
Dinâmica
Nova Aliança
Natureza Economia Sociedade
Incerteza
Diversidade Complexidade
44
Essa idéia de ecossistema avança ao que se considera de ecossistema social ou
ecossistema sócio-urbano que contempla um sentido mais rico. E, embora muitas
vezes a sociedade moderna repudie e ignore o ecossistema natural, por outro lado,
é exatamente neste contexto que o ecossistema sócio-urbano se instala. Na
argumentação de Morin (1984):
“Este ecossistema sócio-urbano não é senão a sociedade moderna
considerada do ponto de vista ecológico, ou seja, do ponto de vista dos
indivíduos, grupos, instituições e etc, que estão, no interior, em relação de
sistema aberto ao ecossistema. Ora, quanto mais evoluída for a sociedade,
quer dizer, quanto maiores forem o número, o lugar, o papel dos artefatos,
objetos produzidos pela e para a atividade industrial, maior é o caráter
"técnico" do ecossistema social.”
As características de um ecossistema sócio-urbano estão vinculadas, portanto, à
idéia de relações e interações no seio do que Morin (Ibid.) considera uma unidade
ecológica tão localizável como o nicho, ou seja, o aglomerado urbano. Assim, além
do aspecto meramente populacional, nesse aglomerado interferem também as
organizações e as instituições econômicas, políticas, culturais, sociais, os artefatos,
as máquinas e produtos múltiplos, os grupos sociais e os indivíduos.
Portanto, o ecossistema sócio-urbano e sua perspectiva de totalidade é realizado
por outros tecidos, que conferem complementaridades, que permitem sua (auto)
organização e ao mesmo tempo conferem caráter vital ao seu desenvolvimento.
Assim, segundo Morin (Ibid.):
“O ecossistema sócio-urbano compreende também elementos e sistemas
vivos constitutivos do meio natural: clima, atmosfera, subsolo,
microorganismos vegetais e animais; este ecossistema nutre-se
energicamente dos alimentos extraídos do ecossistema natural (inclusive
carvão, gás, água, gasolina). A maior parte destes elementos e destes
alimentos são-lhe absolutamente vitais. Confirmam o caráter ecológico do
meio urbano e a sua dependência inelutável relativamente à natureza e
aumentam a sua complexidade sistêmica.”
O ecossistema sócio-urbano é constituído, então, não somente pelo conjunto dos
fenômenos de característica urbanas, mas também pelo conjunto de fenômenos
sociais e pelo conjunto de fenômenos naturais e biogeoclimáticos localizados no seu
interior.
45
Baseado nos predicativos da chamada nova aliança, Kay & Schneider in Milioli
(1999), consideram fundamental a necessidade de olhar os ecossistemas de uma
perspectiva hierárquica, com cuidado e atenção tanto com a escala e extensão
quanto com o exame dos aspectos espacial e temporal, termodinâmico e
informacional dos sistemas. Reconhecem, ainda, que os ecossistemas são
dinâmicos, não determinísticos, se auto-organizam e conferem, ao mesmo tempo,
um grau de imprevisibilidade exibido em fases de rápidas mudanças.
A fim de demonstrar a integridade de um ecossistema esses autores apontam
três facetas de corte organizacional: i) saúde do ecossistema, enquanto habilidade
para manter operações normais sob condições ambientais normais; ii) convivência
com mudanças em condições ambientais e iii) processo de auto-organização em
base contínua. Essas facetas incluem a capacidade de desenvolver e proceder
através do nascimento, crescimento, morte e ciclo de renovação.
Em estudo de maior detalhe, Kay (1993) sintetiza a idéia do ecossistema
integrado, cujos pressupostos também estão presentes nas reflexões de Born e
Sonzogni (1995), De Leo e Levin (1997), Dearden e Mitchell (1998) in Milioli (1999).
A estes desdobramentos, ressaltam-se:
1. ecossistemas são inerentemente dinâmicos e podem mudar no tempo e no
espaço. Limites de ecossistemas não são entidades fixas, mas dinâmicas e
permeáveis. Qualquer consideração de limites de ecossistema tem que levar em
conta sua natureza dinâmica e deve estar atenta a fluxos de energia, nutrientes e
espécies;
2. processos dentro de um sistema ecológico operam em uma variedade de
níveis. Então, a idéia de extensão é uma ferramenta necessária para a avaliação e
integridade ecológica. Qualquer definição de integridade ecológica tem que avaliar
um ecossistema em larga extensão para capturar processos inteiros;
3. qualquer taxa de integridade ecológica tem que reconhecer que ecossistemas
são sistemas complexos. Quer dizer, eles não exibem pontos de equilíbrio estável,
mas um conjunto de estados fixos no tempo e no espaço;
46
4. ecossistemas exibem sintomas de tensão. Têm sua integridade ameaçada.
Sintomas de tensão, como produtividade diminuída, pode ser indicativo da remoção
do sistema para longe de seu ponto operacional ótimo. Inerente em qualquer
discussão de tensão é a perda de integridade, e a habilidade do sistema para
responder a tensão e voltar ao seu ponto operacional ótimo. O conceito de poder de
recuperação é crítico, em qualquer definição e taxa de integridade de ecossistema;
5. o componente humano em ecossistema freqüentemente é visto como entidade
separada do componente natural. Humanos estão unidos indissoluvelmente e
dependentes dos muitos ecossistemas para sua sobrevivência. Atividades humanas
induzem tensões em ecossistemas que devem ser monitoradas;
6. o conceito de ecossistema é carregado de valores. O que poderia ser
considerado integridade para uma pessoa, necessariamente não define integridade
para outra. Por conseguinte, qualquer definição de integridade tem que identificar
juízos de valores humanos que explicitamente influenciam sua perspectiva.
Dessa perspectiva complexa e considerando-se que as atividades humanas
podem manter a integridade da auto-organização das entidades que chamamos
vida, o ecossistema integrado será então definido como: "a habilidade de absorver
mudanças ambientais sem algumas mudanças permanentes no ecossistema" Uma
abordagem ecossistêmica auxilia a sustentabilidade e ela constitui-se um meio para
um caminho fundamental. (Kay & Schneider in Milioli, 1999)
Políticas governamentais em vários países estão, hoje, atentas para aplicar a
abordagem ecossistêmica nas pesquisas de gerenciamento, políticas e
administração pública.
Segundo Mitchell in Milioli (1999), os dez principais temas e desafios para uma
abordagem ecossistêmica:
1. Contexto Hierárquico: não é suficiente enfocar somente níveis (genes,
espécies, populações, ecossistemas, paisagens) da biodiversidade hierárquica.
Deve-se prestar atenção à conexão entre todos os níveis. Tal concepção está
relacionada com a perspectiva dos sistemas.
2. Limites Ecológicos: gerenciamento ambiental e de recursos requer atenção
para sistemas biofísico ou ecológico, mais do que em relação às unidades
administrativas ou políticas.
47
3. Integridade Ecológica: muita atenção tem sido oferecida à integridade
ecológica, como usualmente interpretada para significar a proteção da totalidade da
diversidade natural (espécies, populações, ecossistemas) ao longo de padrões e
processos os quais mantêm a diversidade. A ênfase tem sido normalmente a viável
conservação de populações e espécies nativas, mantendo regimes de perturbações
naturais, reintroduzindo espécies nativas extirpadas, e alcançando a representação
do ecossistema através de cadeias de variação natural.
4. Coleção de Dados: gerenciar ecossistemas exige uma coleção de dados a
serem pesquisados, particularmente relativo ao aspecto funcional antes das
questões descritivas. Dados são requeridos em relação a inventários e classificação
de habitats, localização de espécies, distúrbios em regimes dinâmicos e avaliação
de populações.
5. Monitoramento: muitos gerentes registram os resultados de suas decisões e
ações. Deste modo, sucessos e falhas podem ser mensurados e documentados, e
as informações e conhecimentos úteis gerados por sistemático monitoramento.
6. Gerenciamento Adaptativo: concepção adaptativa assume incompleto
entendimento de ecossistemas gerando turbulência e surpresas. Ênfases são
colocadas no tratamento do gerenciamento como um aprendizado e como
experiências que encorajam a uma serie de experimentos de como novos
conhecimentos podem conduzir a uma continuidade de ajustamentos e
modificações. Monitoramento é uma atividade chave para um gerenciamento
adaptativo.
7. Cooperação Interagências: se os limites biofísicos ou políticos são usados,
deve ser observada a cooperação entre as esferas municipal, estadual, nacional e
agências internacionais, bem como pelos setores privados e organizações não
governamentais. Planejadores e gerentes terão que aperfeiçoar suas capacidades
para negociar conflitos entre mandatos legais e objetivos de gerenciamento.
8. Mudança Organizacional: para implementar uma abordagem ecossistêmica
haverá freqüentemente muitas alterações nas estruturas e nos processos usados
pelas agências de gerenciamento ambiental e de recursos. Assim, as mudanças
podem ser relativamente simples (criação de grupos e interagências para
coordenação) como fundamentais (realocar poderes e mudar valores ou princípios
básicos).
48
9. Seres Humanos Embutidos na Natureza: uma abordagem ecossistêmica
requer que as pessoas sejam consideradas parte e não separadas dos sistemas
naturais. Pessoas não podem estar separadas da natureza.
10. Valores: uma abordagem ecossistêmica reconhece os conhecimentos
científicos e tradicionais, sendo que os valores humanos são envolvidos. Portanto,
valores humanos teriam como papel dominante a fixação das metas para o
gerenciamento ambiental. Assim, gerenciamento de ecossistemas não é somente
um esforço científico, devendo também incorporar valores humanos.
Ao considerar esse conjunto de variáveis, define-se gerenciamento de
ecossistemas integrados como "um conhecimento científico dos relacionamentos
ecológicos dentro de uma complexidade sócio-política e a formação de valores e de
metas gerais para a proteção da integridade de ecossistemas nativos por um longo
período de tempo".
Ao enfatizar a perspectiva holística, a abordagem ecossistêmica incorpora,
definitivamente, a idéia de que os homens são parte da natureza, sendo que a
percepção de inter-relacionamentos é necessária, ao mesmo tempo que existem
críticas limiares. Porém, contrastando com o passado, onde as questões, os
problemas ambientais e seus inter-relacionamentos tinham pouca importância, o
presente traz um conjunto de complexas questões de meio ambiente, favorecendo e
exigindo a adoção de estratégias coordenadas para se trabalhar com projetos de
desenvolvimento emergentes.
A abordagem holística será, portanto, compatível com as modernas teorias
científicas. E, é possível que estas novas contribuições venham ampliar a
humanização das relações sócio-econômicas da sociedade global, incorporando à
teoria do desenvolvimento sustentável propostas renovadas para o mundo atual.
A idéia de um crescimento mais limpo e eqüitativo continua sendo o problema
mais difícil de ser resolvido dentro do desenvolvimento econômico sustentável. Os
países que se preocupam com a conservação e preservação ambiental utilizam seus
recursos de forma sustentável, minimizam seus resíduos e os descartam de forma
segura, são na realidade aqueles que têm uma nova visão de futuro e, portanto,
vêem no desenvolvimento sustentável uma boa oportunidade de crescimento.
49
Todas as sociedades precisam de um alicerce de informação e conhecimento, de
uma estrutura de leis e instituições e de políticas econômicas e sociais sólidas para
que possam progredir de forma racional. Políticas que equilibrem os modos
humanos de vida devem ser complementadas por tecnologias que melhorem essa
capacidade, através de um cuidadoso controle.
Isso leva a compreender que o setor couro terá que adotar um posicionamento
mais adequado aos novos tempos, propiciando condições para uma utilização mais
reflexiva e prudente sobre os recursos utilizados. A base dessa transformação é o
reconhecimento de que os problemas industriais, como todos os outros problemas
de nosso tempo, não podem ser entendidos isoladamente como um conjunto de
partes dissociadas, pois são problemas sistêmicos interligados e interdependentes.
4 METODOLOGIA
A finalidade deste capítulo é apresentar a metodologia ou conjunto de técnicas
que serviram de diretrizes para as ações operacionais fornecendo sustentação e
validade científica ao trabalho de pesquisa. Sendo a pesquisa aqui entendida como
atividade básica da ciência na indagação e construção da realidade.
Na condução de análises setoriais, existem basicamente dois tipos de dados a
serem buscados: dados publicados e aqueles coletados em entrevistas com
participantes e observadores do setor. Uma análise completa é uma tarefa pesada,
portanto, antes de se considerar as fontes específicas, é importante considerar uma
estratégia global para a condução do estudo.
Assim são feitas considerações sobre a natureza e características da pesquisa,
ressaltando-se a importância da realização de enquetes industriais como elemento
chave de coleta de dados para aprofundar os estudos sobre um setor. Ainda, são
abordadas as limitações desse trabalho.
4.1 Natureza e caracterização da pesquisa
Segundo Godoy (1995), a pesquisa nas ciências sociais tem sido marcada, ao
longo dos tempos, por estudos que valorizam a adoção de métodos quantitativos na
descrição e explicação dos fenômenos. Já na atualidade, identifica-se uma outra
forma de abordagem que vem se instalando e se afirmando como uma tentativa de
investigação mais global para a descoberta e compreensão do que se passa nos
contextos organizacionais e sociais. Trata-se da pesquisa qualitativa, que nos
últimos trinta anos começou a ganhar espaço em outras áreas além da sociologia e
antropologia.
Como a problemática em questão, procurou compreender a relação entre a
variável ambiental e a competitividade no setor couro, a natureza da pesquisa é
qualitativa, refletida na definição do problema.
51
Straus & Corbin (1990) e Minayo (1994) referem-se a pesquisa qualitativa como
sendo aquela utilizada para responder a questões muito particulares, preocupando-
se com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja trabalha com
um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes,
correspondendo a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos
fenômenos que não podem ser simplesmente reduzidos à operacionalização de
variáveis.
Considerando o objetivo dessa pesquisa, a mesma pode ser caracterizada como
exploratória, descritiva e explicativa. Exploratória, pelo fato de ter como principal
finalidade desenvolver, esclarecer e modificar conceitos, idéias para a formulação
de abordagens mais condizentes com o desenvolvimento de estudos posteriores.
Por esta razão a pesquisa exploratória constitui a primeira etapa desse estudo para
familiarizar o pesquisador com o assunto que se procura investigar. É descritiva, no
momento em que o pesquisador procura descrever a realidade como ela é, sem se
preocupar em modificá-la.
Ainda, tem caráter explicativo porque tem a preocupação de identificar os fatores
que determinam ou que contribuem para a ocorrência de fenômenos (Gil,1993;
Rudio, 1995). Com essas perspectivas o modo de investigação que fundamenta o
presente trabalho, identifica-se como estudo de caso.
Assim, o estudo de caso é caracterizado pelo estudo profundo e exaustivo de um
ou de poucos objetos, de maneira que permita o seu amplo e detalhado
conhecimento, tarefa praticamente impossível mediante os outros delineamentos
considerados (Gil,1993). Nesse trabalho, como foram estudadas mais de uma
empresa, pode-se afirmar que foi realizado um estudo multi-caso.
Logo, os estudos de caso qualitativos ou naturalísticos, assim chamados porque
se desenvolvem numa situação natural, são ricos em dados descritivos, tem um
plano aberto e flexível, focalizando a realidade de forma complexa e contextualizada.
Segundo Ludke & André (1986), pode ser simples e específico ou complexo e
abstrato, sendo sempre bem delimitado e devendo ter sempre seus contornos bem
definidos no desenrolar do estudo.
Yin (1991) define o estudo de caso como um questionamento empírico que
investiga o fenômeno contemporâneo dentro do seu contexto real de vida na
situação em que os limites entre fenômeno e contexto não são claramente
evidentes, e nos quais múltiplas fontes de evidência são usadas.
52
Campomar (1991), diz que o estudo de caso caracteriza-se por ser um método
qualitativo, devido ao fato de que as inferências a partir dos resultados obtidos não
são estatísticas, consistindo na análise intensiva de uma ou poucas situações,
sendo priorizada a descrição completa e o entendimento dos fatores de cada
situação.
Através do exposto acima por diversos autores, pode-se afirmar que as
características fundamentais do estudo de caso se superpõem às características
gerais da pesquisa qualitativa, podendo-se destacar que visam o contexto onde se
situam, buscando retratar a realidade usando uma variedade de fontes de
informação procurando representar diferentes ou conflitantes pontos de vista de uma
situação social através de uma linguagem acessível.
O modo de investigação do tipo estudo de caso tem, por si mesmo, segundo
Bruyne et al (1991), um caráter particularizador, já que seu poder de generalização é
limitado na medida em que a validade de suas conclusões permanece contingente.
Essas conclusões não se revelam necessariamente corretas em outros casos,
mesmo semelhantes, e fontes de diferenças distintas inseridas no caso escapam
inteiramente à análise. Desta forma os resultados desse estudo não podem
reconhecer outros setores do Estado do Rio Grande do Sul.
Corroborando e avançando as contribuições dos autores acima citados, Yin
(1991) ressalta a importância de cuidados no planejamento e realização desses
estudos, quando considerados os desafios do pesquisador na utilização dos
métodos e estratégias propostas. O autor aponta, também como fundamental, a
necessidade do entendimento de fenômenos sociais complexos ao enfatizar que tais
investigações permitem análises acerca das características significativas de eventos
da vida real, numa direção que contribui para um entendimento holístico desta
dimensão (Milioli, 1999 ).
4.2 Instrumentos de coleta e análise de dados
A coleta e análise de dados não se constituem em etapas isoladas e estanques,
e sim de acordo com Gil (1993) e Trivinõs (1995), os mesmos estão sempre
estreitamente relacionados e são conduzidos numa interação constante. Portanto,
se desenvolvem através de um processo de idas e voltas, interagindo de forma
dinâmica à medida que as informações são coletadas e analisadas, gerando a
53
necessidade de novas buscas de dados. Como principais elementos de sondagem,
coleta e análise de dados foram utilizadas as perspectivas documental, bibliográfica,
entrevistas e triangulação.
A análise documental consiste em uma série de operações que visa estudar e
analisar um ou vários documentos para descobrir as circunstâncias sociais e
econômicas relacionadas. Pode ainda, proporcionar ao pesquisador dados
suficientemente ricos para evitar a perda de tempo com levantamento de campo a
partir da análise dos seguintes documentos: arquivos históricos, registros
estatísticos, diários, atas, biografias, jornais, revistas, entre outros. Assim, a análise
documental, visou favorecer, tanto o desenvolvimento da pesquisa bibliográfica
quanto o de campo.
Para facilitar a identificação das informações de campo, relativas ao assunto
pesquisado, tornou-se necessário realizar:
- leitura preliminar como forma de entrosamento com o assunto;
- leitura seletiva com o objetivo de identificar os principais eventos/atividades
ocorridos no período considerado para análise;
- leitura reflexiva para melhor compreensão do assunto. O estudo crítico pode ser
resultante do processo de aprendizagem, da percepção dos significados e do
processo de assimilação. A percepção dos significados ocorre mediante a
verificação das relações internas dos dados do assunto ou problema.
- leitura interpretativa à luz das abordagens teóricas e empíricas discutidas pelos
autores pesquisados em relação às questões em estudo.
Assim, o conteúdo de um texto é pertinente e útil na medida em que contribui
para a solução dos problemas propostos. Assim, a primeira fase de coleta de dados,
quanto à perspectiva documental e bibliográfica, passou por quatro etapas, tendo
como principais fontes de informação:
a) produção teórica acadêmica, bibliografias e relatórios sobre o setor couro,
a questão ambiental, a sustentabilidade, além da metodologia de análise de filière,
entre outros. Essa fase favoreceu uma forte revisão teórica, possibilitando visualizar
caminhos para o estudo proposto;
b) registros documentais do acervo dos órgãos oficiais, periódicos e jornais. A
importância desses registros, aliados a textos acadêmicos e históricos,
proporcionou um panorama atual sobre o setor a ser estudado e sua relação com
o meio ambiente;
54
c) textos e livros especializados, estudos realizados por institutos e núcleos de
pesquisas de universidades, relatórios de agências governamentais de
desenvolvimento e outros órgãos e entidades ligadas ao setor do couro
(associações, sindicatos, governo), MDIC, SECEX, NUCEX, DECEX, IBGE,
CTCCA, ABQTIC, ABICALÇADOS, CICB, AICSUL, ASSINTECAL, ABRAMEQ,
ABECA, SEDAI, FEPAM, FIERGS, CNI, SENAI, teses, dissertações, entre
outros. Essas fontes proporcionaram a descrição da indústria do couro, além de
fornecerem as perspectivas de desenvolvimento para o setor.
Não obstante a força das fontes documentais e bibliográficas para a estruturação
deste trabalho, considerou-se o papel e a utilização das entrevistas, como
fundamental e importante ingrediente na análise.
Quanto às entrevistas, autores como Yin (1991) e Gil (1993) dizem que elas são
uma das mais importantes fontes de informação nos estudos de caso. A entrevista,
enquanto técnica de coleta de dados, é muito adequada na obtenção de
informações sobre o que as pessoas conhecem, sentem, realizam ou pretendem
realizar, assim como suas explicações sobre os acontecimentos precedentes.
De acordo com Kopittke (1997), o elemento central e básico para efetuar a
análise de filière, em um nível mais detalhado no Brasil, é a realização de enquetes
industriais. As razões dessa convicção são que existe no Brasil, como em qualquer
país não pertencente ao primeiro mundo, uma dificuldade em localizar fontes de
dados e uma falta de informações por parte dos órgãos encarregados. E ainda a
análise de filière necessita de uma análise do comportamento dos atores chaves do
setor analisado; para efetuar esta análise é importante o contato com estes atores.
Portanto, a realização de enquetes industriais foi o elemento chave para
aprofundar os estudos sobre um setor. Na seqüência apresenta-se as características
que a enquete teve para possibilitar uma análise orientada para análise estratégica.
Optou-se pela amostra intencional, onde a escolha da amostra de empresas
contemplou, além das empresas mais dinâmicas do setor, também as empresas
tecnologicamente ativas sobre o setor (normalmente pertencentes aos setores
auxiliares). A preocupação com a significância estatística da amostra não tem
sentido neste caso. Além de empresas, também foram entrevistados experts do
setor e visitados sindicatos e centros de pesquisa envolvidos com o setor.
55
A escolha das empresas mais dinâmicas do setor, e não de uma amostra
aleatória e eventualmente mais representativa, se deve ao fato que o objetivo do
estudo é de identificar as tendências futuras e não coletar dados estatísticos. A visita
às empresas de menor desempenho foi o ponto de partida para a enquete.
Assim, para o desenvolvimento da pesquisa de campo, foram entrevistados os
dirigentes de 5 curtumes, 5 fábricas de calçados e acessórios, 2 frigoríficos, 2
fabricantes de insumos e componentes, 2 agências exportadoras, e 2 centrais de
resíduos. Ainda foram entrevistadas pessoas ligadas as entidades e instituições do
setor – AICSUL, ABQTIC, ASSINTECAL, ABICALÇADOS, ABRAMEQ, ABECA,
CTC, CTCCA. Ainda, com a finalidade de potencializar a triangulação, foi
entrevistado um expert de cada área afim (produção, comércio exterior, resíduos),
além de um técnico que trabalha no exterior e um historiador.
Os pontos chaves abordados nas entrevistas e que foram adaptados a cada
situação foram os seguintes:
- o interesse e a postura em relação à inovação, à questão ambiental, os
mercados e a vocação da empresa;
- os fatores críticos no sucesso de uma empresa do setor;
- o nome dos experts do setor e a contratação de serviços técnicos;
- dados sobre a estrutura de custos, vendas e produção;
- evolução da empresa e planos para o futuro;
- poder da empresa para agir estrategicamente face:
- aos mercados de produtos intermediários e acabados;
- aos fornecedores de equipamentos;
- aos fornecedores de matéria prima e insumos;
- aos órgãos governamentais.
Logo, para o desenvolvimento dessa pesquisa, foram realizadas entrevistas
semi-estruturadas. Em anexo apresenta-se o roteiro de entrevista genérico e
simplificado. Esse tipo de entrevista é assim chamado porque se desenrola a partir
de um esquema básico, porém não aplicado rigidamente, permitindo que o
entrevistador faça as necessárias adaptações. Ou seja, apresenta um certo grau de
estruturação e se guia através de pontos que irão explorar o conhecimento do
entrevistado sobre o tema abordado.
56
Portanto, ao lado das questões sobre custos e produção, há questões abertas
sobre o setor e suas perspectivas. Tratou-se de uma enquete-análise feita com os
dirigentes empresariais na qual existiu também uma preocupação com a obtenção
de alguns dados técnicos e econômicos.
Outro aspecto importante, é que a entrevista levou em conta aspectos técnicos
(leitura técnica), econômicos (leitura econômica) e ambientais englobando todo o
setor, desde as matérias primas até os mercados de produtos acabados. Por essa
razão, deverá se ter conhecimentos técnicos sobre o setor estudado. O entrevistado
fornecerá mais informações e participará mais espontaneamente, caso seu
interlocutor já tenha conhecimentos sobre o setor, e possa também fornecer
informações interessantes.
De acordo com Kopittke (1997), as entrevistas com as empresas deverão ser
iniciadas com as de menor expressão, deixando-se as entrevistas mais
interessantes para o final, pois não convém “queimar” estas fazendo entrevistas com
pouco preparo. Visto que, os dirigentes de empresa só dispõe de uma hora para
atividades desse tipo e não convém desperdiçar uma oportunidade com uma
entrevista que não seja um sucesso. Assim, essa pesquisa procedeu-se utilizando
esse protocolo.
Ao final da enquete dispôs-se de dados técnicos e de custos que permitiram uma
rápida compreensão do setor. Não se trata de dados detalhados mas dos dados
fundamentais que sendo carregados de poder explicativo permitiram fazer
comparações interessantes. Os dados chaves de um setor dependem de aspectos
técnicos e econômicos e por isto variam de setor para setor. Um dos aspectos mais
importantes para a determinação de quais os dados mais importantes para o setor é
a tecnologia de produção dominante no setor.
A análise dos dados qualitativos é um processo criativo que demanda rigor
intelectual, uma grande quantidade de dificuldades e um trabalho muito cuidadoso,
pois as diferentes pessoas dirigem sua criatividade, seu esforço intelectual e seu
trabalho e modos diferentes, não existindo apenas uma forma correta para
organizar, analisar e interpretar dados qualitativos.
57
Para efeito de validade da coleta e análise de dados, foi utilizada a técnica da
triangulação, que permite a utilização de múltiplas fontes de dados, e a permutação
dos resultados, tanto entre os entrevistados como com uma terceira pessoa sem
vinculação com as empresas entrevistadas. Pois parte de princípios que sustentam
que é impossível conceber a existência isolada de um fenômeno social sem raízes
históricas, sem significados culturais e sem vinculações estreitas e essenciais com
uma macrorealidade social. Portanto, a técnica da triangulação abrange a máxima
amplitude na descrição, explicação e compreensão do foco em estudo
Com base em Minayo (1992), pode-se apontar três finalidades, as quais são
complementares, para essa etapa: estabelecer uma compreensão dos dados
coletados, confirmar ou não os pressupostos da pesquisa e/ou responder às
questões formuladas, e ampliar o conhecimento sobre o assunto pesquisado,
articulando-o ao contexto cultural do qual faz parte.
4.3 Limitações do estudo
Independente da natureza do estudo, seja ele quantitativo ou qualitativo, do
referencial teórico escolhido e dos procedimentos metodológicos utilizados, o
mesmo apresenta limitações e essas devem ser esclarecidas como forma de
favorecer discussões sobre o que se está estudando. As limitações do estudo
detectadas foram as seguintes:
a) quanto à delimitação do problema e à generalização dos resultados.
Esse estudo procurou verificar a relação entre a variável ambiental e o setor
couro do Estado do Rio Grande do Sul. Dessa forma, os resultados desse estudo
não permitem similaridades com outros setores existentes no Rio Grande do Sul, em
função das forças e transformações que produziram a dinâmica das relações
existentes.
b) quanto à perspectiva, às técnicas de coleta e de tratamento dos dados
Os dados obtidos através das entrevistas nem sempre retratam a realidade, já
que dados obtidos por depoimentos são voláteis, pois decorrem das percepções dos
pesquisados. A percepção muda com o transcorrer do tempo, podendo distorcer a
realidade ou o fenômeno que se está investigando.
58
c) quanto aos aspectos externos
O setor escolhido para o estudo empírico, é bastante complexo e atravessou
momentos de redução da capacidade produtiva, dentre outros aspectos, inerentes a
uma série de fatores conjunturais e estruturais. No momento o setor está saindo
desse período negativo e está segundo os dirigentes das entidades em franca
recuperação visando sua reintegração em posições de liderança. Tal fato pode levar
a uma visão míope por conta do euforismo por parte dos entrevistados.
5 A FILIÈRE COURO
Nesse capítulo será estruturada a filière couro para o Estado do Rio Grande do
Sul. Após a apresentação das características do setor, proceder-se-á a análise da
evolução histórica e a seguir serão realizadas as leituras técnicas e econômicas do
setor com ênfase na questão ambiental. Ainda serão feitas considerações sobre o
mercado interno e externo do setor. Para que a aproximação da realidade seja mais
efetiva nessa estruturação serão utilizados dados primários e dados secundários
obtidos de entrevistas com os dirigentes do setor.
Características do setor couro
Pode-se dividir as atividades industriais dentro da filière estudada em três
grandes grupos, conforme pode ser observado na figura 7:
• Indústria do couro, que engloba as indústrias ligadas à valorização do couro:
pecuária, abatedouros, frigoríficos, curtumes, fábricas de insumos químicos, de
equipamentos;
• Indústria de calçados, artefatos, vestuário e estofados, que engloba as indústrias
ligadas à valorização desses produtos, assim como fábricas de componentes,
insumos químicos, máquinas e equipamentos;
• Rede de distribuição, que engloba as atividades ligadas à distribuição do couro e
de seus produtos manufaturados: agentes exportadores e importadores,
atacadistas e distribuidores domésticos, redes de lojas dos fabricantes, lojas de
departamento e especializadas.
60
Figura 7: Diagrama da filière principal e auxiliar da filière couro
Fonte: Adaptado de Kopittke, 1985
Pecuária
ProcessamentoCurtumes
TransformaçãoManufaturaCalçadosVestuário
Estofamento
AgentesExportadores/Importadores
DistribuidoresDomeésticos
Consumidores
Mercado de Consumo
deCarne
ProdutosVeterinários e
Agrícolas
Equipamentos
EfluentesResíduos Sólidos
Equipamentos paraprocessamento
Insumos químicos
Efluentesresíduos sólidos
emissões
Biotecnologia
Equipamentos paratransformação
Insumos químicos
Resíduos sólidos
Componentes
Embalagens
Resíduos sólidos
Resíduos sólidos
Biotecnologia
Equipamentos Insumos Tecnologias limpas Outros
Bancos
Tecnologia
Órgãosreguladores
Órgãosfinanciadores
Transporte
Publicidade
Moda
Atividadesterciárias Filière Couro
Filières tecnologicamente ligadas
61
As raízes e o desenvolvimento do setor couro no Brasil, remontam a
circunstâncias históricas, tendo início no século passado, no Rio Grande do Sul, com
o surgimento e o fortalecimento de muitos curtumes implantados por imigrantes
alemães e italianos, que aproveitavam a grande disponibilidade de peles vacuns
oriundas, primeiramente das charqueadas e, mais tarde, dos frigoríficos. O processo
de curtimento, que começou de maneira rudimentar, aperfeiçoou-se graças ao
aporte de tecnologia e equipamentos da Europa, permitindo já após o fim da 1ª
Grande Guerra, o início da exportação de couros (BNDES, 1999). A maior
concentração de curtumes ocorreu na região do Vale dos Sinos (RS). Outra região
que se destacou com a atividade curtidora foi a cidade de Franca (SP) a 400 km ao
norte da capital São Paulo.
Foi com a 1ª Grande Guerra que o movimento de exportação da indústria de
calçados teve início, mas somente na 2ª Guerra Mundial se expandiu, fornecendo
coturnos para os exércitos brasileiro e venezuelano. O comércio de calçados com os
Estados Unidos só teve início no final da década de 60, apoiado no cluster industrial
já existente no Estado do Rio Grande do Sul, mais especificamente na Região do
Vale do Rio dos Sinos e, em menor escala, no cluster de Franca. A região do Vale
do Rio dos Sinos (RS) se especializara em calçados femininos de couro, enquanto
Franca (SP) se destacava pelos calçados masculinos.
A partir do início dos anos 80, foram se acentuando, com mais força, o
dinamismo tecnológico e competitivo de aglomerações industriais localizadas em
regiões específicas. Essas aglomerações denominadas cluster possuem um forte
poder de inovação, seja tecnológico ou mesmo organizacional.
De acordo com Porter (1999), “os clusters, (grupos, agrupamentos ou
aglomerados) são concentrações geográficas de empresas de determinado setor de
atividade e companhias correlatas.” Essas companhias podem ser, por exemplo,
fornecedores de insumos especiais – químicos, componentes, máquinas, serviços –
ou provedores de infra-estrutura especializada. Muitas vezes os clusters também se
expandem em direção aos canais de distribuição e clientes e marginalmente em
direção aos fabricantes de produtos complementares e empresas de setores afins.
Muitos clusters incluem ainda instituições, governamentais ou não, como
universidades, entidades normativas e associações comerciais. Essas instituições
oferecem treinamento, informação, pesquisa e apoio técnico.
62
No setor couro do Brasil que está organizado em aglomerações regionais,
destaca-se o pólo coureiro-calçadista da região do Vale do Rio dos Sinos no Estado
do Rio Grande do Sul, como detentor de várias características de um cluster. Pois
encontram-se no mesmo empresas fornecedoras de insumos químicos para a
indústria curtidora, fornecedoras de máquinas, equipamentos e componentes para a
indústria coureiro-calçadista, atividades comerciais e de exportação. No campo da
pesquisa e da tecnologia, encontram-se as mais antigas e tradicionais instituições,
escolas e centros de formação do país ligadas ao setor. Entre elas, destacam-se o
Centro Tecnológico do Couro, Calçados e Afins, que desenvolve pesquisas e
projetos para o complexo calçadista, funcionando como suporte para a implantação
de novas técnicas e sistemas. Por sua vez, as Escolas Técnicas de Curtimento e do
Calçado, ambas vinculadas ao SENAI, formam profissionais de nível médio; a
Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha atua na formação de
técnicos em química e mecânica; e a FEEVALE, instalada em Novo Hamburgo,
possui cursos regulares ao nível de graduação e de especialização nas áreas de
tecnologia e estilismo.
Os clusters são uma forma alternativa de organização da cadeia de valor.
Comparada com as transações de mercado entre compradores e vendedores
dispersos e heterogêneos, a proximidade física de empresas e instituições, assim
como as sucessivas trocas entre elas, facilita a coordenação e amplia a confiança.
A concentração geográfica permite às empresas operarem mais produtivamente
na busca de insumos, tais como, mão de obra especializada e fornecedores de
máquinas e componentes, além de facilitar o acesso à informação e tecnologia.
“Os clusters promovem tanto a concorrência quanto a cooperação. Os
concorrentes competem intensamente para vencer e reter seus clientes, e
sem isso nenhum cluster poderia ter sucesso. Mas a cooperação também está
presente, em grande parte verticalizada, envolvendo empresas de setores
afins e instituições locais. A concorrência convive com a cooperação, pois as
duas ocorrem em dimensões diferentes e entre participantes distintos. Porter
(1999)”
63
Dessa forma, as empresas continuam competindo no mesmo mercado, mas
cooperam em aspectos que trazem ganhos mútuos. Essa afirmação de Porter
(1999), foi confirmada pelos entrevistados que citaram como exemplo, a participação
em feiras e os consórcios de exportação q ue estão contribuindo para a boa
imagem dos fabricantes brasileiros.
Os clusters em geral aumentam a produtividade, direcionam a trajetória da
inovação e estimulam a formação de novos negócios. Um cluster possibilita a cada
membro se beneficiar como se possuísse grande escala ou como se fosse
formalmente associado a outros, sem sacrificar sua flexibilidade.
O complexo coureiro-calçadista é de extrema importância na economia brasileira,
tanto pelo volume de exportações como pela geração de empregos. O Brasil possui
o maior rebanho bovino comercializável do mundo (aproximadamente 165 milhões
de cabeças – tabela 1) com uma taxa de desfrute em torno de 18 % ou 30 milhões
de cabeças, significando o segundo maior abate mundial13. O Brasil também possui
um dos maiores parques produtivos em frigoríficos e curtumes.
Tabela 1: Bovinocultura de corte – produção, exportação
Brasil 1995 1996 1997 1998 1999 Rebanho total (mil cab.) 161.228 158.288 161.416 .... ..... Abate inspecionado (mil cab.)
17.056 18.9191 14.886 14.906 16.707
Produção tot.carne bovina (mil ton.Eq.Carc.)
5.814 5.982 6.402 .... ....
Produção inspecionada de couros (mil un.)
21.359 24.334 23.038 .... 25.461
Exportações de couros e peles (ton.)
155.073 208.760 216.493 277.002 204.706
Fonte: Ministério da Agricultura
O complexo industrial coureiro-caçadista é composto por 4.940 empresas, sendo
700 curtumes, 4.000 indústrias de calçados e artefatos, 300 empresas de
componentes e 140 indústrias de máquinas e equipamentos. Nas variáveis geração
de emprego e crescimento econômico, o setor ocupa o quarto lugar, com um
faturamento anual de US$ 9,5 bilhões, representando 2% do PIB nacional (tabela 3)
e sendo responsável pela geração de aproximadamente 800 mil empregos diretos e
indiretos (Gostinski, 1997).
13 Os EUA abatem entre 35 a 37 milhões de bovinos/ano.
64
O Brasil também está entre o cinco maiores produtores e exportadores de
calçados do mundo, ao lado da China, Indonésia e Itália.
Tabela 2: Maiores Produtores Mundiais de Calçados (em milhões de pares)
1998 % 2000 % China 5.520 50,3 5.200 42,9 Índia 685 6,2 1.050 8,7 Brasil 516 4,7 570 4,7 Itália 424 3,9 485 4,0 Vietnã 213 1,9 450 3,7 Turquia 277 2,5 440 3,6 Indonésia 316 2,9 290 2,4 Tailândia 260 2,4 250 2,1 México 270 2,5 290 2,4 Paquistão 227 2,1 245 2,0 Espanha 221 2,0 235 1,9 USA 165 1,5 200 1,6 Outros 1.884 17,2 2.420 20,0 Total 10.978,6 100,0 12.125 100,0
Fonte: 1998 >Abicalçados e 2000>World Footwear - Estimativa
O Rio Grande do Sul contribui com uma parcela significativa das exportações
brasileiras de couro, sendo responsável por aproximadamente 85% do volume total
de calçados exportados pelo país (figura 8) e por aproximadamente 40% do volume
total de couro exportado (figura 9).
Ainda pode-se dizer que o setor couro possui importante efeito multiplicador
sobre os setores produtores de plásticos, metais, químico, metal-mecânico, eletro-
eletrônico e outros.
O processo de globalização iniciado nos Estados Unidos e na Inglaterra, a queda
do muro de Berlin e a aproximação entre Estados Unidos e China, trouxeram
reflexos extraordinários para a indústria e o comércio internacionais. Cita-se a
industrialização e compra dos produtos fabricados na China, tais como calçados e
artefatos, pois couro e calçados sempre foram produzidos onde existe mão-de-obra
farta e barata, além de interesse estratégico.
65
Figura 8: Exportações de calçados por estado do Brasil - 1999
Fonte: ABICALÇADOS/MDIC/SECEX
Figura 9: Exportações de couro do Brasil por estado - 1999
Fonte: AICSUL/MDIC/SECEX
Como conseqüência fatores conjunturais associados aos demais aspectos
macroeconômicos, somados à forte competitividade desestabilizaram os mercados
interno e externo provocando quedas sucessivas nos volumes de negócios do setor
acarretando uma série de dificuldades para as empresas. Nesse caminho
desapareceram muitas indústrias tradicionais de grande nome e prestígio e
empresas de comportamento ético exemplar que não estavam preparadas para
enfrentar a situação.
Rio Grande do Sul40%
São Paulo23%
Paraná11%
Minas Gerais
6%
Ceará4%
Bahia3%
Santa Catarina
2%
Outros estados
11%
S ã o P a u lo7 %
R io G ra n d e d o S u l
8 5 %
O u t ro s1 %
P a ra íb a1 %C e a rá
6 %
66
Do ponto de vista interno da economia, podem ser identificados como principais
fatores, as desigualdades tarifárias, onde há distintas tarifas de exportação e
importação de couro em vários estágios de produção e mecanismos de drawback,
resultando em exportação de produtos de baixo valor agregado dos produtos e
gerando falta de matéria-prima para a indústria local de calçados e artefatos.
De acordo com ABQTIC (1998), são quase 500 empresas envolvidas no
beneficiamento de couros para a exportação, onde a grande maioria sobrevive no
estágio wet-blue, ou seja, pele apenas curtida. Trata-se de um material de baixo
valor agregado, que representou quase 70% do total de 14,87 milhões de peças que
deixaram as fronteiras brasileiras em 1999. Agora, parte-se para o desafio de
aumentar a participação dos tipos crust (semi-elaborado) e acabado (já pronto para
confecção) que, no mesmo período, somaram 2,21 milhões e 2,03 milhões de peças,
respectivamente. Já o volume de couro salgado, fase mais primária do curtimento,
foi de 310 mil unidades.
Figura 10: Exportação de couro por tipo – Brasil 1999
Fonte: AICSUL/MDIC/SECEX
Outra dificuldade enfrentada pelo setor é a baixa inovação tecnológica que inicia
na pecuária. Apesar do grande número de abates, os mesmos apresentam
indicadores de baixa qualidade em relação às peles produzidas, gerando
desperdícios de matéria-prima, mão-de-obra e energia e gerando resíduos. Segundo
ABQTIC (1998), 15% dos couros são de primeira, 40% são de segunda, 30% são de
terceira e 15% são de refugos. O Estado de Mato Grosso do Sul, detentor do maior
rebanho de corte do país produz apenas 10% de couro de primeira categoria. O
couro pesa entre 7 e 7,5% do peso vivo do animal e, independente de sua
Peles Salgadas
2,08%
Couros Wet Blue69,40%
Couros Semi -
Acabados14,86%
Couros Acabados13,65%
67
qualidade, tem o valor comercial estimado em 6 a 10% do valor do animal em pé.
Um entrevistado manifestou-se assim:
“Há 10 anos atrás eu só trabalhava com couro gaúcho, mas ele foi ficando
caro, porque a grande maioria é direcionada para estofamentos e em termos
de flor é inferior. Daí fui obrigado a procurar outras opções e comecei a subir,
Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul, Goiás e fui experimentado . . .
experimentando e hoje só compro couro de São Paulo.”
Durante a última década, o setor de curtume remunerou o couro cru brasileiro por
50% do valor recebido pelos produtores norte-americanos. Tal fato ocorre porque
5% dos couros norte-americanos apresentam os defeitos apresentados por 93% dos
couros brasileiros, tais como:
- marcas de fogo em áreas nobres do couro;
- riscos provocados por cercas de arame farpado, farpas de madeira e
outros;
- degradações causadas por ectoparasitas (berne, carrapatos, sarnas);
- esfolas precárias, causando furos e cortes;
- má conservação das peles após o abate.
Nos curtumes há defasagem de processos produtivos, baixo grau de integração
com os demais agentes da cadeia, e baixa tecnologia. Associados aos problemas
relativos a tecnologia, existem ainda problemas logísticos, devido ao deslocamento
da produção agropecuária do Rio Grande do Sul em direção às regiões Sudeste e
Centro-oeste do país. Esse fato foi reforçado pelos entrevistados que informaram
que estão montando unidades no Centro-Oeste.
Do ponto de vista externo da economia, o principal fator pode ser identificado
como o crescimento da concorrência asiática, que ultimamente vem absorvendo
parcela significativa do mercado brasileiro de calçados no exterior, principalmente
nos Estados Unidos. A China que responde por 50% do volume das exportações
mundiais de calçados e possui participação de 55% no mercado norte-americano de
calçado, representa o maior exportador individual em volume para os EUA, em
contraste, os mesmos índices para o Brasil situam-se em torno de 5-6%.
68
A China vem paulatinamente melhorando a qualidade do seu calçado e
competindo com o produto brasileiro. O preço médio do calçado chinês atinge US$ 7
FOB. A tendência do preço médio do calçado exportado pelo Brasil – hoje, na faixa
de US$ 10 / par – é de declínio.
Os principais problemas apontados pelos distribuidores que sub-contratam a
produção chinesa são: descumprimento dos prazos de entrega, insegurança do
recebimento, além do acirramento das pressões humanitárias contra as
subcondições de trabalho na China. Esses fatos foram confirmados por um
entrevistado, grande exportador de calçados. Dois outros fortes concorrentes do Brasil no mercado internacional, Itália e
Espanha, em geral, terceirizam sua produção de calçados em países de mão-de-
obra mais barata, em particular, os países do leste Europeu. Ambos os países
procuram divulgar suas marcas próprias nos grandes eventos internacionais do
setor. O Brasil tem postura mais passiva: a maior parte das nossas exportações são
efetuadas sob-encomenda, ou seja, o distribuidor norte-americano encomenda a
produção de modelos previamente fornecidos. Não obstante, as empresas nacionais
estão capacitadas a desenvolverem toda a modelagem do calçado a partir do
protótipo, ainda que não façam seus próprios lançamentos.
5.2 Histórico dos principais agentes da filière
5.2.1 Tradição pecuária do Rio Grande do Sul
De acordo com Schmidt (2001), o gado foi introduzido no Rio Grande do Sul
pelos jesuítas, em 1634 pelo Pe. Cristóvão de Mendoza, nascido em 1590, em
Santa Cruz de La Sierra, e que na época pertencia ao Vice-Reino do Peru, quem
trouxe a primeira tropa para as missões jesuíticas do Uruguai e do Tape. Eram tão
bons e fartos os pastos, que a gadaria, criada solta, multiplicou-se
espontaneamente. E nunca mais os campos foram os mesmos.
Segundo Simões Lopes Neto, "foram os índios os primeiros a aproveitarem-se
dos méritos dos novos animais, mudando completamente o seu modo de viver; O
indígena fez-se carnívoro por necessidade e cavaleiro por imitação". Saíram então
os indígenas das sombras das matas para os descampados. Das marchas a pé
passaram para as cavalgadas. Da agricultura para a pecuária (Dziekaniak, 1998).
69
Vê-se aí a importância do cavalo como instrumento de trabalho, e do gado como
fonte de riqueza e de subsistência. Por isto, quando os primeiros portugueses
desceram de Minas e São Paulo, para arrebanhar o gado domesticado das Missões,
vieram a aprender as lides campeiras com os índios aldeados Tapes, Guaicurus,
Minuanos. Que, por sua vez, as haviam aprendido com os jesuítas espanhóis, que
as herdaram dos árabes durante a ocupação moura.
Mais tarde, como as expedições de rapina fossem muitas, e o consumo garantido
na zona de mineração, os paulistas e mineiros começaram a deixar no Rio Grande
do Sul “gente arranchada14” cuidando de arrebanhar o gado bravio e providenciar a
engorda para fazer uma entrega rápida e garantida. Foram os primeiros
invernadores. Alguns foram ficando, se estabeleceram e criaram raízes. O gado era
seu trabalho, seu negócio, sua subsistência. Do gado tiravam, principalmente, o
couro, que era preciosíssimo.
Segundo Dziekaniak (1998), Moisés Vellinho, em sua obra sobre a formação
histórica do Rio Grande do Sul, Capitania d'El - Rei, ressalta os campos anárquicos
de então:
"Nos descampados cisplatinos como aí, pois tudo eram as mesmas campinas
em que erravam as mesmas manadas sem dono, operavam os campeadores
na faina da courama - índios e gaúchos de procedência vária, predadores
espanhóis e portugueses. Esta população bárbara ou semibárbara, flutuante,
sem destino, assaltava impunemente os rebanhos alçados, e disso vivia"
Na obra de Lugon in Dziekaniak (1998) tem-se uma preciosa descrição de como
eram os campos primitivos e da quantidade assombrosa de gado:
"As estâncias estendiam-se por centenas de hectares. Eram cercadas de
muralhas, de cercas vivas de cactos, de sebes ou valados. Cada estância
estava dividida em vários distritos ou rodeios, contendo cada um cinco a seis
mil cabeças de gado. As estâncias dos guaranis eram as mais belas de todo o
país (...) Cada fazenda tinha a sua capela, seu laranjal e outras árvores
fruteiras, de que ainda se encontram vestígios (...) Todos os estabelecimentos
eram magníficos. Ainda hoje se fala deles. Sua reputação não se extinguirá
tão cedo nessas regiões. Segundo os regulamentos, o pároco ou seu
campañero tinha de visitar as estâncias uma vez por ano, pelo menos. Os
onze grupos principais de estâncias estavam situados ao sul do Uruguai.”
70
O gado compreendia, sobretudo, as espécies bovina e lanígera. Recorda-se que
o Padre Montoya comprara dez mil bois de uma só vez, após a grande migração de
1631, para as duas reduções fundadas com os foragidos do Guaíra. O preço era
ruinoso. Trocava-se “uma faca com um cavalo, um anzol com um vitelo”. Os animais
importados pelos espanhóis tinham-se multiplicado, com efeito, de um modo
prodigioso, nas ricas pradarias do Prata. Todos podiam servir-se à vontade; bastava
ter um cavalo e um laço. Os jovens guaranis de quinze e dezesseis anos eram
capazes de capturar os bois mais possantes. Um grupo montado podia perseguir
toda uma manada até que a fadiga a dominasse e apossar-se dela. Os homens da
redução do Padre Sepp reuniram, assim, cinqüenta mil bois em dois meses. O Padre
Huonder escreveu que uma única redução de importância média possuía em
período normal até cem mil bois (Dziekaniak, 1998).
Bois e ovelhas pastavam em liberdade nos limites da estância. Não havia
estábulos nem manjedouras. Tratava-se exclusivamente de gado de abate, semi-
selvagem. A produção de leite não entrava em linha de conta. Yapeyu e São Miguel
abatiam, em média, quarenta reses por dia para consumo dos habitantes. Era uma
civilização rústica e predominantemente masculina que, literalmente, se nutria da
carne.
Não só pelo gado se interessavam os portugueses que desciam para o sul.
Também os índios aldeados eram vítimas de sua cobiça. Aliados a tribos rivais,
como os tupis, os mamelucos vinham à caça de bois e gentes. Raptavam milhares
de índios civilizados para vendê-los como escravos nas minas.
O engenheiro alemão Maximiliano Beschoren, que veio para o Brasil em 1869,
deixou em sua obra Impressões de Viagem na Província do Rio Grande do Sul -
1875/1877 um relato das escaramuças guerreiras da época.
Quando, pouco tempo depois, espalhou-se nas reduções a notícia de que
novamente havia a iminência de um novo ataque de 800 mamelucos e 4.000 índios
Tupis, foi decidido abandonar as 29 Reduções e seguir para o Sul, a fim de
encontrar maior segurança, organizando novas moradas. O chefe da migração,
Simão Mazeta, os levou numa caminhada de 250 léguas, atravessando selvas, sem
estradas nem atalhos, galgando íngremes montanhas. Terríveis obstáculos tiveram
que ser vencidos. Milhares pereceram na caminhada. Milhares ficaram para trás e
foram mortos pelos inimigos paulistas. Quando finalmente chegaram perto de Santo
14 Termo utilizado para pessoas reunidas em ranchos ou albergues
71
Ignácio Mirim, onde encontraram grandes provisões de carne, milhares sucumbiram
vítimas da disenteria, numa média de 40 homens por dia.
Porém uma abundante colheita e clima saudável, rapidamente, contribuíram para
melhorar a saúde do pequeno número de sobreviventes -12.000 homens, dos
100.000 que iniciaram a caminhada. Com esse relato pode-se observar que, nesta
espécie de bíblica travessia do deserto, movimentaram-se cerca de cem mil
pessoas, que logicamente precisavam ser alimentadas durante esta epopéia.
Tão povoados de gado estavam os campos, que era comum, até meados do
século passado, uma espécie de caça predatória ao gado xucro15. Quem precisava
de carne simplesmente laçava, abatia e carneava o gado bravio que estivesse mais
à mão. Retirava a parte de carne que pudesse consumir ainda fresca, um outro tanto
que pudesse salgar, se fosse o caso, e o mais ficava abandonado no campo. Assim,
de um boi inteiro muitas vezes apenas um quarto era aproveitado.
As vastas pradarias, o clima propício, a abundância de águas, a adaptação das
raças, tudo contribuiu para disseminar o gado desde os campos de Curitiba até à
outra margem do rio da Prata.
Um visitante francês chamado Arséne Isabelle, um dos tantos que visitaram o
Estado, misto de naturalista e aventureiro, bem deixou registrada a abundância de
gado vacum nos campos sulinos:
"E como a ambição dos estanceiros consiste em possuir grandes rebanhos de
cinco, dez, trinta mil cabeças de gado, resulta que procuram maior extensão
possível de campo".
Outro contemporâneo, Nicolau Dreys, registra também que se matavam nas
charqueadas do Rio Grande do Sul cerca de 400.000 cabeças por ano, o que é um
número espantosamente alto para a época e para as condições.
Descendentes diretos deste gado introduzido pelos jesuítas talvez se encontrem
somente no estreito de Pernambuco, região entre a lagoa dos Patos e o oceano
Atlântico, entre os municípios de Mostarda e São José do Norte.
15 Denominação dada ao animal bravo ou ainda não domesticado
72
Segundo Dziekaniak (1998), quem viajar por esta região, tão antiga e ainda tão
isolada, se surpreenderá ao ver este gado crioulo, fruto de cruzas espontâneas. O
prof. Heinrich Bunse, em seu estudo São José do Norte, Aspectos Lingüísticos e
Etnográficos do Antigo Município, escreve que ali o gado só foi introduzido após o
ano de 1700. Talvez esteja ali um último repositório genético do primitivo gado
missioneiro.
5.2.2 A produção da carne
Na tradição das fazendas gaúchas, o animal abatido para o consumo é a ovelha.
Por seu menor porte, fecundidade, rapidez de crescimento, a ovelha é o animal da
subsistência. Com um capão - macho castrado - abatido a cada dois dias mais ou
menos, o fazendeiro garantia a alimentação da família e empregados. As partes
mais nobres iam para a cozinha, incluindo aí os pernís, de onde tiravam os bifes. As
partes com osso eram para os peões, empregados e agregados da fazenda. Nos
galpões de terra batida ou à sombra das copas das figueiras, os primitivos gaúchos
aprimoravam o gosto pela carne de ovelha. Nas grandes estâncias o gado vacum
era abatido para consumo uma vez por mês, conforme o número de familiares e
agregados.
Segundo a tradição, o gado era abatido na véspera, isto é, a tarde, para ser
consumido no outro dia. Com isto, a carne passava a noite “amadurecendo”. Como a
carne do animal recém-abatido é mais dura, esta noite de espera contribuía para
amaciar.
Coureada a rês, tirava-se primeiro o matambre. Enquanto prosseguiam os
trabalhos, o matambre era assado e cumpria sua função de "mata-fome". Seguia-se
a divisão das carnes. Para a cozinha do fazendeiro iam as partes mais nobres: o filé
mignon, o contrafilé, o lagarto, a alcatra, a picanha. Algumas partes do dianteiro
eram reservadas para os cozidos ou fervidos: agulha, carne do peito, etc. Outras
partes eram aproveitadas como carne de panela, guisado. O rabo dava origem à
tradicional rabada com batatas ou aipim e, mais tarde, herança portuguesa, com
polenta. O mondongo era usado para a dobradinha, com batatas. Enriquecidas com
feijão branco, lingüiça, temperos, as patas do boi, tirado o visgo, transformam-se no
famoso mocotó. As partes que não tinham aproveitamento na hora eram salgadas e
transformadas em charque. A costela ia para os peões, os trabalhadores agregados
73
à fazenda. Com esta costela, desprezada pela casa-grande, e com o sal grosso que
estava à disposição do gado, começava-se o churrasco.
5.2.3 Histórico da industrialização da filière
A transformação de produtos do setor primário caracterizou os primórdios da
industrialização no Estado do Rio Grande do Sul, com a produção de tecidos, lãs,
couros, vestuário, calçados, fumo e produtos alimentares.
Desde a implantação da atividade pecuária no século XVIII, o gado existente no
Rio Grande do Sul era abatido, principalmente, para o aproveitamento das peles e
sua exportação, visto que não havia mercado consumidor para tão grande
quantidade de carne, (BNDES, 1999).
Com o início da fabricação de charque, a participação do couro, no conjunto das
atividades decorrentes do abate de gado, decresceu, em termos de valor, entretanto
sua produção continuou crescendo em virtude do desenvolvimento da pecuária.
Em conseqüência da limitação do mercado interno, cresceu a importância da
função do exportador, no sentido de colocar o excedente nos mercados externos
aos preços então vigentes. Os preços internos. por sua vez, eram influenciados por
aqueles formados no mercado internacional.
Por volta de 1910, com a implantação dos primeiros frigoríficos, iniciou-se o
aproveitamento mais racional das peles, desenvolvendo-se então, o seu
processamento em caráter industrial (BNDES, 1999).
Embora a arte de curtir o couro seja muito antiga, só recentemente. as técnicas
relacionadas a esse processo sofreram um desenvolvimento significativo. No século
VIII, os árabes vieram para a Europa e introduziram na região a arte de curtir as
peles empregando extratos vegetais. Como bons professores, ensinaram a
fabricação de muitos artigos de couro. Mas apenas no século XVIII, ou seja, 1000
anos depois, é que foi instalado o primeiro curtume na Europa e o setor foi se
consolidar, realmente, somente no século XIX. Até então o trabalho era feito à mão e
os segredos do curtimento passavam, através de gerações, de pais para filhos
(Belavsky, 1965).
Os primitivos processos de curtimento estavam baseados na observação e
experiência. O uso de determinados materiais era uma conseqüência direta da
prática dos curtidores. A ciência iniciou a pesquisa para o setor por volta do ano
74
1800 quando estudou a ação do tanino16, como curtente. Nessa mesma época foram
introduzidas as máquinas nos curtumes, abolindo assim a maior parte das
operações manuais e proporcionando o aperfeiçoamento das técnicas. E assim, o
setor foi se consolidando e aperfeiçoando técnicas de curtimento, mas sempre com
uma característica mais de empresa familiar, sem muito investimento em pesquisa.
No Brasil, a indústria de couros e calçados começa com a imigração, promovida
por Dom Pedro II, dos artesãos italianos para a Região de Franca - SP e dos
artesãos alemães para a Região do Vale do Rio dos Sinos - RS, em 1824. O
primeiro curtume que se tem notícia foi fundado nas proximidades de Porto Alegre
por um técnico francês chamado Gavet, em 1820 (Brenner, 1990). Já segundo a
ABAEX (1993) o primeiro curtume da região foi fundado por um alemão chamado
Luís Rau, na década de 20 do século XIX.
A indústria de couro prosperou rapidamente na região do Vale do Rio dos Sinos,
em virtude da quase ausência de artefatos de couro no mercado. Para se ter uma
idéia, o europeu que chegasse ao Rio de Janeiro em 1816, notaria que 85% da
população andava descalça e que as senhoras da época usavam sapatos de seda
que não duravam mais que dois dias (Debret in Brenner, 1990). Quatro anos após a
chegada dos imigrantes já haviam dez curtumes produzindo e em 1858 já havia uma
rua só de curtumes em Novo Hamburgo, fato que marca a primeira aglomeração
industrial no setor de couros no RS (ABAEX, 1993). Junto com a agricultura de
subsistência, os curtumes e o artesanato de couro constituíam os eixos da atividade
econômica da região.
No início do desenvolvimento dos curtumes, as peles eram tratadas de maneira
rudimentar, em barris de madeira. As vendas de couros secos e salgados, para
mercados como o sudeste do país, Europa e Estados Unidos, alcançaram 2,5
milhões de unidades em 1884. Além disso, a implantação de uma ferrovia ligando
Porto Alegre a São Leopoldo, em 1874, e o prolongamento para Novo Hamburgo,
em 1876, facilita o escoamento da produção entre o principal centro consumidor e
distribuidor e o principal centro produtor (Brenner, l990). Segundo um entrevistado,
parafraseando o avô, ainda no começo do século, podia-se observar esses
procedimentos na maioria dos curtumes do estado do Rio Grande do Sul.
A importância econômica dos curtumes no início do século XX era muito superior
a dos calçados. Somente em meados dos anos cinqüenta essa posição se iguala,
16 Extrato vegetal de árvores como a acácia negra
75
conseqüência do desenvolvimento da indústria calçadista. Finalmente, em 1962 a
situação se inverte e os calçados passam a ser mais importantes economicamente
que a indústria de couros (Carneiro in Gomes, 1993). A partir daí, a indústria do
couro continua o seu desenvolvimento atrelada como matéria-prima, passando a
agregar mais valor como calçado.
De acordo com Santos (1992), em 1858 existiam, no vale, 32 curtumes que
confeccionavam lombilhos17, rédeas e outras peças de montaria. Os registros
históricos demonstram que a indústria calçadista da região se originou da indústria
curtumeira, já que foi a partir das primeiras oficinas de curtume que surgiram as
primeiras fábricas. Assim, os primeiros calçados foram fabricados a partir do
excedente da matéria-prima, ou seja, das aparas de couro.
“Nessa época, os artesãos começaram a aproveitar o material que sobrava, e
iniciaram a fabricação de chinelos, botas e sapatos, produtos que eram
vendidos no comércio local. Um dos maiores comerciantes de chinelos da
região foi Augusto Jung, que exerceu a atividade no final do século passado.
Segundo dados da Associação Comercial, Industrial e de Serviços de Novo
Hamburgo (ACI-NH), ele foi proprietário de um curtume e de uma fábrica de
arreios e também ocupava cerca de 10 famílias na fábrica de chinelos. ”
(Santos, 1992)
A escassez de calçados para o uso diário induziu a abertura das primeiras
sapatarias, pelos imigrantes, no século XIX, primeiramente para consumo próprio e
mais tarde para a venda. Esses calçados caracterizavam-se por serem sandálias, ou
botas, ambos com solas fixadas por pregos de madeira de laranjeira. Essas botas
foram o primeiro calçado amplamente vendido pelas sapatarias da região e eram
usados principalmente por vaqueiros.
No início a produção era caseira, mas, a partir da Guerra do Paraguai (de 1864 a
1870), a indústria de calçados tomou força. Durante a campanha militar, os
calçadistas aumentaram consideravelmente sua produção, sendo obrigados a
procurar novos mercados. Esse fato, aliado à queda da demanda pelos produtos de
montaria, em função da crescente urbanização das cidades, contribuiu
significativamente para o desenvolvimento dos curtumes e das fábricas, que
passavam por um processo de industrialização (com o surgimento de algumas
17 conjunto para montaria que substituía a sela comum
76
máquinas), enquanto que a fabricação de artigos de montaria ainda operava em
moldes artesanais.
A atividade artesanal, na produção de calçados, permaneceu até o final do século
XIX. O impulso decisivo para o crescimento da emergente indústria calçadista
aconteceu em 1888, com a criação da primeira fábrica de calçados propriamente
dita: a Pedro Adams Filho & Cia Ltda, de Pedro Adams Filho, proprietário de um
curtume e fábrica de arreios. O senhor Adams construiria, em 1901, um prédio de
alvenaria na cidade, que mais tarde passaria por sucessivos aumentos. Na figura 11,
pode-se observar os funcionários que trabalhavam nessa fábrica, provavelmente por
volta de 1911. O mercado consumidor dos produtos da fábrica já era, então,
estadual, e as amostras eram levadas, de carroça, aos comerciantes gaúchos.
Figura 11: Fábrica de calçados do começo do século XX
Fonte: Revista Leather
As taxas de importação impostas pelo governo brasileiro nessa época
incentivaram a industrialização do país, inclusive no setor de calçados. Apesar disso,
existiam apenas duas empresas que possuíam mais de 100 empregados em 1900,
uma em Pelotas e a outra em Porto Alegre. Essa última possuía a maior produção
do setor, 60 mil pares por ano com produtividade de dois pares por dia por
trabalhador (Brenner,1990). O Censo Industrial realizado em 1907 determinava o perfil da indústria calçadista,
indicando que 50% da produção das 111 maiores fábricas, com seus 7.349
empregados, estava concentrada no Rio de Janeiro, seguido por São Paulo e Rio
Grande do Sul. Os calçados brasileiros supriam, então, aproximadamente 90% do
mercado interno, provavelmente conseqüência da taxação sobre os calçados
importados que chegava a 115%. Além disso, o governo gaúcho incentivava as
77
vendas para fora do estado, reduzindo os impostos sobre vendas inter-estaduais,
alíquota que foi abolida em 1910.
De acordo com um entrevistado, tanto a indústria gaúcha de calçados, como a do
resto do Brasil, foi alvo de uma política de reserva de mercado que permitiu o
fortalecimento e a consolidação dessa indústria.
Durante a década de 1910, há uma proliferação de empresas fabricantes de
calçados de couro no Estado, a qual ocorre em virtude da montagem de uma
empresa nesse ramo não exigir grandes investimentos, e sim emprego intensivo de
mão-de-obra, que não necessitava ser qualificada. Essa mão-de-obra era composta
por comerciários e, principalmente, agricultores e era abundante no Estado. Some-
se a isso, o aumento do consumo interno de calçados e as políticas governamentais
de incentivo já citadas.
A produção, embora ainda artesanal, já sentia os reflexos de uma pequena
industrialização, com a utilização de algumas máquinas nos setores de montagem e
costura. Esse fato é confirmado por um entrevistado:
"Meu avô era natural de Santa Clara e veio de Dois Irmãos para assumir a
fábrica. Eu era muito pequeno e as memórias são vagas, mas me lembro bem
que, na época, já existiam algumas máquinas de montagem que eram
arrendadas dos americanos. A produção de calçados masculinos -
principalmente de botinas - era dedicada ao mercado local e gaúcho, sendo
que os vendedores saíam à cavalo ou mula para vender pelo interior. . . Era
uma época muito romântica, em que as pessoas se davam bem. Lembro que
a minha avó cozinhava para os empregados, que almoçavam em um galpão
perto da fábrica. . .”
Não havia, na época, uma especialização na fabricação de determinada linha de
produtos, o que só iria acontecer mais tarde. Em 1918, a empresa de Pedro Adams
Filho produzia sapatos masculinos e femininos e se concentraria na produção de
sandálias femininas em 1930, sendo, mais tarde, incorporada pela Strassburger S.A.
As maiores empresas de calçados eram, então, a Gustavo & Emílio Vetter, a Becker
& Irmãos, a Pedro Adams Filho & Cia, Krauszmann & Irmão e a Augusto Jung e
Feldman & Cia Ltda. A ampliação do número de empresas se dava principalmente
com a fundação de novas fábricas por empregados especializados na produção,
oriundos das firmas maiores.
78
Em 1912 um censo Estadual identificou 699 fábricas de calçados, a maior parte
com 2 a 7 empregados e produzindo 1,15 milhão de pares. Em 1916, identificam-se
736 fábricas, entre as quais apenas 4 possuíam mais de 100 empregados e eram
responsáveis por aproximadamente 50% da produção estadual.
Em 1929, ocorreu a primeira fusão de empresas calçadistas, quando quatro
firmas de calçados deram origem à Calçados Haas S.A - Indústria e Comércio de
Novo Hamburgo. Um livro publicado em 1938, em comemoração aos cinqüentenário
da antiga Sociedade Frohsinn - que se localizava onde hoje é a sede do Grêmio
Sindicato dos Funcionários Municipais (GSFM), em Hamburgo Velho - faz um
inventário da atividade industrial e comercial hamburguense da época. Ali, constam
42 fábricas, entre elas, a Irmãos Müller, a Arthur Haas & Cia Ltda (Calçados Haas), a
Pedro Adams Filho & Cia e a Jacob & Cia18.
Durante a primeira Guerra Mundial são realizadas as primeiras exportações19 de
calçados de couro fabricados na Região do Vale do Rio dos Sinos, mostrando o
potencial do setor, que viria a ser desenvolvido a partir da década de 70.
O crescimento da atividade industrial na Região do vale do Rio dos Sinos fez com
que a infra-estrutura de transporte, energia e outras, se desenvolvesse mais que no
resto de Estado. Em 1927, Pedro Adams Filho, que junto com Arthur Haas foi um
dos fabricantes pioneiros na região, implanta uma usina hidrelétrica em Novo
Hamburgo, visando facilitar a mecanização e a iluminação pública (Gomes, 1993).
Em 1935, Novo Hamburgo arrecadava 44% do imposto estadual sobre produção
industrial, estando estabelecidas nessa época uma fábrica de formas20, uma de
tintas, três de cola, uma de caixas de papelão e 29 envernizarias para dar
acabamento ao couro. Essa concentração industrial viria mais tarde a se tornar o
maior pólo calçadista do mundo (Brenner, 1990).
18 Atual Calçados Jacob Ltda, única empresa ainda em funcionamento, e que, atualmente, produz a marca Kildare 19 O primeiro país importador de calçados do Brasil foi a Grã-Bretanha 20 Refere-se aos moldes utilizados para confecção de calçados
79
Durante a Segunda Guerra Mundial, mais uma vez o Vale do Rio dos Sinos
mostra o seu potencial exportador fabricando calçados para as tropas venezuelanas
(ABAEX, 1993). Em 1950, a produção de calçados da região era de 10,6 milhões de
pares, sendo 60% de chinelos, sandálias, tamancos e alpargatas. Além disso, a
produção de calçados femininos era o dobro da de masculinos, delineando-se então
um perfil que viria a se confirmar durante as décadas de 60 e 70 (Brenner, 1990).
No final da década de 40 e na década de 60, são inauguradas escolas
formadoras de mão-de-obra: Escola Técnica do Calçado em Novo Hamburgo em
1947-48, visando formar costureiros; Escola de Curtimento de Estância Velha em
1967; Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha de Novo Hamburgo em
1966; e Escola Técnica do Calçado de Segundo Grau em 1968 (Alves Filho in
Gomes, 1993).
Nos anos 50 e 60, o crescimento da indústria calçadista deve-se ao aumento do
consumo no mercado interno21, reforçado pela entrada da mulher no mercado de
trabalho do Rio e São Paulo e mais tarde em outras capitais, aumentando a
demanda por calçados femininos. Além disso, ocorre nessa época a industrialização
acelerada devido ao governo Kubitschek.
Em 1960 acontece a primeira missão comercial gaúcha de calçados aos EUA,
visando a entrada naquele mercado. Quando chegou a Novo Hamburgo, o
empresário, que recém fundara a Calçados Petry com o primo, Leopoldo Marques
Petry, teve uma conversa com um outro primo, Nicolau Metzler, então oficial de
gabinete do governador Leonel Brizola: "Ele me sugeriu que solicitasse a Brizola
cinco passagens para os Estados Unidos, a fim de que partíssemos com uma
comitiva'', lembra Petry in Tecnicouro (2000). O pedido foi oficialmente
encaminhado, através do deputado Seno Ludwig, e a resposta positiva veio duas
semanas depois.
A comitiva que partiu, em 1.º de dezembro de 1960, tinha os seguintes
integrantes: Oscar Adams, da Indústria de Calçados Grande Gala, representando a
produção de calçados femininos de luxo (Luís XV); Nilo Grin, da Ciro Calçados,
representando os sapatos esportivos femininos; Arthur Kunzler, de Calçados Martini,
representando os sapatos masculinos; Bruno Petry, com os calçados infantis e
Edgar Sieler, então presidente da Associação Comercial e Industrial de Novo
Hamburgo (Figura 15). Acompanharam a missão o empresário Cláudio Strassburger,
80
de Campo Bom, que tinha como produto principal as tradicionais sandálias
Franciscano, o publicitário Hugo Hoffmann, da Mercur, de Porto Alegre, e Aquiles
Gerhardt, industrial do ramo de produtos sintéticos, de São Leopoldo. A comitiva
tinha ainda, o jornalista Alceu Feijó, que fez a cobertura para o extinto jornal Folha
da Tarde. A missão partiu de Novo Hamburgo muito festejada e com a esperança de
prospectar bons negócios entre os americanos. Na figura 12 pode-se ver a comitiva
de empresários gaúchos em Nova York em 1960.
Figura 12: Primeira missão comercial do setor coureiro-calçadista
Fonte: Revista Leather
Foi o que aconteceu, mas não imediatamente. Os calçadistas foram recebidos
pelo diretor do Escritório Comercial do Brasil em Nova York, Francisco Medaglia,
que conseguiu diversas entrevistas com empresas daquele país. Os resultados da
investida dos calçadistas só viriam alguns anos mais tarde, através dos pedidos
surgidos posteriormente do reconhecimento do calçado brasileiro no mercado
mundial. Segundo um entrevistado,
"Como fruto dessa iniciativa, em poucos anos nossos produtos tornaram-se
mundialmente conhecidos e o Brasil se transformou em um dos maiores
produtores mundiais de calçados . . . O Brasil, que em 1960 produzia 80
milhões de pares por ano, produz hoje cerca de 550 milhões de pares. Com
esse apreciável aumento foi possível gerar mais de 300 mil empregos diretos,
o que, por si só, justifica a iniciativa ousada. “
Infelizmente, as fábricas da região não possuíam um requisito fundamental:
volume de produção. No entanto, essa missão serviu para mostrar aos fabricantes
que eles necessitavam mudar o sistema de produção artesanal para um sistema de
produção que possibilitasse maiores volumes. Ainda durante a década de 60,
21 Inferior a um par per capita
81
algumas tentativas de exportação para a África, Europa e América Latina são feitas
com relativo sucesso, mas a inflação constituía-se em poderoso adversário ao
fechamento dos negócios, já que o preço não podia ser mantido. Com o surgimento
de grandes pedidos, os empresários do vale, acostumados a uma produção
razoável, destinada ao mercado interno tiveram que se adaptar às novas demandas,
segundo um entrevistado,
“Um dos primeiros contatos no exterior foi com a Companhia Genesco, que
fez um pedido à Grande Gala que significava uma produção de 2 mil pares por
dia. A empresa produzia, então, cerca de 200 pares diários. O pedido, é claro,
não pôde ser aceito. Tivemos que investir muito em máquinas e mão-de-obra.
Minha empresa só foi iniciar efetivamente a exportação uns dez anos mais
tarde''.
Com o intuito de aumentar as vendas, os fabricantes da região do vale do Rio
dos Sinos e a prefeitura de Novo Hamburgo organizam a primeira Feira Nacional do
Calçado (FENAC), em 1963. O objetivo era possibilitar aos clientes uma
oportunidade para realizar as compras para o verão seguinte, analisar as tendências
da moda e fazer publicidade dos fabricantes. Além desses, existia um objetivo
político que era mostrar ao governo estadual e federal e à comunidade empresarial a
força do setor, através do número de empresas, seu faturamento e a importância
para a economia do País, do Estado e da Região. Segundo um entrevistado,
“Impulsionadora do vertiginoso crescimento do setor a partir da década de 60,
a primeira FENAC ocorreu de 25 de maio a 16 de junho de 1963, ainda com o
título de Festa Nacional do Calçado e Feiras Agroindustriais, e recebeu um
público em torno de 300 mil pessoas. O catálogo da feira inicial trazia dados
sobre a indústria da época, registrando um total de 242 empresas do ramo
inclusive de curtumes e artefatos de plástico e de borracha, que empregavam
um total de 8.451 pessoas.”
A partir de 1964 uma série de medidas fiscais incentivam as exportações:
isenção de IPI em 1964, isenção de Imposto de Renda em 1965, draw-back22 em
1966, isenção de ICM em 1967, minidesvalorizações cambiais em 1968, e outros.
Em conseqüência, em 1969 a indústria calçadista do vale do Rio dos Sinos exporta
206 mil pares de calçados de couro, principalmente para os EUA.
22 Método de importação de insumos sem impostos utilizados para confecção de produtos destinados à exportação
82
Assim como no início do século, a política governamental incentivou a produção
para o mercado interno, dessa vez ocorre a mesma situação, porém com o objetivo
de desenvolver a exportação. Em 1969, o vale do Rio dos Sinos fabricava 23,8
milhões de pares, com 376 empresas operando.
O crescimento da indústria calçadista de couro a partir da década de 70 (de 95
milhões de pares em 1974 para 274 milhões em 1988) deve-se ao aumento da
exportação (de 26 milhões de pares em 1974 para 154 milhões em 1989),
principalmente para os EUA, e ao aumento do consumo interno até o início dos anos
80 (de 69,4 milhões de pares em 1974 para 212,8 milhões em 1982). Observe-se,
ainda, a modificação do perfil da área de produção das indústrias: de produção
artesanal para empresas maiores, organizadas em linhas de montagem, em
conseqüência dos maiores volumes exigidos pela exportação para o mercado
americano (Bastos & Prochnik in Gomes, 1993).
O aumento das exportações ocorreu em função do processo de reconversão
industrial nos EUA, quando a política econômica passa a favorecer as importações
de bens de consumo, como o calçado, que agregavam muita mão-de-obra. Essa
política fez com que muitos fabricantes americanos abandonassem o seu negócio e
procurassem por fornecedores externos, utilizando o seu conhecimento para atuar
como agentes importadores (SEBRAE, 1992). Com isso, criou-se uma preocupação
das companhias importadoras americanas no início da década de 70, de formar um
pólo de calçados de couro capaz de suprir o referido mercado com calçados da faixa
de baixo a médio preço. Isso fez com que as especificações de produto para a
indústria no Vale do Rio dos Sinos ficassem mais rígidas chegando os clientes a
imporem padrões de qualidade através de revisores junto ao fornecedor.
Em 1969 surgiu a primeira agência exportadora, quando o empresário Cláudio
Strassburger, um dos pioneiros da exportação de calçados, que integrava a comitiva
que visitou os Estados Unidos, se aliou ao empresário Maurício Schmidt (que já
transacionava com o exterior vendendo couro de porco) e ao professor e economista
Raul Brandenburger, para criar a Exportadora SKB Ltda. De acordo com Schmidt,
em 1968, Strassburger já tinha obtido sucesso em negociações com a British Shoes,
exportando a sandália Franciscano.
83
Em uma viagem que realizaram juntos à Nova York, Schmidt e Strassburger
mantiveram contatos com algumas empresas, que já compravam a sandália, e com
a Hillcrest Shoes, do grupo Hollander. Novos mercados começaram a surgir no
exterior e os negócios prosperaram a partir de contatos com a fábrica de Calçados
Pitsfield Shoes, que havia criado uma divisão especial, a Dimensions Imports.
Posteriormente a SKB montaria escritórios nos Estados Unidos e na Holanda, para
agilizar o agenciamento de exportações. Segundo um entrevistado,
“O trabalho era árduo, pois a empresa fazia os contatos com os compradores
internacionais e trabalhavam diretamente com os line builder, ou seja, aqueles
funcionários responsáveis pela criação das linhas . . . Também tínhamos
estilistas próprios e free-lancer, que nos auxiliavam na elaboração da
modelagem, sempre segundo as tendências do vestuário, para então
apresentarmos os produtos às cadeias de lojas, no exterior, e analisarmos
com os compradores dessas lojas. Isso feito, eram consideradas as
quantidades, baseadas nos preços e na modelagem e, só então, se
formalizavam os pedidos.''
Várias empresas iniciaram as exportações com a SKB. Entre elas, a
Strassburger, a Berlitz Lauck (Azaléia), Ciro, Ortopé, Irmãos Fleck, Petry, Reichert,
Calçados Jacob e Haas S/A, entre outras. Mais tarde a SKB perderia muito espaço
para as agências de exportação vindas do exterior, que surgiriam a partir da década
de 70, estabelecendo escritórios na cidade. Foi uma seqüência lógica do mercado,
pois os compradores quiseram estabelecer um contato pessoal próprio.
A infra-estrutura existente no tocante a filières tecnologicamente ligadas e setores
terciários como formação de mão-de-obra, e um centro de pesquisa (Centro
Tecnológico de Couro, Calçados e Afins fundado em 1972), a existência de
empresas de bens de capital e o bom relacionamento com os agentes exportadores
e importadores permitiu que o vale do Rio dos Sinos se consolidasse como pólo
exportador de calçados de couro femininos, principalmente para os EUA, e como
maior pólo calçadista de couro do mundo.
Dessa forma, a boa infra-estrutura existente na região possibilitou a criação do
pólo. Por sua vez, as exigências rígidas por parte dos agentes exportadores e
importadores criaram nos fabricantes uma maior preocupação com a qualidade final
do produto, que refletiu na melhora do nível de qualidade e desenvolvimento
tecnológico de toda a filière couro. De acordo com um entrevistado esse fato pode
84
ser observado na maior exigência com os curtumes e a atualização tecnológica dos
fabricantes de máquinas. A exportação incentivou também o desenvolvimento de
indústrias químicas como Bayer, Sthal, e outras, bem como empresas nacionais e
transnacionais, fabricantes de equipamentos dos mais variados, do CAD a máquinas
de colagem e acabamento.
As grandes vantagens da exportação para os fabricantes de calçados era: criar
uma demanda constante e segura, a qual em função do tamanho dos lotes
proporcionava ganhos de escala, muito acima do mercado interno; e receber em
moeda forte. A exportação trouxe grande desenvolvimento à região do Vale do Rio
dos Sinos. Novo Hamburgo, o principal Município da região, era o segundo maior
pólo de construção civil do Estado.
Por sua vez, na exportação, a recessão no mercado americano e a concorrência
da China e Indonésia nos calçados de baixo custo (sandálias e arachis) levaram
várias empresas a procurar novos mercados, principalmente o Europeu. Porém,
esse mercado exige de seus fornecedores um alto padrão com relação à qualidade,
desempenho, menores lotes e maior variedade, exigindo das empresas maior
flexibilidade e resposta mais rápida. Logo, em um primeiro momento poucas foram
as empresas capazes de conseguir cumprir essas exigências. Isso aconteceu em
virtude do mercado americano, o principal mercado, comprar em grandes volumes e
com menor exigência de qualidade e maior exigência em design.
Com relação ao mercado interno, a diminuição no poder de compra da população
tem obrigado as empresas a diminuírem a produção de calçados de couro e a
procurar materiais alternativos mais baratos e que possibilitem a automação,
diminuindo a incidência dos custos de mão-de-obra, em média de 25%. No entanto,
segundo Porter (1990), um dos atores que impulsiona uma indústria competitiva, no
mercado internacional é a sofisticação e exigência do seu mercado interno. Como
exemplo cita a indústria calçadista italiana que deve boa parte do seu sucesso à
demanda interna exigente em cima do design e da qualidade do calçado.
Conseqüentemente, o mercado interno brasileiro, necessita ser fortalecido para que
possa suportar a venda para o mercado externo, seja ao nível de exigência de
qualidade e de desempenho, seja ao nível de criação de moda.
85
5.2.4 Histórico das relações ambientais da filière
O setor coureiro-calçadista, englobando todas as suas ramificações e atividades
afins, constitui um expressivo segmento sócio-econômico brasileiro. Além de sua
presença no atendimento do mercado interno, é no mercado externo que o setor de
peles, couros e calçados vem demonstrando sua força, a ponto de ocupar posição
destacada na pauta de manufaturados do País.
Desse modo, o Brasil, durante as últimas décadas, desenvolveu muito o seu
setor de curtimento. Durante esse rápido crescimento, não foi dada a devida atenção
à poluição gerada. Nesses processos, são gerados efluentes líquidos com elevada
carga poluidora e consideráveis volumes de resíduos sólidos. Além da elevada carga
orgânica, essa indústria, devido ao uso intensivo de produtos químicos no processo
de curtimento gera, também, uma carga inorgânica bastante significativa
caracterizada, principalmente, pela presença de cromo, sulfeto e pigmentos
orgânicos e inorgânicos utilizados nas tintas.
Os resíduos e efluentes gerados no processo de transformação da pele animal
em couro são classificados em:
• efluentes atmosféricos: gases e emissões;
• resíduos sólidos: aparas, serragem e lodo resultante da estação de
tratamento de efluentes líquidos; e
• efluentes líquidos: provenientes principalmente dos banhos.
O cromo, presente em alguns dos efluentes líquidos e resíduos sólidos, é o
principal problema dos curtumes.
Na década de oitenta, como conseqüência da verificação dos níveis de poluição
atingidos em virtude dessa atividade industrial, os órgãos ambientais de cada Estado
promulgaram a sua própria proposta de regulamentação para as descargas dos
efluentes dessas indústrias, as quais foram obrigadas a implementar projetos de
estações de tratamento de efluentes e submetê-los à aprovação de tais órgãos.
Considerando-se o elevado número de empresas desse ramo e seu alto potencial
poluidor, o órgão responsável pela proteção ambiental no Estado, a Fundação
Estadual de Proteção Ambiental (FEPAM), criou legislações específicas para as
indústrias do couro, peles e produtos similares.
86
Desde 1977, legislações e prazos estão sendo impostos a esse setor industrial.
Essa situação gerou outro problema: a inexistência de um número suficiente de
especialistas para o preparo dos planos e projetos necessários para o
enquadramento do setor às normalizações exigidas. Além disso, devido ao emprego,
por parte dos curtumes, de tecnologias, layouts e localizações diferentes, não havia
a possibilidade de padronizar o sistema de tratamento.
Devido a esta carência das empresas em obter a necessária assistência
profissional para preparar e implementar seus projetos de tratamento e, tendo em
vista as necessidades urgentes da indústria em obter informações técnicas e
econômicas detalhadas, surgiu a idéia da implantação de uma planta piloto de
tratamento de efluentes de curtumes a ser instalada na, então, Escola de Curtimento
SENAI em Estância Velha, hoje Centro Tecnológico do Couro SENAI/RS. O
conceito, assim expresso, do projeto foi aceito, tanto pelas autoridades brasileiras
como pela UNIDO e teve estas como entidades intervenientes.
A UNIDO buscou a assistência de possíveis doadores e conseguiu os fundos
junto ao Governo Italiano. Em agosto de 1983, atingiram-se condições 100%
operacionais da Estação Piloto de Tratamento de Efluentes de Curtumes, figura 13.
Procederam-se, então, testes sobre as várias alternativas tanto de tratamento
primário23 como de tratamento secundário ou biológico24, levando a dispor de dados
reais sobre o rendimento dos vários sistemas.
Iniciou-se, a partir desse momento, um programa de assistência técnica e
tecnológica às indústrias do Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina e outros
Estados, assim como outros países da América Latina, concedendo consultas que
objetivavam otimizar estações já construídas bem como projetos a serem
implantados (UNIDO, 1996).
23 Destinado a remover do efluente os óleos e graxas, os sólidos sedimentáveis, os sólidos suspensos, os sulfetos e os curtentes 24 Destinado a remover a carga orgânica residual do efluente submetido ao tratamento primário, visando atingir os padrões de emissão para efluentes líquidos
87
Mais recentemente, na década de 90 apareceram as primeiras preocupações
com o impacto ambiental das atividades do complexo coureiro-calçadista, ou seja,
com a minimização de resíduos objetivando reduzir o risco à saúde, ao meio
ambiente e à segurança no trabalho, além dos benefícios econômicos para a
indústria. Minimização de resíduos consiste na redução dos contaminantes na
origem e também através da reciclagem, com o objetivo de reduzir o volume e a
toxicidade do resíduo gerado, a um custo economicamente viável. Tal fato pode se
dar em duas áreas: organizacional (pessoal e manutenção) e tecnológica (mudanças
de produto, práticas operacionais).
Alguns procedimentos para minimização dos resíduos são:
• substituição de corantes por outros menos poluentes;
• utilização do couro verde em substituição ao salgado (somente possível
com maior integração de toda a cadeia);
• mudanças no processo de pintura;
• reorganização do local de trabalho (limpeza, layout);
• uso de equipamentos que reduzam o consumo de água e energia;
• reutilização de resíduos (aparas, sebo); e
• redução e recuperação do cromo, através de processo químico, para
reutilização.
Nos anos 90, o setor coureiro continua sendo importante para a economia do
Estado e do País, permanecendo com problemas ambientais. Novas regras estão
sendo impostas, principalmente por pressões de países europeus, que irão exigir um
certificado ambiental25 para os artigos por eles importados. Outro fator é a
implantação de auditorias ambientais, de acordo com a Lei Federal em tramitação no
Congresso Nacional, que torna obrigatória essa prática em empresas
potencialmente poluidoras, nas quais se incluem as indústrias do couro.
25 Selo verde da União Européia
88
No Brasil, a falta de uma política ambiental em muitas empresas permite que a
produção de couro ocorra de forma menos controlada, ao contrário do que acontece
em outros países, como Estados Unidos e Alemanha. Por outro lado, os curtumes
que exportam para esses países, por exemplo, apresentaram redução em alguns
resíduos, devido às restrições que sofrem ao uso de determinados insumos. No
Sudeste e principalmente no Sul, o controle é mais rigoroso. O custo ambiental
imputado a um couro acabado é da ordem de US$ 3 por peça. Em termos de preço
final do produto para o mercado interno, considerando os tributos e o lucro que
devem ser agregados ao custo, isto implica um aumento de US$ 5 por couro.
Não há danos significativos ao meio ambiente na fabricação de calçados. No
entanto, há uma grande quantidade de resíduos sólidos cujo descarte no meio
ambiente causa crescente preocupação às autoridades públicas. Parte desses
resíduos são de difícil degradação26. No Rio Grande do Sul, o órgão de controle
ambiental (a FEPAM) está pressionando para que o descarte de resíduos da
indústria de calçados seja feito em aterros sanitários industriais27 conduzidos com a
melhor técnica e em locais previamente aprovados.
Os custos do descarte e do monitoramento e da segurança operacional dos
aterros são de responsabilidade das empresas, o que ocasionou o surgimento de
várias empresas especializadas, com o objetivo de implantar e operar instalações
para o descarte de resíduos sólidos. Atualmente, essas empresas tratam resíduos
sólidos basicamente de curtumes e de outras indústrias químicas.
Em decorrência surgiram no Rio Grande do Sul várias centrais de tratamento de
resíduos (figura 14), sendo a UTRESA – Usina de Tratamento de Resíduos S/A,
localizada no município de Estância Velha, já com mais de uma década de
operação, a pioneira das centrais de destinação final de resíduos industriais do sul
do Brasil. Durante esse período foi também a única central de resíduos de classe I28
do tipo aberta ou seja, recebeu resíduos de empresas geradoras que não faziam
parte do seu quadro de acionistas.
26 Como exemplos temos as aparas curtidas, os elastômeros e outros materiais sintéticos. 27 Esses aterros são chamados de ARIPE – Aterro de resíduo industriais perigosos. 28 Classificação da ABNT para os resíduos perigosos e potencialmente perigosos.
89
A UTRESA foi uma iniciativa do setor de curtumes já que a empresa foi criada
pelo Sindicato das Indútrias de Curtume com base territorial em Estância Velha,
Ivoti, Dois Irmãos e São José do Hortêncio. Mais tarde integraram-se a UTRESA as
indústrias do setor calçadista de Estância Velha. Atualmente fazem parte da
UTRESA curtumes localizados em diversas regiões do Rio Grande do Sul, bem
como diversas indústrias calçadistas, têxteis e outras de diversos municípios do
estado. No total já são mais de 800 empresas usuárias da central, desde micro e
pequenas empresas até multinacionais.
Figura 13: Estação Piloto de Tratamento de Efluentes de Curtumes
Figura 14: Central de resíduos
5.3 Análise Técnico-Econômica dos Curtumes
O segmento de curtumes no Brasil tem uma participação histórica no Produto
Interno Bruto – PIB situada em torno de 0,6%, emprega aproximadamente 60 mil
130
pessoas diretamente, ocupando um lugar de importância econômica e social no
país, principalmente pelos empregos gerados indiretamente na manufatura de
bolsas, cintos e notadamente calçados. Esse último, contribui atualmente com cerca
de 3,5% do PIB nacional, contando com aproximadamente 4000 unidades
industriais, consolidando a vocação e a importância do setor coureiro como
multiplicador de empregos devido a sua função intermediária no processo produtivo
calçadista.
Atualmente já existem materiais que substituem o couro para várias finalidades,
sem todavia alcançar plenamente, especialmente sob o ponto de vista
organoléptico29, as qualidades do couro. Em relação a indústria de calçados e
artefatos, várias alternativas ao couro, vem sendo pesquisadas e utilizadas, no
entanto, nenhuma delas conseguiu, até o momento, repetir a performance do couro
quanto à permeabilidade e facilidade de conformação.
Muito além de servir apenas como pele ao boi, o couro é um material que se
desdobra numa infinidade de produtos. De calçados a dog toys (brinquedos
comestíveis para cães), de casacos a banco de automóveis, de selas para montaria
a bolsas elegantes, o couro está presente nas mais diversas situações do cotidiano
da vida moderna.
Em uma de suas utilizações mais nobres e modernas, o couro bovino exibe
estilo, sofisticação e beleza nos luxuosos carros Jaguar, exemplo do mais apurado
perfeccionismo. Não era fácil escolher um material adequado para os estofamentos
e os ingleses trataram de obter couro de alta qualidade para seus carros. Afinal,
desde a mais remota antigüidade, o couro é símbolo de nobreza.
Desde a inauguração da fábrica, em 1948, a empresa mantém, na Suécia, uma
fazenda de criação de gado. A preocupação é tanta que se utilizam cercas de
arames lisos e as árvores dos pastos são encapadas com material sintético. Tudo
para que os animais não danifiquem o couro. Além disso, os piquetes são formados
em terrenos planos, para evitar o aparecimento de músculos e o enrugamento do
couro, depois de algum tempo. Por ano, abatem-se 160 mil cabeças, sendo que,
para cada veículo, a Jaguar necessita da matéria prima de quatro animais.
Segundo um entrevistado,
“No Brasil, enquanto não se remunera bem o couro e enquanto não surgem
utilidades lucrativas para o couro, a situação é diferente: encontram-se
131
defeitos em 93% das peles nacionais. São marcações a fogo, carrapatos,
bernes, desleixo no manejo, uso de arames farpados, falhas no transporte,
descuido nos frigoríficos e outros.”
Outro entrevistado diz que, “essa situação é o resultado de uma herança que
insiste em privilegiar apenas a carne, esquecendo-se de que o gado é capaz de
oferecer muito mais à sociedade.”
Tal afirmação é um fato comprovado, pois não é só de artigos finos que sobrevive
o beneficiamento do couro. Além das partes utilizadas para a fabricação dos
produtos mais conhecidos, como chapéus, calçados, casacos, bolsas e outros, ainda
existe outro sobrante que é a raspa, um material altamente protéico que é
incorporado na formulação de gelatinas, cervejas, iogurtes, balas, cosméticos,
cremes, cápsulas de gel, chicletes e brinquedos comestíveis para cães. Antes dessa
etapa, porém, já foi extraído o sebo, que é utilizado como componente para a
fabricação de produtos de limpeza e de higiene.
Na figura 15 pode-se observar a estrutura da micro-filière do setor de curtumes. A
matéria-prima situada à montante e que torna possível a industrialização do couro
são as peles de animais. A oferta de peles depende do rebanho existente, dos
métodos de criação e da taxa de abate, que depende do consumo e da exportação
de carne, e do sistema de distribuição de peles e couros dos frigoríficos e
abatedouros para os curtumes.
O maior número de cabeças de gado está na região Centro-Oeste (cerca de 35%
do rebanho total). A região Sudeste possui o segundo maior rebanho, com 33.500
mil cabeças (23% do total), que vem declinando ano a ano. As regiões que
apresentaram aumento no número de seu rebanho no período que vai de 1989 a
1998 foram o Norte e o Centro-Oeste, alcançando, respectivamente, taxas de
crescimento30 acumuladas de 21% e 11% naquele período.
A região Sul, que detém o terceiro maior rebanho (16% do total), também vem
perdendo participação no total nacional. Já em 2000, o rebanho dos Estados de
Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás e Mato Grosso do Sul, soma 70,7 milhões de
cabeças quase a metade do rebanho brasileiro.
29 Cada uma das propriedades com que os corpos impressionam os sentidos e o organismo. 30 A taxa média de crescimento do rebanho nacional foi de apenas 1% no mesmo período
132
O Conselho Nacional de Pecuária de Corte projetou um rebanho de 220 milhões
de cabeças para o ano de 2010, passando o consumo interno de carne de 34,6
kg/ano para 45,0 kg/ano (ver tabela 3).
Tabela 3: Evolução prevista do rebanho brasileiro
Discriminação Brasil, 2000 Brasil, 2010 Rebanho 165 milhões 220 milhões Abate 30 milhões (18,0%) 48 milhões (21,8%) Consumo de carne per capita 34,6 kg/ano 45,0 kg/ano Estabelecimentos pecuários 1,8 milhões 1,8 milhões Indústrias frigoríficas 750 750 Carne para exportação 450 mil ton/ano 1.200 mil ton/ano
Fonte: CNPC - 1999
133
Figura 15: Micro-filière do setor de curtumes
A área selecionada com linha pontilhada, por ser a atividade mais poluente da
filiére, será objeto de análise com relação a variável ambiental.
Pecuária
Frigorífico
Curtume
Bancos
Orgãos financiadores
Orgãos reguladores
Centros de formação
Tecnologia
Marketing
Transporte
Equip. eletro-mecânicoseletrônicos
Indústriaquímica
informática Tecnologiaslimpas
Atividades terciárias
Filierèresauxiliares
134
5.3.1 Influência da pecuária
O nível da produção pecuária encontra-se praticamente estagnado nos últimos
anos em países com tradição pecuária como por exemplo a Argentina e a Rússia.
No entanto, o Brasil tem ampliado seus abates, fornecendo couro em relativa
abundância ao mercado mundial. Em 15 anos, os abates passaram de 15 para 30
milhões e espera-se que atinjam 42 a 48 milhões antes do ano 2010.
Devido ao intervencionismo no processo econômico, o boi deixou de ser
considerado um produto e foi tratado como um ativo financeiro, bastando-lhe
sobreviver nos campos. Assim, a melhora da qualidade do couro não foi tão
acentuada quanto foi o aumento de quantidade. Em decorrência, o Brasil produz
muitos couros porém de qualidade inferior. Um entrevistado reforça essa questão: “A
pecuária ainda não está se modernizando, pois há pouco valor agregado ao couro
em relação ao agropecuarista.”
O pecuarista brasileiro tem pouca consciência da importância do couro na sua
atividade. No Brasil, o couro representa 7% do preço do boi em pé (tabela 4). Nos
EUA representa entre 10 e 12%. Devido a má qualidade do couro nacional em
relação aos EUA, os pecuaristas brasileiros deixam de receber R$ 20 a 25,00/boi.
Portanto, são necessários esclarecimentos aos pecuaristas e uma maior divulgação
de que o bom trato do couro resulta em ganhos diretos no próprio e na conversão
alimentar do animal mais sadio e melhor tratado.
Tabela 4: Cálculo do valor de um bovino formulado pelos
frigoríficos - 1999 (boi de 16 arrobas)
Parte do bovino Valor Corte de traseiro 57% das arrobas do boi Corte de dianteiro 22% das arrobas do boi Ponta de agulha 9% das arrobas do boi Couro verde 7% das arrobas do boi Sub-produtos 5% das arrobas do boi
Fonte: Braspelco/2000
Em trabalhos anteriores Müller (1995), Furlanetto (1996) e outros, verificou-se
que, ao nível nacional, as peles processadas nos curtumes apresentavam um
conjunto de defeitos que se originavam no campo e comprometiam a qualidade da
matéria-prima couro. Dentre os principais problemas encontrados como geradores
135
de perdas e danos nos couros produzidos pelos pecuaristas e processados pelos
curtumes brasileiros podem ser evidenciados os seguintes:
• Defeitos biológicos: causados por ectoparasitas (carrapato, berne, mosca do
chifre);
• Defeitos físicos: causados por agentes como cercas, arames, vegetação
arbustiva com galhos e espinhos, marcação a fogo, aguilhão, chifradas,
luxações e outros.
Com relação aos frigoríficos e abatedouros os danos são originados a partir de:
• Defeitos microbiológicos: causados por algas e fungos decorrentes do
processo de conservação;
• Defeitos físicos: chifradas, riscos causados por pregos e parafusos
decorrentes do transporte inadequado, furos decorrentes da esfola, cortes
inadequados.
Na figura 16 pode-se observar a incidência desses defeitos.
Os defeitos originados na propriedade rural são em grande parte de origem
humana, sendo uma decorrência da mão–de-obra não especializada, pois os
pecuaristas não investem no treinamento dos peões. Segundo um entrevistado:
“Essa mão-de-obra passa de uma propriedade rural para outra, levando
consigo os conhecimentos bons e / ou ruins que interferem nos cuidados
dados aos animais e aprendidos com outros peões mais antigos.”
Desse modo a marcação do gado continua sendo realizada à fogo e em área
nobre do couro sobre a picanha do animal, dentro da área do grupão31, não
obedecendo às normas de tamanho máximo previstas na ABNT - NBR 10453 –
Marcas de Identificação no gado – Regiões e Tamanhos. Assim, no caso de animais
com 3 – 4 anos, que é a idade de abate considerada a taxa de desfrute do rebanho
de 11%, os animais apresentam de 3 a 4 marcas a fogo, distribuídas sobre o dorso
dos mesmos, dentro da área do grupão. Também devido a baixa taxa de desfrute do
rebanho, onde o gado é abatido com idade mais avançada, resulta em um couro
mais rígido com marcas de musculatura, irregular e de curtimento mais difícil.
31 Região mais rica em fibras colágenas apresentando melhor entrelaçamento das fibras
136
Figura 16: Defeitos nos couros
Fonte: ABQTIC (1998)
Apesar das propriedades rurais praticarem o controle sobre os ectoparasitas,
encontram-se infestações de carrapatos, bernes e moscas do chifre em muitos
animais, variando sua ocorrência conforme a época e o clima. E também por falta de
assistência técnica especializada muitas vezes as aplicações de medicamentos são
feitas de maneira inadequada gerando defeitos na carne e nas peles.
Na figura 17 pode-se observar a cicatriz de um carrapato sobre a flor de uma pele
vacum vista ao microscópio eletrônico. Verifica-se que de um pequeno orifício forma-
se uma cicatriz muito maior e mais profunda que não se corrigirá nem mesmo
polindo o couro.
Figura 17: Cicatriz de parasita sobre pele vacum
Marcação10%
Conservação15%
Abate/esfola15%
Ectoparasitas40%
Transporte10%
Riscos10%
137
Outros cuidados como limpeza periódica do campo, retirada de arbustos, galhos,
espinhos, restos de arame, farpas de madeira e outros objetos que possam
machucar o gado, muitas vezes também não são observados. Ainda, a técnica de
amochamento32 ou simples aparação na grande maioria das propriedades não é
realizada gerando defeitos como furos e riscos abertos.
Devido a esses defeitos apresentados por 93% dos couros brasileiros, durante a
última década, o setor de curtumes remunerou o couro cru brasileiro por 50% do
valor recebido pelos norte-americanos, onde somente 5% dos couros apresentam
esses defeitos.
Enquanto um couro tipo flor33 integral, oriundo de um determinado curtume
nacional, a partir de matéria-prima importada de algumas regiões do mundo
(Argentina, EUA e outras), tem cotação no intervalo de R$ 1,70 a 2,20/ft2, um couro
acabado oriundo de matéria-prima nacional tipo flor corrigida, terá sua cotação no
intervalo de R$ 1,03 a 1,30/ft2.
Segundo estimativa da ABQTIC (1998), os curtumes de couros vacuns do Brasil
deixam de faturar, anualmente, em torno de US$ 320.000.000,00, considerando os
aspectos mencionados anteriormente. No Estado do Rio Grande do Sul, onde é
realizado o curtimento de aproximadamente 40% dos couros bovinos brasileiros,
deixa-se de faturar cerca de US$ 128.000.000,00.
Quanto aos pecuaristas e frigoríficos gaúchos, analogamente, deixam de ter uma
receita em torno de US$ 270.000.000,00 anuais, enquanto que o Estado deixa de
arrecadar, aproximadamente, US$ 12.000.000,00 em ICMS.
Uma vez que na cadeia produtiva do couro, o maior valor agregado está
localizado na indústria de calçados e afins, essa também sofre perdas em receita e
arrecadação de impostos. Segundo um entrevistado:
32 Retirada de parte dos chifres 33 Camada superior da pele
138
“O valor médio de um couro cru, para compra, é de US$ 20,00 por unidade. O
couro wet-blue, ou seja, o couro no estágio inicial de fabricação, vale US$
40,00. O couro acabado vale US$ 80,00. O valor de um par de sapato é de
US$ 14,00 e um couro com boa qualidade comporta até 25 pares de sapatos.
Assim um couro já beneficiado e transformado em sapato vale US$ 350,00.
Ou seja, um couro, depois de transformado em sapato, gera uma receita igual
ou até superior à venda de um boi gordo ao frigorífico. Pois um boi pesa, em
média, 16 arrobas, e cada arroba vale entre US$ 20,00 a US$ 22,00. Dessa
forma um boi acaba valendo entre US$300,00 a US$350,00.”
Para transformar o prejuízo em lucro, já existem programas como o do CICB -
Centro das Indústrias de Curtumes do Brasil – que vem desenvolvendo, desde 1996,
o Programa Brasileiro de Melhoria do Couro Cru. Trata-se da parceria entre
curtumes e frigoríficos que já conseguiu reduzir o percentual de couros furados de
40% para apenas 5%. E em decorrência o país vem ganhando espaço internacional
nas negociações de couro, mais até que o setor de carnes, pois exportou para
quase 90 países, numa lista liderada pela Itália (tabela 5), responsável por 33,04%
das compras do exterior.
Tabela 5: Exportações de couro pelo Brasil - 1999
(Wet Blue, Crust e Acabado)
Países Valor em US$ % Itália 175.553.841 29,25 Hong Kong 78.064.105 13,01 EUA 69.651.697 11,60 Portugal 49.099.733 8,18 Espanha 33.688.031 5,61 Outros 82 países 194.144.939 32,35 Total 600.202.346 100,00
Fonte: CICB - Centro das Indústrias de Curtumes do Brasil. Não inclui o couro tipo Salgado
139
Um entrevistado salienta,
“Como fabricantes de couro (napa) para vestuário, possuímos uma das gamas
mais diversas de acabamento de couros para satisfazer sempre a exigência
de nossos clientes e consumidores. Assim trabalhamos a valorização do couro
desde a origem ainda como pele, realizando contatos junto aos pecuaristas e
transportadores de gado via frigorífico. Os principais defeitos do couro são os
parasitas e os arranhões causados por espinhos, arames, carrocerias de
caminhão, currais, cortes de faca. Os nossos maiores problemas, na
transformação da pele em couro, são a conservação, que além de trabalhosa
é onerosa, e a etapa de ribeira, que após o início da eliminação do cabelo até
o final do curtimento, o processo não pode parar, não excedendo 52 horas.”
Müller (1995), faz algumas recomendações técnicas para a diminuição dos
defeitos gerados no campo que revertem na melhoria da qualidade do couro, quais
são:
• Incentivo aos criadores para venda de novilhos precoces com, no máximo, 3
anos de idade. Onde os novilhos deveriam preencher as seguintes condições:
• Mochos por natureza ou mochados quando terneiros;
• Marcação obedecendo a norma ABNT – NBR 10453, que trata da
localização, tamanho e procedimentos de marcação;
• Incentivos a substituição das cercas de arame farpado pelas de arame liso;
• Investimento em capacitação técnica da mão-de-obra e melhoria das
instalações.
• Incentivar o controle adequado de ectoparasitoses, esclarecendo as
vantagens advindas, tais como ganho extra de aproximadamente 200g/dia,
possibilitando o abate precoce.
Um entrevistado reforça que,
“O produtor de gado deve ter mais cuidado com as doenças de seu rebanho ,
não só pela qualidade do couro, que vai junto com a carne, mas também pela
sua própria qualidade, pois as doenças da pele podem refletir na carne e no
desenvolvimento do animal.”
Quanto ao problema da marcação do gado, outro entrevistado pronuncia-se da
seguinte forma:
140
“O problema da marca, seria facilmente resolvido por rastreabilidade,
implantando um chip eletrônico de certificação de origem no animal, evitando
marcar e permitindo a entrada do gado em outros países, pois constaria as
informações da sua identidade desde o nascimento.”
No caso do embarque e transporte, responsável por 10% dos defeitos do couro
(ABQTIC, 1998), o mesmo quadro se repete. O gado é vendido a peso vivo e,
geralmente, a condução dos animais até o embarque é realizada pelo fazendeiro-
proprietário. Os animais são conduzidos da mangueira até o caminhão pelos
empregados da fazenda. Em alguns casos ainda constata-se o uso de aguilhão ou
outro equipamento contundente para conduzir o gado. E na maioria dos casos os
animais são tocados utilizando-se o cabo do relho ou varas de madeira, batendo-se
nas costelas ou dorso dos animais, danificando-se a carne e a pele.
Também não são seguidos critérios de embarque, como separação por sexo,
peso, raça ou idade. Pois a norma técnica ABNT NBR – 10452 que regulamenta os
procedimentos para efetuar o transporte do gado não é seguida. A falta de pequenos
cuidados como pontas de pregos e parafusos, cantos vivos, travessas quebradas ou
madeiras lascadas na carroceria dos caminhões, descuidos na hora de carregar e
descarregar o animal, direção inconseqüente, e outros fazem com que as peles
sejam danificadas, diminuindo o seu valor.
Na produção mundial de 250 milhões/ano de couros bovinos o Brasil participa
com aproximadamente 30 milhões/ano de couros bovinos. O couro é decorrência do
abate do boi, portanto é uma matéria-prima de oferta inelástica. O boi é uma
commoditie com preço extremamente vinculado ao dólar. Nos meses chuvosos,
quando a oferta de boi aumenta, seu preço oscila entre US$ 18,00 a US$
22,00/arroba. Nos meses secos, quando recorre-se ao confinamento ou
suplementações a pasto, o preço do boi atinge a média de US$ 24,00 a US$
28,00/arroba.
Em 1999, com a desvalorização cambial de 40%, o boi, gradativamente teve seu
preço majorado, acompanhando o dólar. Essa situação, representou uma perda de
poder de compra dos salários brasileiros de 30%, pois os mesmos não
acompanharam a valorização do dólar. Isso levou a um decréscimo do consumo de
carne pela população. Paralelamente, o boi tendo atingido seu preço histórico em
dólar, também perdeu a grande atratividade para alavancar exportações de carne.
141
Assim, nos primeiros meses de Plano Real, houve um aumento de poder
aquisitivo dos salários médios e baixos. Paralelamente, houve uma dizimação de
pequenos e médios produtores rurais, segundo um entrevistado,
“. . . aqueles que tem suas poucas vaquinhas, e que somados, produzem
muitos bezerros de reposição do boi gordo. Assisti leilões de gado, onde
bezerros de pequenos criadores eram vendidos a R$ 24,00, enquanto um
frango caipira valia R$ 15,00. Essa situação levou a dizimação das fêmeas
dos pequenos proprietários, que não pagavam suas contas, vendendo apenas
seus bezerros, era preciso também vender suas vacas para abate.”
Assim foi que, em 1994, 1995 e 1996, houve um grande aumento no abate de
fêmeas, fenômeno esse que trouxe boas e más conseqüências. As más ficaram por
conta da situação econômica dos pequenos proprietários e para a menor oferta de
bezerros. A boa conseqüência foi a substituição de um rebanho de fêmeas de
segunda linha, por uma produção muito mais dinâmica de bezerros e bois. Como
decorrência houve o aceleramento da modernização da pecuária brasileira, abrindo
espaços para um boi produzido com mais tecnologia pela mão de pecuaristas mais
especializados, informados e capitalizados.
Além da influência da pecuária na qualidade da matéria-prima dos curtumes, a
mesma também influencia a localização de curtumes no Brasil. No Brasil, em 1996,
existiam 403 estabelecimentos curtidores, responsáveis pela produção de 28,5
milhões de couros, sendo cerca de 50% exportados, 25% vendidos para as
empresas de calçados de exportação e os outros 25% consumidos no mercado
doméstico.
A industrialização do couro é feita basicamente por três tipos de
estabelecimentos curtidores,:
• Curtume integrado: executa todo o ciclo operacional, desde o couro cru
até o couro acabado, podendo processar e/ou vender couros em estágios
intermediários;
• Curtume wet-blue: processa o couro cru até o wet-blue. O wet-blue é o
estado do couro curtido ao cromo, apresentando certa umidade e
possuindo uma coloração azul esverdeada;
• Seção de acabamento: realiza as operações de acabamento a partir do
couro wet-blue ou crust, (Santos,1998).
142
Em 1996 a região sul concentrou o maior número de estabelecimentos curtidores,
com 44% de participação seguida pela região sudeste com 39% e as demais regiões
somaram 17%, conforme figura 18.
Figura 18: Participação do número de curtumes por região – 1997
Fonte: RAIS – DATAMEC/MINISTÉRIO DO TRABALHO
Na distribuição do número de estabelecimentos por Estado (figura 19), verifica-se
que o Rio Grande do Sul participava com 34% das empresas curtidoras seguido de
São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Goiás, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul.
Figura 19: Distribuição de curtumes por Estado - 1997
Fonte: RAIS – DATAMEC/MINISTÉRIO DO TRABALHO
Ressalta-se que nos Estados do Rio Grande do Sul e de São Paulo concentra-se
a maioria dos curtumes integrados e seções de acabamento, tendo em vista a
proximidade de unidades calçadistas, o que permite ganhos de economias de
Sul45%
Sudeste37%
Norte2%
Nordeste7%
Centro-oeste9%
Rio Grande do S ul34%
S ão P aulo24%
Goiás4%
P araná8%
M inas Gerais12%
S anta Catarina
3%
M ato Grosso do S ul
3%
Dem ais es tados
12%
143
aglomeração. Nesses estados foram registrados em 1997, 130 e 93 unidades
curtidoras respectivamente.
Em relação ao total de unidades curtidoras no Brasil, verifica-se uma queda de
28,4% no período entre 86 e 97, ou seja, passou de 563 para 387. Observa-se, pela
tabela 6, que somente os estados de Goiás, Mato Grosso do Sul e Tocantins
apresentaram crescimento no número de estabelecimentos curtidores, sabidamente
plantas destinadas a produção de wet-blue. Nesses estados constata-se um
crescimento na pecuária de corte e nos frigoríficos e abatedouros, o que permite
também ganhos de economia de aglomeração. Os estados de Goiás, Mato Grosso
do Sul e Tocantins possuíam, respectivamente, 16, 10 e 4 estabelecimentos
curtidores em 1997.
Por outro lado, pode-se verificar que os estados do Nordeste brasileiro, apesar de
todo o subsídio e incentivos fiscais para a implantação de novas empresas
coureiras, apresentam diminuição do número de plantas no período entre 1986 e
1997. As novas unidades industriais, principalmente exportadores de couros wet-
blue, preferem instalar-se junto a matéria-prima couro cru, ou seja, no Brasil Central.
Isso reflete a situação de mercado dos últimos anos, onde verifica-se um aumento
significativo nas exportações de couros wet-blue e uma diminuição nas exportações
de calçados de couro, compartilhados com inexpressivo aumento das exportações
de couros crust e acabados.
Até a segunda metade da década de 70, a maioria dos curtumes era do tipo
tradicional e estava localizada junto às fontes de matéria-prima, que eram os
frigoríficos concentrados nos Estados do RS e SP. Essa concentração ocasionava
períodos curtos de safra, que obrigavam os frigoríficos a se desfazerem rapidamente
do couro cru, em razão de problemas de armazenamento (Gomes, 1993).
O crescimento dos rebanhos na região centro-oeste, além de ocasionar um
deslocamento parcial dos frigoríficos para essa região, possibilitou períodos de abate
mais alongados por razões de natureza climática. A relocalização dos rebanhos
reduziu a pressão para vender o couro cru rapidamente, aumentando não só o poder
de barganha dos frigoríficos frente aos curtumes, mas também o custo de transporte
da pele para os curtumes do estado do Rio Grande do Sul.
144
Tabela 6: Curtumes por estado brasileiro – 1987/1997 ESTADOS 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 RIO GRANDE DO SUL 167 169 155 153 149 140 136 163 134 135 130 SAO PAULO 121 120 118 107 99 95 93 104 96 99 93 MINAS GERAIS 85 82 77 78 76 73 68 47 45 51 46 PARANA 51 45 41 41 39 37 34 26 33 28 32 GOIAS 11 11 8 10 11 10 10 13 12 17 16 SANTA CATARINA 25 22 22 21 22 22 20 13 11 13 10 MATO GROSSO DO SUL 8 8 9 7 7 2 3 6 6 9 10 CEARA 10 10 10 11 9 5 5 8 6 8 8 PERNAMBUCO 13 14 13 14 11 11 10 9 7 7 8 ESPIRITO SANTO 5 4 3 3 2 2 2 3 4 4 7 MATO GROSSO 4 3 3 3 2 6 6 8 7 4 4 PARAIBA 6 6 6 5 5 5 4 4 5 4 4 PIAUI 7 7 6 5 5 5 5 5 5 4 3 TOCANTINS 0 0 1 1 1 1 1 1 2 4 3 BAHIA 14 15 13 13 12 12 11 7 5 3 RIO GRANDE DO NORTE 4 4 4 4 4 4 4 4 4 3 3 MARANHAO 3 3 4 4 4 4 1 2 2 2 3 PARA 3 4 3 3 2 3 4 3 2 2 2 RIO DE JANEIRO 25 19 19 16 15 12 13 5 3 2 1 ALAGOAS 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 AMAZONAS 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 RONDONIA 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 SERGIPE 4 4 4 4 4 2 1 0 1 1 1 ACRE 1 1 1 1 1 1 1 1 0 0 0 RORAIMA 1 1 1 1 1 1 1 0 0 0 0 Total 571 555 524 508 484 456 436 435 393 403 387 FONTE: RAIS
Essa nova situação de deslocamento de matéria-prima ocasionou o surgimento
de frigoríficos verticalizados até a fase do wet-blue (menor peso por pele para
transporte) e de curtumes na região centro-oeste, especializados até o wet-blue,
além de seções de acabamento junto aos fabricantes de calçados, visto que há a
necessidade das operações de acabamento estarem perto das fábricas devido à
flexibilidade de produção (variedade de lotes, cores, e outras características).
5.3.2 Frigoríficos
Apesar do grande número de abates anuais, como já visto anteriormente, a
principal matéria prima dos curtumes, a pele vacum é em média, de baixa qualidade.
Segundo a ABQTIC (1998), 15% dos defeitos dos couros são originados nos
frigoríficos e abatedouros (desembarque, pré-abate, abate e conservação). Após o
desembarque dos animais no frigorífico os mesmos são colocados nos currais de
descanso. Muitas vezes os postes dos currais e bretes são feitos com material duro
145
e em ângulo reto (canto vivo), possibilitando o surgimento de lesões. Em geral, os
animais em descanso brigam muito durante a noite tentando estabelecer
dominância, levando a riscos e contusões na carcaça. Normalmente nas salas de
abate e esfola dos frigoríficos o gado recebe cuidados que evitam o surgimento de
defeitos.
Já na sala de aparação, onde as peles são depositadas após a esfola, muitas
vezes as mesmas não recebem tratamento adequado, pois não são lavadas e em
alguns casos permanecem várias horas esperando pelo transporte, o que contribui
para o surgimento de defeitos de conservação. Em virtude dos hematomas, as áreas
que acumulam sangue, sofrem mais rapidamente os efeitos do ataque bacteriano
originando defeitos. Esse fato é reforçado por um entrevistado,
“A rápida degradação da pele em virtude da má conservação gera problemas
nas etapas posteriores, iniciando-se no recurtimento (wet-blue) e
intensificando-se no acabamento. Na valorização do couro o / / investe em
artigos alternativos, variando de lixamento, acabamentos e estampas.”
Os frigoríficos, por apresentarem uma estrutura produtiva e de abate mais
moderna que os matadouros e intermediários, constituem-se na melhor fonte de
matéria-prima de qualidade. Eles são os principais fornecedores de matéria-prima
para os curtumes, com 85% do volume (CICB, 1992), conseqüentemente, os
mesmos exercem forte influência na competitividade dos curtumes, e portanto na
filière couro.
Em decorrência da política governamental brasileira, que a partir dos anos 80,
começou a abrir a exportação de wet-blue pelo Norte e Nordeste impondo cotas e
que nos anos 90 retirou qualquer restrição, surgiu uma nova indústria de couros no
estágio wet-blue espalhada por todo o Brasil, trabalhando ao lado dos frigoríficos, ou
sendo de propriedade deles. Ou seja, alguns frigoríficos, através da visão de
oportunidade de negócio, devido ao intenso desenvolvimento da pecuária brasileira
em novas regiões, verticalizaram sua estrutura produtiva até o estágio do couro wet-
blue. Com essas mudanças, paralelamente surgiram outras, como o fim da reserva
de mercado de matéria-prima couro-cru, levando a mudança quase por inteiro do
sistema de comercialização de couros crus. A salga, que era mal feita e, portanto,
agregava custo de 10 – 15% sobre a matéria-prima, sem agregar qualidade ou
serviços, inviabilizou-se, assim como os curtumes que dependiam do fornecimento
de couro cru. Dessa forma, passou-se a produzir com mais competitividade
146
eliminando-se processos de salga que nada agregam, intermediações, tipificando-se
o couro na forma de wet-blue, e em decorrência surgem grandes indústrias de
couros acabados, que tem a possibilidade de abastecer-se tipificadamente, ao
contrário de toda a história anterior.
O Brasil é o único grande produtor mundial de couros crus que comercializa
miscelânea na origem, porque assim é o mercado nacional de bois, e de couro verde
por decorrência, e os curtumes teimavam ou eram obrigados a produzir miscelânea
de couros acabados. Essa desorganização econômica impedia a especialização e a
produtividade necessária para competir. Segundo um entrevistado,
“Esse é um processo em evolução, que será concluído quando a maioria dos
frigoríficos forem fornecedores de couro no estágio wet-blue, com esfola
impecável, curtimento adequado e padronizado, couros separados por raça,
tamanho e sexo.”
Essa tendência de organização setorial, poderá trazer ganhos através da redução
de custos tributários e de intermediação. Nesse sistema os EUA e a Austrália são
modelos acabados e podem ser exemplos. De acordo com um entrevistado,
“Cada vez mais os melhores e maiores frigoríficos aderem àquilo que é obvio
em matéria de ganhos setoriais. Essa mudança é saudável, inexorável e muito
bem-vinda. Será a base da moderna e nova indústria de acabamento de
couros no Brasil, que começou a surgir nos últimos anos.”
Assim, pode-se concluir que quanto mais frigoríficos passarem a curtir couros em
estágio wet-blue, menor será o custo, melhor será a matéria-prima, mais tipificado
será o couro, e em decorrência mais estabilidade e integração haverá no mercado.
Com a introdução, em 1995, do Programa Brasileiro de Melhoria da Matéria-
prima Couro Cru do CICB, já houve notável melhora ao nível de frigoríficos e com
isso um novo mercado foi criado. Os couros tem menos quantidade de furos e cortes
no carnal (5%) podendo ser largamente utilizados no mercado de estofamentos e
raspas.
Também a produção de raspas para materiais de segurança e calçados
econômicos cresce substancialmente. Assim pode-se dizer que nesse sentido as
mudanças trouxeram evolução.
147
5.3.3 Curtumes
5.3.3.1 Características do segmento coureiro
Como já visto anteriormente o setor coureiro é responsável por uma relevante
parcela da economia, com capacidade para atuar em novos mercados e com grande
potencial para aumentar a produtividade da cadeia em parceria com a pecuária e a
indústria manufatureira, com melhoria na qualidade do produto. Na Tabela 7 verifica-
se a produção brasileira de couros, assim como sua procedência na tabela 8.
Tabela 7: Evolução da produção de couros (nº de couros)
Tipo de movimento ao ano 1995 1996 1997 1998 1999 Produção de couros 27,00 28,50 29,10 30,20 31,30 Importações de couros 2,45 2,50 2,43 3,23 2,66 Total de disponibilidades 29,45 31,10 31,53 33,43 33,96 Exportações dir. de couro 11,64 14,52 15,82 15,58 14,87 Exportações ind.de couro 6,57 6,79 6,78 6,23 6,53 Cons. doméstico de couro 11,24 9,69 8,93 11,62 12,56
Fontes. SECEX/CNPC/ABICALÇADOS/AICSUL
Tabela 8: Estimativa da procedência de peles bovinas por região do Brasil - 1999
REGIÃO Nº COUROS PART.(%) Norte 570.369 1,89
Nordeste 2.890.845 9,57 Sudeste 11.248.486 37,25
Sul 12.652.908 41,90 Centro-oeste 2.837.392 9,40
TOTAL 30.200.000 100,00 Fonte: CNPC / IBGE / Estimativas: ABICOURO / AICSUL
No que diz respeito à qualidade das peles, observa-se pela tabela 9 que 85% é
de segunda, terceira e quarta categoria, confirmando o que já foi visto anteriormente.
Na Tabela 10 constata-se as quantidades produzidas por tipo de curtimento,
observando-se que o tipo de curtimento que agrega maior valor ao couro é o
acabado.
148
Tabela 9: Qualidade do couro produzido
Especificação % Primeira 15 Segunda 30 Terceira 20 Quarta 15 Outros 10
Fonte: CICB
Quanto a exportação, a tabela 10 mostra as quantidades exportadas por tipo de
curtimento, verificando-se que o maior volume exportado é de couro wet-blue. Já o
couro acabado é o que tem a maior rentabilidade.
Tabela 10: Exportações brasileiras de couro 1996 1997 1998 1999 Tipo US$
mil Couros milhões
US$ mil
Couros milhões
US$ mil
Couros milhões
US$ mil
Couros milhões
Peles salgadas 17.222 0,94 11.851 0,58 12.378 0,71 3.725 0,31 Couros wet-blue 335.710 10,04 394.584 11,42 381.371 11,56 303.061 10,32 Couros semi-acabados 106.572 1,62 134.864 1,83 120.346 1,73 131.466 2,21 Couros acabados 167.807 1,92 177.951 1,99 140.401 1,58 147.349 2,03 Export. dir. de couro 14,52 15,82 15,58 14,87
Fonte: FNP/SECEX/DECEX
O Estado do Rio Grande do Sul, como já visto anteriormente tem expressiva
participação no total exportado pelo país, tabela 11.
Tabela 11: Participação dos estados na exportação de couro – 1999
Em US$ mil
Estado Situação Monetária Rio Grande do Sul 242.347
São Paulo 141.267 Paraná 67.945
Minas Gerais 35.715 Ceará 23.794 Bahia 16.954
Santa Catarina 13.528 Mato Grosso 12.990
Mato Grosso do Sul 10.309 Pernambuco 9.642
Outros estados 25.711 Fonte: AICSUL
Apesar da exportação, o Brasil tem necessidade de importação (tabela 12),
principalmente devido a baixa qualidade do couro nacional.
149
Tabela 12: Procedência das Importações de Couro – Brasil
1999 1998 % 1999 1998 % Países Sit. Monetária part Sit. Física (Kg)
Argentina 87.524.021 85.651.037 62,00 4.766.085 5.441.381 23,49 Uruguai 14.279.305 5.452.155 10,12 956.068 1.098.573 4,71 Austrália 5.894.929 4.508.205 4,18 1.698.224 1.476.590 8,37 Bangladesh 5.622.519 7.492.819 3,98 267.634 388.495 1,32 Itália 3.653.842 4.004.779 2,59 646.595 755.973 3,19 Estados Unidos 3.410.498 6.925.817 2,42 521.625 951.142 2,57 Indonésia 3.026.183 197.724 2,14 666.350 70.903 3,28 China 2.674.749 3.995.758 1,89 890.445 976.104 4,39 Coréia do Sul 2.086.928 4.841.462 1,48 1.563.680 3.279.597 7,71 Países Baixos 2.041.695 4.678.634 1,45 1.999.042 2.685.726 9,85 SUB-TOTAL 130.214.669 127.748.390 92,25 13.975.748 17.124.484 68,88 Demais Países 10.946.509 18.228.022 7,75 6.312.934 6.465.597 31,12 TOTAL 141.161.178 145.976.412 100,00 20.288.682 23.590.081 100,00
Fonte: SECEX
O Rio Grande do Sul também é o estado que mais importa couros, como pode
ser verificado na figura 20.
Figura 20: Importação de couros por estado
Fonte: AICSUL/MDIC/SECEX
Na década de 1980 com o início das grandes exportações de calçados, os
curtumes, no auge de suas produções, abasteciam as fábricas de calçados
utilizando uma política de preços simplista, pois como não havia problema de
vendas, o preço de comercialização do produto era aquele que o mercado
suportava. Os importadores de calçados, entretanto, traziam os pedidos com preços
já definidos, uma nova política de compra até então desconhecida para o setor. Os
calçadistas encontrando dificuldades no repasse de seus custos procuraram utilizar
essa política de compra junto aos curtumes. Segundo um entrevistado,
0 20 .000 40 .000 60 .000 80 .000 100 .000 120 .000 140 .000
R . G rande do S ul
S ão P aulo
P ara íba
C eará
P araná
P iauí
B ahia
US$ mil
150
“. . . logo, as fábricas de calçados começaram a invadir o mercado de peles,
abastecendo-se das matérias-primas dos curtidores e mandando beneficiá-las
em curtumes de menor porte, via de regra descapitalizados, e dessa forma
conseguiram reduzir o custo desse material na produção de seus calçados.”
Entretanto, esse novo ciclo da indústria curtidora, mostrou que os seus
administradores não se encontravam suficientemente preparados para enfrentar
esse novo momento. Produzir para vender, que era a sua estratégia, levou
repentinamente a uma descapitalização cruel através das vendas dos estoques a
preços aviltados.
Dessa forma, o quadro reverteu-se e nesse novo contexto, a primeira providência
a ser tomada seria o de vender para produzir. Foi descoberto então que os
empresários do setor não haviam adquirido experiências suficientes para venderem
os seus produtos e compreenderam que, até esse momento, esses eram
simplesmente comprados. Essa é uma opinião quase unânime entre os
entrevistados.
Portanto em decorrência do crescimento das empresas de calçados voltadas a
exportação e que era fortemente incentivada pelo governo, as fábricas de calçados
tornaram-se bem capitalizadas, modernizaram-se e iniciaram processos de
importação de semi-terminados, para suprir suas necessidades adicionais que os
curtumes não tinham condições de atender abrindo um novo mercado setorial,
segundo um entrevistado:
“A entrada das seções de acabamento no mercado estrategicamente
localizadas perto do mercado consumidor (uma lacuna deixada pelos próprios
curtumes), e com elas a produção e a venda agilizada suprindo as
necessidades das empresas calçadistas consumidoras de couros) ...”
Assim surgiu um novo segmento de mercado de semi-terminados e
posteriormente de wet-blue (cujos produtores estrategicamente localizaram-se perto
dos grandes centros de abate) que passaram a fornecer parte das necessidades das
fábricas de calçados, ou seja, couros destinados as seções de acabamento.
Também abriram-se novos mercados com a exportação de couros semi-
terminados e acabados, buscando-se especialização em vestuário, estofamento e
outros. Normalmente destinados a exportação, por parte dos curtumes que estavam
fora do eixo calçadista pela impossibilidade de obter a mesma agilidade em produzir
e entregar.
151
Outro fato interessante dessa época, é o surgimento dos chamados curtumes de
pasta, ou seja, empresários que aproveitando-se da ociosidade setorial e do
definhamento financeiro, isentando-se dos custos fixos crescentes inerentes a uma
empresa formada com ativos permanentes de alto valor e uma estrutura familiar as
vezes bastante pesada, “processavam” o couro em estruturas inexistentes, com a
finalidade de obter vantagens fiscais.
No momento seguinte, com a descapitalização da indústria calçadista, que já não
tinha mais fôlego para suportar um ciclo produtivo tão grande com formação de
estoques indesejados, devido ao fim da concessão dos incentivos e juros baixos, as
seções de acabamento transformaram-se em prestadores de serviços para os
curtidores (com couro próprio, não mais de terceiros).
Em seguida, inicia-se uma nova era no setor com a visualização de que exportar
wet-blue não exigia um capital de giro tão grande, levando a construção de mais
curtumes e o início de um processo de concorrência que pela lei natural de mercado
foi fortalecendo alguns e enfraquecendo outros.
Com a forte concorrência ocasionada pela globalização, os curtumes integrados
lutam para conseguir igualdade de condições na exportação (equalização de tarifas),
buscando por cinco anos a retirada do imposto de importação incidente sobre semi
terminados e acabados na comunidade européia e posteriormente, solicitando
imposto de exportação de wet-blue sob forma de regular esta diferença de
competitividade.
Todos esses fatos aliados as flutuações das moedas ao nível mundial,
ocasionadas pelos ajustes dos blocos econômicos e pela globalização da economia,
levaram a decadência do setor coureiro, na década de 90, principalmente pela falta
de gerenciamento, alto grau de capacidade ociosa e concorrência desleal.
5.3.3.2 Análise do Processo Produtivo
O fluxo de matéria-prima nos curtumes, geralmente, passa por três operações:
• Operação de ribeira: quando são retiradas todas as estruturas e
substâncias não formadoras do couro;
• Curtimento: as peles previamente preparadas são tratadas com
substâncias químicas curtentes, que as tornam imputrescíveis;
152
• Acabamento: a partir das operações de tingimento, engraxe, secagem e
acabamento, dá-se o aspecto e aparência desejada ao couro pronto
(Hoinacki & Cutheil, 1978).
Em função dessas operações pode-se afirmar que o couro passa por quatro
estágios, conforme pode ser visto na figura 21.
Figura 21: Estágios de transformação da pele em couro
Acabamento
Operação de ribeira e curtimento
Peles
Wet-blue
Semi-acabado(Crust)
Acabado
153
O processo de industrialização de couros possui várias etapas como pode ser
visto na figura 22.
Figura 22: Etapas da industrialização do couro
A seguir, encontram-se descritas as principais etapas envolvidas no
processamento de couros, com o objetivo de facilitar a compreensão do estudo e da
análise da Indústria de Curtumes do Estado.
a) Conservação de peles
A pele, em seu estado natural, constitui-se num substrato protéico muito
hidratado ou seja, com um teor de água entre 60 e 65% e, como todo material de
origem animal é putrescível. Ao ser retirada do animal, ela deveria ser
imediatamente industrializada o que, na prática muitas vezes não ocorre. Torna-se,
Matéria prima
Remolho
Depilação - caleiro
Descarne
Divisão
Pesagem
Lavagem
Descalcinação
Piquel
Curtimento
Enxugamento
Rebaixamento
Neutralização
Recurtimento
Tingimento
Engraxe
Estiramento
Secagem
Condicionamento
Amaciamento
Estaqueamento
Lixamento
Remoção do pó
Impregnação
Acabamento
Prensagem
Medição
Expedição
Operações de Ribeira
Operações de Curtimento
Operações de Acabamento
154
com isso necessário tratá-la adequadamente, para que possa ser levada ao curtume
e industrializada com os menores danos possíveis.
As técnicas de conservação são variadas, mas as duas mais utilizadas são a
secagem, que reduz o teor de umidade para cerca de 15%, e a salgagem, que reduz
o teor para cerca de 40% (SENAI, 1994). Na figura 23 pode-se observar os resíduos
dessa operação bem como sua origem.
Figura 23: Conservação das peles
Apesar da conservação de peles continuar sendo uma etapa de primordial
importância no processo de beneficiamento e na qualidade do produto final, na
última década, foram poucas as novidades introduzidas nesta área. Diversas
pesquisas foram efetuadas, em outros países, e várias técnicas alternativas
desenvolvidas, mas sua aceitação e emprego continuam limitados, sobretudo no
Brasil.
A conservação das peles brutas sem emprego do sal teria grandes vantagens do
ponto de vista ecológico, porque a presença de grandes quantidades de cloreto de
sódio e de outros sais solúveis no efluente faz aumentar a pressão osmótica do
terreno, obstaculizando as funções fisiológicas das plantas e, nos cursos d´água
impede o crescimento de algumas espécies de peixes. b) Remolho
O remolho tem por finalidade repor, no menor espaço de tempo possível, o teor
de água apresentado pelas peles quando estas recobriam o animal. Essa etapa
deve ser convenientemente conduzida, pois qualquer excesso ou deficiência causa
problemas às operações posteriores.
Além de repor a água que foi removida na conservação, tem ainda por finalidade
limpar as peles eliminando impurezas aderidas aos pêlos, bem como extrair
proteínas e materiais interfibrilares. O tempo gasto nessa etapa depende do tipo de
Resíduo sólido
Resíduo líquido
Resíduo gasoso
Barraca de couro
salgado
Gases oriundos das peles
Líquidos oriundos das peles
Sal, pedaços de pele
155
conservação e do estado das peles. Geralmente a água utilizada nessa fase é
ligeiramente alcalinizada e contém desinfetante, facilitando assim a remoção de
sujeiras, sangue, soro, sal e algum sebo. Na figura 24 pode-se observar as etapas
da operação assim como os resíduos e sua origem.
Figura 24: Operação do remolho
Utiliza-se, no processo de curtimento, aproximadamente 300% de água em
relação ao peso das peles no pré-remolho e mais 300% no remolho. No remolho, a
percentagem de água utilizada está em torno de 12% do volume total e a Demanda
Bioquímica de Oxigênio34, realizado teste em 5 dias, (DBO5) em torno de 5% da
DBO total do efluente (Braile, 1979). c) Depilação e caleiro
É uma da fases iniciais mais importantes do curtimento. Tem por objetivo a
retirada dos pêlos e da epiderme, bem como provocar o inchamento da pele, preparando as fibras colágenas e elásticas para serem curtidas e, também,
saponificar as gorduras. Consiste num banho de aproximadamente dezessete horas,
com agitação periódica numa solução contendo água, sulfeto de sódio e cal
hidratada.
O sulfeto de sódio, em meio alcalino, destrói os pêlos. Sua maior ou menor
concentração irá determinar se os mesmos serão recuperáveis ou não. Quando não
34 Demanda Bioquímica de Oxigênio avalia a quantidade de oxigênio dissolvido em mg/l que será
consumida pelos organismos aeróbios ao degradarem a matéria orgânica.
Resíduo sólido
Resíduo líquido
Pré-remolho
Pré-descarne
Remolho Resíduo líquido
Banho residual de remolho
Resíduo líquido
Resíduo da descarnadeira
Banho residual pré-remolho
Carnaça
156
for economicamente interessante sua recuperação, os pêlos serão completamente
destruídos. Na figura 25 pode-se observar a operação de depilação e caleiro assim
como os resíduos gerados e sua origem.
Figura 25: Operação de depilação e caleiro
Os despejos do caleiro e depilação são nocivos às instalações de esgotos e aos
cursos d´água pois os sulfetos transformam-se facilmente em gás sulfídrico (H2s)
pela ação de ácidos ou de microorganismos. O H2S é tóxico e na presença de
oxigênio e bactérias, transforma-se em ácido sulfúrico (H2SO4), que corrói os
encanamentos e remove o oxigênio porventura existente nos fluxos dos esgotos,
tornando-os sépticos. d) Descarne
Denomina-se de descarne a remoção do tecido adiposo e do sebo aderentes à
face interna da pele. Essa operação pode ser feita em máquina descarnadeira, a
qual remove a parte indesejável (carnaças), ou através de descarnagem manual
(figura 26), que é feita por operários que efetuam também, a retirada das aparas de
peles, removendo irregularidades da periferia das mesmas. As partes removidas
tomam o nome de pelancas, podendo ser transformadas em cola de gelatina ou cola
de carpinteiro.
Figura 26: Operação de descarnagem manual
Resíduo sólido
Resíduo líquido
Resíduo gasoso
Depilação e caleiro
Gases oriundos das peles
Banho residual depilação e caleiro
Pelos
157
O sebo é recuperado em quase todos os grandes curtumes sendo o subproduto
de maior valor. É utilizado na fabricação de sabão, graxas e velas. A descarnagem
permite uma penetração mais fácil e mais eficiente dos curtentes.
Na figura 27 pode-se observar a operação de descarne, suas etapas, os resíduos
decorrentes e sua origem.
Destaca-se a importância que essa operação oferece no tratamento de efluentes,
visto que diminui o teor de gordura nos banhos residuais. A gordura no efluente
provoca inconvenientes, como obstrução dos equipamentos tais como a flotação em
decantadores. Quando os efluentes chegam aos corpos receptores com excesso de
gordura (óleos e graxas), essas por serem menos densas que a água, flotam à
superfície dos mesmos, formando uma barreira que bloqueia a passagem da luz,
impedindo a fotossíntese. Depósitos de gordura nos rios e lagos são nocivos á
vegetação aquática.
Figura 27: Operação de descarne
e) Divisão
Após o descarne, a pele é submetida à divisão. A operação de dividir ou de
rachar, consiste em separar a pele em camadas, no sentido de sua superfície,
horizontalmente. O número de camadas é variável, dependendo da espessura da
pele. Normalmente são duas: a parte superior, a mais nobre, onde originalmente
estavam implantados os pêlos, denominada flor, e a parte inferior, considerada
Resíduo sólido
Resíduo líquido
Lavagem
Descarne
Recorte Resíduo sólido
Aparas caleadas
Resíduo líquido
Resíduo da descarnadeira
Efluente lavagem das peles
Carnaça
158
como subproduto, embora também sirva para a elaboração de produtos nobres, tais
como camurções para calçados e vestimentas, denominada de raspa ou crosta. Na
figura 28 pode-se observar a operação de divisão e os resíduos resultantes bem
como sua origem.
159
Figura 28: Operação de divisão
f) Descalcinação e purga
Após a divisão, as peles são recolocadas no fulão e submetidas a dois processos
químicos simultâneos. A finalidade do primeiro, que também é chamado de
desencalagem, é baixar o grau de acidez, ou seja, o pH que, na depilação chega a
13,0, passando para 8,0 - 8,5, neutralizando a cal contida na pele. A intensidade
com que as peles são desencaladas é função do processo a ser seguido, ou tipo de
couro a ser obtido. A purga, que é um tratamento enzimático, tem por finalidade
eliminar restos de sangue porventura existentes entre as fibras e nos vasos
sangüíneos, digerir gorduras naturais e melhorar a qualidade da elastina. É um
processo que precisa ser muito bem controlado quimicamente. Na purga, o pH baixa
um pouco, em razão da presença de sais neutros ou levemente ácidos com os quais
é misturada. Ao final desse processo as peles são lavadas com água. Na figura 29
pode-se observar a operação de descalcinação e purga, os resíduos gerados e sua
origem.
Figura 29: Operação de descalcinação e purga
Divisão
Lavagem Resíduo líquido
Efluente da lavagem
Resíduo líquido Resíduos da divisora
Flor Raspa Resíduo sólido
Recorte da raspa
Resíduo líquido
Resíduo gasoso
Lavagem Resíduo líquido
Efluente da lavagem das peles
Gases oriundos do processo
Banho residual
Descalcinação e purga
160
g) Píquel e curtimento
O píquel, também realizado no fulão, é um tratamento salino-ácido que tem duas
finalidades: conservação35 e preparação das peles para o curtimento propriamente
dito. O pH final varia com o tipo de curtimento que se emprega.
O processo de curtimento converte o colágeno, que é o principal componente do
couro, em uma substância imputrescível. Além disso, o curtimento confere o tato
necessário e as características químicas e físicas principais do couro. Basicamente,
são dois os tipos principais de curtimento utilizados pelos curtumes brasileiros:
curtimento ao cromo e curtimento vegetal. Essa etapa possui um efluente com
características bastante ácidas. Na figura 30 pode-se observar a operação de píquel
e curtimento e seus resíduos.
O cromo constitui o principal problema de poluição para a maioria dos curtidores.
Não apenas por ser utilizado em 90% da produção de couro, mas também por ser
considerado um contaminante classe I (perigoso), de difícil tratamento. A
substituição do cromo no processo de curtimento já foi exaustivamente testada. Até
hoje, no entanto, não se desenvolveu nenhuma alternativa de curtimento que se
igualasse à sua eficiência de desempenho e de custos.
35 Pode-se comercializar as peles neste estágio
161
Figura 30: Operação de píquel e curtimento
h) Rebaixamento
A divisão, por mais exata que seja, não deixa a pele uniforme depois do
curtimento. Efetua-se então, a operação de rebaixe que consiste em equalizar a
espessura da pele. Desta operação, feita através da máquina de rebaixar ou
rebaixadeira resulta uma espécie de farelo, denominado serragem, resíduo sólido
muito problemático para os curtumes devido ao volume gerado. Na figura 31 pode-
se observar a operação de rebaixamento e seus resíduos.
Figura 31: Operação de rebaixamento
i) Neutralização, recurtimento, tingimento e engraxe
Esses processos, efetuados após o rebaixamento, são feitos em fulões.
Dependendo do fim a que se destina o couro, executam-se todos ou parte deles. No
curtimento mineral, a neutralização e o engraxe são indispensáveis.
A neutralização age sobre os ácidos livres que, porventura, se encontrem no
couro após o curtimento. O recurtimento é que vai dar uma série de características e
propriedades ao couro, de acordo com a sua finalidade. O tingimento dá a cor que
Píquel e curtimento
Descanso
Resíduo líquido
Efluente oriundo das peles
Banho residual de curtimento
Resíduo líquido
Rebaixamento
Exugamento Resíduo líquido
Resíduo de enxugadeira
Farelo de rebaixadeira Resíduo sólido
162
se deseja para o produto final e o engraxe, além de lubrificar e proteger as fibras do
couro, dá maior maciez e um toque agradável ao material. Nessas etapas, o efluente
sai com grande quantidade de anilinas e corantes, óleos e engraxantes e também
com sais minerais. Na figura 32 pode-se verificar algumas etapas da operação de
acabamento, bem como seus resíduos.
Figura 32: Operação de acabamento
j) Secagem, amaciamento e acabamento final
Essas últimas operações mecânicas variam muito de curtume para curtume,
sempre dependendo do produto final desejado. A secagem visa reduzir o teor de
água do couro. Normalmente, o couro final deverá apresentar cerca de 14% de
água, representada pela água quimicamente ligada às proteínas e pela água dos
capilares finos. Essa água deverá permanecer após a secagem, pois a sua
eliminação transformaria os couros em materiais sem as desejadas características
de elasticidade, flexibilidade, maciez e toque.
O couro, normalmente, é submetido a uma operação mecânica, antes da
operação da secagem. Esta operação é executada em máquina de enxugar e estirar
e tem por finalidade reduzir o teor de água de 70% para 50%. Na secagem, são
Recurtimento
Neutralização Resíduo líquido
Banho residual da neutralização
Banho residual do recurtimento
Resíduo líquido
Tingimento Resíduo líquido Banho residual do
tingimento
Engraxe Resíduo líquido Banho residual do
engraxe
163
empregados vários sistemas, variando desde o mais rudimentar, de secagem ao ar
até processos mais complexos e sofisticados, como a secagem com alta freqüência.
O amaciamento é feito em máquinas específicas e serve, como o nome já
esclarece para amaciar o couro. O acabamento serve para conferir a aparência e
atributos finais do couro, tais como cor, toque e outros. Na figura 33 podem-se
observar as operações de acabamento final, seus resíduos e sua origem.
5.3.3.4 Considerações importantes
O setor de curtumes é formado por aproximadamente 400 empresas, nos mais
variados estágios de produção. A competição entre eles se dá basicamente por
preço, principalmente no que diz respeito aos estágios iniciais, onde a possibilidade
de diferenciação é menor. Os couros cru, wet-blue e semi-acabado podem ser
considerados como bens do tipo quasi-commodity, entretanto, o couro acabado
oferece possibilidade para diferenciação de produto. O segmento mais rentável é o
de couro para calçados de segurança, estofados e vestuário. Contudo, esse
mercado exige maiores investimentos em equipamentos e treinamento para alcançar
o nível de qualidade exigido.
164
Figura 33: Operações de acabamento final
Estiramento
Cavalete Resíduo líquido
Efluente oriundo das peles
Efluente oriundo das peles Resíduo líquido
Secagem
Estaqueamento
Amaciamento
Recorte Resíduo sólido Aparas de couro semi-
acabado
Lixamento Resíduo sólido Pó da lixa e material
particulado
Impregnação
Resíduo sólido Pó da lixa e material particulado
Acabamento Resíduo gasoso Gases oriundos do
processo
Prensagem
Expedição
Medição
Condicionamento
Desempoamento
165
O investimento em equipamento constitui-se uma barreira a novos entrantes, a
qual nos últimos anos é reforçada pela necessidade de investimentos em tratamento
de efluentes. Em virtude do uso intensivo de insumos químicos com potencial
poluidor no processo produtivo dos curtumes, os mesmos são vistos como
tradicionais poluidores, gerando pressão para instalação de estações de tratamento
gerando custo adicional para os curtumes. Contudo, existindo capital para os
investimentos necessários, o setor não apresenta barreiras tecnológicas à entrada
de novos competidores, principalmente nos estágios iniciais menos elaborados e
que suportam pessoal desqualificado.
Ao mesmo tempo, o processo produtivo, ao contrário dos calçados, permite um
maior nível de automação. Como exemplo, pode-se citar o caso dos fulões,
equipamento onde é feito o tratamento químico do couro wet-blue, onde todos os
parâmetros (temperatura, composição química da solução, tempo de exposição,
velocidade e outros) podem ser controlados por controladores lógicos programáveis
(CLP). Ainda nessa linha, já existem curtumes com suas operações totalmente
automatizadas, com exceção da seleção do couro. Essa automação possibilita a
substituição da mão-de-obra que é desqualificada, por um menor número de
técnicos melhor treinados.
Com relação aos equipamentos utilizados nos curtumes, a Itália tem a tradição de
fabricar os melhores e mais modernos equipamentos, no entanto existem
equipamentos similares fabricados no Brasil, porém os equipamentos brasileiros tem
um custo mais alto. Isso deve-se ao fato de que o Governo italiano, com finalidade
de preservar seus fabricantes de equipamentos para curtume, criou um sistema de
financiamento a longo prazo com juros mais baixos. Dessa forma os equipamentos
italianos são vendidos para curtumes do mundo inteiro.
No entanto, quanto ao equipamento em si, existem alguns diferenciais
tecnológicos apresentados pelos italianos, por exemplo, os fulões fabricados na
Itália são de aço inoxidável enquanto que os fabricados no Brasil são de madeira
(figura 34), portanto mais pesados. E ainda os fabricados na Itália permitem alguns
tipos de reciclagens de água e outras soluções. Tal fato foi salientado por um
entrevistado,
166
“Grande parte das nossas máquinas em nossas duas unidades no Rio Grande
do Sul são importadas da Itália. E em nossa nova unidade que está sendo
instalada no Centro-Oeste, em Mato Grosso do Sul, 100% das máquinas está
sendo importada da Itália. . . Até mesmo os fulões.”
Porém esse procedimento desse entrevistado em particular, em relação aos
equipamentos e máquinas de seus curtumes, não reflete a realidade dos demais. Na
maioria das vezes os curtumes optam por comprar máquinas italianas em função da
relação custo/qualidade ou em função de não haver similar nacional.
Os principais insumos dos curtumes são o couro e os produtos químicos. A
seguir serão feitas algumas considerações com relação aos produtos químicos
utilizados na operação de curtimento.
Figura 34: Fulões de madeira
Apesar do grande número de substâncias orgânicas e inorgânicas, é
relativamente pequeno o número de substâncias capazes de agirem eficientemente
como curtentes, que podem ser classificados em três tipos:
• Curtentes minerais, que são os sais de cromo que são os mais utilizados, sais
de titânio, sais de alumínio;
• Curtentes vegetais. Os principais são o extrato de quebracho (árvore nativa
da região de Chaco (Argentina e Paraguai) que levam de 60 a 80 anos até
atingir a idade de corte. Extrato de castanheiro, árvore cultivada na França,
Itália e Iugoslávia e que leva de 30 a 40 anos para atingir a idade de corte. E
extrato de acácia negra (ou acácia mimosa), que é uma árvore nativa da,
Austrália, porém muito cultivada no Brasil e na África do Sul. Países em que
leva de 7 a 8 anos para atingir a idade de corte. Esse último é o mais
utilizado;
• Curtentes sintéticos, fenólicos, naftênicos, acrilatos e glutaraldeído.
167
Outros produtos químicos utilizados, já descritos anteriormente, são sulfeto de
sódio, aminas, ácidos, corantes, óleos, graxas, resinas, pigmentos caseínicos, lacas.
Há indústrias químicas produtoras desses insumos, de todos os portes (pequenas,
médias e grandes). Na última década, devido ao surgimento de muitas indústrias de
pequeno porte oferecendo produtos com menor custo, algumas grandes e
tradicionais empresas multinacionais da área química uniram-se com a finalidade de
reduzir custos operacionais tentando manter a competitividade.
O aparecimento dessa grande quantidade de pequenas empresas nessa área é
um fenômeno global e deve-se ao fato de que as formulações desses produtos
químicos são relativamente simples, partindo na maioria das vezes de commodities.
E ainda as pequenas empresas tem um custo fixo, administrativo e operacional
menor e são mais flexíveis, portanto conseguem praticar preços menores e atender
melhor o mercado do que as grandes empresas que possuem uma estrutura
pesada.
Um entrevistado, grande conhecedor da área acrescenta que,
“Nos últimos anos, não houve grande desenvolvimento técnico nessa área.
Isso deve-se ao fato de que a atividade curtidora está em declínio na Europa,
origem da maior parte das multinacionais da área. Logo, como a atividade
curtidora está centrada em países em desenvolvimento o esforço em P & D é
muito pequeno. Esse fato aliado ao esforço mínimo e incipiente das empresas
nacionais não resulta em muitas inovações.”
Para os dois insumos (químico e couro) existe um controle de qualidade nas
várias fases do processo produtivo, por parte dos curtumes. Além disso, em várias
fases do processo produtivo, inclusive no recebimento de matéria-prima, pratica-se
controle estatístico da qualidade. A qualidade nos curtumes já é vista como
qualidade de processo e não apenas como qualidade de inspeção do produto, o que
representa uma evolução em termos gerenciais.
Do ponto de vista gerencial, pode-se identificar alguns pontos fracos na estrutura
dos curtumes, provavelmente decorrentes da estrutura familiar predominante e do
baixo nível de profissionalização da direção das empresas:
168
• Falta de sinergismo com os demais agentes da filiére;
• Ausência de planejamento estratégico na maioria das empresas. Logo, não há
definição da sua missão e seus objetivos de médio e longo prazo;
• Falta de preocupação com a avaliação das oportunidades de mercado, seja
interno ou externo;
• Ausência de uma política de pessoal para os empregados, principalmente quanto
ao treinamento.
• Ausência de uma estrutura adequada de planejamento da produção a médio e
curto prazos;
• Baixo investimento em P&D (pesquisa e desenvolvimento). Não há muita visão
para uma maior diferenciação do produto ofertado e redução nos custos de
produção. Surge a maior necessidade de parceria com os fornecedores visando
um trabalho conjunto para melhorar a eficiência coletiva e aumentar o número de
inovações;
Quanto aos técnicos, alocados como gerentes no chão de fábrica, os mesmos
apresentam deficiências quanto ao gerenciamento de pessoas e recursos materiais.
Além disso, os empregados no chão de fábrica apresentam baixo nível educacional,
constituindo-se de mão-de-obra desqualificada e algumas vezes analfabeta
(Zdanowicz, 1992).
129
5.4 Análise Técnico-Econômica dos Fabricantes de Calçados de Couro
5.4.1 Caracterização do segmento calçadista
No Brasil, seguindo a tendência mundial, os sistemas de manufatura vêm
introduzindo novas formas de organização industrial. A maior diferença está em
situações características como: instabilidade de demanda, instabilidade da política
econômica do governo, altas taxas de juros, baixa escolaridade e analfabetismo,
mercado consumidor restrito, entre outros.
Vale ressaltar que, nesse ramo, custo baixo é condição fundamental para
aumentar faturamento. Ao contrário de outros segmentos onde a empresa fixa seus
preços de venda, no segmento calçadista, principalmente o de calçados femininos, o
preço de venda é determinado pelo mercado. Além disso, os consumidores hoje
procuram e exigem qualidade nos seus produtos, não mais conferindo ao preço, o
papel de único determinante na escolha dos produtos.
Ao contrário do que acontece nos sistemas produtivos em geral, as mudanças
ocorridas no âmbito do mercado interno têm seguido um ritmo acelerado. Alguns
fatores como: a mudança no comportamento dos consumidores, as alterações na
distribuição de renda, a evolução da moda e a utilização de materiais alternativos36
podem ser responsáveis por essas mudanças de mercado.
Apesar de ser um ramo bastante competitivo, até algum tempo, as grandes
empresas, de modo geral, ocupavam as faixas de mercado correspondentes aos
calçados de melhor qualidade e mais alto preço. Assim, as grandes e pequenas
empresas competiam em faixas de mercados diferenciados.
36 Parcelas do mercado interno foram conquistadas pelos calçados de borracha e plástico
130
Porém essa situação vem se transformando. De acordo com um entrevistado,
“A situação hoje mudou, pois facilmente depara-se hoje com grandes
empresas produzindo sapatos de preço baixo, porém, de alta qualidade.
Igualmente, pode-se assinalar empresas pequenas produzindo sapatos finos,
direcionados a um público classe A. Essa situação é possível ser verificada
tanto em empresas nacionais como internacionais.”
Pode-se afirmar, no entanto, que existe uma competição diferente no que se
refere ao tipo de calçados produzidos. Isso pode ser comprovado com a introdução
dos sapatos chineses no mercado mundial. Pode-se claramente perceber que esses,
por serem calçados populares, estão concorrendo diretamente com as empresas
nacionais que produzem calçados populares. Empresas direcionadas a classes mais
elevadas, produzindo sapatos sociais em materiais de alta qualidade, enfrentam
concorrência de países como Itália e Espanha. O problema da grande concorrência,
forçou as empresas do ramo calçadista, a atribuírem maior atenção a outros
problemas. Dentre eles se destacam os de gestão da produção, dada a necessidade
de reduzir custos e cumprir prazos de entrega.
A indústria calçadista periodicamente atravessa um período considerado crítico
pelos próprios empresários: o momento do lançamento de novas coleções. Esse
processo de criação de novos modelos é, indiscutivelmente, uma das atividades
mais importantes da empresa, uma vez que sua sobrevivência depende do sucesso
de seus lançamentos. A indústria de calçados, principalmente o segmento de
calçados femininos, é uma indústria de moda. Assim, devido ao grande número de
empresas e conseqüentemente de opções de compra, uma coleção errada poderá
desestabilizar a empresa.
O processo de criação tem início com o profundo conhecimento da moda e suas
tendências, para que se defina o estilo a ser seguido. As empresas grandes e
médias costumam enviar representantes à Europa para se certificarem do estilo a
seguir. Após essa decisão tem início o processo de modelagem, incluindo a escolha
das formas, solados e saltos a serem usados. Durante essa etapa desenvolvem-se
vários modelos e testam-se vários materiais e cores. Apenas algumas combinações
são aprovadas e selecionadas para comporem o lançamento. Essas combinações
sofrerão ainda, testes de resistência, colagem, durabilidade, conforto, entre outros.
131
A produção de calçados e insumos se concentra em três regiões de alta
capacidade produtiva. Na região sul do Brasil encontra-se o complexo industrial do
Vale dos Sinos, considerado o maior pólo coureiro-calçadista do mundo. O sudoeste,
representado por Franca, Birigüi e Jaú, caracteriza-se por sua grande diversidade
fabril. O nordeste brasileiro se apresenta como um importante pólo de crescimento
do setor, sendo o resultado da expansão das indústrias sediadas nas regiões do
Vale dos Sinos e de Franca.
O setor calçadista brasileiro, constituído quase totalmente por capital nacional, é
composto por aproximadamente 4 mil empresas, que geram aproximadamente 300
mil empregos diretos e indiretamente, mais de 700 mil, caracterizando-se, portanto,
por ser intensivo em mão-de-obra. Apresenta capacidade instalada estimada em 560
milhões de pares/ano, sendo 70% destinados ao mercado interno e 30% à
exportação, e faturamento de US$ 8 bilhões/ano, segundo BNDES (1999). Com
esses números o Brasil se coloca como o 3º produtor mundial de calçados, com 4,7
% de participação na produção mundial, que em 1998 foi de 10.979 milhões de
pares, conforme pode-se observar na tabela13.
Tabela 13: Mercado mundial de calçados - Produção
(em milhões de pares)
País 1996 País 1997 País 1998 China 4.500 China 5.252 China 5.520 Índia 700 Índia 680 Índia 685 Indonésia 635 Brasil 544 Brasil 516 Brasil 586 Indonésia 527,2 Itália 424,9 Itália 482,7 Itália 460 Indonésia 316,3
Fonte: Estimativa da SATRA
O Vale dos Sinos, no Estado do Rio Grande do Sul, produz cerca de 178 milhões
de pares/ano, aproximadamente 40% da produção nacional e participa com 75% das
exportações totais. A Cidade de Franca (SP), produz cerca de 29 milhões de
pares/ano, ou seja, 6% da produção nacional e responde por 3% das exportações
totais. O pólo de Jaú (SP) tem uma produção estimada em 60 mil pares/dia e Birigüi
(SP) com 90 mil pares/dia. A região Nordeste é responsável por cerca de 15% das
exportações totais brasileiras. A empresa Azaléia (RS) é a maior fabricante de
calçados do Brasil e uma das cinco maiores do mundo. Lidera a produção de
calçados femininos do país (30 milhões de pares/ano) e detém cerca de 15% do
mercado. As empresas Agabê, Sândalo e Samello (Franca) lideram a produção de
132
calçados masculino de couro. No segmento de calçados infantis, a Ortopé, em 1999
era a maior fabricante da América Latina, e produzia 13 milhões de pares/ano,
seguida pela Klin com 30 mil pares/dia (BNDES, 2000).
O pólo calçadista do estado do Rio Grande do Sul possui toda a estrutura
produtiva de um cluster. Além de possuir as fábricas de calçados, conta também
com produtores de insumos, como solados, adesivos, curtumes, matrizarias,
máquinas e equipamentos, agentes de mercado interno e externo, além de
instituições que procuram desenvolver e difundir inovações tecnológicas e gerenciais
como o SENAI, CTCCA e Universidades.
Segundo ABICALÇADOS (2000), o setor calçadista do Rio Grande do Sul, era
composto em 1998 por 1924 indústrias de estrutura familiar gerando 95.525
empregos. O salário médio em 1999 era de R$ 263,00/mês. Essas empresas
dedicam-se à fabricação de calçados, principalmente para o público feminino (75%),
e/ou componentes. Há ainda uma série de empresas prestadoras de serviços à
indústria calçadista, como os chamados ateliers37. Há uma grande quantidade de
micro empresas no parque produtivo local. Em primeiro lugar, o fato do processo de
produção de calçados apresentar fortes descontinuidades, estimulando a sua
fragmentação, aliado às reduzidas barreiras à entrada verificadas no setor, permite o
aparecimento de um número significativo de micro empresas especializadas em uma
ou algumas das etapas do processo produtivo.
Os ateliers são micro empresas, que normalmente fazem parte da economia
informal, as quais são contratadas para realizar operações da produção de um
calçado, principalmente costura e trançamento. Segundo ABAEX (1997), os ateliês
estão presentes em todos os países produtores de calçados de couro, constituindo-
se em uma ferramenta útil para aumentar a flexibilidade das empresas e diminuir o
efeito da sazonalidade dos pedidos sobre a contratação de mão-de-obra.
Dessa forma, a existência dos ateliers, nas várias fases do processo produtivo do
calçado, aumenta a flexibilidade das empresas maiores quanto às oscilações de
demanda e permitem a formação de empresas familiares em que todos trabalham.
A subcontratação além de agilizar o processo de produção também tem o efeito
de reduzir os custos relacionados com a mão-de-obra na etapa mais intensiva em
trabalho de todo o processo de produção de calçados. Não obstante, grande parte
dessa redução de custos está associada à redução dos encargos sociais e dos
133
custos de admissão e demissão de trabalhadores. Os funcionários dos ateliers são
geralmente membros da família, que praticam uma jornada de trabalho prolongada.
Além disso, não possuem registro legal e, conseqüentemente, seus funcionários não
possuem carteira assinada.
Para as empresas maiores, a subcontratação das atividades representa, além de
uma forma importante de redução dos seus custos de produção, uma forte elevação
da flexibilidade, a partir do surgimento de produtores especializados. Esse fato se
torna particularmente importante quando se trata de uma atividade bastante
intensiva em mão-de-obra. Subcontratando etapas, as empresas maiores
conseguem ao mesmo tempo reduzir custos, aumentar a flexibilidade e evitar a
ocorrência de gargalos no processo produtivo. (Garcia, 1996).
A relação dos ateliers com as empresas fabricantes de calçado é instável,
dependendo da existência de pedidos que valham a pena (custo/benefício ou falta
de capacitação tecnológica) para as empresas serem executados nos ateliers. No
que diz respeito aos ateliers, a grande preocupação das empresas calçadistas é com
a qualidade do produto e o cumprimento dos prazos.
A tabela 14 fornece a evolução dos níveis de renda na Região. Existem acordos
entre os fabricantes da Região (sindicatos patronais de Novo Hamburgo, Estância
Velha, etc), de modo que a remuneração não varie muito entre as empresas,
resguardadas suas peculiaridades quanto a mercado e tipo de calçado.
Tabela 14: Evolução do salário médio na indústria de calçados – Região Sul
Ano Salário Médio (R$) 1997 264 1998 271 1999 263
Fonte: MTb / CAGED
Observando-se a tabela 15 nota-se que a vantagem comparativa de mão-de-obra
barata, em relação com outros países, que existia no Brasil no início da década de
70, praticamente desapareceu.
37 Terceirização de etapas intensivas, em mão-de-obra, como costura, pesponto e corte do couro.
134
Tabela 15 - Salário Mensal em US$
País Salário Mensal Indonésia 40 China 50
Tailândia 90 Brasil 140
México 220 Taiwan 600 Coréia 700
Fonte: World Footwear (1998)
As empresas do setor calçadista são heterogêneas, segundo o estágio
tecnológico e possuem especializações claras em termos de atuação no mercado. O
segmento de calçados de couro, por exemplo – concentrado especialmente no Sul
do país – é muito pulverizado e voltado para as exportações, apresentando
reduzidos investimentos em tecnologia e em canais de comercialização, uma vez
que, grande parte das empresas domésticas somente se responsabilizam pelas
funções de compra de insumos e produção de calçados. As demais funções –
desenvolvimento do produto, definição de marca, distribuição, definição do preço
final e comunicação – são centralizadas nas mãos dos clientes, formados
geralmente por grandes cadeias de lojas e seus agentes de importação. Logo as
funções que garantem o controle do processo e que representam cerca de 2/3 do
preço final do calçado, não são de responsabilidade dos exportadores brasileiros.
As empresas do setor calçadista, em geral, podem ser esquematicamente
classificadas em:
• grandes empresas – atuam basicamente no mercado interno, com forte presença
na produção de tênis, cujos requisitos de tecnologia são mais sofisticados e as
despesas de marketing mais elevadas;
• médias empresas – ligadas em geral ao segmento de couro (bastante concorrido
e pulverizado), têm atuação voltada fundamentalmente para o mercado externo,
apresentando níveis de tecnologia e gastos com marketing diferenciados; e
• micro e pequena empresas – utilizam-se preponderantemente de processos
artesanais.
135
5.4.2 Análise do processo produtivo dos calçados de couro
A indústria calçadista vem passando por transformações significativas no seu
padrão de concorrência. Nas últimas décadas, registrou-se uma perda relativa da
importância do baixo custo salarial como determinante da competitividade do setor,
em favor de fatores como qualidade, design e prazos de entrega. Além disso, como
o calçado é um produto sujeito às variações da moda, a diferenciação do produto e a
capacidade das empresas em captar os sinais de mercado são atributos que têm
assumido papel cada vez mais importante na determinação da competitividade
desse setor. (Garcia in BNDES, 2000).
As mudanças tecnológicas são incrementais. O setor se moderniza por etapas,
dada a característica descontínua do processo de produção. As fases de costura e
montagem ainda são muito artesanais, demandando muita habilidade da mão-de-
obra e com isso, limitando o processo de automação, facilitando a entrada de micro
empresas. Cabe destacar que nesse setor o custo da mão-de-obra ainda constitui
fator determinante da competitividade. Devido ao forte conteúdo artesanal e
fragmentação no processo produtivo, mundialmente a indústria de calçados tem
características de produção localizada, estimulando, com isso, as aglomerações
geográficas.
Os calçados podem ser classificados em tênis, sapatos, sandálias e chinelos,
atendendo a três mercados: Feminino, que possui o mais alto volume de vendas,
masculino e infantil. Os sapatos, por sua vez, podem ser classificados em:
- Sapato de moda: subdivide-se em sapatos sociais e para uso diário (casual),
este último principal produto de exportação brasileiro;
- Sapato de trabalho: subdivide-se em cabedal em couro e solados injetados,
do tipo tênis; sapatos de segurança que atendem a normas rígidas de
qualidade do couro e processo de produção; e botas de trabalho, em material
sintético.
Os tênis podem ser classificados em:
• Esporte: calçados com solados sintéticos (borracha ou poliuretano) e cabedal
em couro ou outros materiais, projetados para a prática desportiva. No
entanto, esses calçados são muito utilizados com outros fins, principalmente
pela população jovem. Caracteriza-se pela existência de várias marcas
transnacionais. O segmento que mais cresce no mundo, mas em função dos
136
altos custos dos componentes e da tecnologia embutida no produto, a qual
permite a automação de praticamente todo o processo produtivo, reduzindo
as vantagens comparativas de mão-de-obra.
• Casual: Calçado fabricado normalmente com solado de borracha e cabedal
em lona ou tecido. Existe forte tendência na substituição desse segmento pelo
esportivo e por sapatos do tipo casual.
Por muitos anos, os sapatos foram tradicionalmente feitos de couro, com sola
também de couro ou de borracha natural. Com o desenvolvimento da petroquímica e
o surgimento de materiais sintéticos, várias opções se abriram e os fabricantes de
calçados começaram a utilizar matérias-primas alternativas. Na tabela 16
apresentam-se os materiais disponíveis em cada década.
Tabela 16: Materiais Disponíveis para Fabricação de Calçados
no Decorrer das Décadas
1930 1940 1950 1960 Couro Couro Couro Couro Borracha não Vulcanizada
Borracha não Vulcanizada
Borracha não Vulcanizada
Borracha não Vulcanizada
Borracha Vulcanizada
Borracha Vulcanizada
Borracha Vulcanizada
PVC 1970 1980 1990 2000
Couro Couro Couro Couro Borracha não Vulcanizada
Borracha não Vulcanizada
Borracha não Vulcanizada
Borracha não Vulcanizada
Borracha Vulcanizada
Borracha Vulcanizada
Borracha Vulcanizada
Borracha Vulcanizada
PVC PVC PVC PVC PU PU PU PU Borracha Termoplástica
Borracha Termoplástica
Borracha Termoplástica
Borracha Termoplástica
Poliuretano Termoplástico
Poliuretano Termoplástico
Poliuretano Termoplástico
Poliuretano Termoplástico
EVA EVA EVA EVA Fonte: ASSINTECAL
Apesar de trazerem novas possibilidades, tanto em termos de estética quanto em
conforto, os novos materiais também trouxeram problemas como qualquer outro
material desconhecido no mercado. Pois, para a utilização dos mesmos de forma
que não acarretassem problemas à saúde do pé, novos equipamentos tiveram que
137
ser adquiridos pelos fabricantes e os operadores necessitaram de novos
conhecimentos.
Atualmente uma variedade de materiais de diversas origens são utilizados na
fabricação de calçados. A seguir apresentam-se alguns desses materiais.
• Couro - É considerado um material nobre, que pode ser utilizado praticamente
em todas as partes do calçado, mas normalmente a sua utilização é
aconselhável no cabedal38, no forro e em, alguns modelos, na sola. Um couro
bovino pode produzir em média 20 pares de calçados e se apresenta nas
fases cru, salgado, wet-blue, crust (semi-acabado) e acabado. O couro traz
algumas vantagens sobre os outros materiais como: alta capacidade de
amoldar-se a uma forma, boa resistência ao atrito, maior vida útil, permite a
transpiração e ainda aceita quase todos os tipos de acabamento.
• Materiais têxteis. Tecidos naturais, como o algodão, lona e brim e os tecidos
sintéticos com o náilon, e a lycra são utilizados sobretudo no cabedal e como
forro. Esses materiais tem um preço mais atrativo e os calçados fabricados
com tecidos são mais leves.
• Laminados Sintéticos. São materiais construídos normalmente de um suporte
(tecido, malha ou não-tecido39) sobre a qual é aplicada uma camada de
material plástico (geralmente PVC ou poliuretano). São chamados
erroneamente de couro sintético. Um dos mais utilizados pela indústria
calçadista brasileira é o chamado cover line.
• Materiais Injetados. O PVC (policloreto de vinila) é um material de fácil
processamento, com custo relativamente baixo e com boas propriedades de
adesão e de resistência à abrasão. Hoje é utilizado até em solados de tênis e
chuteiras. Suas desvantagens são a baixa aderência ao solo e a tendência a
quebrar a baixas temperaturas. O Poliuretano (PU) é um material versátil e
disponível sob várias formas sendo empregado em solas e entresolas. É
durável, flexível e leve. A sua desvantagem está no alto custo dos
equipamentos necessários à sua produção e também necessita de cuidados
especiais durante a estocagem e processamento. O Poliestireno é utilizado na
38 Dá-se o nome de cabedal à parte superior do calçado, destinada a cobrir e proteger a parte de cima do pé. 39 Conhecidos mundialmente como nonwovens é um material de estrutura plana, porosa, flexível, constituída de véu ou manta de fibras ou filamentos (longas ou curtas) orientados direcionalmente, consolidados por processo mecânico (fricção), químico (adesão) e térmico (coesão), hidrodinâmico ou por combinação.
138
produção de saltos. Tem baixo custo e alta resistência ao impacto. O ABS
também é utilizado especificamente para fabricação de saltos. Apesar de ter
uma ótima resistência ao impacto e à quebra, hoje, a sua utilização é
basicamente voltada a saltos muito altos, devido ao seu elevado custo. O TR
(borracha termoplástica) é utilizado na produção de solas e saltos baixos.
Apresenta boa aderência ao solo, mas é pouco resistente às intempéries e
aos produtos químicos, como solventes.
• Materiais Vulcanizados. A borracha natural possui excelente resistência ao
desgaste, adere bem ao solo, é leve e flexível, o que a torna muito
confortável. Foi o primeiro material a ser usado na fabricação de solas em
substituição ao couro. Todavia seu elevado custo e pouca resistência a altas
temperaturas inviabilizam a sua utilização. Atualmente são usadas
principalmente em calçados infantis. De maneira geral, a borracha sintética
apresenta boa propriedade de flexão e elasticidade, resistência ao desgaste e
ao rasgamento, adere bem ao solo e o seu custo é acessível. O EVA
(copolímero de etileno e acetato de vinila) é um dos materiais mais utilizados
no Brasil em diversas partes do calçado, sobretudo no solado. É o material
mais leve e macio para fabricação de solas. Possui boa resistência ao
desgaste, pode ser produzido em diversas cores.
Além dos materiais citados acima tem-se ainda os metais, os materiais
celulósicos e a madeira. Na figura 35 a seguir pode-se visualizar a participação
mundial de cada material utilizado na produção de solados.
Figura 35: Consumo Mundial de Material para Solado - 1999
Borracha vulcanizada
26%
PVC19%
TPU1%
Resina de borracha
13%
PU7%
Couro8%
EVA9%
Borracha natural
2%
Borracha termoplástica
14%
Outros1%
139
Como primeiro referencial de um calçado pode-se observar a figura 37 que
mostra a micro-filiére de produção de calçados e a figura 38 que mostra a
constituição esquemática de um calçado. Segundo Gomes (1993) pode-se, a partir
das 92 operações definidas para a produção de um calçado, identificar as seguintes
etapas que podem ser visualizadas na figura 36:
Figura 36: Produção do calçado
Modelagem
Planejamento e controle de produção
Corte do couro
Costura
Montagem do cabedal
Montagem do calçado
Acabamento
Embalagem
140
Figura 37: Micro-filière do calçado
Curtume
Manufatura
Bancos
Orgãos financiadores
Orgãos reguladores
Centros de formação
Tecnologia
Marketing
Moda
Equip. eletro-mecânicoseletrônicos
Indústriaquímica
informática Tecnologiaslimpas
Atividades terciárias
Filierèresauxiliares
Transporte
ComponentesCalçados
Estofamento
Vestuário
Móveis Auto-móveis
141
Figura 38: Montagem e partes do calçado
Cabedal
Forma
1.Contraforte interno 2.Cabedal 3.Gáspea 4.Biqueira 5.Vira 6.Palmilha 7.Enchimento
8.Solado 9.Tacão 10.Salto 11.Reforço 12.Alma de aço 13.Contraforte externo
142
5.4.2.1 Modelagem
O calçado é definido nessa etapa. Comparando-se com uma indústria metal-
mecânica seria a área de projeto aliada à de planejamento e controle da produção,
custos, métodos e processos e materiais.
Pode-se dividir a etapa em uma relacionada ao estilo (concepção geral do
produto) e outra relacionada a técnica. A primeira é responsável pela definição do
design do calçado, ou seja seu estilo, combinações de cores, detalhes, modelo do
salto e outros. Nas indústrias de calçados, em geral, os modeladores / estilistas são
considerados pessoal da mais alta importância, em função da influência que podem
exercer no sucesso do calçado a ser lançado.
Há a necessidade de se fazer uma distinção entre a modelagem para mercado
interno e externo. No mercado interno, o calçado é literalmente lançado após
pesquisas de tendências da moda, geralmente derivada das tendências de moda
trazidas da Europa. Já no mercado externo pode-se divisar três tipos de empresas,
de acordo com Gomes (1993):
- Aquela que tem todas as características do calçado, inclusive o estilo,
definidas pelos agentes exportadores / importadores, levando a uma estrutura de
modelagem mais técnica;
- Aquela que tem capacidade de criar os seus modelos baseados na moda
européia, principalmente italiana, mantendo equipes de visita aos principais
mercados de moda e feiras (Itália, França e Alemanha), bem como consultores
(designers) estrangeiros contratados ou desenvolvendo modelos seguindo
tendências próprias. Essas empresas apresentam uma estrutura de modelagem
mesclada entre técnica e estilo, já que apresentam nas feiras internacionais os
modelos de calçados para a próxima estação. A partir do modelo aprovado começa
a negociação com o cliente, que se baseará em critérios técnicos tais como custo,
materiais, e outros;
- Aquela que apresenta estrutura mista, onde são criados modelos, mas
também se aceitam modelos definidos pelos agentes exportadores / importadores.
A estrutura técnica de modelagem é responsável pela definição do projeto da
forma, que especifica as dimensões do calçado, o material a ser utilizado no calçado
e o custo do produto. A partir da definição da forma, as mesmas são encomendadas
aos fabricantes. Além disso, nessa fase são definidos os padrões que serão
143
utilizados na fabricação do calçado como desenho do cabedal, palmilha, solados,
saltos e detalhes, bem como as ferramentas necessárias tais como navalhas,
matrizes e outras ferramentas e preparações de máquina. Define-se
simultaneamente a carga, as máquinas e o número de trabalhadores necessários
para realizar o pedido, bem como as necessidades de material, sub-contratação e
outros detalhes.
Apesar de muitos esforços serem realizados para tornar o processo produtivo
mais eficiente, é na modelagem que está o grande gargalo dos fabricantes para
exportação. Isto ocorre em virtude do tempo de definição do modelo ser muito
extenso e ocasionar pressões sobre a produção para cumprir os prazos definidos
durante as negociações. Segundo alguns entrevistados, algumas causas desse
problema seriam:
- Falta de participação da produção e outras áreas na definição do calçado, ou
seja falta uma visão integrada do produto na empresa;
- Mudança por parte dos clientes;
- Falta de padronização das operações, de materiais no processo de custeio;
- Planejamento e controle da produção (PCP) deficientes;
- Falta de agilidade por parte dos modelistas para lidar com as mudanças.
Quanto maior for a interferência do agente exportador / importador nesse
processo, menor serão os problemas enfrentados pelo fabricante antes da produção,
visto que o agente praticamente definirá todas as especificações do calçado. Em
compensação, os problemas se avolumarão quando da definição dos padrões de
produção e dos fornecedores dos materiais, já que os prazos e o conhecimento do
calçado serão menores. É importante notar que, em função dos problemas acima, os
agentes quando definem o calçado, normalmente colocam o pedido em um
fabricante que já tenha experiência com aquele tipo de calçado.
A principal inovação nessa área foi o Computer Aided Design (CAD - projeto
auxiliado por computador). O CAD para a indústria de calçados nasceu na década
de 60, mas nessa época era uma tecnologia cara. Somente a partir da década de 70
o CAD em duas dimensões começa a ficar disponível em larga escala.
No final da década de 80 surge comercialmente o CAD em três dimensões, na
época um sistema pouco difundido, em virtude da necessidade de maior formação
especializada do seu operador. O CAD possibilita às empresas maior agilidade no
processo de definição de um modelo. Essa agilidade ocorre tanto ao nível de estilo,
144
em função dos recursos do CAD tais como banco de dados com diferentes tipos de
materiais, cores, antigos design e outros, como na parte técnica de definição tais
como banco de dados com custos por material e por operação, carga das máquinas,
projeto, desenho e recuperação das formas e padrões e outros. Possibilita ao
modelista um trabalho mais limpo e de melhor qualidade, economia de matéria-prima
e agilidade de resposta ao mercado.
No entanto, alguns benefícios do CAD são difíceis de serem quantificados, o que
faz com que algumas empresas deixem de investir porque a análise custo-benefício
não é favorável, segundo Gomes (1993). Os principais benefícios são a
padronização e organização formal da área de modelagem sem prejudicar a
flexibilidade do modelista, a agilidade de resposta ao mercado e a facilidade para
comunicação com o cliente, o que para uma indústria caracterizada pela grande
variedade de linhas, modelos e tamanhos, pode significar a sobrevivência. Nesse
contexto, a padronização é apenas um meio e não um fim.
No que diz respeito à facilidade na adoção do CAD, observa-se que existe
resistência por parte dos modelistas de estilo. Primeiro, porque os modelos iniciais
do CAD não eram amigáveis e exigiam um grande esforço para que o modelista
conseguisse usá-lo da forma adequada Segundo, porque grande parte dos
modelistas não confiam na máquina e nos seus resultados. Terceiro, a tradição de
que o modelista é um criador e não um técnico, transformação essa que ele acha
que vai acontecer se usar o CAD. Finalmente, o modelista teme que a sua imagem
dentro das empresas como estrela será abalada com a introdução do CAD.
Quanto à integração do CAD a um sistema de Computer Aided Manufacturing
(CAM - manufatura auxiliada por computador), a grande limitação é a matéria-prima
couro, que devido aos seus defeitos impede que a área de corte seja automatizada.
O que existe, em termos de integração é a adaptação de máquinas para o corte e
desenho dos padrões, bem como definição de formas. No Brasil, são poucas as
empresas fabricantes de calçados de couro que utilizem a integração entre o CAD e
o CAM.
145
5.4.2.2 Corte
Figura 39: Operação de corte manual
Nessa fase é cortada a matéria-prima que comporá o cabedal e o solado do
calçado, conforme definido pela modelagem. O corte de matérias-primas sintéticas
pode ser realizado manualmente como na figura 39, ou através de máquinas de
controle numérico programadas para o melhor aproveitamento da matéria-prima,
como é feito com chapas de aço na indústria metal-mecânica. O corte do couro pode
ser realizado manualmente através de facas e moldes de cartolina reforçados por
um filete de metal nas bordas, ou então, através de balancins, que são prensas
hidráulicas com navalha de fita de aço afixada ao cabeçote.
A irregularidade do couro traduzida em defeitos, espessura não-uniforme,
elasticidade, sentido das fibras faz com que o cortador seja a função mais bem paga
dentro da fábrica, já que dele depende o aproveitamento da matéria-prima mais cara
que representa 30 a 50% do custo, em média. O cortador, em algumas empresas,
ganha por produção e aproveitamento, o que incentiva-o a realizar o seu trabalho da
melhor maneira. No entanto, essa melhor maneira é descoberta normalmente de
maneira heurística, já que o treinamento na maioria das fábricas é deficiente ou não
existe. Pode-se dizer que é o verdadeiro learning by doing (Gomes, 1993).
As inovações nesse setor restringem-se a balancins mais modernos, alguns
programáveis, e reorganizações da forma de trabalho: trabalho em grupo, uso de
tempos e movimentos, padronização e racionalização da forma de trabalho. Como
exemplo desse último, tem-se a colocação de peças diferentes em dimensões e
146
formas sendo cortadas a partir da mesma pele, permitindo um melhor
aproveitamento da mesma. No entanto, o sistema de escolha das peças a serem
cortadas dependem do PCP e não do cortador.
Na costura, após a execução dos detalhes necessários tais como chanfros,
enfeites, picotes, dobramentos e outros são costuradas as partes cortadas que
compõem o cabedal do calçado. As operações, em geral, são realizadas através de
máquinas de costura industrial, já existindo máquinas que podem ser programadas
para bordar enfeites ou detalhes difíceis de serem executados manualmente em
máquinas comuns. O desenvolvimento crescente de máquinas programáveis torna
possível a automação de várias tarefas que dificilmente seriam realizadas com a
mesma qualidade pelos costureiros. Além disso, as máquinas mais recentes já
conseguem, através de controles adaptativos, levar em conta e adaptar-se às
características irregulares das várias matérias-primas tais como espessura do couro,
fio, largura do ponto e outros.
O entrave à adoção de máquinas mais modernas é o preço e o volume de
produção necessário para justificar economicamente a aquisição. No caso do CAD,
as empresas podem perder oportunidades de negócios pela falta de uma
determinada operação, realizada por uma máquina que não foi comprada porque
não se pagava dentro dos critérios tradicionais de avaliação de investimentos. Do
ponto de vista de tecnologias gerenciais, a área foi a primeira a ser considerada para
a implantação de grupos. As áreas de costura nas empresas estruturam-se como
linhas de montagem ao redor de uma esteira, ou então em grupos de produção.
Outro fato relevante é a utilização dos ateliers como forma de estabilizar o
número de empregados na empresa e como ferramenta para obter flexibilidade, em
virtude de variações sazonais de demanda. Os ateliers localizam-se junto às
periferias dos centros produtores constituindo-se, em geral, de famílias que possuem
máquinas, principalmente de costura, ou uma habilidade específica como
trançamento de fios para calçados. Os ateliers, por não pagarem impostos, oferecem
aos fabricantes serviços de costura e montagem do calçado a preços mais baratos.
Essa estrutura de ateliers oferece aos fabricantes uma maior flexibilidade de volume,
mas em contrapartida existe a preocupação com a qualidade e confiabilidade do
serviço executado.
147
5.4.2.3 Solados
A produção ou compra do solado ocorre em paralelo ao corte e à costura do
cabedal. Nessa etapa, ocorre o corte das palmilhas e solados que irão na etapa
posterior compor o calçado.
Os materiais utilizados como matéria-prima para o solado são as resinas, as
borrachas, o plástico, a madeira e o couro. Há uma tendência mundial do uso de
materiais sintéticos tais como poliuretano; borrachas EVA, SBR, TR; resinas ABS e
acrílicas e outros, já que oferecem melhores características de resistência,
durabilidade, segurança, estética e leveza.
A maior parte desses materiais sintéticos foi desenvolvido fora das fábricas de
calçados, ocasionando a exclusão dessa etapa de boa parte das fábricas, passando
a existir como um componente fornecido. Além disso, nas fábricas que continuaram
a produzir o solado in locu esses novos materiais possibilitaram a automação ou pelo
menos o aumento da produtividade, em função da maior regularidade do material.
No caso das palmilhas a situação é idêntica. A possibilidade de mecanizar o
processo aumentou a produtividade da etapa e ocasionou o surgimento de fábricas
de palmilhas como componentes. Os principais materiais utilizados na palmilha são
o papelão, a cortiça, a borracha e as resinas.
Boa parte das empresas preferiu comprar de fora ( outsourcing ) os solados e as
palmilhas, em virtude da economia de investimentos em capital e em função desses
componentes não serem determinantes da qualidade visual do calçado, que é a
dimensão mais valorizada da qualidade no caso do calçado.
5.4.2.4 Montagem
Como o próprio nome diz, nessa etapa ocorre a montagem do calçado, a partir da
montagem do cabedal e da sola na fôrma. Segundo Alves Filho in (1993), as
principais operações de montagem em um calçado de couro são:
- Preparação: colocação dos aviamentos no cabedal, montagem do contraforte,
montagem da biqueira, e assentamento da palmilha na fôrma;
- Montagem do bico: fixação do cabedal na parte dianteira da fôrma;
- Montagem dos lados: fixação das laterais do cabedal na fôrma;
- Montagem da base: fixação da parte traseira do calçado na fôrma;
148
A montagem é a etapa de fabricação que proporciona o maior nível de
automação, pois depende apenas da capacidade da empresa de investir e do
balanceamento do fluxo de produção de acordo com o gargalo da empresa. De nada
adianta ter máquinas de montar bico com alta produtividade se as seções anteriores
não são capazes de alimentá-las com a cadência adequada.
Praticamente para todas as operações de montagem já existem máquinas com
controle numérico ou pelo menos com controladores lógicos programáveis, o que
proporciona uma menor atuação da mão-de-obra sobre o processo e uma maior
precisão e qualidade na montagem. Um entrevistado tem seguinte opinião sobre a
automação:
“O atual desenvolvimento das máquinas permite que se use cada vez mais
mão-de-obra desqualificada nessa função, já que a máquina praticamente faz
o trabalho sozinha. No entanto, conforme a tecnologia evoluir o inverso
ocorrerá: cada vez mais haverá a necessidade de programadores e
operadores especializados para aproveitar as opções que os equipamentos
oferecem. Entre as máquinas, as mais caras são as de montagem do bico,
que exigem maior precisão na operação; os operadores destas máquinas
recebem normalmente os salários mais altos da seção.”
O advento de máquinas mais modernas deverá levar as empresas a montar
estruturas de suporte tais como engenharia, planejamento e controle da produção,
manutenção mais eficientes e qualificadas, bem como um programa de
padronização e maior interação entre as diferentes áreas funcionais.
Em termos de tecnologia gerencial ou inovação na organização da produção, a
principal inovação tem sido a organização junto com as outras áreas em grupos de
montagem.
149
5.4.2.5 Acabamento
Figura 40: Operação de acabamento
Na seção de acabamento fixa-se o solado ao cabedal através de colagem ou
costura ou ambas, realiza-se as operações de acabamento necessárias no calçado
(figura 40) tais como frisar, lixar, pintar, secar e outras. Retira-se a fôrma do calçado,
faz-se a inspeção final e finalmente embala-se o calçado.
Os principais desenvolvimentos nessa área são equipamentos simples capazes
de desformar o calçado mais rapidamente; máquinas de secagem tais como estufas
mais eficientes; adesivos, resinas e tintas de melhor qualidade; e testes de inspeção
extra-fábrica mais conclusivos.
A seguir serão explorados alguns pontos importantes na produção das empresas.
150
5.4.3 Considerações importantes
5.4.3.1 Moda
Em uma indústria em que as barreiras à entrada são praticamente nulas, já que a
tecnologia está disponível a todos os interessados, a diferenciação através do
processo ou do produto é um imperativo. A ameaça dos competidores chineses,
tailandeses e indonésios no mercado de calçados de couro de médio preço, que é
onde o Brasil atua, bem como a concorrência dos italianos nesse segmento
(Mercatanti in Gomes 1993), torna imperativo que o país desenvolva a moda como
forma de diferenciação.
A preocupação de representantes do setor coureiro-calçadista, em estimular a
formação de uma identidade própria para o calçado produzido no Brasil vem se
evidenciando, a partir de uma série de iniciativas que visam à discussão sobre o
fortalecimento de uma moda Made in Brazil. A Associação Brasileira dos Estilistas
de Calçados e Afins (Abeca) é uma das entidades que buscam a afirmação da moda
nacional em calçado, através do tema Estilo Tropical (figura 41), que há três
estações40 é tratado no Guia de Moda da Abeca, entidade que congrega cerca de
600 associados.
Figura 41: Estilo Made in Brazil
40 Desde o outono/inverno de 1999
151
A idéia é suscitar o debate sobre uma identidade própria de criação, valorizando
a brasilidade, principalmente através do resgate do movimento tropicalista e da
utilização de materiais alternativos, característicos da cultura brasileira. Segundo um
entrevistado, a discussão sobre um estilo próprio é urgente e a questão principal é
como criar uma moda nacional para ser consumida no exterior:
"Já estamos conquistando nosso espaço, mas identidade própria é uma
cultura que se desenvolve aos poucos. Vai levar um tempo para que se
consolide. Mas é preciso começar agora . . . Se não iniciarmos esse processo
agora, vamos demorar mais uns 20 ou 30 anos. “
A Abeca organizou, na Courovisão edição 2000 na Feira Nacional do Calçado -
Fenac, uma Ilha Tropical, onde foram exibidos materiais e componentes
legitimamente brasileiros utilizados pelos estilistas.
A Associação Brasileira das Indústrias de Componentes para Couro e Calçados -
Assintecal também tem uma proposta para tentar viabilizar o surgimento de uma
moda Made in Brazil, agregando maior valor aos produtos nacionais. Através de
encontros em Feiras41 discute-se sobre as maneiras como o setor pode trabalhar
para chegar à sincronização da cadeia produtiva, a exemplo do que ocorre na
Europa. Segundo um entrevistado, há uma preocupação em se discutir não só as
tendências, mas também a questão do marketing da moda, através do
desenvolvimento de produtos e do design:
"Estamos voltados a uma tentativa de sincronização entre as empresas da
cadeia produtiva, até para que as indústrias de componentes tenham
condições de suprir a demanda calçadista, de acordo com as tendências de
moda . . . O que temos visto é uma perspectiva de moda universal,
aproximada pelos meios de comunicação. Precisamos influenciar essa moda
com uma inspiração brasileira e fazer uma leitura adequada ao Brasil e, o que
é mais importante, divulgar todo esse processo.''
Segundo a Assintecal faz-se necessário pensar em um conceito global, não só de
tendência em cores, mas do conjunto dos produtos brasileiros. Para isso deve haver
uma sintonia entre a moda do calçado, do vestuário e dos acessórios. Assim no
segmento de acessórios, o esforço tem sido o de divulgar a marca By Brazil em
feiras internacionais, procurando mostrar um produto de qualidade no mercado
mundial.
152
Já para outro entrevistado, são boas as iniciativas que visam incrementar a moda
brasileira, porém adverte ser muito difícil a tarefa principalmente pela tradição
européia em ditar a moda mundial e pela sua antecipação em relação aos outros
centros. Há ainda falta de profissionais independentes, trabalhando em criações
próprias e não restritos aos modelos exigidos pelas fábricas.
"Os europeus estão pelo menos uma estação adiantados. Quando lá é
inverno, aqui ainda é verão . . . Na Europa, existem cerca de 280 estilistas
independentes, trabalhando para várias fábricas, enquanto que, no Brasil, há
4 ou 5 profissionais desse tipo.''
Outro entrevistado diz que:
“... a realidade é que se faz uma adaptação da moda européia em calçados,
seguindo as exigências do mercado nacional, principalmente no que diz
respeito aos materiais e ao poder de compra dos consumidores...”
Uma das mais recentes iniciativas no sentido de valorizar a moda gaúcha
aconteceu com a formalização da Associação O Vale da Moda. A criação da nova
entidade, formada por um grupo de empresários dos vales do Paranhana, do Sinos,
Rio das Antas e Taquari, pretende ser a primeira etapa para a busca de mais espaço
nos grandes centros urbanos consumidores de calçados. O fortalecimento do design
do calçado também é uma preocupação do Centro Universitário Feevale. O curso de
design possibilita a opção pelo design gráfico ou de produtos, esse último com
ênfase no calçado. Na oficina do curso está em funcionamento um laboratório de
criatividade como uma ferramenta para a formação dos profissionais da área.
5.4.3.2 Inovações, Pesquisa & Desenvolvimento
Até meados da década de 70, a principal fonte de inovações no setor eram os
materiais substitutivos e progressos tecnológicos no maquinário existente.
Recentemente, no entanto, esse perfil tem mudado para o uso da micro-eletrônica e
o uso de tecnologias gerencias tais como grupos, qualidade total, treinamento de
empregados, e outros.
As inovações advêm de fora das fábricas e do setor calçadista de couro. Pode-se
dizer que praticamente 100% das inovações de equipamento foram ofertas da
41 Fórum da Moda, Courovisão, FENAC
153
indústria de máquinas e equipamentos, que representam as maiores empresas
transnacionais, através de licenciamento, joint-ventures e outros.
No que diz respeito à atualização tecnológica das máquinas oferecidas, as
mesmas atendem perfeitamente às necessidades da maioria dos fabricantes.
Apenas aqueles que baseiam sua produção na alta tecnologia dos equipamentos
reclamam que existe defasagem tecnológica e que o preço no Brasil é superior ao
disponível em países como Alemanha e Itália. Entretanto, essas empresas são
minoria, visto que a maior parte das empresas do setor ainda baseiam seu modelo
produtivo na mão-de-obra intensiva. A principal reclamação, que pode ser
generalizada para a indústria brasileira como um todo, é a falta de uma política
industrial que incentive a atualização tecnológica e os investimentos em pesquisa e
desenvolvimento.
O setor químico também traz inovações através de novos produtos substitutivos
ou não ao couro, adesivos, solventes e outros. Ressalta-se a atuação do Centro
Tecnológico de Couro, Calçados e Afins - CTCCA que desenvolve algumas
pesquisas na área de novos processos.
Algumas fábricas de calçados se preocupam com o desenvolvimento de
máquinas internamente, a partir do departamento de manutenção. No entanto, na
maioria dos casos, é pouca a parceria com os fabricantes de equipamentos para
pesquisa e desenvolvimento.
Também em relação a pesquisa do produto ainda é pequena, principalmente no
que diz respeito ao conforto para o cliente. Como a maior parte dos modelos e
materiais já vem definidos quando da exportação, a tradição é não pesquisá-los.
Assim, as inovações, normalmente vem de feiras internacionais, agentes
exportadores ou fabricantes das filières tecnologicamente ligadas.
Já há movimento do setor em direção às inovações gerenciais, principalmente
face a grande competitividade dos fabricantes asiáticos. Pois os fabricantes sentiram
que para manterem-se competitivos teriam que gerenciar melhor as suas fábricas,
evitar desperdícios, padronizar operações, e principalmente baixar custos e
aumentar a produtividade. Um dos programas implantados foi dos grupos de
produção. Pode-se transcrever aqui, as palavras de um entrevistado que resumem
bem esse aspecto:
154
“ . . . cada vez mais devemos ocupar nossos neurônios, no sentido de
buscarmos com que os problemas produtivos de qualquer ordem sejam
visualizados no menor tempo para que sejam corrigidos antes da expedição. .
., pois os custos do reprocesso são muito maiores e mais difíceis de serem
recuperados com aceitabilidade. Para que o setor possa novamente crescer,
já que estamos sobrevivendo, necessitamos urgentemente mudar alguns
conceitos e paradigmas. . . “
Nesse sentido, pode-se acrescer ainda, a opinião de outro entrevistado,
“. . . muitas empresas que não estavam no mercado começaram a aprender,
falar de produtividade, reduzir custos, parcerias. É usar aquilo que a gente é
bom. Somos realmente mais criativos, mais rápidos, trabalhamos muito mais a
prestação de serviços (nesse setor) que qualquer outro país. E em alguns
pontos tecnológicos, estamos atrasados, e temos que buscar parcerias. . . “
5.4.3.3 Formação de Grupos de produção
As fábricas de calçados de couro se organizam primeiramente em linhas de
montagem, onde uma esteira dita a velocidade das operações e onde a disposição
de operadores e máquinas visa compensar os gargalos. Outra forma de organização
é o que se chama de grupos. Os grupos começaram a ser organizados a partir da
costura, baseando-se na idéia de células de produção, e em algumas fábricas
evoluíram para toda a empresa, onde transformaram-se em fábricas focadas,
organizadas por produto, modelo ou linha.
Na verdade, pode-se averiguar pelas visitas e entrevistas, que os grupos ou
células que vem sendo implantados na maioria das fábricas de calçado de couro são
sistemas mistos de células de operações ao redor de uma linha de transporte que
pode ser uma esteira. Algumas características da organização da fábrica por células
não foram implantadas ou disseminadas nas fábricas de calçados, entre elas a
multifuncionalidade e o trabalho compartilhado, o sistema de produção puxado com
controle no chão de fábrica, e a manutenção pelos empregados:
155
• Multifuncionalidade e trabalho compartilhado: apenas algumas empresas
começaram treinamento para isso, mas o foco é utilizar o trabalhador
multifuncional para conseguir acomodar o absenteísmo na fábrica e não para
motivar e dar mais responsabilidade ao empregado. Além disso, na maioria
das empresas que utilizam grupos o operador executa a mesma operação,
sem que a mesma seja compartilhada com outros operários da célula. A
rotação dos empregados nas operações ou célula poderá ocorrer só quando
houver troca de modelo;
• Sistema de controle da produção: o sistema nas fábricas de calçados de
couro é centralizado e planejado pela direção ou áreas de suporte da
empresa. A produção não é puxada, mas sim empurrada. É a habilidade de
planejamento da área de PCP que determina o acúmulo ou não de estoques;
• Manutenção: continua sendo realizada por um departamento especial, quando
muito os empregados são responsáveis pela limpeza da área.
A organização das fábricas de calçados em mini-fábricas focadas, seja em
operações, seja em produto, trouxe maior flexibilidade, já que para cada novo
modelo ou linha modifica-se o lay-out de modo a ter o menor tempo de produção
(lead-time), ao mesmo tempo que faz-se o balanceamento de máquinas e
funcionários com outras mini-fábricas dentro da empresa. Assim, o tempo de
mudança e preparação (set-up) torna-se menor que em relação a uma esteira, mas
em compensação os ganhos de escala são menores. Além disso, a localização de
problemas fica mais fácil, já que facilita a visualização do acúmulo de estoques, o
que não acontece com uma esteira de cadência constante. Geralmente as empresas
empregam grupos quando necessitam de flexibilidade. • Verticalização
A escolha de uma estratégia de verticalização depende das vantagens que a
empresa poderá auferir, não só em redução de custos em função da eliminação das
margens intermediárias, mas também do poder que a empresa ganha sobre o fluxo
de produtos na filière.
156
No caso das fábricas de calçados, a estratégia de verticalização para trás pode
ser um bom negócio, em virtude do fluxo de matéria-prima couro ser irregular quanto
ao preço e de baixa qualidade. A verticalização nesse caso garante o nome da
empresa, já que pode assegurar a qualidade e os prazos de entrega para seus
clientes.
A aglomeração industrial facilita a verticalização através de aquisições devido à
inabilidade dos fornecedores de suprirem as grandes empresas. No entanto, a
aglomeração industrial na região facilita também uma verticalização sem aquisição,
ou seja, o desenvolvimento de fornecedores exclusivos ou com parte da produção
assegurada, garantindo uma estrutura menor e maior flexibilidade em relação à
verticalização tradicional.
5.4.3.4 Fatores que influenciam na competitividade
Os fatores essenciais na concorrência são adaptabilidade, qualidade e preços
baixos. Possuir adaptabilidade é essencial. Além de lançadas a tempo certo, as
coleções têm que representar o desejo dos consumidores. Cabe ao estilista de
calçados a difícil missão de prever o que o consumidor irá comprar. Esses questões
são reforçadas por um entrevistado,
“A necessidade de assegurar qualidade fica evidente, frente ao novo
consumidor, mais exigente e rigoroso. Esse comportamento é agravado pelo
grande número de empresas produzindo sapatos semelhantes, sendo mais
fácil encontrar o que se procura. Igualmente importante e de difícil resolução
está a necessidade de reduzir custos para permitir uma diminuição nos preços
de venda. O que se traduz como necessidade de preços compatíveis com o
produto e mercado alvo.”
Outro ponto importante é o cumprimento dos prazos de entrega. O não
cumprimento dos prazos denigre a imagem da empresa. Apesar de indesejáveis, os
atrasos são relativamente freqüentes dentro do segmento. Em alguns casos, mais
esporádicos, o tempo médio de atraso nas entregas chega a ser elevado, podendo
chegar a duas ou três semanas.
A cadeia formada pelas relações fornecedor/empresa e empresa/cliente assume
grande importância uma vez que, se a empresa não obtiver do fornecedor
atendimento adequado, recebendo as matérias-primas dentro dos prazos e padrões
157
de qualidade exigidos não poderá repassar estas características aos seus clientes e
conseqüentemente ao consumidor final. Evidencia-se a importância e a necessidade
de haver parcerias entre os envolvidos: fornecedor, empresa e cliente. A relação
fornecedor/empresa assumindo maior importância dentro da cadeia, apresenta ainda
hoje muitos problemas, apesar de evidentes melhorias.
As questões de flexibilidade são pouco discutidas. Porém, sua relevância é
verificada uma vez que, grande quantidade das empresas, levam dias senão,
semanas para passar de uma coleção a outra, não havendo portanto, flexibilidade
de produção. Talvez por falta de treinamento ou devido à forma de organização
industrial verifica-se que a produção se reduz sensivelmente em trocas de coleções.
Esta situação é agravada pela ausência de qualquer tipo de análise do processo de
produção de um modelo, durante a fase de projeto.
Ainda no que se refere à competitividade, em termos de áreas internas da
empresa, são relevantes: (1) projeto do modelo/modelagem (relacionado à
adaptabilidade e qualidade), (2) vendas / marketing (referente às relações
empresa/cliente), (3) compras (relacionadas à relação fornecedor/empresa), (4) PCP
(abrange cumprimento de prazos e preços baixos), (5) processo de fabricação,
influenciando flexibilidade e (6) recursos humanos (RH)
Nesse sentido, o bom desempenho do departamento de projeto do modelo/
modelagem é considerado vital. Uma insuficiência nesse setor não pode ser
compensada por nenhum outro. Ele é diretamente responsável pelas questões de
qualidade e adaptabilidade da empresa.
Buscando baixar custos e reduzir prazos a área de PCP (Planejamento e
Controle da Produção) se destaca como essencial para a empresa. Programar a
produção visando o cumprimento dos prazos de entrega e reagir aos imprevistos são
fundamentais.
Também o departamento de compras assume grande importância. Lidando
diretamente com o monopólio exercido pelos fornecedores, se depara com
freqüentes atrasos nos recebimentos e ainda mais freqüente, interrupções da
produção por falta de matéria-prima. Além dos problemas decorrentes de falta há
outro: existência do material, porém, com qualidade não aceitável pelos padrões
estabelecidos pela empresa.
158
Contendo traços de um processo artesanal, o processo de fabricação também
requer cuidados, até porque exerce influência direta na flexibilidade em geral. Novas
tecnologias, equipamentos e materiais têm sido desenvolvidos, testados e
agregados ao processo convencional. O receio é maior quando o assunto é
reestruturação de atividades, pois elas alteram o procedimento tradicional. Como
sabe-se o homem possui um receio natural a tudo que é novo e conseqüentemente
às mudanças.
Segundo Fernandes e Murari (2000), as estratégias de vendas, bem como o
marketing adotado pela empresa são fatores secundários. Interferindo na relação
entre a empresa e seus clientes, esses aspectos recebem atenção apenas quando a
empresa julga ter solucionado ou acomodado os demais problemas.
O departamento de RH pouco evidenciado recebe menor atenção. Treinamento e
informações sobre os processos são ainda pouco comuns. O natural são os cursos
sobre qualidade, principalmente os promovidos pelo SEBRAE. Sem uma
programação adequada, sem uma conscientização verdadeira e sem o
comprometimento por parte dos altos escalões, os esforços acabam muitas vezes se
limitando a simples cursos, não constituindo uma reeducação comportamental como
de fato deveriam ser.
Assim, vários desvios interferem na eficácia e eficiência das áreas internas da
empresa. Problemas como: programação inadequada da produção, falta de matéria-
prima, nível inadequado de estoque de produtos acabados, atrasos nas entregas
aos consumidores e tempo médio de atrasos elevados são questões consideradas
extremamente críticas para a empresa. Pode-se incluir ainda nesse grupo a
insuficiência no setor de modelagem.
A maioria dos desvios devem ser tratados pelo PCP. Tendo um horizonte de
programação variando entre 10 e 20 dias, a programação da produção feita na
maioria das vezes aleatoriamente, ignora qualquer critério. Considera, e de forma
superficial, apenas os prazos de entrega e disponibilidade de recursos; mostra-se
ineficiente e alheio às perturbações durante o processo produtivo.
Alto estoque de matéria-prima, alto estoque em processo, existência de gargalos
na produção, tempos inativos de operário e matéria-prima altos, capacidade
produtiva insuficiente, falta de incentivos para aumentar vendas, processo de
fabricação desatualizado, necessidade de mão de obra mais qualificada, e
fornecedores pouco confiáveis são desvios, não menos sérios, porém, merecedores
159
de menor atenção frente aos anteriores. Ainda nesse grupo percebe-se claramente a
existência de problemas decorrentes de programas de produção inviáveis.
Por outro lado, set-up de máquinas elevado, Iay-out inadequado, tempo inativo
de máquinas elevado e excesso de capacidade produtiva recebem pouca atenção.
Evidentemente, não pela falta de importância, mas por se tornarem irrelevantes
frente aos demais.
O aproveitamento da matéria-prima está distante de ser aceitável. Poucos
estudos são desenvolvidos nessa área e as perdas na utilização do couro variam
entre 10 e 50%, conforme a empresa em questão. Diferenças tão grandes decorrem
não apenas da execução da tarefa, mas do tipo de couro utilizado. Mesmo quando
se trata do material laminado sintético, apesar de ser incomparavelmente mais
simples de se trabalhar (devido à sua regularidade e homogeneidade), o
aproveitamento permanece distante do ideal.
Ainda além do pequeno aproveitamento do couro, outro problema é percentagem
de rejeição dos couros que situa-se entre 5 e 20%, sendo a diferença geralmente
decorrente do padrão de qualidade exigido para os diferentes mercados. De forma
geral esses aspectos mencionados como problemas, são os mesmos
independentemente da empresa considerada. Variam apenas a intensidade e a
freqüência de ocorrência ou relevância atribuída.
Assim, de acordo com Fernandes & Murari (2000), associados aos resultados
das entrevistas, é possível explicitar as seguintes conclusões:
i) a importância da indústria calçadista nacional preocupar-se em recuperar sua
posição de maior e melhor fornecedor mundial;
ii) a importância de se analisar a empresa calçadista de forma particular, com
características, estratégias de vendas e trunfos competitivos singulares se
comparados a outros ramos;
iii) a importância de pensar em competitividade e nos fatores estratégicos de
produção relacionados de forma integrada, permitindo que a empresa identifique seu
cenário e possa definir sua estratégia baseada nos fatores realmente relevantes
para a sua situação;'
iv) a importância de estar atento às mudanças do mercado consumidor, que nos
últimos anos tem se mostrado ativo e em constante modificação, levando empresas
recém instaladas a ultrapassarem empresas antigas no mercado;
160
v) a importância dos empresários calçadistas acreditarem em inovações,
diminuindo o receio em testar novas tecnologias, mesmo quando estas se referirem
à restruturação de atividades;
vi) a importância em enriquecer as atividades relacionadas ao projeto dos
modelos, englobando a análise do processo produtivo, subentende-se a
conseqüente melhoria do processo, redução de seus custos, maior facilidade para
seu aprendizado e execução;
vii) a importância em se cumprir os prazos de entrega preestabelecidos, evitando,
além do comprometimento da imagem da empresa frente aos clientes, o aumento
dos custos;
viii) a importância de propor um sistema de controle e programação da produção
apropriado que venha substituir os sistemas informais atualmente utilizados na
grande maioria das fábricas de calçados;
ix) a importância de propor uma sistemática, viável quanto à sua implementação
na prática, para programar o corte dos materiais, uma vez que deve-se resolver as
questões relacionadas ao problema de corte garantindo o cumprimento das
demandas e assegurando maior e melhor aproveitamento do material utilizado,
visando diminuir os resíduos sólidos;
x) a importância de simplificar o fluxo de produção, eliminando contra-fluxos e
transportes desnecessários, a fim de garantir uma redução no lead time de
produção, interferindo positivamente no cumprimento dos prazos de entrega e
contribuindo para diminuir custos;
Xi) a importância de conferir maior relevância ao fator flexibilidade, melhorando,
por exemplo, a introdução de novas coleções na produção - atividade problemática e
que implica em perda de produtividade - empreendendo esforços para que isso
ocorra sem comprometimento do ritmo normal de produção;
xii) a importância em se firmar a tendência atual para a formação de parcerias
entre fornecedores e empresas, garantindo com isso: regularidade no recebimento
das matérias-primas, índices de qualidade dentro dos padrões pré-determinados,
possibilidade do repasse das características tais como qualidade e prazo recebidas
dos fornecedores pela empresa aos seus clientes, fechando com isso o ciclo:
fornecedor / empresa / cliente.
161
Esses problemas foram ainda mais críticos na década de 90 quando em 1995
houve uma queda enorme nas exportações. Para o ano 2001 as previsões são
animadoras. Segundo Ciarelli in Tecnicouro (2000), estudo da Confederação
Nacional da Indústria (CNI) mostra que a reação do setor industrial brasileiro a partir
do ano 2000 será liderada pelos ramos têxtil e de vestuário os quais perderam 50%
dos postos de trabalho desde o início do Plano Real (1994).
Uma confirmação desse fato é o aumento de 20% das vendas de calçados em
2000 em relação a 1999. Alguns autores entendem que os catalisadores da reação
do ramo são a desvalorização do real frente ao dólar42 e uma adaptação da indústria
nacional à concorrência externa. Embora ainda não tenha sido efetivamente
demostrado, essa adaptação pode estar passando pela solução, pelo menos parcial,
dos problemas mencionados.
42 Catalisador de exportações e inibidor de importações
Distribuição e Mercados
Pode-se classificar as empresas quanto ao principal mercado que atendem:
• Mercado externo: empresas que atendem predominantemente o mercado
externo, onde se destacam como compradores Estados Unidos e Europa;
• Mercado externo/interno: empresas que atendem ambos os mercados
equilibradamente;
• Mercado interno: empresas que atendem exclusivamente o mercado interno.
No que diz respeito à distribuição para esses mercados, ela é feita da seguinte
maneira:
• Mercado interno:, distribuição própria, no caso dos calçadistas quando
possuem redes de lojas (Paquetá, Datelli e outros); venda direta, quando as
empresas negociam diretamente com as lojas (Ortopé, Dakota e outros); e
representantes comerciais, que intermediam a venda entre o fabricante e o
lojista. Entre essas, a maior parte da distribuição, em se tratando de calçados
é feita por venda direta ou representação comercial. No caso dos curtumes
prevalece a venda direta.
• Mercado externo: venda direta, negociação direta entre a empresa e os
distribuidores estrangeiros, que praticamente não acontece para o mercado
americano, restringindo-se principalmente ao mercado europeu; agentes de
importação, representantes de grandes cadeias de lojas ou de fabricantes de
calçados e artefatos, principalmente americanas, realizando a intermediação
sem auferir comissão; agentes exportadores (traders), empresas de capital
nacional que realizam os negócios entre o cliente e a empresa, auferindo o
diferencial entre os preços combinados com o cliente e o fabricante;
companhias de exportação (tradings), compram a produção e realizam a
comercialização nos países desejados.
163
5.5.1 Mercado interno de couro
O Conselho Nacional da Pecuária de Corte estima que o abate em 2002 será de
40 milhões de cabeças. No entanto, apesar do crescente número de abates (36% de
crescimento nos últimos dez anos), o consumo doméstico de couros não vem
crescendo na mesma proporção, mantendo-se em torno dos mesmos valores há
vários anos (Figura 42). Além do baixo consumo doméstico de calçados de couro, é
inquestionável a progressiva redução do uso do couro em calçados e artefatos em
prol dos sintéticos e outros materiais alternativos.
O Programa Calçado Brasil informa que, em 2000, o uso de plásticos, por
exemplo, em calçados – sapatos, tênis e chinelos – está próximo de dois terços da
produção nacional, destinada tanto ao mercado interno quanto ao externo. Desse
modo, mais couros estão disponíveis para a exportação e para outros fins, entre os
quais caberia destacar a indústria de móveis e de revestimento de veículos, em que
o percentual do couro utilizado ainda é baixo em relação aos patamares
internacionais. Segundo recente trabalho do Centro das Indústrias de Curtumes do
Brasil (CICB), entre 20% e 40% do mercado de estofados de salas dos Estados
Unidos e da Europa, por exemplo, utilizam couro, percentual que no Brasil encontra-
se entre 2% e 4%.
Figura 42: Evolução do abate e consumo aparente
Fonte: AICSUL
A predominância do gado zebuíno no Brasil traz uma desvantagem em relação
ao gado argentino, de origem européia, pois possui o que se chama de “cupim”, que
dificulta a retirada do couro inteiro, sem imperfeições, sendo mais próprio para
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Abate
Consumo
05.000
10.00015.00020.00025.00030.00035.000
1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999
164
cortes. No entanto, alguns grandes curtumes já conseguem aproveitar esse tipo de
couro para usos mais nobres.
Além disso, como já foi visto, há pouco incentivo aos pecuaristas no tratamento
do gado, de modo a impedir que o couro tenha marcas prejudiciais, como as de
bernes43, arranhões decorrentes do uso de arame farpado, marcas de ferro, entre
outras, o que faz com que a pele, por vezes também extraída de forma inadequada,
seja classificada como de baixa qualidade, obtendo-se couros com menor valor na
exportação.
Alguns curtumes, cientes da importância do maior envolvimento dos pecuaristas
e frigoríficos na melhoria da qualidade das peles brasileiras, vêm fazendo um
trabalho de conscientização/parceria junto a tais integrantes da cadeia coureiro-
calçadista. Esse fato foi comprovado em entrevistas já citadas anteriormente. Além
disso, o setor também vem procurando corrigir suas próprias deficiências, acenando
com alternativas de produção mais eficientes e maior integração com fornecedores e
clientes. Os ganhos decorrentes dessa coordenação integrada do complexo
coureiro-calçadista poderão ser diretamente expressos em termos de qualidade e
preço.
A indústria gaúcha de couro, importante fornecedora de couro acabado para a
indústria local, vem se aperfeiçoando e se especializando em acabamento de couros
inteiros para a indústria de estofamento de móveis e automóveis, cuja demanda é
crescente no mercado externo (BNDES, 1999). O Rio Grande do Sul produziu em
1999 cerca de sete milhões de couros, a partir de peles não só da região (dois
milhões – que são quase totalmente direcionados para a produção de estofados),
mas também do Centro-Oeste (cinco milhões).
5.5.2 Mercado interno de calçados
Após a implantação do Plano Real, o setor calçadista vem passando por uma
série de dificuldades para se manter atuante nos mercados interno e externo.
Internamente, entre as principais dificuldades destacam-se a baixa inovação
tecnológica do setor e a concorrência com o produto importado BNDES, 1999.
Externamente, o crescimento da concorrência asiática e também de países
165
europeus, como Itália, Espanha e Portugal, tem absorvido parcela significativa do
mercado brasileiro de sapatos. Some-se a isso o desenvolvimento de produtos
sintéticos, que vêm substituindo os calçados de couro natural, base das exportações
brasileiras de calçados. Não obstante, o setor tem apresentado um incremento da
qualidade do produto, resultado combinado da aplicação de materiais mais
sofisticados e da melhoria nos processos de acabamento.
A cadeia industrial é praticamente auto-suficiente, à exceção da fabricação de
equipamentos mais sofisticados - com componentes eletrônicos - e de alguns
insumos químicos e petroquímicos - controlados por monopólios. As matérias-
primas demandadas pela indústria coureiro-calçadista são abundantes no país e,
salvo alguns produtos derivados do petróleo, fundamentais à produção de artigos
esportivos e cujos preços são mais elevados do que os internacionais, os preços são
compatíveis com os da oferta internacional44
O tipo de produção para o mercado interno assemelha-se muito ao produzido
para a Europa: lotes menores e maior variedade de modelos. Contudo, a exigência
de qualidade é muito maior por parte dos europeus, principalmente no que diz
respeito aos materiais utilizados e uniformidade de produto, conseqüentemente do
processo produtivo.
Até o final da década de 80, os fabricantes de calçados e artefatos, tanto para
mercado externo como para o mercado interno, caracterizavam-se pela ausência de
movimentos em direção a novos mercados. Historicamente, o pólo do Vale do Rio
dos Sinos sempre teve demanda superior a oferta. No início do século, com a
taxação dos produtos importados e a forte demanda da população por calçados; nas
décadas de 50 e 60, com a industrialização e a entrada da mulher no mercado de
trabalho; e, finalmente, na década de 70, com as exportações, principalmente para
os EUA.
Assim, comparativamente a outros setores da economia, como o de vestuário,
observa-se que sempre houve um esforço de marketing menor no sentido de se
estabelecer uma imagem ou marca conhecida no mercado. Dessa forma, até o final
da década de 80, o mercado interno caracterizava-se pela falta de uma estrutura e
43 Tipo de mosca que coloca os ovos sob a pele do gado. Ao se desenvolver e depois “nascer”, a mosca deixa feridas na pele que, mesmo cicatrizadas, causam-lhe imperfeições 44 O sulfato de cromo, essencial no curtimento da grande maioria das peles, constitui exceção, apresentando preço externo inferior ao doméstico.
166
estratégia comercial mais agressiva que perpetuasse as marcas e incentivo ao
mercado a um maior consumo do calçado de couro.
Analisando-se o mercado interno, surge uma pergunta: Por que vender no
mercado externo por 30 a 40% do preço que pode ser conseguido no mercado
interno? As explicações são várias. A primeira, de natureza histórica, é que o
mercado americano garante volumes de produção altos, menor variedade,
pagamento em dólar e estabilidade. A segunda, de natureza administrativa e
comercial, é que no mercado interno as empresas são obrigadas a procurar
mercados. No mercado externo, isso praticamente não aconteceu até o início da
década de 90, ocasionando uma estrutura administrativa menos pesada. A terceira,
de natureza técnica, é que os agentes, na maioria das empresas de calçados,
definem todas as características do calçado, além de trazer as inovações de produto
e processo para os fabricantes, desobrigando-os de manter estruturas de pesquisa e
desenvolvimento e de marketing. Já no mercado interno a principal característica é a
instabilidade de demanda, que depende basicamente da renda da população.
A produção brasileira de calçados tem permanecido estável nos últimos anos,
assim como as parcelas que vão para os mercados interno e externo. A maior
parcela vai para o mercado interno (quase 75% entre 1997 e 1999), como se pode
ver na figura 43. Dados preliminares para 2000 estimam um aumento da produção
em relação a 1999, principalmente em função do aumento de 18,5% das
exportações (ABICALÇADOS, 2001)
Figura 43: Produção Brasileira de Calçados
Fonte: AICSUL
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1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999��������
Merc.Interno Merc.Externo������
Total
167
Os pólos industriais calçadistas, como os de Franca, Vale dos Sinos, Jaú e
Birigüi, têm registrado sucessivos fechamentos e paralisações de indústrias, devido
não só à forte concorrência do mercado internacional, como também aos
deslocamentos de empresas para outros estados da Federação, que acenam para a
instalação de indústrias em seus territórios em troca de subsídios fiscais, o que, por
vezes, pode trazer problemas sociais e esvaziamento da arrecadação, assim como
possível perda das sinergias do cluster industrial.
5.5.3 Mercado interno de componentes
A indústria coureiro-calçadista é a que mais absorve a produção da indústria de
componentes, que inclui produtos químicos, metais, têxteis, embalagens, sintéticos,
entre outros, os quais também se destinam a outras indústrias. A produção é feita
por empresas de todos os portes. Pois, com o progressivo aumento da terceirização
em vários segmentos industriais, o número de empresas pequenas vem crescendo.
Tabela 17: Empresas de Componentes para Couro e Calçados Componentes BrasilL Rio Grande do Sul Participação %
Palmilhas e Termoconformados 125 75 60 Solados e Fôrmas 190 110 58 Metais 210 160 76 Embalagens 80 55 69 Produtos Químicos para Couro 165 75 45 Produtos Químicos para Calçados 75 45 60 Têxteis e Sintéticos 185 70 38
Total 1.030 590 57 Fonte: Assintecal .
O Rio Grande do Sul é um importante pólo produtor e exportador de
componentes, concentrando grande parte das empresas (tabela 17). Segundo a
Associação Brasileira de Componentes para Calçados e Couro (ASSINTECAL),
alguns aspectos podem ser observados a respeito do setor:
168
• o setor teve ociosidade não só pela diminuição das exportações de
calçados na década de 90, mas também pelo aumento das importações
de componentes, devido à abertura comercial;
• o setor está diversificando sua produção, para atender a outros setores,
principalmente a indústria química, evitando assim a dependência do
setor calçadista;
• poucas empresas atuam no mercado internacional, e as que o fazem são
sempre as mesmas e, predominantemente, do setor químico e de grande
porte;
• Até meados da década de 90, não eram são desenvolvidas, pelas
empresas, ações sistemáticas no comércio internacional;
• Assim como também não existia movimento expressivo na direção dos
novos pólos calçadistas.
A partir de 1998, o setor tem atuado no esforço exportador, participando do
Programa Setorial Integrado de Promoção das Exportações de Máquinas e
Componentes para Couro, Calçados e Afins, desenvolvido pela Associação
Brasileira das Indústrias de Máquinas e Equipamentos para os Setores do Couro,
Calçados e Afins (ABRAMEQ) e pela (ASSINTECAL) e apoiado pela APEX –
Agência Especial de Apoio a Exportação.
5.5.4 Mercado interno de artefatos de couro
Esse segmento abrange produtos de couro para vestuário, casa, calçados,
artigos esportivos, instrumentos musicais etc. Sabe-se, no entanto, que a produção,
feita por pequenas empresas, muitas clandestinas, é artesanal e difícil de precisar.
A indústria é intensiva em mão-de-obra e predominam as pequenas empresas.
Embora tenha havido alguma melhoria em nível tecnológico, ainda há tarefas que
continuam artesanais, e a mão-de-obra tem um grande peso no custo final do
produto.
169
No comércio internacional, embora a Itália seja tradicionalmente a maior
exportadora em quantidade de produtos e a Espanha reconhecida sob o ponto de
vista tecnológico, a China foi o país que mais exportou para o Brasil em 1996 e 1997
(US$ 24.700 mil FOB e US$ 27.200 mil FOB, respectivamente). Hong Kong e
Estados Unidos também se destacaram como grandes exportadores.
O saldo comercial desse segmento se equilibra no Brasil, e quase toda a
exportação nacional está concentrada nos Estados do Rio Grande do Sul, com 64%
das exportações, e de São Paulo, com 27% (período janeiro/abril de 1998),
conforme figura 44.
O setor enfrenta dificuldades comuns a setores pouco estruturados, com pouca
atuação em pesquisa de mercado e estrutura de preços deficiente. Além disso, tem
uma carga de 10% de IPI, o que estimula a existência de empresas clandestinas e
diminui sua competitividade.
5.5.5 Mercado interno de máquinas
No Brasil, existem cerca de 113 indústrias que produzem máquinas e
equipamentos para couro, calçados e afins. O grau de modernização da indústria de
bens de capital voltada para o setor no que se refere à incorporação de tecnologias
ainda é baixo, principalmente quanto a componentes microeletrônicos. Ainda assim,
o setor ocupa 70% da sua capacidade instalada, mas é capaz de suprir o aumento
da demanda mediante a contratação de mão-de-obra, que é abundante e
qualificada.
No entanto, segundo informações dos entrevistados, há uma enorme carência de
financiamentos com custos acessíveis para a produção e comercialização de seus
produtos. A indústria italiana, que tem, atualmente, a liderança na tecnologia de
máquinas e equipamentos para couro e calçados, conta com aporte do governo,
uma vasta gama de financiamentos de bancos externos e juros menores que os
praticados no Brasil.
170
Figura 44: Evolução da Balança Comercial de Artefatos de Couro
28.350
45.363 48.111
28.260
(133)
1.588
(10.261)(20.000)(10.000)
-10.00020.00030.00040.00050.00060.00070.00080.000
1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997
US$ mil FOB
Export Import Saldo
Fonte: BNDES
Em 1999, as vendas externas chegaram a pouco mais de US$ 4,5 milhões,
contra US$ 47 milhões em 1993, conforme pode ser acompanhado pela figura 45.
Em 1997, o setor de máquinas e equipamentos apresentou uma queda brusca e
estes números não chegaram a US$ 3 milhões, no entanto está em andamento uma
recuperação do setor. Em 1993, as indústrias mantinham aproximadamente 15 mil
funcionários, enquanto em 2000 esse número caiu para 2.809 (ABRAMEQ, 2001).
Figura 45: Exportações do setor de máquinas
Fonte: Abrameq
A importação também contribui para agravar essa questão, já que através dos
ex-tarifários e outros meios têm ingressado no país máquinas similares às
produzidas no Brasil, inclusive usadas (BNDES, 1999). As mais importadas foram
secadores, máquinas para movimentação e deposição do couro, para preparar e
curtir, para dividir e para costurar o couro. As máquinas para fabricar e/ou consertar
calçados, incluídas no montante acima, são importadas em menores quantidades.
0
10
20
30
40
50
1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000
171
Em uma iniciativa conjunta os setores de máquinas e componentes lançaram um
programa, em 1998 – envolvendo um orçamento de US$ 10 milhões, financiados em
50% pela Agência de Promoção à Exportação (APEX) - que tem como objetivo
dobrar suas exportações até 2002. O programa foi dividido em cinco projetos: cursos
de capacitação e treinamento; adequação de produtos e processos produtivos com a
padronização e a organização de informações; montagem de um banco de dados
com informações sobre os mercados interno e externo; promoção da marca Made in
Brazil; e promoção de feiras.
Em 2000 já são visíveis os resultados dessa iniciativa, conforme tabela 18.
Segundo a Abrameq, as metas estabelecidas tem sido não apenas atingidas como
também superadas. Em 1999, o setor tinha como objetivo arrecadar US$ 2,9 milhões
com as exportações e fechou o ano com US$ 4,5 milhões. Apesar do incremento
nas exportações, as indústrias de máquinas estão abastecendo a demanda do setor
calçadista brasilieiro, que também está registrando aumento na sua produção. Até o
ano de 1999, os fabricantes de equipamentos atuavam com um alto índice de
ociosidade, que algumas vezes chegava a 30% da capacidade. O acréscimo nas
demandas fez com que o setor voltasse a contratar mão-de-obra e em 2000 foram
2,8 mil pessoas trabalhando contra 2,5 mil do ano 1999, como pode-se verificar na
tabela demonstrativa da evolução do setor.
Tabela 18: Demonstrativo do setor de máquinas
Ano 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 Nº empresas 138 138 120 102 86 86 99 113 Nº Funcionários 15000 13500 10800 9750 4200 2.687 2.562 2809 Empresas Exportadoras - - - - 25 27 33 37 Exportações 47,16 7,13 4,68 6,41 2,72 3,76 4,51 5* Fonte: Abrameq *Estimativa
O setor de máquinas para calçados liderou o faturamento. O México confirmou as
expectativas dos empresários brasileiros, sendo o principal importador de máquinas
e equipamentos para calçados. Os mexicanos estão atualizando seu parque fabril
para atender a produção de calçados e artefatos exportados para os Estados
Unidos, além de suprir a demanda de seu mercado interno. Várias empresas
nacionais contrataram representantes ou distribuidoras no México, agilizando a
relação comercial. O segundo maior comprador de máquinas para calçados é a
Argentina (ABRAMEQ).
172
5.5.6 Mercado externo de couro
O comércio exterior de couro é superavitário, embora as exportações, crescentes
(figura 46), estejam concentradas em produtos de baixo valor agregado – o couro do
tipo wet-blue - e as importações sejam predominantemente de couro acabado, de
maior valor agregado. As exportações totalizaram pouco mais de US$ 600 milhões em 1999 (incluindo
couros salgados, wet-blue, curtidos e acabados), significando um crescimento
acumulado de 140% em relação a 1990. Não obstante, em termos de unidades, elas
aumentaram cerca de 200% no mesmo período, cabendo destacar que as de couro
wet-blue - de menor valor agregado - mais que quadruplicaram entre 1990 e 1999,
enquanto as de couros semi-acabados e acabados tiveram, juntas, um incremento
bem menor (44%) acumulado no período (figura 47). Do total exportado em 1999,
em unidades, 70% foram de wet-blue, 28% de crust e acabado e 2% de salgado
(AICSUL, 2000). Segundo dados do Minstério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior, em 2000, as exportações de couro somaram US$ 803.004.609
milhões FOB, o equivalente a 1,46% dos embarques do país. Na comparação com
99, quando o Brasil exportou US$ 641.498.858 milhões, houve alta de 25,18%
(Gazeta Mercantil, 18/01/2001).
173
Figura 46: Evolução da Balança Comercial de Couro
Fonte: AICSUL
Figura 47: Exportações brasileiras de couro por tipo em valores (US$ FOB)
Fonte: AICSUL
O couro do tipo wet-blue apresentou queda de 10% em unidades físicas e de
12% em relação aos preços, figuras 48 e 49. Já os couros crust e acabado
mostraram um crescimento de 28% em quantidade de peças e queda de 16% no
preço, entre 1998 e 1999, figuras 50 e 51.
0100.000200.000300.000400.000500.000600.000700.000800.000
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999
Exportação Importação Saldo
0,00
100,00
200,00
300,00
400,00
500,00
600,00
700,00
800,00
1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999
Salgado Wet-blue Crust + Acabados Total
174
Figura 48: Exportação de couro bovino wet-blue – situação física
Fonte: AICSUL
Figura 49: Exportação de couros wet-blue - situação monetária US$ 1000 FOB
Fonte: AICSUL
O setor planeja atingir um incremento das exportações de couros de maior valor
agregado (CICB, 1999), o crust e o acabado, cujo maior volume de exportações
contribuiria significativamente para o superávit da balança comercial, além de gerar
maior oferta de empregos.
0.000200.000400.000600.000800.000
1.000.0001.200.0001.400.000
Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Ano 1998 Ano 1999
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0.0005.000
10.00015.00020.00025.00030.00035.00040.00045.000
Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Ano 1998�����
Ano 1999
175
Figura 50: Exportação de couros crust e acabados – situação física – nº couros
Fonte: BNDES
Figura 51: Exportação de couros crust e acabados – situação monetária – US$ 1000 FOB
Fonte: AICSUL
A redução dos preços do couro explica-se pela maior competição no mercado
externo, especialmente na Europa. Com a queda das importações de couro norte-
americano pelos países asiáticos, os Estados Unidos, com couro de melhor
qualidade, reduziram seus preços, aumentando sua participação no mercado
europeu, principal cliente das exportações de couro brasileiras.
Os preços atualmente praticados na exportação são os do mercado internacional,
considerada a qualidade da matéria-prima brasileira, que alcança grau intermediário,
devido à grande incidência de defeitos.
0.000
100.000
200.000
300.000
400.000
500.000
Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Ano 1998 Ano 1999
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��������������������������������������������������
0.000
5.000
10.000
15.000
20.000
25.000
30.000
Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Ano 1998�������� Ano 1999
176
Do total de US$ 600 milhões, as exportações de couro brasileiras destinam-se
especialmente à Europa. A Itália tem sido o principal comprador nos últimos três
anos, em sua grande parte de couro wet-blue, conforme figura 52.
Figura 52 - Destino das Exportações de Couros - 1999
Fonte: AICSUL
Conforme já mencionado, havia fatores desfavoráveis para o setor de couro
nacional, como as desigualdades tarifárias que privilegiam a exportação de produtos
com menor valor agregado. O caso clássico é o do couro wet-blue, cujas
exportações até o ano de 2000 estavam isentas do imposto de exportação no Brasil
e do imposto de importação na Europa. Já as exportações nacionais de couros semi-
acabado e acabado são taxadas em 6,5% na Europa; como agravante, as
exportações do wet-blue, assim como as de couro salgado, destinam-se
especialmente aos maiores concorrentes de nossos manufaturados no mercado
internacional45. A Argentina – grande produtora de couros acabados – também
procura defender sua indústria taxando suas exportações de couro wet-blue, de
modo a incentivar as exportações e a produção doméstica do couro acabado.
45 Programa Calçado do Brasil – Planejamento Estratégico Setorial (1996)
Itália29%
Hong Kong13%
Demais países17%
Alemanha3%
Cingapura3%
China4%
Espanha6%
Portugal8%
Países Baixos3%
Coréia do Sul2%
Estados Unidos12%
177
No Brasil, a aprovação da Lei 9.363/96 e da Lei Complementar 87/96 foi uma
tentativa para estimular as exportações de produtos acabados, através do
ressarcimento de impostos pagos ao longo do processo produtivo de toda a cadeia,
mas a burocracia fazendária acaba por estimular as importações de matérias-
primas, pois os prazos previstos pela lei para a devolução dos valores não são
cumpridos, gerando problemas de capital de giro nas empresas.
As exportações de wet-blue vêm representando há muitos anos, a maior parte
das vendas externas de couro – Cerca de 70% do volume físico. Segundo um
entrevistado,
“O pedido de taxação da matéria-prima é um pleito antigo do setor calçadista,
encontrando apoio no ano de 2000 do Centro das Indústrias de Curtumes do
Brasil (CICB), levando a medidas de restrição à exportação do wet-blue. A
partir de janeiro de 2001 a exportação será taxada em 9%. A medida será
reavaliada em um ano para verificar se realmente houve incremento nas
exportações de calçados e queda nos preços dos calçados.”
Segundo a ABICALÇADOS E CICB, a medida é necessária em função da alta do
preço da matéria-prima46 e da escassez do produto no mercado nacional, fatores
que levaram muitas empresas a redução da produção de calçados em couro,
utilizando materiais sintéticos. Resultando ainda em um aumento na tabela de
preços da coleção verão 2001 em cerca de 15%, em relação a tabela da mesma
estação do ano de 2000, considerando-se calçados e bolsas fabricados nesse
material.
O estado brasileiro que mais exportou couro em 1999 é o Rio Grande do Sul
(40,38% em US$s), vindo em seguida São Paulo (23,54%), veja figura 53. Já quando
se trata de unidades físicas o Estado de São Paulo fica em primeiro com 28,52%
seguido do Rio Grande do Sul com 27,52%.
46 130% desde janeiro de 1999
178
Figura 53: Exportação global de couros por estados em US$1000 - 1999
Fonte: AICSUL
As importações de couro brasileiras têm permanecido relativamente estáveis
desde 1990, tendo em 1998 os seus valores mais altos (figura 54). As importações
de couro, em 1998, atingiram quase 18% do consumo aparente (em unidades) –
maior percentual de toda a década.
Figura 54: Evolução das importações de couro
Fonte :AICSUL
O tipo de couro mais importado pelo Brasil é o crust, que em 1999 chegou a um
valor de US$ 102,2 milhões (73% das importações totais de couro bovino), vindo a
seguir o wet-blue, com US$ 15,2 milhões. Desde 1993, as importações nacionais de
couro vêm se concentrando nos três maiores fornecedores: Argentina, Austrália e
Estados Unidos (figura 55), passando de 52% em 1993 para 71% em 1997 o
percentual de importação originária desses países. Da Argentina, importa-se
0 50000 100000 150000 200000 250000 300000
Rio Grande do Sul
São Paulo
Paraná
Minas Gerais
Ceará
Bahia
Santa Catarina
mato Grosso
Mato Grosso do Sul
Pernambuco
05
1015
2025
3035
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999
Produção Importação Consumo
179
basicamente o couro crust, de melhor qualidade que o nacional, o qual é acabado
aqui pelos calçadistas importadores.
Em 1998, até junho, a Argentina manteve sua posição de maior fornecedora, e a
segunda posição, em valores, foi ocupada por Bangladesh (que volta a crescer),
vindo em seguida os Estados Unidos. Em volume, os Países Baixos ocuparam a
segunda posição e, em seguida, a Austrália. É importante notar que, nesse mesmo
período, a China já aparecia como importante fornecedora de couro para o Brasil,
vindo em quarto lugar, tanto em valores como em quantidades, enquanto no mesmo
período de 1997 estava em décimo lugar.
Considerando apenas o Mercosul, a balança comercial brasileira em couros é
deficitária, tendo alcançado US$ 98 milhões negativos em 1997. Somente a
Argentina representou 94% desse déficit.
Segundo um entrevistado,
“Os maiores exportadores brasileiros de sapatos usam couros e insumos
importados via drawback, pois esse sistema tem favorecido as suas
exportações. No entanto, essa competitividade é espúria, baseada
principalmente em aspectos tributários, os quais vêm prejudicando o
desenvolvimento integrado da cadeia coureiro-calçadista.” Figura 55: Origem das Importações de Couro Brasileiras– 1999
Fonte: AICSUL
Argentina63%
Demais países8%
Uruguai10%
Austrália4%
Bangladesh4%
Itália3%
Países Baixos1%
Estados Unidos
2%
Indonésia2%
China2%
Coréia do sul1%
180
5.5.7 Mercado externo de calçados
O Brasil é um dos cinco maiores produtores e consumidores mundiais de
calçados. O maior produtor é a China, que em 1998 fabricou mais de 5,5 bilhões de
calçados (entre sintéticos – maior parte - e de couro natural) e exportou 3,1 bilhões
de pares. Os cinco maiores mercados (em unidades) são China, Estados Unidos,
Japão, Índia e Brasil (tabela 19).
Tabela 19 - Principais Países Produtores de Calçados – 1996/98 (Em Milhões de Pares)
PAÍSES 1996 1997 1998 China 4.500 5.252 5.520 Índia 700 680 685
Indonésia 635 523 316 Brasil 586 544 516 Itália 483 460 425
Fonte: Satra/Abicalçados.
Em relação ao comércio mundial, o saldo da balança comercial de calçados tem
sido positivo, mas desde 1994, com o aumento das importações e o declínio das
exportações, tem-se mantido em torno de US$ 1.300 milhões, bem abaixo dos
quase US$ 1.900 milhões que já havia alcançado em 1993 (figura 56). Para 2000,
segundo dados da ABICALÇADOS, estima-se que haja aumento desse saldo, já que
as exportações nacionais de calçados alcançaram US$ 1.546 milhões, significando
um acréscimo de 17% em relação a 1999, com aumento de 18% nas quantidades.
Segundo ABICALÇADOS, os Estados Unidos consumiram US$ 1,078 bilhão em
calçados brasileiros em 2000, equivalente a 69,75% das exportações de calçados
do Brasil no ano passado. Dos embarques que o País realizou, de 162 milhões de
pares, os norte-americanos foram responsáveis pela compra de 99 milhões de
pares. Em 99, os norte-americanos importaram 68,6% do total das vendas externas
em dólar. Em 98, a participação foi de 68,8% e, em 97, de 68,6%.
As indústrias de calçados brasileiras pretendem aumentar os embarques para os
EUA, mas não necessariamente o percentual nas exportações brasileiras, buscando
também vender mais para outros países. Tudo para atingir a meta do convênio
firmado com Agência de Promoção às Exportações (Apex) de exportar US$ 2,5
bilhões até 2003. No ano passado, o total das vendas externas somou US$ 1,546
bilhão. A Argentina foi o segundo maior mercado, comprando 7,98% dos embarques
181
de calçados, seguida do Reino Unido, com 6,51% e do Canadá, com 2,17%.
(Gazeta Mercantil, 29 de janeiro de 2001)
A figura 57 mostra a evolução das exportações brasileiras de calçados, por país
de destino, entre 1997 e 1999.
As exportações brasileiras são basicamente de calçados femininos de couro,
onde o Brasil tem boa competitividade. No entanto, a China vem apresentando uma
progressiva evolução nessa linha de calçados, competindo com preços médios em
torno de US$ 7,50 por par (ABICALÇADOS, 2000). O calçado brasileiro, que em
1984 custava cerca de US$ 7, em 1997 custou aproximadamente US$ 10,70 (FOB).
Não obstante, a inflação acumulada no período foi superior a 50% nos Estados
Unidos, o que, portanto, significa que não houve incremento real no preço. Ainda a
partir de 1997 os preços entraram em declínio chegando a US$ 9,33 em 1999.
A perda de competitividade do calçado brasileiro no mercado norte-americano
pode ser associada aos seguintes fatores principais: a) o aumento de qualidade do
calçado fabricado na China, comercializado a preços bem competitivos, o que vem
pressionando o calçado brasileiro, que se situa em um patamar intermediário entre
os produtos italiano (que apresenta design e marca mais sofisticados e cujo preço
médio de exportação para os Estados Unidos vem se mantendo no patamar de US$
22) e chinês (comercializado a US$ 7); e b) o declínio da participação dos sapatos
de couro no mercado norte-americano e o paralelo incremento dos calçados atléticos
e demais sintéticos.
A tabela 20, a seguir, mostra a origem das importações norte-americanas de
calçados, nosso maior mercado externo e maior importador mundial de calçados (as
importações norte-americanas em 1998 atingiram 1,7 bilhão de pares,
representando mais de 80% do consumo doméstico e 25% do volume mundial),
onde é possível observar os crescentes valores de exportação da China, enquanto
os demais países mantiveram-se relativamente estáveis.
As exportações da China para aquele mercado cresceram 33%, em valores,
entre 1996 e 1997 e 4% entre 1997 e 1998. O mesmo ocorreu com a Itália (4% e –
2%, respectivamente). As exportações brasileiras caíram 4% entre 1996 e 1997 e 10
% entre 1997 e 1998.
182
Figura 56 - Evolução da Balança Comercial de Calçados em US$ milhão
Fonte: ABICALÇADOS
Figura 57: Destino das Exportações Brasileiras de Calçados
Fonte: ABICALÇADOS
- 200.000 400.000 600.000 800.000 1.000.000 1.200.000
EUA
Reino Unido
Argentina
Canada
Alemanha
Bolivia
Paraguai
Outros
1997 1998 1999
0
500
1.000
1.500
2.000
2.500
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999
Exportação Importação Saldo
183
Tabela 20 - Importações de Calçados dos Estados Unidos, por Origem e Participação no Total – 1996/98
1996 1997 1998 PAÍSES
Valor (US$ Milhões)
% Valor (US$ Milhões)
% Valor (US$ Milhões)
%
China 6.728 51,93 8.966 55,41 9.315 60 Indonésia 1.248 9,63 1.632 10,09 1.068 8 Itália 1.134 8,75 1.181 7,30 1.158 7 Brasil 1.190 9,18 1.137 7,03 1.020 7 Tailândia 386 2,98 570 3,52 477 3 Espanha 393 3,03 413 2,55 387 3 Coréia do Sul 405 3,13 352 2,18 234 2 México 227 1,75 293 1,81 263 2 Reino Unido 149 1,15 235 1,45 231 1 Taiwan 275 2,12 220 1,36 176 1 Outros 821 6,34 1.183 7,31 1.073 7 Total 12.956 100,00 16.182 100,00 15.402 100 Fontes: Departamento de Comércio dos Estados Unidos e ABICALÇADOS (2000).
A participação no mercado norte-americano dos principais exportadores também
vem crescendo, e com isso se observa uma concentração: em 1996, os cinco
maiores fornecedores, incluindo o Brasil, tinham 82% do mercado norte-americano
e, em 1998, alcançaram 85%. Pode-se observar que a China é a principal
responsável por essa concentração, já que, nesse período, suas exportações para
aquele país, cresceram mais de 40%. As exportações brasileiras para os Estados
Unidos, entre 1996 e 1998, caíram 14% (figura 58).
Figura 58 - Países exportadores para os Estados Unidos em US$ bilhões
Fonte: ABICALÇADOS/departamento de comércio exterior dos Estados Unidos
0
2.000
4.000
6.000
8.000
10.000
China Indonésia Itália Brasil Tailândia
1996 1997 1998
184
No entanto, além da retomada dos grandes volumes de exportação para os
Estados Unidos, observar-se o desenvolvimento de mercados alternativos, tais como
Mercosul e Oriente Médio (Emirados Árabes, Arábia Saudita e outros). Os negócios
com o Mercosul, apesar de alguns desentendimentos durante o ano de 2000, vêm
evoluindo de forma satisfatória. O saldo comercial brasileiro com a região, em
relação aos calçados, cresceu quase 400% entre 1997 e 1998 (tabela 21). O déficit
anterior com a Argentina vem diminuindo, uma vez que as exportações brasileiras
para aquele país vêm crescendo significativamente (entre 1997 e 1998 e 200% entre
1998 e 1999), embora as importações também tenham sido crescentes até 2000.
Tabela 21 - Saldo da Balança Comercial Brasileira de Calçados com o Mercosul –
1997/99 (Em US$)
1997 1998 1999 Argentina (5.934.159) 25.469.023 78.417.032 Uruguai 24.749.709 14.400.708 10.870.881 Paraguai 8.990.119 7.405.777 18.421.320 Total 27.805.669 47.275.508 107.709.233 Fonte: ABICALÇADOS
Conforme mencionado, a exportação de calçados está fortemente concentrada
no Rio Grande do Sul, que exportou 85% dos calçados brasileiros, na sua maioria
fabricados com couro. Os demais estados exportadores são: São Paulo, Ceará e
Paraíba. Destaca-se o crescimento das exportações do Ceará - de US$ 1.380 mil
em 1990 para US$ 71 milhões em 1999, apesar de sua participação nas
exportações totais ainda ser pequena: 6% em 1999 ver figura 59.
A abertura comercial implicou um incremento substancial das importações
brasileiras de calçados, que cresceram 700% entre 1990 e 1997, alcançando US$
196,4 milhões em 1997 (figura 60). Não obstante, a partir de 1997 as importações
entraram em declínio, apresentando em 1999 um decréscimo de 74% em relação a
1997. Os calçados importados vêm especialmente da China, da Indonésia e da
Argentina.
185
Figura 59: Exportação de calçados por estado do Brasil - 1999
Fonte: ABICALÇADOS
Figura 60: Origem das Importações de Calçados - 1997-99
Fonte: ABICALÇADOS
Rio Grande do Sul85%
Outros1%
Paraíba1%Ceará
6%
São Paulo7%
- 10.000 20.000 30.000 40.000 50.000 60.000 70.000
China
Argentina
Indonésia
Hong-Kong
EUA
Tailândia
Coréia do Sul
Itália
Filipinas
Vietnã
Taiwan
Japão
1997 1998 1999
186
5.5.8 Relações comerciais na filière
Como já foi visto, os principais mercados para o calçado e o couro brasileiro são
os Estados Unidos e a Europa. No entanto, o modo de comercialização entre um e
outro é diferente. No primeiro predominam os agentes exportadores / importadores e
companhias de exportação, no segundo um mix entre esses e a venda direta aos
fabricantes ou às cadeias de lojas.
A exportação para a Europa é feita em lotes menores e maior variedade,
enquanto que os EUA, apesar da recente redução nos lotes, ainda proporciona
ganhos de escala com lotes bem maiores que para a Europa. Um lote grande para
os EUA gira em torno de 50 mil pares47, já na Europa dificilmente passa de 10 mil
pares.
A estrutura de distribuição também é diferente, existindo uma combinação de
agentes e vendas diretas. Algumas fábricas de calçados exportam com marca
própria para o mercado europeu, situação pouco provável no mercado americano.
No entanto, a exportação para a Europa exige maior flexibilidade de produção das
empresas, devido aos lotes menores e maior variedade de modelos.
A colocação do sapato por venda direta também é diferente. Existem programas
de fomento ao desenvolvimento de uma marca própria como já foi visto
anteriormente. A partir da concepção do produto, inicia-se a produção de uma série
de protótipos. Os protótipos são levados para as principais feiras da Europa (GDS –
Feira Mundial do Calçado na Alemanha, MICAM – Feira Internacional do Calçado na
Itália e mais recentemente a Al Hida´a, nos Emirados Árabes, além de outras feiras
menores), onde são feitas as negociações e os primeiros contatos com os clientes. A
partir da aprovação de alguns modelos, começa a negociação em termos de preço,
materiais, prazos e condições. Logo, a resposta rápida da modelagem é muito
importante, para que não se perca o negócio devido ao prazo. No caso dos
curtumes, levam-se amostras dos couros em Feiras Internacionais como a Semaine
du Cuir na França, a Asia Pacific Leather Fair, em Hong Kong, a Pan American
Leather em Miami e outras.
47 já foi de 500 mil
187
Os agentes exportadores/importadores e as companhias de exportação
desempenharam papel muito importante no desenvolvimento do pólo coureiro-
calçadista do Vale do Rio dos Sinos, a partir da década de 70. Com a entrada dos
agentes importadores e posteriormente exportadores no mercado, tanto a indústria
de curtumes como a indústria de calçados foi obrigada a melhorar os seus padrões
de qualidade, ao mesmo tempo em que alcançava ganhos de escala em função do
tamanho dos lotes. Além disso, propiciou um aumento da demanda até aquela
época originada exclusivamente do mercado interno. As companhias de exportação
e agentes de exportação/importação serão tratados a partir de agora por agentes,
visando facilitar a fluidez do texto.
Geralmente, os fabricantes que trabalham com agentes mais exigentes
apresentam um nível de qualidade mais avançado ao nível de produto e processo. O
nível de cobrança e parceria varia de agente para agente. O agente quando
estabelece normas e procedimentos para as empresas, fez com que as mesmas
aumentassem o seu nível de qualidade. Ou seja, há uma preocupação em
desenvolver um fornecedor de confiança. Isto mostra que os agentes podem
funcionar proativamente na melhoria do couro e do calçado brasileiro. Por outro lado,
existem agentes que colocam as amostras de couro e calçados em várias empresas,
vêem a que dá preço mais baixo e contratam-na. Se a empresa tiver problemas
trocam-na, ou seja o relacionamento é meramente comercial, sem preocupação de
desenvolvimento de fornecedores, ou de uma integração maior do setor.
O agente tem uma grande vantagem quanto ao volume de pedidos, ele consegue
distribuir os diferentes modelos de uma linha, ou variedades dentro de um modelo,
ou tonalidades e outros acabamentos no couro para várias empresas. Ou seja, ele
torna-se flexível e não fica dependente de um fornecedor.
O relacionamento entre agentes e empresas desenvolve-se da seguinte maneira:
empresas interessada em exportar apresentam-se a um ou mais agentes, que
auditam a empresa e observam o produto (couro, calçado, artefatos) que aquela
empresa tem condições de produzir. Geralmente entre os agentes e empresas, a
escolha de fornecedores varia conforme a linha de produto, baseando-se
essencialmente em preço e qualidade. O início do relacionamento acontecia com a
encomenda de pequenos lotes até o desenvolvimento de mais confiança. O prazo
de entrega foi referenciado como grande problema, obrigando os agentes a
reduzirem os prazos visando ter uma segurança maior.
188
Segundo os agentes, a utilização da via indireta para exportação deve-se
basicamente a visão dos empresários pequenos e médios que muitas vezes em
função de custos evitam o desenvolvimento de um departamento comercial e
administrativo. Além disso, existe a rede de informações tecnológicas que os
agentes trazem, principalmente aos fabricantes de calçados, ao nível de inovações
de modelos, materiais, equipamentos e outros. Ainda nessa linha, alguns agentes
(principalmente os maiores) criam moda, ou seja, propõem o seu próprio design e
depois vendem o calçado no mercado internacional.
Segundo um entrevistado,
“A visão dos calçadistas, na média, está voltada para a redução de custos,
sem muita preocupação com a qualidade do produto. Aqueles que são
considerados os melhores preocupam-se mais com qualidade do que com o
custo. No entanto, os agentes também são responsáveis por isso, visto que a
pressão deles sobre as empresas calçadistas é basicamente em cima de
custos. Poucos são aqueles que tentam, junto com as empresas calçadistas,
melhorar a organização da produção para ter um produto de melhor qualidade
e menor custo.”
Várias empresas do setor coureiro-calçadista, principalmente pequenas e
médias, sequer se preocupam em saber o que acontece no mercado, ou ao menos
onde é vendido o seu produto, baseando-se totalmente nas informações que os
agentes lhes fornecem. Assim, muitas vezes, os agentes cumprem um papel de
alavancar o desenvolvimento tecnológico das empresas, principalmente as
calçadistas, tanto ao nível gerencial, como de produtos e porcessos. Algumas
grandes empresas trabalham com até quatro agentes. As empresas alegam que é
muito difícil exportar para os EUA sem o auxílio dos agentes.
A inspeção do produto é executada tendo como principal parâmetro a qualidade
visual. Quanto a garantia do processo produtivo, os agentes mantêm pessoal nas
empresas fiscalizando a produção (revisores) com o intuito de assegurar a qualidade
do produto.
Em muitos casos, tanto os agentes como as empresas no exterior que
comercializam os produtos, principalmente na Europa, além da inspeção visual,
exigem a realização de ensaios e testes sobre a qualidade dos produtos.
Um entrevistado emitiu a seguinte opinião sobre o segmento calçadista,
189
“O grande gargalo para um upgrading do calçado brasileiro no mercado
americano é a falta de imagem e falta de volume suficiente de produção de
calçados de qualidade. Em termos de produto, já existem fabricantes com
tecnologia de produto superior à dos italianos. Entretanto, a imagem do
calçado na média é de um calçado de segunda. Logo, entre um calçado
brasileiro de qualidade e um italiano ou espanhol, prefere-se o italiano ou
espanhol, mesmo que esse seja de qualidade inferior.”
Segundo os agentes, não haveria problemas de colocar um calçado de melhor
qualidade no mercado internacional, desde que ele se mantivesse competitivo em
termos de custo.
A Associação Brasileira de Exportadores de Calçados (ABAEX) lançou em 1993
uma campanha de marketing no mercado americano, visando melhorar a imagem do
calçado brasileiro. Sobre essa ação, um entrevistado informou,
“Para que essa campanha seja efetiva, os fabricantes devem se conscientizar
da importância da qualidade do produto, o que segundo os agentes depende
da profissionalização e do incremento tecnológico, de maneira que as
empresas invistam em treinamento de pessoal em todos os níveis e utilizem
meios mais racionalizados de gestão da produção.”
Segundo os agentes, os programas de melhoria nas fábricas têm falhado em
função de erros conceituais dos empresários, que preocupam-se só com o resultado
e menos com o processo de implantação. Como exemplo, foi citada a implantação
dos grupos em algumas empresas, as quais, apesar do aumento de produtividade e
flexibilidade, não remuneraram adequadamente os funcionários. Nesse sentido,
antes da automação nas fábricas, há a necessidade de programas de educação e
treinamento em conjunto com a racionalização e melhoria contínua dos meios
produtivos.
As empresas que exportam predominantemente para a Europa possuem uma
estrutura comercial e de modelagem mais avançada em relação às que exportam
para os EUA, mas a estrutura de pesquisa tanto de mercado como de produto e
processo ainda é deficiente baseando-se em feiras e em algumas literaturas do
setor. Aqui também, como na fabricação para o mercado interno e americano, a
maior parte das inovações vêm de fora das fábricas de calçados, principalmente do
exterior.
190
5.5.9 Infra-Estrutura de Transporte
A maior parte da exportação de couro e calçados é feita via marítima, seguida da
via aérea e rodoviária, conforme figura 61. O porto mais utilizado é o porto de Rio
Grande com 32 % de participação, seguido do porto de Santos e Paranaguá.
O custo da infra-estrutura de transporte marítimo e as greves no sistema
portuário, prejudicam a imagem do calçado brasileiro quanto à confiabilidade de
cumprimento dos prazos, e oneram o fabricante e/ou agente, conforme o contrato,
obrigando-os a usar a via aérea com um custo bem maior.
Dessa forma pode-se dizer que, dentre os fatores sistêmicos infra-estruturais, o
maior ponto de estrangulamento reside na área portuária, sendo que o setor
coureiro-calçadista tem o custo mais elevado por tonelada considerando todos os
produtos da pauta gaúcha de exportações. Ainda, com um número menor de linhas
marítimas, o produtor gaúcho precisa produzir com um maior tempo de antecedência
para poder concorrer com os produtores mais próximos do mercado consumidor,
levando desvantagem, por exemplo, em relação ao sistema jus-in-time adotado pela
União Européia.
Entretanto, alguns segmentos da filiére tem-se articulado para tentar resolver o
problema. Há a necessidade urgente da modernização da infra-estrutura de
transporte (melhores estradas e portos mais ágeis, modernos e baratos) para que
essa não se constitua em um gargalo que reduza a competitividade de setor tão
importante para o Estado.
Figura 61: Exportações por vias de acesso
Fonte: AICSUL/ABICALÇADOS
Rodoviária1%
Marítima89%
Aérea10%
191
5.5.10 A nova visão do setor
Até o início da década de 90, a visão de curto prazo da grande maioria dos
empresários do setor coureiro-calçadista fazia com que os mesmos não se
preocupassem com o longo prazo. Conseqüentemente, não conheciam seus
mercados, seus concorrentes e seus problemas. Não existia, até então um projeto
ou planejamento de onde o setor queria chegar, como chegaria lá e como seria feito.
Tal condição eliminou empresas tradicionais de grande nome e prestígio, empresas
de comportamento ético exemplar, que não conseguiram se adaptar e se reciclar
frente aos novos desafios impostos pela globalização.
Assim em 1996, foi lançado o programa calçado Brasil que é um plano
estratégico com a missão de “promover ações conjuntas visando a competitividade
da cadeia coureiro-calçadista do Brasil”. Esse programa é o resultado do Projeto
Repensando o Negócio Calçado, que foi desenvolvido a partir do Comitê e do Grupo
Piloto, formado por cerca de setenta empresários e técnicos do setor. Em 1994 após
o primeiro encontro do Grupo Piloto, do qual resultou documento divulgado sob o
título de "Síntese, Conclusões e Propostas do Projeto Repensando o Negócio
Calçados", foram abordados os temas mercado externo, mercado interno,
concorrentes, cadeia produtiva, gestão das empresas e reengenharia da
distribuição. Em meados de 1995, como resultado de pesquisa entre os membros do
Grupo Piloto, foram selecionados cinco temas para maior aprofundamento, com o
objetivo de orientar o Programa em seu propósito de desenvolver ações para o
crescimento do setor e, em particular, no sentido de aumentar a competitividade de
seus produtos. Em 1996 foram realizados eventos a respeito de indicadores de
desempenho em qualidade e produtividade, eficiência coletiva na cadeia coureiro-
calçadista, sistemas de informações gerenciais para a qualidade, estratégias e
estruturas com os mercados externos e reengenharia nas empresas. Como
resultado surgiram propostas consubstanciadas em novo documento, denominado
"Anais do Projeto Repensando o Negócio Calçado". Na seqüência, apresentou-se o
plano estratégico, resultante de todas as contribuições aportadas por participantes
de diversos em diversas etapas.
192
A proposta é de que as entidades e instituições ligadas ao setor identifiquem os
projetos consonantes com seus objetivos e promovam a sua execução. Portanto
esse programa foi desenvolvido em benefício de todo o complexo na busca do lugar
que lhe cabe na liderança mundial da indústria do couro e seus manufaturados. No
entanto segundo um entrevistado, esse programa não tem tido a abrangência
necessária:
“Eu penso que as entidades precisam se unir. Falam em estilos, tendências.
Eu vi alguém da Abicalçados falar sobre esses assuntos em nossas reuniões,
e é preciso falar. No entanto, temos um Programa Calçado do Brasil, que
precisa contar com as demais entidades. É esse tema que temos que tratar,
questões como componentes, calçados, lojistas, enfim, toda a cadeia. Uma
das coisas urgentes a fazer é a promoção do calçado brasileiro no exterior.
Tenho perguntado nas reuniões: Será que não está na hora de mudar o
Programa Calçado do Brasil? E respondo: Eu estou disposto em mudar até o
seu nome, reunindo todas as entidades. O programa está muito técnico.
Podemos criar um novo nome e começar de novo.”
Outros entrevistados também confirmaram essa versão. Ou seja, as iniciativas do
setor em promover a união e integração ainda são um tanto incipientes, pois
necessitam de maior conscientização e compreensão dos agentes. Pois grande
parte dos mesmos ainda não se modernizaram e se profissionalizaram em relação a
novas tecnologias organizacionais, gerenciais e produtivas. Cita-se a opinião de um
entrevistado quanto a essas iniciativas,
“Se criarmos projetos para executivos terem empregos, não vamos chegar
onde queremos. Então vamos nós assumir isso. . . Temos que pedir o
resultado, e estes executivos ver quais caminhos seguir, mas o resultado tem
que ser o que nós queremos.”
A oligopolização da distribuição pelos agentes que foi bem recebida na década
de 70, fez com que a maioria dos fabricantes de calçados de couro para exportação
não se preocupassem em desenvolver estruturas comerciais e de modelagem até o
início da década de 90.
193
Já em meados da década de 90, as empresas coureiro-calçadistas de maior
visão começaram a se preocupar com exportação direta e sua conseqüente
dilatação dos prazos. Assim por iniciativa da Couromoda Feiras Comerciais surge o
programa shoes from brazil, voltado para os mercados da Europa, América Latina,
Estados Unidos e Oriente Médio, e que visa estimular as exportações e consolidar a
imagem do Brasil como terceiro maior fabricante de calçados do mundo, com
produtos de qualidade, design e preço competitivo.
Como parte desse programa a entidade coloca a disposição das indústrias de
calçados um amplo programa de promoção internacional, que leva empresas
brasileiras a participar das mais importantes feiras e eventos especializados no
exterior. Por sua abrangência e sintonia com as necessidades da indústria brasileira,
o Programa de Mercado Externo da Couromoda passou a ser também o programa
oficial de promoção de exportações da Abicalçados - Associação Brasileira da
Indústria de Calçados. Ainda para o período de 2001 a 2004 está inserido no
Programa Setorial Integrado de Promoção às Exportações, contando com apoio
financeiro da Apex - Agência de Promoção das Exportações, do governo federal.
Com 26 anos de experiência em ações internacionais e um portofólio de mais de 80
feiras e exposições realizadas no exterior, a Couromoda coloca toda sua estrutura
operacional e uma vasta rede de relacionamentos a serviço das empresas que
desejam ampliar seus negócios de exportação, atuando de forma direta e
personalizada. Sobre a APEX, um entrevistado manifestou-se assim,
“Esta questão da APEX foi uma das melhores coisas que o governo criou. E
colocou uma pessoa muito competente a frente do programa, que tem uma
vivência política, mas também tem uma visão de empresária. E o Brasil tem
um potencial de crescimento muito grande e deve-se trabalhar o mercado
internacional, porque existem diferenciais fabulosos. A APEX está fazendo um
trabalho perfeito em relação a isso, pois promove não só a questão da
exportação, mas tem uma preocupação em promover a cadeia como um
todo.”
194
A Couromoda que vem atuando desde 1979 na promoção comercial,
organizando a primeira investida na GDS – Alemanha, tem se ampliado com 80
participações oficiais em vários países. Nesse sentido a entidade considera
essencial concentrar esforços sobre a Europa - segundo maior consumidor mundial
de calçados e com perspectivas a ser o primeiro, sem contudo abandonar o mercado
norte-americano, onde dez empresas brasileiras, lideradas por Azaléia e Grendene,
já tem participação efetiva com marcas próprias.
Portanto os mercados do sul dos Estados Unidos, Caribe e América Central são
vistos com atenção na divulgação do calçado brasileiro. O empreendimento Shoes
from Brazil - Caribe, iniciado em janeiro de 2001 com um show room permanente no
Miami International Merchandise Mart (MIMM), na Flórida, pretende promover o
produto brasileiro em uma região com mais de 165 milhões de habitantes. O Caribe
e a América Central foram responsáveis, em 1999, pela importação de 2,6 milhões
de pares de sapatos brasileiros (faturamento de US$ 18,7 milhões), o que significa
apenas 2% do volume total e 1,4% da receita total de exportações brasileiras.
6 PERSPECTIVAS DO SETOR
Após a análise da filière coureiro-calçadista que resultou na organização e
estruturação dos dados sobre o setor apresentados no capítulo cinco, será definida
a estrutura da filière ideal. A partir dessa definição serão feitas considerações sobre
a relação entre a variável ambiental e a competitividade visando indicar um
diagnóstico das perspectivas para o setor.
6.1 A concepção do setor ideal teórico
O ponto de partida do processo de reconcepção do sistema estudado não é o
sistema industrial atual percebido por qualquer um dos atores envolvidos com esse
sistema, mas o sistema abordado em termos de filière. Sua estrutura tecnológica
ideal poderá, ao substituir a estrutura atual, conduzir a uma filière ideal, realizando
as mesmas funções técnico-econômicas e obtendo os mesmos resultados úteis,
resultando em uma aceitação pelo sistema cliente situado a jusante da filière.
De acordo com Floriot (1985), o ideal teórico, deve ser considerado como um
conceito equivalente ao conceito de infinito de um matemático. Esse ideal teórico
representa o ponto de referência fixo para o qual se dirige a atenção. Se esse ideal
teórico, imaginado sem considerar as limitações científicas, tecnológicas,
econômicas, organizacionais e humanas, é uma utopia, por outro lado, a tentativa de
se orientar uma construção progressiva a partir desse ideal teórico não é utópica.
Ela é voltada para a pesquisa dos progressos constantes que se exige nos
processos interativos. Dessa forma imagina-se a filière ideal do setor couro como um
cluster que produz um produto competitivo mediante um processo com emissão
zero.
De acordo com Pauli (1996), a emissão zero significa maior competitividade e a
busca contínua da melhoria da qualidade e eficiência. Junto à produtividade do
trabalho e dos capitais, ter-se-á a utilização completa das matérias-primas -
produzindo mais com menos. Dessa forma a emissão zero pode ser vista como um
padrão de eficiência, comparando-se ao Total Quality Management (defeito zero) e o
Just in Time (estoque zero).
196
A adoção do TQM permitiu às empresas desenvolverem melhorias em seus
processo produtivos, de comercialização e administrativos possibilitando, através da
oferta de produtos sem falhas (com zero defeitos), o aumento da participação no
mercado e sua lucratividade. Da mesma forma a adoção do Just in Time permitiu a
redução dos custos de produção, redução das perdas nos processo produtivos e
controle dos fluxos de produção, comercialização e distribuição dos produtos.
Assim a emissão zero representa uma grande oportunidade para o aumento da
produtividade para as organizações, porque apresenta a concepção da possibilidade
de construção de plantas industriais capazes de operar economicamente e, ao
mesmo tempo, terem eliminadas todas as formas de desperdício dos seus
processos de produção e gerenciamento. A idéia da emissão zero busca o
aproveitamento total das matérias-primas sem produção de resíduos. Nesse sentido,
essa concepção significa uma mudança em nosso conceito de indústria, deixando
de lado o modelo linear no qual os resíduos são considerados normais, e partindo
para um modelo integrado onde tudo tem utilização e pode ser aproveitado. Assim,
na filière couro ideal os resíduos gerados nas diversas fases da transformação da
matéria-prima em produto final seriam reaproveitados. A figura 62 ilustra esse
conceito.
Dessa forma pode-se definir a filière couro ideal teórica com as seguintes
características:
1. Desenvolvimento da pecuária voltada para a valorização do couro, pois
couros de má qualidade (com defeitos) resultam em retrabalhos (utilização de
mais recursos) e em rejeitos (resíduos);
2. Desenvolvimento tecnológico e organizacional dos frigoríficos voltado a
qualidade da matéria-prima enviada ao curtume, aliado ao fator locacional
(aproximação entre frigoríficos e curtumes);
3. Desenvolvimento tecnológico e organizacional dos curtumes produzindo couro
com alto valor agregado utilizando a máxima eficiência dos recursos e com
emissão zero;
4. Desenvolvimento tecnológico e organizacional das fábricas de calçados,
artefatos, vestuário e estofados visando produtos de alto valor agregado e
com emissão zero;
5. Reconhecimento, valorização e aceitação por parte dos clientes do valor
agregado aos produtos.
197
Figura 62: Transição para o modelo integrado
A partir dessa concepção, a micro-filière da pecuária apresenta a configuração
mostrada na figura 63.
Pecuária
Frigoríficos
Curtumes
Fábricas
FILIÈRES Atividades terciárias
FILIÈRES Atividades terciárias
Pecuária
Frigoríficos
Curtumes
Fábricas
198
Figura 63: Micro-filière da pecuária
Nessa configuração da filière os agentes interagem com a finalidade de melhorar
a matéria-prima pele para que se tenha a jusante um produto valorizado, da seguinte
maneira:
• O governo por intermédio dos bancos e órgãos financiadores aumentam o
fluxo de recursos para o setor primário;
• Os órgãos reguladores atuam divulgando as normas técnicas, esclarecem e
controlam as mesmas;
• Através da tecnologia cria-se mecanismos para planejar ações, divulgar
informações;
• A biotecnologia atua no melhoramento genético das pastagens e dos
rebanhos com vistas a produzir um couro com características mais uniformes
e adequadas;
• As tecnologias limpas preservam o meio ambiente.
A micro-filière do couro tem a configuração apresentada na figura 64.
Bancos e órgãosfinanciadores Órgãos reguladores Tecnologia
FILIÈRES
Atividades terciárias Pecuária
Biotecnologia Tecnologias
limpas
199
Figura 64: Micro-filière do couro
Nessa configuração da filière os agentes interagem com a finalidade de melhorar
a matéria-prima pele para que se tenha a jusante um produto direcionado para
necessidades específicas e portanto com alto valor agregado. Dessa forma o estágio
inicial do curtimento do couro está o mais próximo possível do abate, ou até mesmo
é absorvido pelo frigorífico. Os agentes atuam da seguinte maneira:
• O governo por intermédio dos bancos e órgãos financiadores aumentam o
fluxo de recursos para capitalizar e modernizar os frigoríficos e curtumes;
• Os órgãos reguladores atuam divulgando as normas técnicas, esclarecem e
controlam as mesmas;
• Através da tecnologia cria-se mecanismos para planejar ações, divulgar
informações com o objetivo de estruturar a efetiva transição para o modelo
integrado visando a racionalização dos processos e produtividade dos
recursos;
• Os fabricantes de equipamentos e de produtos químicos projetam e produzem
de acordo com as necessidades dos agentes da filière principal, visando o
aproveitamento total da matéria-prima e dos insumos;
Bancos e órgãosfinanciadores Órgãos reguladores Tecnologia Transporte
FILIÈRES
Atividades terciárias
BiotecnologiaTecnologias
limpasEquipamentos
Produtosquímicos
Frigoríficos
Curtumes
200
• A biotecnologia atua diminuindo a carga de produtos químicos perigosos nos
processos;
• As tecnologias limpas atuam na eliminação de resíduos ou na substituição de
produtos tóxicos ou perigosos.
Na figura 65, apresenta-se a micro-filière da manufatura do couro. Nessa
configuração da filière os agentes interagem com a finalidade de melhorar a matéria-
prima couro para que se tenha a jusante um produto direcionado para atender
clientes específicos propiciando a especialização com alta qualidade e
produtividade e portanto com alto valor agregado. Dessa forma o estágio de
acabamento está o mais próximo possível do cliente (fábricas de calçados e
artefatos, vestuário e estofados de móveis e automotivos) e muitas vezes é um
prestador de serviço para o mesmo. Os agentes atuam da seguinte maneira:
Figura 65: Micro-filière da manufatura do couro
• O governo por intermédio dos bancos e órgãos financiadores aumentam o
fluxo de recursos para capitalizar e modernizar os curtumes e as fábricas;
• Os órgãos reguladores atuam divulgando as normas técnicas, esclarecem e
controlam as mesmas;
Bancos e órgãosfinanciadores Órgãos reguladores Escolas de formação ecentros de P& D Tecnologia Transporte
FILIÈRES
Atividades terciárias
Componentes Tecnologias
limpas Equipamentos
Produtos químicos
Biotecnologia
Curtumes
Fábricas
201
• Através da tecnologia cria-se mecanismos para planejar ações, divulgar
informações com o objetivo de estruturar a efetiva transição para o modelo
integrado visando a racionalização dos processos e produtividade dos
recursos;
• As escolas de formação atuam constantemente no aprimoramento e na
sofisticação dos recursos humanos envolvidos e os centros de pesquisa e
desenvolvimento atuam de maneira contínua e constante no aprimoramento
dos processos e produtos;
• Os fabricantes de equipamentos e de produtos químicos projetam e produzem
de acordo com as necessidades dos agentes da filière principal, visando o
aproveitamento total da matéria-prima e dos insumos;
• Os fabricantes de componentes pesquisam, projetam e produzem produtos
com qualidade;
• A biotecnologia e as tecnologias limpas atuam na eliminação de resíduos ou
na substituição de produtos tóxicos ou perigosos.
E ao final da filiére couro encontra-se o cliente final ou consumidor consciente da
qualidade e do valor agregado ao produto e satisfeito por estar consumido um
produto ecologicamente correto.
6.2 A questão ambiental
A questão ambiental tem sido objeto de aceitação, ampla mas relutante: Ampla,
porque todos querem um planeta habitável; relutante em razão da crença persistente
de que a questão ambiental solapa a competitividade. A visão predominante é no
sentido da existência de um dilema intrínseco e inevitável: ecologia versus
economia. De um lado situam-se os benefícios socio-ambientais e do outro os
custos privados da indústria para a prevenção e limpeza. Custos que acarretam
aumento de preços e redução de competitividade. É nesses termos que a situação é
vista pelo setor coureiro-calçadista, resultando algumas vezes no fechamento ou até
mesmo na relocalização de unidades em outros estados com regulamentações
ambientais menos rigorosas, que as do Rio Grande do Sul.
Com a questão assim estruturada, o progresso em termos de qualidade
ambiental se tornou uma espécie de queda-de-braço, onde um lado tende para
normas mais severas enquanto o outro luta pelo retrocesso da regulamentação.
202
Dessa forma o equilíbrio do poder pende de um lado para outro, dependendo da
direção dos ventos políticos.
Segundo Porter & Linde (1999), essa visão estática é incorreta. Pois, se a
tecnologia, os produtos, os processos e as necessidades dos clientes fossem fixas,
a conclusão de que a questão ambiental eleva os custos seria inevitável. Mas as
empresas operam no mundo real da competição dinâmica e não no mundo estático
da teoria econômica.
O conceito de produtividade dos recursos (materiais e humanos) proporciona
uma nova maneira de abordar os custos totais dos sistemas e o valor associado a
qualquer produto. As ineficiências dos recursos são evidentes na forma de utilização
incompleta dos materiais e de controles deficientes de processos, que resultam em
desperdícios, em defeitos e no armazenamento de materiais desnecessários. A
figura 66 ilustra uma situação típica de ineficiência do setor couro (figura 66).
Figura 66: Desperdício e armazenamento de materiais desnecessários
Essa nova visão da poluição como ineficiência dos recursos evoca a revolução
da qualidade dos anos 80 e seus ensinamentos mais poderosos. Atualmente, não se
tem dificuldade para entender a idéia de que a inovação é capaz de melhorar a
qualidade, e ao mesmo tempo, reduzir os custos de forma efetiva. Mas há quinze
anos os gerentes acreditavam se tratar de uma opção excludente inexorável. A
melhoria da qualidade era dispendiosa, pois seria atingida apenas através da
inspeção e do retrabalho dos defeitos inevitáveis, que sempre ocorriam no processo,
que por sua vez era inalterável. No entanto, ao repensar a questão da qualidade
surgiu a visualização da ineficiência como indício de deficiência no projeto do
produto e do processo, e não como um subproduto necessário da fabricação. De
203
acordo com Porter & Linde (1999), tal fato foi um marco revolucionário. As empresas
agora se esforçam para incorporar a qualidade na totalidade do processo, liberando
o poder da inovação para atenuar ou eliminar o que as empresas de início
aceitavam como opções excludentes implacáveis.
Assim como os defeitos, a poluição freqüentemente revela falhas no projeto do
produto ou processo de produção. Assim os esforços para eliminá-los podem adotar
os mesmos princípios básicos de ampla utilização dos programas de qualidade:
utilização mais eficiente dos insumos, eliminação da necessidade de materiais
perigosos e de difícil manuseio, supressão das atividades prescindíveis.
6.2.1 Impactos Ambientais
Em decorrência da atividade de curtimento ser a atividade mais poluente da
filière couro, a seguir faz-se uma análise especial em relação a mesma.
A poluição causada pelos curtumes está relacionada diretamente a uma grande
geração de efluentes líquidos e resíduos sólidos como já descrito anteriormente no
item 5.3.3.2, que podem provocar a contaminação do solo e das águas e geração de
odores.
O curtume que realiza as operações de ribeira ou seja até a fase do couro wet-
blue proporciona a maior carga poluidora, tanto de efluentes líquidos como sólidos,
causando elevados impactos ambientais quando não tratados.
Os principais impactos ambientais causados pela indústria de curtume são:
a) Geração de efluentes líquidos
A geração de efluente varia de acordo com cada etapa da produção; também há
grande variação de curtume para curtume, dependendo dos processos industriais
utilizados. Na operação de remolho, ocorre a dissolução do sal (cloreto de sódio). O
sangue e outras substâncias orgânicas também constituem carga orgânica no
efluente. O banho do caleiro residual contém matéria orgânica em grande
quantidade (proteínas), cal e sulfeto. As operações seguintes, depilação, purga,
piquelagem e curtimento, produzem uma poluição salina e tóxica devido ao cromo.
As principais características dos efluentes líquidos gerados nos curtumes são:
• Elevado pH;
• Presença de cal e sulfetos livres;
• Presença de cromo potencialmente tóxico;
204
• Grande quantidade de matéria orgânica (elevada DBO);
• Elevado teor de sólidos em suspensão (principalmente pêlos, fibras, sujeira e
outros);
• Coloração leitosa devido à cal, verde-castanho ou azul, devido ao cromo do
curtimento;
• Dureza das águas de lavagem;
• Elevada salinidade (sólidos dissolvidos totais);
• Elevada DQO.
b) Geração de resíduos sólidos
Os resíduos sólidos gerados nos curtumes compreendem os resíduos sólidos
não curtidos representados por: carnaça, aparas não caleadas, aparas caleadas e
aparas do couro dividido; os resíduos sólidos curtidos, compreendem: aparas do
couro curtido; pó de lixadeira e serragem da operação de rebaixamento; e por fim o
lodo gerado no tratamento de efluentes líquidos.
c) Geração de poluentes atmosféricos
São gerados nos curtumes, gases e vapores dos banhos, que saem dos fulões,
especialmente quando estes são abertos para retirada da carga após o curtimento.
O problema mais grave de poluição atmosférica produzida nas plantas de curtimento
refere-se à geração de odores, que ocorre especialmente na decomposição de
matéria orgânica presente nos resíduos e efluentes.
6.2.2 Eliminação ou substituição do produto perigoso
O processo de curtimento do couro com a utilização de sais de cromo trivalente,
é considerado o grande vilão do setor. Pois reflete-se em efluentes líquidos e
resíduos sólidos contaminados com cromo trivalente considerado como produto
perigoso.
De acordo com Speight (1996), definem-se como perigosos ou nocivos, os
resíduos e/ou combinações de resíduos que apresentem substancial periculosidade
real ou potencial à saúde humana ou aos organismos vivos, ou os que se
caracterizam pela letalidade, ou não degradabilidade ou ainda por efeitos
cumulativos adversos. Os resíduos sólidos classe/categoria I são resíduos que
requerem cuidados especiais quanto à coleta, acondicionamento, transporte e
disposição final. Incluem-se nesta categoria os resíduos perigosos definidos
205
anteriormente. Os resíduos sólidos cromados dos curtumes incluem-se nessa
categoria.
Aproximadamente 85% de todos couros são curtidos ao cromo e segundo os
especialistas somente esse tipo de curtimento é capaz de produzir um substrato com
o conjunto de características abaixo:
• não gelatiniza durante a secagem ou a temperaturas mais elevadas;
• é resistente a produtos químicos a bactérias e a putrefação;
• possui capacidade limitada ou nenhuma a inchar/ dilatar;
• permanece macio após secagem e resistente a luz
• excelente capacidade de tingimento
• possibilidade de aplicações em múltiplas finalidades.
Um especialista entrevistado do setor afirma,
“O curtimento com sais de curtimento de cromo trivalente é atualmente a única
forma para atingir técnica e comercialmente essas exigências. Muitos projetos
de pesquisa têm estudado a estrutura do colágeno e investigado o processo
de curtimento e têm sido dadas razões para acreditar que a substituição por
novos métodos de curtimento comercial (baseados em sais complexantes,
compostos orgânicos reativos ou agentes de reticulação) é improvável. Isso é
especialmente assim para o uso amplamente difundido, e em particular para o
setor abrangido pelo comércio bem estabelecido na forma de wet-blue.”
Também tem-se tornado comum em alguns setores associados a indústria do
couro, definir sistemas de curtimento sem cromo como preferidos ambientalmente.
Isso dá-se sem avaliar o impacto total de sistemas de curtimento alternativos que
podem ser ambientalmente caros em termos de manufatura do agente curtente e
descarte do efluente do curtimento.
Devido a uma perspectiva estreita, ou falta de entendimento, foram criados
termos tais como couro eco ou bio. Outro termo, couro wet-white - causou confusão
tanto dentro como fora do comércio coureiro por insinuar um substrato curtido
branco com todas as qualidades do wet-blue mas sem cromo.
O processo wet-white é um processo de pré-curtimento, vinculando a
estabilização do colágeno com a finalidade de desempenhar operações mecânicas
tais como a divisão e depilação antes do curtimento principal. Considerando o
parâmetro estabelecido para curtir peles, é óbvio que um couro wet-white não existe
e nem será desenvolvido no futuro próximo.
206
Assim, levando-se em consideração as características e propriedades do couro,
disponibilidade de minério contendo cromo, o custo e a experiência de mais de 100
anos de exposição humana a artigos de couro curtidos ao cromo, é improvável que o
processo de curtimento ao cromo perderá sua posição dominante num futuro
previsível. Mesmo a substituição substancial do curtimento ao cromo por um
curtimento sintético/vegetal parece muito improvável no futuro distante. Isso devido
aos altos custos e problemas técnicos e ecológicos.
Como a resistência à mudança do produto curtente é muito grande
desenvolveram-se inovações no sentido de reduzir, reutilizar e reciclar esse produto
da seguinte maneira:
• O cromo residual após um processo de curtimento ao cromo pode ser facilmente
reutilizado por meio de reciclagem;
• O descarte de resíduos sólidos contendo cromo tais como restos de depilação e
recortes pode ser amplamente evitado por meio de um pré-curtimento e divisão /
depilação antes do curtimento ao cromo.
• O minério de cromo que é a fonte para os sais de cromo para curtimento,
encontra-se amplamente disponível em muitas partes do mundo.
Como o descarte de lodos contendo cromo se tornarão cada vez mais caros em
um futuro próximo, é necessário mais pesquisa para avaliar quaisquer efeitos sobre
o meio ambiente. A incineração e reciclagem da cinza contendo cromo é uma
alternativa. O descarte dos recortes e de artigos contendo cromo (calçados e outros)
deve ter uma cuidadosa atenção de uma maneira similar. É necessária pesquisa
quanto a possíveis aplicações comerciais.
6.2.3 Tecnologias limpas
Como já foi visto no item anterior, a substituição do produto curtente não é viável
tecnologicamente nem economicamente em médio ou curto prazo. Assim parte-se
para as tecnologias alternativas que visam manter ou melhorar a qualidade do couro
produzido diminuindo, concomitantemente a poluição gerada pelos efluentes líquidos e
resíduos sólidos através da redução, reutilização e reciclagem. Também chamadas de tecnologias limpas, representam a esperança de se obter
uma solução definitiva para o problema gerado pelos resíduos inerentes ao
processamento de couros e peles. Os resíduos devem ser minimizados ou, quando não
207
for possível, transformados em subprodutos reaproveitáveis ou descartáveis com maior
facilidade de manipulação e disposição final.
A primeira preocupação que surge é com a água utilizada e os efluentes do
processo. A água potável está se tornando rara em muitas partes do mundo. O
objetivo de reduzir o consumo de água na produção de couro está dirigido ou por
restrições ao uso e / ou por custos crescentes. Esses fatores, portanto, formam uma
parte essencial ao serem consideradas medidas integradas à produção.
Por outro lado, a água sendo um importante meio de transporte e reação será
indispensável aos curtumes. Além disso, por razões de proteção ambiental e
segurança no local de trabalho, a água já substituiu solventes orgânicos em certas
áreas. No desengraxe e partes do acabamento, o emprego da água aumentou em
vez de ser ela mesma substituída. Em adição, processos de lavagem no final das
operações com água crescem em importância. Isso porque a porção de materiais
extraíveis nos couros terá de ser mantida ao mínimo para atender aos regulamentos
e normas sobre produtos para consumo.
Dessa forma, um decréscimo no consumo de água parece ser viável somente
através da aplicação de uma reciclagem eficiente da água. É mais provável que esta
se baseará no processo de recuperação de líquidos de lavagem selecionados. O
tratamento no final da linha será limitado a aqueles efluentes que são inadequados
para uma reciclagem eficiente e praticável. As técnicas capazes de reduzir as cargas que são enviadas aos corpos receptores,
são:
- reciclagem dos banhos de reagentes;
- reutilização de água de lavagem;
- recuperação de subprodutos tais como pelos, carnaças e outros;
- modificação de matérias-primas;
- modificação no processo industrial;
- tratamento de efluentes.
A seguir descreve-se essas técnicas.
6.2.3.1 ReutiIização dos banhos residuais
Em um primeiro momento, é necessário conhecer cada um dos banhos residuais,
objetivando escolher aqueles que envolvem constituintes de maior potencial poluidor em
termos de concentração, qualidade e/ou toxidez específica, de maior valor econômico e
208
aspectos afins. Existem, atualmente, a possibilidade de reutilização de banhos residuais
provenientes de três etapas distintas do processo de transformação da pele em couro,
que são:
a) Recuperação e reciclagem de banhos residuais de depilação/caleiro;
b) Recuperação e reciclagem de banhos residuais de curtimento ao cromo;
c) Recuperação e reciclagem dos banhos residuais de recurtimento em circuito
fechado Na prática, somente o primeiro processo é amplamente utilizado, o segundo é
utilizado em alguns curtumes apenas e o terceiro processo está em fase experimental. a) recuperação e reciclagem de banhos residuais de depilação/caleiro
Na operação de caleiro é possível reduzir em 85% a carga poluidora, enviando
portanto, apenas 15% para a estação de tratamento. No caso, o sulfeto de sódio (Na2S)
constitui-se no poluente principal. Em relação a ele, uma primeira alternativa de
tratamento é a eliminação do gás sulfídrico (H2S), e outra é o reciclo dos banhos sem
remoção do sulfeto (SENAI, 1994).
A primeira alternativa é pouco empregada; visto que envolve quase a construção de
uma nova unidade fabril dentro do próprio curtume. O esquema de produção é
basicamente o seguinte:
• efluente é armazenado em um tanque preliminar, que garante uma alimentação
regular ao reator, após é enviado a esse, que se constitui num equipamento vedado
a atmosfera;
• É adicionado no reator ácido sulfúrico (H2S04), que reage com o sulfeto de sódio,
produzindo sulfato e liberando H2S;
• O H2S liberado é enviado a uma torre de absorção recheada com material adequado
a transferência líquido-gás, onde o gás entra em contato com a solução de soda
cáustica (NaOH), que é injetada no sistema por meio de chuveiros;
• A absorção não é completa, retendo H2S que é recirculado por meio de um soprador
acoplado a um sistema de difusores. Da mesma forma, a solução de sulfeto no
efluente possui um teor razoável de soda cáustica;
• Para se diminuir esta quantidade, é feito, também, um reciclo da solução de soda
que, a medida que aumenta, cresce também o teor de sulfeto de sódio na saída do
sistema. Podem-se atingir teores muito baixos de soda cáustica, conforme a razão
de reciclo adotada. Por ser necessária a manutenção da basicidade do banho de
caleiro, a soda cáustica restante não é prejudicial, apenas sendo inconveniente a
sua utilização, quando se pode dispor de um produto mais barato, como a cal. Esse
209
sistema requer um controle bastante sofisticado, além de representar um grande
investimento.
O sistema de maior praticidade é o reciclo direto, que consiste em reutilizar o banho
residual de um lote no processamento de depilação do lote seguinte, repondo-se a
quantidade de produtos químicos necessários para completar a formulação. O esquema
básico para o reciclo é o seguinte:
O banho residual vindo do fulão é separado e armazenado em um tanque de coleta,
que garante uma alimentação regular ao decantador. Nesse, que deve ser
dimensionado para, no mínimo, 2,5 horas de tempo de retenção, ocorrerá, a
sedimentação dos resíduos sólidos decantáveis que, extraídos, seguem para a
disposição final. A fase sobrenadante segue para um tanque de estocagem, onde o licor
deve ser analisado, para calcular a adição de quantidades novas de reagentes, e
recalcado ao fulão para reutilização.
Outra alternativa constitui-se de peneiramento, estocagem e reutilização. Esse
sistema também é viável tecnicamente, mas, usualmente, menos eficiente que o
anterior, visto que, na decantação, há uma remoção de sólidos maior que no
peneiramento.
No início dos processos de reciclagem, as correções de produtos a serem feitas
antes do novo uso, devem ser baseadas em análises diárias do teor de sulfeto e cal.
Contudo o processo é razoavelmente reprodutível, não necessitando de que essas
análises sejam tão freqüentes. b) recuperação e reciclagem de banhos residuais de curtimento ao cromo
O conceito de reciclagem de banhos residuais de cromo foi considerado, durante
longo tempo, como perigoso, por se achar que muitos dos complexos de cromo,
sabidamente existentes nos materiais curtentes empregados, seriam absorvidos
diferenciadamente pelas peles, deixando um resíduo de outros complexos e
constituintes, que aumentariam sua concentração nos licores reciclados. Essa absorção
diferenciada conduziria a características progressivamente diferentes nos couros e nos
banhos, a medida que o número de reciclagens aumentasse. No entanto, pesquisas
demonstraram que, para todas as aplicações práticas, a absorção dos complexos de
cromo é afetada de modo equalitário.
210
Na maioria dos processos de curtimento ao cromo convencionais, apenas 70 a 80%
do cromo, inicialmente aplicado a pele, é absorvido. Apesar de as indústrias
fornecedoras de insumos químicos e curtentes preocuparem-se em melhorar a
eficiência do curtimento, pelo melhor esgotamento do cromo, é freqüente a reutilização
de banhos residuais de curtimento, principalmente para curtir a raspa.
Existem vários métodos que podem ser desenvolvidos para chegar ao reciclo de
soluções residuais de curtimento ao cromo.
• Reciclagem direta: utilização do banho residual de curtimento, como licor de
piquelagem do lote seguinte. Nesse caso, o licor residual é recolhido após
sedimentação de sólidos ou peneiramento, analisado e reutilizado. Verifica-se o teor
de óxido de cromo no volume a reutilizar, acrescentando a diferença para a
porcentagem normal.
• Reciclagem indireta: reutilização por precipitação do cromo residual, seguida de
redissolução. Consiste na precipitação do cromo sob forma de hidróxido de cromo, e
separação do precipitado, redissolução para a forma de sulfato de cromo e utilização
do licor como curtente do lote seguinte. Como agentes alcalinos para precipitação,
podem ser usados hidróxido de cálcio, hidróxido de sódio, óxido de magnésio e
outros. A precipitação na prática, se dá a pH 8 - 8,5.
Para desidratação e separação do precipitado, pode-se usar a sedimentação simples
que, dependendo do precipitante, leva de 12 a 24 horas, obtendo-se um precipitado com
2 - 3% de secos. Com o uso de filtro-prensa, pode-se reduzir o volume do precipitado,
conseguindo-se um percentual de secos, de até 30%. A redissolução é feita com H2S04
até a acidificação desejada, através de cálculo estequiométrico que se dá a pH em torno
de 1,0 (Springer in Pereira, 1997). c) Recuperação e reciclagem dos banhos residuais de recurtimento em circuito
fechado
Ao término do processo de recurtimento, os banhos residuais são armazenados e
submetidos ao tratamento fisico-químico primário, sendo esses homogeneizados
através de um sistema de agitação e mistura; dificultando dessa maneira a formação
de bancos de sedimentos no fundo do tanque, o que viria a ocasionar a formação de
focos de anaerobiose e diminuição do tempo de retenção do efluente no tanque.
211
Deve-se promover assim, no nível industrial, uma aeração e mistura por meio de
sopradores de ar e difusores de fundo, ou mesmo aplicando aeração por meio de
aeradores de superfície, que tornam-se mais eficientes devido a redução de
tamanho das gotículas de efluente. Em seguida, foi promove-se uma remoção dos
corantes com a utilização de serragem da rebaixadeira, adicionando o agente
coagulante / floculante, no caso sulfato de alumínio; mantendo o banho retido por
aproximadamente 24 horas.
Em nível industrial, a operação de coagulação pode ser realizada nos mesmos
tanques de mistura em que é efetuado o acerto de pH, em dosagens maiores,
mantendo o banho retido por aproximadamente 10 minutos. Após 24 horas, inicia-se
a remoção dos materiais sólidos decantados com o auxílio de uma peneira vibratória
com abertura de malha de 1 mm. Uma quantidade de resíduo é gerada, submetendo
em seguida o banho resultante a uma nova filtração com serragem resultante da
operação de rebaixe.
- Clarificação dos banhos residuais com a utilização de serragem de couros
curtidos ao cromo
No estágio inicial o couro é processado, passando por todas as etapas ou seja,
lavagem, recromagem, neutralização, recurtimento, tingimento e engraxe, originando
um volume de banhos residuais que possuem em sua composição produtos como
curtentes vegetais e corantes, de remoção mais difíceis. Assim, implementa-se uma
caixa contendo farelo da rebaixadeira, o que tende a reduzir drasticamente a
porcentagem desses materiais no banho residual.
Em seguida, os banhos são direcionados a um sistema de peneiramento,
removendo material que por suas dimensões não tenha sido removido no
gradeamento, armazenando-o em tanques de homogeneização. Esse caracteriza-se
como sendo um efluente com pH bastante baixo (5,0), devido a maioria dos
processos serem ácidos.
Promove-se então um ajuste de pH, preparando o efluente homogeneizado para
as etapas posteriores (coagulação e floculação), ajustando-o a uma faixa que varia
de 7 a 9 para um tratamento com sulfato de alumínio, removendo assim cerca de 80
a 90% de sólidos suspensos, 40 a 70% da DBO5, 30 a 60% da DQO e 80 a 90% da
massa bacteriana.
212
Esse efluente é bombeado por intermédio de bombas com vazão ligeiramente
superior à vazão de projeto, até o tanque de coagulação e floculação onde a
formação de flocos capazes de serem retidos na fase de clarificação, mediante a
adição de sulfato de alumínio como agente coagulante e polieletrólitos como agente
floculante.
Na seqüência inicia-se a decantação, precipitação do efluente floculado, flotação
(promovendo a clarificação do efluente floculado), medição da vazão de efluente,
produção e desidratação de lodo, remoção do sedimentador e encaminhamento aos
leitos de secagem. Efetua-se o espessamento, condicionamento, desidratação e
disposição desse lodo, enquanto que o líquido sobrenadante é reutilizado em novo
processo de recurtimento.
Antes da utilização dos banhos tratados, os mesmos são submetidos a testes
físico-químicos a fim de alcançar os parâmetros já estabelecidos para a água a ser
reutilizada no setor produtivo (ou mesmo na alimentação de fulões, máquinas e
equipamentos no geral), tornando possível a economia de aproximadamente 75% no
processamento dos couros beneficiados, além de reduzir consideravelmente a
quantidade de poluentes.
Pode-se dessa forma, aproveitar as propriedades mecânicas e higiênicas das
fibras de couro, valorizando sua permeabilidade e absorção, estabilidade e afinidade
com os corantes e demais insumos químicos.
Assim, a reutilização de banhos residuais dos processos de recurtimento através
de filtração com serragem proveniente da operação de rebaixe em curtumes é uma
alternativa viável, considerando uma redução de aproximadamente 50% da
quantidade total de material poluente nos banhos residuais. Os couros
desenvolvidos após a reutilização do banho residual devidamente tratado
apresentam as mesmas características obtidas através de processamento com água
pura, alcançando os padrões de qualidade e resistência desejados.
Dessa forma torna-se possível diminuir consideravelmente os gastos referentes a
implementação de sistemas de tratamento através da eliminação do tratamento
secundário por intermédio da reutilização de água do tratamento primário.
Quantidades consideráveis de água podem ser reaproveitadas, caracterizando uma
economia no que se refere tanto a captação de água, como emissão do efluente
gerado (Maioli & Silva, 2000).
213
6.2.3.2 Recuperação e utilização de subprodutos
Vários são os subprodutos de um curtume que, se recuperados podem diminuir a
carga poluidora. Destacam-se os pelos e a carnaça, que influenciam diretamente no
efluente líquido final.
a) recuperação de pelos
A recuperação de pêlos dentro do fuIão, é baseada na técnica de mantê-los não
destruídos pela oxidação, ou por imunização com álcali e destruição das raízes dos
pelos com compostos de enxofre ou aminas. Os pêlos são retirados do fulão por
fluxos especiais de transporte e filtração.
O Processo Darmstadt é um processo automático e rápido de depilação. Peles
frescas ou remolhadas são penduradas em barras, com os pêlos para cirna, e
transportadas através de cabines, onde são pulverizadas com uma solução
concentrada de sulfeto de sódio. Depois de 15 minutos, as peles passam por um
equipamento que efetua a remoção dos pêlos desprendidos das peles. O lodo
resultante passa por uma coluna de ar onde é automaticamente acidificado, e a
massa de pêlos reestruturada, filtrada e parcialmente desidratada. Os sulfatos são
parcialmente destruídos e parcialmente recuperados. As peles depiladas são, então,
descarnadas. Esse processo, desenvolvido na Alemanha, apresenta as vantagens
de o carnal subcutâneo não ser afetado pelo processo e poder ser aproveitado; as
peles possuem uma suavidade bastante maior; já que não sofrem as ações
mecânica e química características do processo nos fulões e não há sulfeto presente
no efluente. A não recuperação dos pêlos aumenta em muito a matéria orgânica no
efluente final (Jost in Pereira, 1997).
b) Carnaças
A carnaça, se retirada a antes de ser caleada (pré-descarne), pode ser utilizada
na elaboração de cosméticos.
Ainda há outros sub-produtos que podem ser utilizados para fins comerciais, são
eles: A gordura e o sebo que recuperado é autoclavado e quimicamente separado
em oleína, estearina e palmitina. A oleína pode ser integralmente reaproveitada no
próprio processo de curtimento. A estearina e a palmitina são utilizados na
formulação de cosméticos. As aparas de couro em tripa, ou seja, couro não curtido
são utilizadas para a fabricação de brinquedos comestíveis para cães (dog toys). As
214
aparas que não tiverem grupão suficiente para a confecção dos brinquedos para
cães são utilizadas na fabricação de gelatinas.
6.2.3.3 Tecnologias de conservação de água
As variações no consumo de água estão compreendidas entre menos de 30 l/Kg
e mais de 100 l/Kg para tecnologias aparentemente similares. Há, em muitas
situações, margem para a conservação e para consideráveis economias nesse
particular. Os principais sistemas que economizam recursos hídricos são os
seguintes: a) aumento do controle no consumo de água de processo e de limpeza
Na maior parte dos curtumes, cerca de 50% da água consumida está relacionada
com as necessidades reais do processo. O restante da água consumida deve-se a
extensas lavagens com água corrente, a transbordamentos de recipientes e
lavagens excessivamente freqüentes dos pisos e fulões. Pode-se obter considerável
economia ao introduzir normas e equipamentos de limpeza simples e uma boa
fiscalização. b) lavagem em batelada em vez de lavagem com água corrente
O sistema dos curtumes, de lavar com água corrente, quando os produtos são
lavados em um fulão provido de uma porta gradeada com válvula de admissão de
água, completamente aberta, durante 15 a 20 minutos, é um dos principais
causadores do desperdício de água nos curtumes. As lavagens em batelada, além
de propiciar economia no consumo de água, permitem boa uniformidade ao produto
final. c) Técnicas de banhos reduzidos com equipamentos modernos
A instalação de equipamentos que são fruto das mais modernas tecnologias de
curtimento produz economia, no consumo de água, de 50%, e também no uso de
produtos químicos. Nos curtumes existentes, na maior parte dos países em
desenvolvimento, é muito improvável que essa vantagem econômica justifique a
importação desses equipamentos, com alto custo em divisas, quando os fulões de
madeira podem ser construídos localmente. Porém, em um novo projeto, a economia
no consumo de água e de produtos químicos, somada ao aumento de eficiência e da
regularidade, pode justificar a aquisição dessas tecnologias.
215
d) reciclagem/reutiIização direta das águas em processos menos críticos
Nos últimos anos, tem sido publicadas muitas propostas onde se demonstra que
é tecnicamente factível reciclar muitas águas de processo e de lavagem,
relativamente limpas, para outros processos. Esses processos apresentam a
vantagem de ter baixa concentração de produtos químicos nos despejos, ou, ao
menos, não causar interferência. Uma das propostas é o processo de Bailey
modificado, que propõe que a água de lavagem seguinte a purga, assim como a
água de neutralização e a de lavagem seguinte a essa, se reciclem para o processo
de remolho e que uma parte da água da segunda lavagem, seguinte a do caleiro, se
recicle para formar a base de um novo licor de cal (Jost in Pereira, 1997).
6.2.3.4 Modificação de matéria-prima e processo industrial
Com relação aos efluentes da fase inicial, a situação ideal é que a fase de ribeira do
processamento de couro esteja o mais próximo possível do frigorífico, de maneira que a
etapa da salga do couro seja eliminada, em função do processamento logo após o
abate. Esse procedimento também influi na qualidade da matéria-prima, como já foi visto
no item 5.3.2, pois 15% dos defeitos dos couros são originados nos frigoríficos e
abatedouros, pois as peles depositadas após a esfola, sem tratamento adequado,
permanecem várias horas esperando pelo transporte, o que contribui para o
surgimento de defeitos de conservação. Assim em virtude dos hematomas, as áreas
que acumulam sangue, sofrem mais rapidamente os efeitos do ataque bacteriano,
originando defeitos como manchas, flor ardida e áspera, além de flor solta. Não existe solução universal para a indústria do couro, mas existem algumas
estratégias conhecidas que podem e, aos poucos, estão sendo adotadas.
216
a) Na Europa, os métodos mais utilizados para a preservação das peles, por meio de
abaixamento da temperatura, são: expor ao ar frio em câmaras frigoríficas; mergulhar
em água fria, ou ainda, empilhar com camadas de gelo picado entre as peles. Estas
podem ser mantidas por alguns dias em estado de conservação, até seu posterior
processamento. Esse procedimento define uma alternativa válida, capaz de, por
exemplo, na Alemanha, evitar a utilização de 80.000 toneladas de sal que seriam
usadas na preservação de peles bovinas (Jost in Pereira, 1997);
b) Empresas nacionais e internacionais pesquisam e desenvolvem tecnologias para
biodegradáveis, que abrangem, principalmente, a chamada parte molhada do
tratamento do couro, fase em que sofre uma série de processos em meio aquoso
(Pereira, 1997);
c) A depilação térmica de peles recém esfoladas, fornece uma alternativa para o
caleiro com sulfetos. Existem pesquisas para o uso de enzimas nessa etapa, mas ainda
não foi adotada pela indústria numa escala comercial significativa. O controle desse
processo é muito difícil, com riscos de trabalhar excessivamente a matéria-prima sob
condições práticas;
d) O uso de sal amoníaco, ácido lático, bórico ou cítrico nos processos de
descalcinação, é um obstáculo ao aproveitamento do lodo de curtumes na agricultura e,
muitas vezes, complica o tratamento de águas residuais. Mas a substituição desses
ácidos brandos por dióxido de carbono, para neutralizar as peles cujos pêlos são
removidos com hidróxido de cálcio nem sempre é aceita pelos curtidores. Alegam que
tal substância pode causar a precipitação de carbonato de cálcio, produzindo manchas
visíveis no couro (Pereira, 1997).
Porém o mercado italiano lançou uma opção para desencalagem que utiliza
exatamente o dióxido de carbono, permitindo, além da obtenção de peles mais macias e
estruturalmente finas, melhor qualidade dos efluentes finais. O processo conhecido
como Descalcinação Aga, foi testado pela Aga de Milão, juntamente com a
beneficiadora Viialan Nahka Oy.
Outras duas técnicas simples que devem ser usadas são: batimento do sal e pré-
descarne. O batimento retira, aproximadamente, 1,5 Kg de sal por pele e o pré-descarne
tem como objetivo remover o excesso de gordura, conseguindo melhor penetração e
distribuição dos produtos nos processos que seguem. Esses dois processos já estão
implantados na maioria dos curtumes do Estado. Atualmente, existem diversas
pesquisas que visam a diminuição da carga poluidora sem diminuir a qualidade do
couro, faltando-lhes, porém, dados sobre a viabilidade econômica dessas tecnologias.
217
6.2.4 Meio Ambiente e competitividade
De acordo com Porter & Linde (1999), as mudanças nos processos para reduzir
as emissões e utilizar os recursos de forma mais eficiente geralmente proporcionam
rendimentos mais elevados.
Pauli (1996) também faz considerações sobre meio-ambiente e competitividade:
“A emissão zero representa uma grande oportunidade para o aumento da
produtividade para as organizações, porque apresenta a concepção da
possibilidade de construção de plantas industriais capazes de operar
economicamente e, ao mesmo tempo, terem eliminadas todas as formas de
desperdício dos seus processos de produção e gerenciamento.”
Segundo Chase (1999), o custo da baixa qualidade é uma despesa decorrente de
problemas de qualidade tais como perdas, refugos, retrabalhos entre outros, e pode
servir como ferramenta para identificar os vazamentos que secretamente drenam os
lucros de uma empresa. Considerando que é incluída no preço a perda não diminui
os lucros. Mas se elevada, pode aumentar os preços, prejudicando a vantagem
competitiva de determinado produto.
Nesse contexto, a globalização dos mercados obrigou o setor coureiro-calçadista
a tornar-se cada vez mais eficiente, o que inclui melhorias consideráveis e a busca
por inovações em todas as áreas para reduzir seus desperdícios e aumentar sua
competitividade.
A inovação em resposta a questão ambiental é passível de enquadramento em
duas grandes categorias. A primeira é a das novas tecnologias e abordagens que
minimizam o custo do tratamento da poluição, quando existente. A chave para essas
abordagens geralmente reside na captação dos recursos incorporados na poluição e
na sua conversão em algo de valor. As empresas estão ficando mais inteligentes na
reciclagem dos resíduos, na melhoria dos tratamentos secundários e na conversão
de materiais e emissões tóxicas em recursos utilizáveis.
O segundo tipo de inovação, muito mais interessante e importante, ataca as
causas básicas da poluição a partir da melhoria da produtividade dos recursos. Suas
conseqüências assumem muitas formas, incluindo a utilização mais eficiente de
insumos específicos e o aumento do rendimento e a melhoria dos produtos. A
produtividade dos recursos aumenta quando se empregam materiais menos
dispendiosos como substitutos ou quando os existentes são melhor utilizados.
218
De acordo com Porter & Linde (1999), não é mais suficiente apenas dispor de
recursos. Hoje a competitividade depende de sua produtiva utilização. As empresas
tem condições de melhorar a produtividade dos recursos através da fabricação de
produtos existentes com maior eficiência ou do desenvolvimento de produtos que
sejam mais valiosos para os clientes e pelos quais os clientes estejam dispostos a
pagar preços mais elevados.
Cada vez mais os países e as empresas que apresentam maior competitividade
não são aqueles com acesso aos insumos de custo mais baixo, mas os que
empregam a tecnologia e os métodos mais avançados na sua utilização. Como a
tecnologia se encontra em constante processo de mudança, o novo paradigma da
competitividade global exige a capacidade de inovar com rapidez.
O novo paradigma entrelaçou a melhoria ambiental e a competitividade. É
importante utilizar os recursos de forma produtiva, sejam eles naturais e físicos ou
humanos e de capital. O progresso ambiental exige que as empresas sejam
inovadoras para aumentar a produtividade dos recursos e é exatamente nesse
ponto que se situam os novos desafios da competitividade global.
Competitividade
6.3.1 Forças competitivas
A competitividade emergiu como uma importante questão em todas as nações
tanto para empresas como para os governos. Aumentar a competitividade externa
de uma região exige uma compreensão compartilhada de sua própria
competitividade interna. De acordo com Porter (1999), a competitividade não é
simplesmente subsídio governamental, mão-de-obra barata, taxa de câmbio
favorável, balança comercial positiva ou baixa taxa de inflação. Pelo contrário, a
competitividade é a produtividade com a qual os recursos são desenvolvidos. E por
recursos entende-se recursos humanos, capital e ativos físicos.
Como a competitividade baseia-se no desenvolvimento de recursos produtivos,
os setores da indústria e suas empresas competem entre si, mas não as nações.
Entidades vinculadas ao governo tem um papel parcial, mas significativo na criação
da plataforma onde ocorre a competição entre as empresas. O Governo, as
empresas, e seus representantes compartilham a responsabilidade pela criação da
219
competitividade. Na figura 67 pode-se acompanhar a evolução de um ciclo vicioso
para um ciclo virtuoso como base teórica do crescimento através da equidade.
Figura 67: Evolução do ciclo vicioso para o ciclo virtuoso
Falta deApoio
DesigualdadeSocial
PoucaProdutividade
Manter baixosníveis de
remuneração
Manter baixosníveis de
remuneração
Dependência emprodutos
commodities
Dependência emprodutos
commodities
Qualidade de VidaDecrescente para a
Maioria daPopulação
Qualidade de VidaDecrescente para a
Maioria daPopulação
HabilidadesLimitadas,
Falta de Inovação
HabilidadesLimitadas,
Falta de Inovação
EstagnaçãoEconômica
O Ciclo Vicioso
Investimento emCapital Humano
Investimento emInvestimento emCapital HumanoCapital Humano
Capacidade deexportar produtos
complexos
Capacidade deCapacidade deexportar produtosexportar produtos
complexoscomplexos
Habilidades,Inovações
Habilidades,Habilidades,InovaçõesInovações
CrescimentoCrescimentoEconômico
EquidadeEquidadeSocial
Produtividade Apoio
O Ciclo Virtuoso
Riqueza para aNação
Riqueza para aRiqueza para aNaçãoNação
220
O diagrama diamante de Michael Porter representa o ambiente de
competitividade no qual uma empresa compete. Através desse modelo,
representado na figura 68, uma empresa pode compreender as dinâmicas da
indústria resultantes da interação dos quatro determinantes influenciados pelo
governo e por acaso. Dessa forma o sucesso sustentável resulta da inovação e
melhoria desse sistema, assim como a melhoria de um determinante pode ajudar a
melhorar todo o sistema.
Figura 68: Ambiente de competitividade
Fonte: Porter (1999)
O diamante de Michael Porter representa o ambiente de competitividade de um
país, região ou setor. Ele apresenta quatro forças determinantes:
a) Fatores - Condições naturais, populacionais, de infra-estrutura, de origem e
custo do capital de um país, região ou setor;
b) Demanda - Características específicas da demanda do país ou região.
Características quantitativas (tamanho) ou qualitativas, tal como nível de exigência
do consumidor ou tamanho da demanda de produtos sofisticados;
c) Estratégia, Estrutura e Concorrência - Características e tipos predominantes de
estratégia (exemplo: foco em nichos, competitividade por preço, internacionalização),
estrutura das empresas (exemplos: predominância de empresas de propriedade
familiar ou capital aberto) e concorrência (exemplo: predominância de setores com
Estratégia,Estrutura e
Concorrência
Estratégia,Estrutura e
Concorrência
O ClusterO Cluster
FatoresFatores DemandaDemanda
GovernoGoverno
AcasoAcaso
221
livre concorrência, monopólio ou oligopólio) de um setor específico ou de um país ou
região;
d) Cluster - conjunto de todas as empresas de um determinado setor ( fabricantes
de produtos finais, fornecedores de matérias primas, fabricantes de máquinas e
equipamentos, etc.) e suas inter-relações.
E duas forças influenciadoras, que também se inter-relacionam:
a) Governo – As ações do governo influenciam qualquer um dos fatores acima
listados;
b) Acaso - Existem fatores imprevisíveis e fora de alcance das empresas que
também podem alterar o setor, país ou região. Como por exemplo: guerras, crises
externas, alterações bruscas em custos de determinados produtos, por exemplo
crise do petróleo.
Esse diamante pode ser definido como um sistema, pois o impacto de um ponto
em geral depende do estado dos demais. Os pontos fracos em qualquer um dos
determinantes refrearão o potencial de desenvolvimento e aprimoramento do setor.
Da mesma forma, os pontos do diamante também se reforçam mutuamente como
em um sistema.
De acordo com Porter (1999), dois elementos, a rivalidade doméstica e a
concentração geográfica, são especialmente poderosos para transformar o diamante
em um sistema. A rivalidade doméstica, ao promover melhorias em todos os outros
determinantes, e a concentração geográfica, ao promover e intensificar a interação
entre as quatro influências isoladas.
O diamante devido a sua natureza sistêmica cria um ambiente que promove os
aglomerados ou clusters de setores competitivos que não se dispersam de modo
aleatório por toda a economia, mas geralmente se interligam através de
relacionamentos verticais (comprador – vendedor) ou horizontais (clientes comuns,
tecnologia, canais de distribuição), gerando o fato de os países raramente serem a
base de apenas um setor competitivo. Tampouco os aglomerados se espalham de
forma física, tendendo a se concentrar em regiões geográficas. Um setor competitivo
ajuda na criação de outros, através de um processo de reforço mútuo.
222
6.3.2 Clusters e competitividade
Os clusters ou aglomerados se constituem uma importante forma
multiorganizacional, uma influência central sobre a competição e uma característica
preeminente das economias de mercado. Sua situação em determinada economia
proporciona importantes insights sobre seu potencial e sobre as limitações de
crescimento futuro. O papel dos aglomerados na competição levanta importantes
questões para as empresas, governos e outras instituições.
Ao contrário, a visualização do mundo em termos de setores ou de áreas
restritas, como produtos automotivos, geralmente degenera em lobbies conflitantes
sobre subsídios e incentivos fiscais pelas empresas participantes. Os investimentos
públicos daí resultantes são meros benefícios em termos de efeitos colaterais para
outros setores, sendo capazes, nessas condições, de distorcer os mercados. Como
grande parte dos participantes compete diretamente, há o risco muito sério de que
diminua a intensidade da competição. As empresas também hesitam em participar
de atividades comuns, em face do medo de ajudar um concorrente direto. Assim, a
perspectiva setorial ou de áreas mais restritas tende a distorcer a competição, ao
passo que a abordagem do cluster se concentra em acentuar a competição.
De acordo com Ruas (1994) e como já foi visto anteriormente no item 5.1, o
segmento produtivo que, no Brasil, mais se aproxima do conceito de cluster é o
complexo produtivo coureiro-calçadista, que originalmente se constituiu no Vale do
Rio dos Sinos, mas que agora já abrange uma área mais extensa do Estado do Rio
Grande do Sul. Apresenta-se a seguir um conjunto de evidências48 que permitem ao
final uma reflexão sobre o desenvolvimento do cluster citado.
48 Essas evidências são baseadas nos resultados da pesquisa de Ruas (1994) concomitantemente com o resultado da pesquisa da autora.
223
6.3.3 O cluster coureiro-calçadista do estado do Rio Grande do Sul
A seguir serão comentados alguns aspectos positivos relacionados ao cluster
coureiro-calçadista gaúcho.
A estrutura dos capitais localizados no cluster permitiu um processo de intensa
divisão social da produção, de maneira a construir uma cadeia produtiva composta
por firmas independentes e relativamente especializadas, na qual coexistem
empresas de todos os portes (pequeno, médio e grande). Por outro lado, um
contingente de pequenas e médias empresas dispersas não teria provocado
nenhum processo importante. Foi, evidentemente, a concentração geográfica desse
heterogêneo grupo de empresas que constituiu um dos fatores fundamentais de
sucesso do cluster.
A dinâmica de criação de novas empresas tanto no setor coureiro como no setor
produtor de calçados e artefatos, em função da quase inexistência de barreiras à
entrada nesse segmento, coloca a criação de pequenas empresas como uma
alternativa importante para a complementariedade da cadeia no cluster.
Outro aspecto positivo é a existência do desenvolvimento de um ambiente
tecnológico associado à produção de couros e calçados em toda a região, incluindo
informações, técnicas e qualificações acerca do tema. Com a finalidade de cumprir a
função de catalisadores desses diferentes processos, desenvolveram-se diversas
instituições como o CTCCA, o Centro Tecnológico de Couro e o Centro Tecnológico
do Calçado (SENAI), a FEEVALE e outros já citados anteriormente.
Essas instituições, juntamente com as empresas, permitiram o desenvolvimento
de técnicas de produção, técnicas de tratamento de efluentes e resíduos, aplicação
de novos materiais, técnicas para testes e ensaios de qualidade e dimensionamento
de produtos e outros.
Também faz parte desse ambiente, a edição de publicações, produzidas por
entidades da própria região e especializadas em tecnologia de produção e qualidade
do couro, do calçado e dos diversos materiais que compõem a produção desse
último. Ressalta-se que essas publicações têm ampla divulgação entre produtores
da região e do país, em função da atualidade e oportunidade de seu conteúdo.
224
Esses aspectos possibilitaram, no decorrer do tempo, o desenvolvimento de
capacitação gerencial no cluster, o que tem permitido a resolução de grande parte
dos problemas de processo e produto relativos à produção de couro e calçados.
Pode-se dizer ainda, que há uma autonomia quase total da cadeia produtiva
organizada em torno da produção de couros e calçados, visto que a proximidade dos
fornecedores da cadeia vertical no cluster permite o suprimento rápido e ágil. Há
ainda a difusão rápida de inovações desenvolvidas na área de insumos, que
constitui-se no segmento mais inovador do conjunto de segmentos que fazem parte
do cluster. Também ocorrem trocas de informações diretas entre clientes e
fornecedores, viabilizando processos contínuos de adaptação e melhoria dos
insumos empregados na produção de couros e calçados.
Há ainda, vantagens políticas decorrentes da proximidade geográfica no cluster,
visto que a concentração geográfica de um número tão grande de produtores
associados a uma mesma cadeia produtiva, tem lhes permitido organizar
rapidamente reivindicações e propostas de interesse coletivo, especialmente frente a
decisões de política econômica e fiscal ao nível dos governos federal e estadual.
Assim como, é também o peso e a importância política gerada pela concentração
geográfica que fez das entidades patronais ligadas à produção de couro e calçados
da região, as lideranças nacionais nessa atividade.
No entanto, existem alguns pontos de impasse relacionados ao cluster que serão
comentados a seguir. O principal ponto é a baixa compreensão da lógica da
eficiência coletiva e da questão da parceria e integração no cluster: Grande parte
dos diretores das empresas não considera que o complexo industrial coureiro-
calçadista é um verdadeiro cluster, e que a competitividade das empresas,
consideradas isoladamente, está diretamente relacionada com o desenvolvimento
da competitividade de todo o cluster. Na visão de um entrevistado do setor,
“Um aspecto que sempre vem sendo salientado em reuniões do nosso setor,
mas que infelizmente não tem sido seguido, é que o setor precisa se unir. Nós
devemos ter consciência dessa possibilidade, pois poderíamos evoluir mais
rápido com benefício para todos, pois dependemos um do outro. Deveríamos
ser mais abertos. . . Mas acho que isso acontecerá por bem ou por mal, mas
teríamos que acelerar este processo.”
225
Também, os empresários ainda não tem a real percepção de que a concorrência
no mercado internacional, principalmente entre os produtores de calçados, é
atualmente constituída em termos de uma competição entre produtores (clusters), e
não mais uma concorrência entre empresas isoladas. A visão de um entrevistado,
apresenta essa situação,
“. . . Mas é que se pensa assim: Franca é muito longe. No começo, quando
alguém ia para São Paulo, era manchete nos jornais locais: fulano embarcou
hoje para São Paulo . . . mas agora, o cara vai para a China e volta sem
divulgação alguma. Temos que abrir os olhos para a globalização. Temos que
repensar. . . Na verdade quem é o nosso inimigo? Nosso inimigo não está
aqui, ele está fora de nossas fronteiras. A partir do momento em que nós
aceitamos a globalização, temos que olhar o mundo de um ângulo diferente.
Não é mais Estância Velha contra Dois Irmãos e empresa x contra empresa y.
É aí que está o engano e a falta de visão global do nosso setor . . . “
Logo, após atingir de forma espontânea uma situação de competitividade
bastante significativa, faz-se necessária uma etapa superior de amadurecimento
sobre a eficiência coletiva do cluster, visando sua sistematização principalmente com
relação a questão ambiental. Portanto, faz-se necessário um projeto de
planejamento estratégico, o qual integre todas as dimensões da eficiência coletiva
com a competitividade do cluster.
Constata-se que devido a existência de uma competitividade relativamente forte
nas relações interfirmas, principalmente nas horizontais, há uma tendência ao
isolamento entre os produtores de couros e calçados, resultando em certo grau de
dificuldade dessas empresas para tomarem iniciativas comuns, do tipo consórcio,
complementaridade produtiva e outras atividades relacionadas a eficiência coletiva
no cluster. Segundo um entrevistado,
“. . . Nós sabemos fazer melhor do que eles (produtores internacionais). Só
que temos que aliar curtume, indústria química, estilistas e sapateiros. Vi uma
iniciativa da /.../ para apresentar uma cartela de cores, mas se ele fizer isso
sempre, e sozinho, vai desestimular. Precisamos fazer uma coisa mais ampla.
O sapato não é só couro, e temos que passar a ver o conjunto de coisas. . . “
226
Há ainda o fato de que a maioria das empresas do cluster compete
predominantemente em mercados onde a concorrência é baseada em preços
baixos. Essa forma de competição implica numa estratégia intensiva de redução de
custos, que dificulta o desenvolvimento das condições de qualidade e produtividade
no cluster, em função de aspectos como: Uma política de emprego marcada pela
instabilidade com finalidade de reduzir os custos de mão-de-obra, que implica em
contrapartida, numa mão-de-obra geralmente de baixa qualidade em termos de
capacitação e comprometimento, que associada à baixa escolaridade dos
trabalhadores empregados e ao alto índice de rotatividade das empresas, determina
efeitos negativos sobre a qualidade e a produtividade dos produtos e processos;
levando, ainda as empresas a relocalização em outros estados que oferecem mão-
de-obra a custos menores.
Com relação as fábricas de calçados, outro fator são as relações informais e
descontínuas com ateliers subcontratados, gerando problemas de qualidade dos
serviços realizados, tendo em vista a importância desse tipo de relação no segmento
produtor de calçados.
Há ainda uma dependência dos produtores de couro e calçados dos
importadores e distribuidores internacionais, especialmente os norte-americanos –
pois, em geral, ainda é pouco o esforço no sentido de vender os produtos, ou seja,
muitos produtos continuam sendo comprados. No entanto, como já foi apresentado
anteriormente, já existem iniciativas no sentido de promover vendas internacionais
com marca própria. De acordo com um entrevistado,
“A grande mudança que está havendo vai chamar os setores para trabalharem
juntos, porque esta visão de principal, os curtumes sempre tiveram, sem
promover seu nome em feiras internacionais. A indústria de calçados brasileira
até então, vinha transferindo essa responsabilidade para terceiros. No ano de
1997, em Moscou, me surpreendi com a marca exposta da Azaléia . . .”
Considerando-se os aspectos expostos acima pode-se indicar as seguintes
perspectivas:
a) Consolidação da filière aumentando o número de empresas em operação, bem
como o contingente de mão-de-obra ocupado.
b) Consolidação do ambiente tecnológico vigente no cluster, através do
fortalecimento das instituições que o apóiam nessa área.
227
c) Difusão, na maior parte dos produtores de couro e calçado do cluster, de
métodos de gestão associados à noção de especialização flexível, no rastro dos
esforços que algumas empresas líderes do setor vêm empreendendo. Nesse
sentido, as demais empresas avançariam no sentido de obter maior qualidade e
produtividade em seus produtos.
d) Constituição de consórcios para vendas no exterior, o que colocaria algumas
empresas produtoras em relação direta com os distribuidores e lojistas no mercado
externo e, conseqüentemente, numa situação de menor dependência a eles. Da
mesma forma, esses consórcios poderiam ser organizados para atuação em outras
áreas como aquisição de matérias-primas, desenvolvimento tecnológico, pesquisas
em design, e outros.
O conjunto de condições acima, associados a uma estratégia e a produtividade
podem contribuir para o desenvolvimento do cluster de maneira que tenha
condições de competir também em mercados onde a questão da qualidade e
flexibilidade constituem fatores fundamentais de concorrência e os preços obtidos
são significativamente superiores.
Nesse sentido apresenta-se na figura 69 um modelo onde pode-se compreender
as dinâmicas resultantes da interação das forças determinantes e influenciadoras
que levariam ao desenvolvimento do cluster coureiro calçadista.
Dessa forma, a percepção de que qualidade, flexibilidade e inovação são
aspectos vitais de competição, ampliaria e fortaleceria a noção de eficiência coletiva
no cluster, na linha das características já apresentadas no decorrer do trabalho.
228
Figura 69: Forças influenciadoras do cluster
Fonte: Adaptado de Porter (1999)
Para melhorar os lucros, os salários e o padrão de vida, o desafio, ao longo do
tempo, consiste em elevar a produtividade e aumentar o valor dos produtos. Dessa
forma faz-se a transição do ciclo vicioso para o ciclo virtuoso onde as empresas
possuem capacidade de exportar produtos complexos levando ao crescimento
econômico e a equidade social. Para permitir que uma localidade se torne mais
produtiva, deve-se desenvolver a capacidade local de melhorar produtos e
processos e, em última instância, promover a inovação de maneira que os clusters
se desenvolvam. Do contrário não será possível contrabalançar a tendência natural
do aumento dos custos locais ao longo do tempo; e outras localidades com custos
dos fatores mais baixos ou com maiores subsídios assumirão a produção.
A seguir apresenta-se na figura 70 a estruturação atual do cluster coureiro-
calçadista, sendo representadas as diversas ligações dentro do mesmo.
Couro
Nichos relacionados
Productos complej
Calçados pesados Calçados segurança
Calçados artefatos
melhor qualidade
Couro melhor
qualidade
Empresas
EmpresaPerdedora
Produtividade operacional
Desenvolvida
Pobre Baixa Alta
Afronteira da Produtividade Produtos complexos
229
Figura 70: Cluster coureiro-calçadista do estado do Rio Grande do Sul
Bancos e orgãos financiadores
Institutos de formação e P&D
Transporte
Marketing
Moda
Agencias exportadoras
Tecnologia
Informatica
Orgãos de fiscalização e controle
Pecuaria
Frigorífico
Curtumes
Calçados
Calçados especiais
EPI's
Artefatos
Estofados
Industria de moveis
Industria automobilistica
Ind. da carne
Cosméticos
Gelatina
Dog Toy's
Maq. e equip. p/curtumes
Ind. química
Tecnologias limpas
Criação/modelagem
Componentes
Maq. p/calçados
Maq. p/ componentes
Embalagens
Competencia InternacionalLigação forteLigação moderadaLigação fraca
230
Como pode ser visto, o mesmo apresenta-se muito bem estruturado, pois em
termos de filière apresenta filières auxiliares bastante ativas e também possui
setores terciários bem desenvolvidos. No entanto para que o cluster coureiro-
calçadista gaúcho consiga se manter e se desenvolver, deve fortalecer suas ligações
internas através de parcerias e outros procedimentos que resultem em uma maior
integração entre os agentes.
Pode-se dizer que essas questões já estão sendo percebidas por alguns atores
da filière, pois segundo um entrevistado,
“A força das entidades direcionadas para ações conjuntas será extremamente
positiva para o setor no futuro. Pois demonstra a questão da união, levando a
sociedade e o Governo a acreditar mais na cadeia produtiva. Agora o setor
está indo reivindicar em bloco, e antes era individualmente, e até brigavam em
determinadas situações diante de autoridades. Essa questão da parceria com
cada um preservando suas peculiaridades, só tem a ganhar ...”
7 CONCLUSÃO
Como foi visto na apresentação da filière, as empresas que formam o cluster
coureiro-calçadista que inicialmente desenvolveu-se no Vale dos Sinos e hoje já
abrange uma área maior do Estado do Rio Grande do Sul, desenvolveram-se
direcionadas pelas forças do meio-ambiente, principalmente pelo mercado desde o
seu surgimento, seu desenvolvimento e a partir da década de 60 pela exportação.
Cada estágio caracterizou-se por uma série de atributos, bem como por um
padrão de ações de diferentes atores e premissas sobre o sistema de causa e efeito
dentro do setor, resultando em diferentes interações. Esse aspecto influenciou em
cada época o enfoque utilizado para a análise e solução de problemas que se
apresentavam.
Assim, no início do século XX, a importância econômica da indústria de curtumes
era muito superior a de calçados. Pois a própria origem das fábricas de calçados é
disponibilidade de retalhos (sub-produtos da fabricação de selas de montaria). Esse
fato associado a demanda latente e o incentivo do governo, levou ao aparecimento
dos primeiros fabricantes de calçados, fabricando de forma artesanal, sem a
necessidade de vender seus produtos, pois ele era comprado.
Em um segundo momento, com a entrada da mulher no mercado de trabalho e a
industrialização do país, aumenta-se o consumo per capita de calçados, o número
de empresas e define-se o perfil do produto da região. Nesse momento, inverte-se a
situação e a importância econômica das fábricas de calçados passa a ser maior que
a dos curtumes. No entanto, a organização da produção nas fábricas não se altera,
sendo composta, na sua maioria por pequenas empresas artesanais que
continuavam a ter seu produto comprado, sem necessidade de vendê-lo.
No momento seguinte, com o advento da exportação, altera-se a organização
das empresas para um modelo industrial de produção em massa, em função da
necessidade de grandes lotes principalmente para os Estados Unidos. Esse fato
também se reflete nos curtumes. E no momento atual, iniciado na década de 90, o
setor tem encontrado o maior de todos os desafios: manter-se competitivo em um
mercado globalizado.
232
Dessa forma, a economia do couro e do calçado no Brasil, desde o fim dos anos
60, até os dias atuais, pode ser dividida em dois períodos, mais um terceiro que está
se iniciando.
Na segunda metade dos anos 60, que coincide com o início dos governos
militares, nasce uma estratégia de desenvolvimento para o país. Não cabe aqui,
discutir seus erros e / ou acertos. O importante é que existia uma política com visão
estratégica, perspectiva futura e horizonte definido. Nesse contexto, surgiram
Escolas de Curtimento de Couros e de Fabricação de Calçados, que formaram os
recursos técnicos e de base de fundamental importância para o desenvolvimento
das indústrias do couro e do calçado.
O governo, de forma exagerada e muitas vezes arbitrária, proibiu a saída de
couros crús e no estágio wet blue, inviabilizando até mesmo a exportação de couros
acabados, criando uma reserva de mercado da matéria-prima couro. Essa política
resultou em duas questões, pelas quais o setor padece desde os anos 80 até os
dias atuais, quais sejam:
a) Isolou os curtumes do mercado internacional, com inúmeros efeitos
arbitrários;
b) Criou uma situação a princípio muito cômoda para os fabricantes de calçados, a
política de mercado cativo, não concorrencial, de matéria-prima couro.
Independente da qualidade da política industrial de então, o que interessa, do
ponto de vista histórico, é reconhecer sua existência e seus efeitos no mercado. Era
uma política industrial transparente e intervencionista que privilegiava e incentivava
as exportações de alto valor agregado e inviabilizava as exportações primárias.
Duas de suas conseqüências positivas foram o surgimento de grandes parques
calçadistas voltados para as exportações, e também grandes indústrias
especializadas em prestação de serviços de recurtimento e acabamento de couros
para essas fábricas. Para os curtumes brasileiros, exportadores há décadas, a
principal conseqüência foi o isolamento do mercado internacional.
Essa situação de baixa exposição a concorrência produziu, rapidamente, os
resultados esperados mas, ao perdurar demasiadamente, retardou o surgimento de
novos parques industriais habituados a expor-se à concorrência. Em decorrência
com a abertura da economia na década de 90, muitos danos foram contabilizados
pelas empresas que não estavam preparadas para o mercado de alta
competitividade, e muitas ainda não se reabilitaram por completo.
233
A cultura industrial fechada e estática, com ausência de dinamismo, ocasionada
pela baixa competitividade, resultou em uma grande defasagem tecnológica. Dessa
forma, as tecnologias modernas, o marketing internacional, a produção em larga
escala, a alta produtividade, a especialização em linhas definidas de artigos, os
programas de melhoria do couro cru, os programas de treinamento intensivo de
pessoal, permaneceram obscuros, incapacitando o cluster para o enfrentamento
futuro de competitividade em termos globais.
Nos anos 80, após o segundo choque do petróleo, o mundo começou a mudar
intensamente. O processo de globalização iniciado nos EUA e na Inglaterra,
aproximarou a Ásia e principalmente a China do mercado mundial, trazendo reflexos
extraordinários. Assim ocorreu a industrialização e a compra de produtos da China.
Nesse contexto, pode-se dizer que, couro e calçado sempre foram produzidos onde
existe mão de obra farta e barata, além de interesse estratégico.
O Brasil, a partir dos anos 80, começou a abrir a exportação de couro wet-blue,
pelas regiões Norte e Nordeste, impondo quotas. Em 1988 houve uma abertura
ainda maior e nos anos 90, o país liberou as taxas de exportação, pondo fim a
qualquer tipo de restrição. Nesse segundo ciclo, que vai até 1993, quando o Brasil,
particularmente o Rio Grande do Sul, atingiu o auge na exportação, ainda,
paralelamente, houve crescimento em produção de calçados e couros. Mas muitas
mudanças ocorriam, também em paralelo, como o desenvolvimento intenso da
pecuária brasileira em novas regiões, resultando no surgimento de grandes
frigoríficos e curtumes de couro wet-blue. Como conseqüência, acabou-se a reserva
de mercado de matéria-prima couro cru, resultando na mudança, quase por inteiro,
do sistema de comercialização de couros crus. Assim, com o surgimento da indústria
de couros wet blue, espera-se no futuro, a tipificação e qualificação do couro cru.
Também, espera-se que a mesma, passe a ser propulsora da melhor qualidade da
matéria-prima pele, além de fornecer tipificadamente a jusante, aos acabadores,
agregando qualidade e serviços, propiciando a especialização e competitividade de
seu cliente. Esse é um processo em evolução, que só vai se concluir quando a
maioria dos frigoríficos forem fornecedores de couros nos estágios wet blue, com
esfola impecável, curtimento adequado e padronizado, couros separados por raça,
tamanho e sexo.
234
Pelo exposto anteriormente, nota-se que o cluster coureiro calçadista do Estado
do Rio Grande do Sul tem evoluído espontaneamente em função das forças do
ambiente. Os clusters são capazes de sustentar durante séculos o vigor energizante
das localidades competitivas, e a maioria daqueles bem sucedidos prosperam pelo
menos durante décadas. No entanto, quando não se asseguram as condições para
seu desenvolvimento, também se inviabiliza a continuidade de sua capacidade
competitiva.
De acordo com Porter (1999), as causas da atrofia e decadência dos clusters
também se encontram nos elementos do diamante, sendo agrupáveis em duas
categorias amplas: endógenas, ou derivadas da própria localidade; e exógenas,
quando atribuíveis a acontecimentos ou a descontinuidades no ambiente externo.
Assim, as fontes internas do declínio decorrem de inflexibilidades internas que
comprometem a produtividade e a inovação. O aumento nos próprios custos de
atuar no ambiente de negócios começa a superar a capacidade de aprimoramento.
Desde que a competitividade permaneça vigorosa, as empresas são capazes de
compensar parcialmente os problemas locais, através da globalização. Dessa forma,
a produção fora do cluster é uma alternativa para os salários locais, que sobem mais
do que a produtividade. No entanto, a não ser que se eliminem as inflexibilidades
internas, o aglomerado acabará perdendo a produtividade e o dinamismo. E a
vantagem competitiva migrará para outras localidades.
As ameaças externas ao êxito do cluster provêm de várias áreas, sendo as mais
significativas, as descontinuidades tecnológicas, pois são capazes de neutralizar,
simultaneamente, muitas das vantagens do cluster. As informações do mercado, as
habilidades dos empregados, a expertise científica e técnica e as bases de
fornecedores tornam-se inadequadas, caso as novas tecnologias e habilidades
imprescindíveis não sejam desenvolvidas com rapidez, deslocando a vantagem
competitiva para outras localidades.
Todas essas situações citadas acima já são visíveis no cluster coureiro-calçadista
gaúcho, pois no estágio atual, essa forças ambientais que direcionaram o seu
crescimento, agem em direção ao declínio do mesmo. Nesse sentido, faz-se
necessária uma intervenção para redirecioná-lo.
235
Nesse contexto, para desenvolver o cluster coureiro-calçadista, sugere-se a
intervenção por meio da melhoria dos fatores que agem no ambiente, conforme
figura 71. Essa melhoria dos fatores seria possível através da produtividade dos
recursos. E a produtividade dos recursos traduz-se na forma da consideração da
variável ambiental, visto que a poluição é a ineficiência dos recursos e dos
processos. Assim, o cluster coureiro-calçadista gaúcho passaria de um estágio de
desenvolvimento espontâneo ou evolução natural para um outro nível, de cluster
planejado, orientado para a eficiência coletiva, levando à competitividade
sustentável, mediante o desenvolvimento de uma estratégia e plano de ação.
Figura 71: Desenvolvimento do cluster
Situação atual do cluster Evolução
Natural
Declínio
Competiti-vidade
Ponto de
intervenção
Variável ambiental
Produtividade dos fatores
236
Ressalta-se a relevância da abordagem da análise de filiére como ferramenta de
suporte ao estudo do meio ambiente do cluster assim como das interrelações que
ocorrem dentro do mesmo.
Conclui-se que, somente com o desenvolvimento do cluster consegue-se a
competitividade do mesmo. E a competitividade é a produtividade com a qual os
recursos são desenvolvidos. Por recursos entende-se recursos humanos, capital e
ativos físicos. A ineficiência dos recursos é evidente na forma de utilização
incompleta de materiais e controles deficientes de processo, que resultam em
desperdícios, defeitos, refugos que são poluição. Portanto, fica comprovada a
hipótese de que a efetiva consideração da variável ambiental refletida em inovações
de produtos e processos pode levar o setor couro a competitividade global e
sustentada.
Em relação a trabalhos futuros, sugere-se:
• Pesquisar métodos, processos e produtos que aproximem a filière couro cada
vez mais da filière couro ideal;
• Pesquisar e desenvolver estratégias e planos de ação com vistas a
competitividade sustentada do cluster;
• Realizar um estudo aprofundado sobre custos, eficiência e produtividade
operacional;
• Pesquisar outras interrelações para a aplicação da abordagem de análise de
filière em engenharia de produção.
A realização de trabalhos com base nas sugestões propostas certamente tende a
enriquecer a pouca literatura existente sobre a análise de filiére, bem como poderá
vir a contribuir para que se formem mais convergências entre diferentes linhas
metodológicas.
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9.1 Instrumento de coleta de dados (GUIA DE ENTREVISTA)
1. Identificação da empresa 2. Produção – Suprimento de matéria-prima
Linhas de produto (tipo, origem), quantidade, custo
Produção própria de matéria-prima
Atividades em relação ao suprimento
Evolução do consumo (histórico, perspectivas, substituição por outros)
Problemas, dificuldades com relação a aquisição
Outros materiais utilizados
3. Processo produtivo Produtos, materiais, mercados
Evolução, perspectivas
Principais equipamentos
Histórico do processo de mecanização e perspectiva de sua intensificação
Política de estoques (matéria-prima, produto acabado)
Utilização de recursos naturais renováveis e não renováveis
Refugos e sub-produtos (quantidade, utilização, principais limitantes, dificuldades)
Custos de produção, Capital humano (quantidade, nível)
4. Pesquisa e Desenvolvimento Investimento, nº de pesquisadores, normalização e qualidade
5. Tecnologia Inovações, Processo de introdução de inovações na empresa, sist inf. Tec.
6. Atuação da FEPAM e outros órgãos fiscalizadores 7. Competitividade 8. Complementação – Comentários gerais
Fundação, marcos na evolução da empresa
Produtos fabricados, processos utilizados, situação inicial, modificações
(produto/processo), diversificações
Causas da evolução
• Mercado (novos clientes, novos produtos, novas matérias-primas)
• Técnicas (novas tecnologias, novos equipamentos, novos processos de
produção, novas matérias-primas, custos, outros)
• Matérias-primas (novas opções, custos, outros)
Faturamento Interno (RS, BR), Externo