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Leis ambientais, dinâmicas internas e conflitos socioambientais: relações entre
pescadores artesanais e agentes externos no Parque Nacional do Superagui1
Karina da Silva Coelho (PPGA/UFPR - Universidade Federal do Paraná)
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo discutir as relações envolvidas nos
processos de apropriação e atualização das leis ambientais pelos moradores das “ilhas”
localizadas dentro e no entorno do Parque Nacional do Superagui (Guaraqueçaba/PR)
em seu cotidiano. Pretendo pensar o conflito socioambiental gerado na criação do
Parque a partir de dois pontos. Primeiro, em como as leis ambientais são internamente
manejadas pelos moradores. E, segundo, descrever de que forma os moradores da região
se organizam politicamente frente às restrições de manejo através das Associações de
Moradores das “ilhas” e do Movimento dos Pescadores Artesanais do Paraná
(MOPEAR), cuja principal pauta política é a mobilização da identidade de pescador
artesanal em relação aos órgãos responsáveis pela execução das leis ambientais. Discuto
essa questão à luz da mobilização dos pescadores frente à elaboração do Plano de
Manejo do Parque Nacional do Superagui, para o qual o MOPEAR conta com o apoio
de diversos agentes externos. A proposta deste trabalho, portanto, é descrever e
complexificar os conflitos socioambientais estabelecidos na região a partir da legislação
ambiental, considerando o contexto interno vivenciado pelos moradores e as constantes
relações com agentes externos, principalmente na autoidentificação enquanto população
tradicional.
Palavras-chave: conflitos socioambientais; populações tradicionais; leis ambientais.
Introdução
O Parque Nacional do Superagui é uma Unidade de Conservação de Proteção
Integral criada no ano de 1989 em Guaraqueçaba. O município está localizado ao norte
da baía de Paranaguá e sua particular geografia compõe um território divido entre áreas
continentais e insulares, nas quais há uma extensa área de mangue, as enseadas de
Saquinho, Itaqui e Benito, as baías de Pinheiros e Laranjeiras, e quatro ilhas: Ilha Rasa,
Ilha das Peças, Ilha de Pinheiros e Ilha do Superagui2. Segundo dados do Censo 2010
3,
o município possui um total de 7.871 moradores, dos quais 34,09% (2.683 habitantes)
habitam a sede do município, e 65,91% (5.188 habitantes) habitam as áreas rurais,
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN. 2 A ilha do Superagui era uma península de Guaraqueçaba que separava a baía de Paranaguá no Paraná,
da baía de Cananéia em São Paulo. Em 1844 foi iniciada a abertura do canal do Varadouro com o
objetivo de ligar as duas baías a fim de facilitar a comunicação e os trânsitos comerciais entre os dois
estados. O Canal do Varadouro foi inaugurado em 1955 e desde então Superagui virou ilha. 3 Dados do IBGE disponíveis no site Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, disponível em:
http://atlabrasil.org.br/2013/perfil/guaraquecaba_pr. Visualizado em 20/05/2014.
2
residentes em mais de 20 vilas localizadas nas ilhas e áreas continentais banhadas pelas
baías de Laranjeiras e Pinheiros.
A partir da década de 1960 o batalhão da Polícia Ambiental Força Verde,
unidade da polícia militar do estado, passa a atuar em todo o litoral paranaense em
cumprimento à legislação ambiental brasileira. Na década de 1970 são criadas as
primeiras unidades de conservação da região, que junto à chegada das primeiras OnG’s
marcam o início dos “anos verdes”, descritos por Von Behr (1998) como o período em
que os ideais preservacionistas prevalecem em todo o litoral4. Atualmente
Guaraqueçaba é composta por um mosaico de unidades de conservação que integram
uma das maiores áreas remanescentes de Mata Atlântica brasileira: a Área de Proteção
Ambiental (APA) de Guaraqueçaba, o Parque Nacional do Superagui, a Estação
Ecológica de Guaraqueçaba, a Reserva Biológica Bom Jesus e três Reservas
Particulares do Patrimônio Natural (RPPN), Serra do Itaqui (pertencente à Sociedade de
Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental – SPVS), Salto Morato (pertencente
ao Grupo Boticário de Proteção à Natureza) e Sebuí (propriedade de Gaia Operadora de
Ecoturismo S/C Ltda).
A distribuição populacional e o mosaico de unidades de conservação em
Guaraqueçaba ilustram a presença de populações tradicionais5 nessas áreas protegidas.
O Parque Nacional do Superagui abrange toda a Ilha do Superagui e a Ilha de Pinheiros,
algumas áreas de Ilha das Peças, e uma parte continental do município de
Guaraqueçaba, estando dentro e no entorno imediato da unidade de conservação 23
vilas de pescadores, das quais oito foram incluídas dentro de seus limites territoriais
entre 1989 (ano de criação do Parque – decreto nº 97.688) e 1997 (ano de ampliação do
Parque – lei federal nº 9.513).
A proliferação de unidades de conservação, a consequente presença de gestores
das leis ambientais e a atuação intensa de OnGs foram determinantes para a
configuração atual das vilas, uma vez que as redes de relações6 estabelecidas entre os
4 Segundo Denardin et al (2009), até o ano de 2006 82,48% do território litorâneo paranaense estava
protegido a partir de ações preservacionistas , contabilizando 31 Unidades de Conservação (4 unidades
federais e 27 unidades estaduais). Entre os municípios com maior percentual de territórios litorâneos
protegidos estão Guaraqueçaba (98,76%), Guaratuba (98,47%) e Antonina (85,32%). 5 Ao falar sobre populações tradicionais faço uso da perspectiva de Manuela Carneiro da Cunha e Mauro
W. B. Almeida (2009:300), como uma categoria que trata de um processo de autoconstituição, apenas
possibilitado por sujeitos políticos em luta “para conquistar (prática e simbolicamente) uma identidade
pública conservacionista”. 6 No contexto da etnologia indígena, Gallois (2009) e colaboradores abordam, a partir de suas pesquisas
na região das Guianas, a noção de rede que me orienta aqui.
3
moradores foram adequadas a um novo contexto: a presença permanente de um órgão
gestor da unidade de conservação – além da Força Verde e do Instituto Ambiental do
Paraná (IAP) – fiscalizando o seu cotidiano e exercendo poder sobre seu território. No
contexto ao qual se refere essa pesquisa, o Parque Nacional do Superagui é
determinante na organização social das ilhas, pois embora já existissem leis ambientais
em execução na região, é a partir da criação do Parque que elas são oficializadas. Aos
olhos dos moradores de Barbados – vila em que se concentrou a maior parte do meu
trabalho de campo – foi a partir da “chegada do IBAMA” ou com “a chegada do
Parque” que a vida nas vilas mudou7. Portanto, é a partir do Parque ou, em relação a
ele, que se constituem regras relacionadas ao trabalho e às relações entre famílias e
vizinhos – dentro de cada vila e entre as vilas. Cotidianamente os moradores
estabelecem entre si leis internas e códigos de conduta sobre o manejo do território, no
caso, o mar, através de uma adequação local das leis ambientais. Nesse sentido, é
possível afirmar que há um agenciamento8 dessas leis por parte da população local,
demonstrando que, neste contexto, o conflito socioambiental é mais complexo que a
suposição de uma disputa entre dois lados antagônicos (população tradicional X unidade
de conservação).
Os chamados “anos verdes” também impulsionaram o interesse acadêmico na
região, que junto das OnGs ambientalistas aumentaram o número de pesquisas9 e
pesquisadores em atuação e em redes de relações com os moradores das vilas do
município. A partir da formação do Movimento dos Pescadores Artesanais do Paraná
(MOPEAR), e internamente nas vilas pela formalização das Associações de Moradores,
os moradores passaram a atuar politicamente, mobilizando a identidade de pescador
artesanal enquanto sujeitos de direito10
, através das leis e decretos relativos aos direitos
das populações tradicionais. Portanto, o contexto atual das vilas situadas dentro e no
entorno do Parque é permeado por redes de relações dos moradores entre si e dos
7 Ao se referirem à unidade de conservação ou às restrições impostas por ela, os moradores com muita
frequência se referenciam ao IBAMA, órgão responsável pela gestão das unidades de conservação até o
ano de 2007, quando por uma reestruturação interna no órgão, foi criado o Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio), atual responsável. 8 No sentido proposto por Sherry Ortner (2007), no qual a agência está relacionada à intencionalidade e
consciência do sujeito. 9 Segundo Kasseboehmer e Silva (2008), no período entre 1979 e 2005, foram realizadas 109 pesquisas
sobre a região, entre artigos, relatórios técnico-científicos, dissertações de mestrado e teses de doutorado.
Segundo os autores, tais pesquisas se concentram nas seguintes áreas: Fauna e Flora (40 pesquisas),
Socioeconomia, produção e sustentabilidade (19), Conflitos em áreas protegidas (12), Multidisciplinar
(12), Projetos e relatórios (9), Antropologia (7), Meio Físico (6), História e cultura (2) e Tecnologia (2). 10
ARRUTI (1997).
4
moradores com agentes externos (pesquisadores, agentes do Ministério Público e das
Defensorias Públicas da União e do Estado, representantes de Organizações não
Governamentais e deputados estaduais representantes da comissão de direitos humanos
da Assembleia Legislativa do Paraná). A fim de analisar essa ampla rede de relações,
damos destaque às negociações em torno da elaboração do Plano de Manejo, processo
em execução que se tornou a principal reivindicação do MOPEAR.
A proposta deste trabalho, portanto, é descrever e complexificar os conflitos
socioambientais estabelecidos na região a partir da legislação ambiental, considerando o
contexto interno vivenciado pelos moradores, e descrevendo, através das negociações
em torno da elaboração do Plano de Manejo, as relações com agentes externos. Essas
questões são procedentes da minha pesquisa de mestrado, ainda em fase de finalização,
portanto, apresento algumas reflexões suscitadas durante o trabalho de campo que estão
sendo aprofundadas na dissertação.
Dinâmicas internas nas “ilhas”
Realizei trabalho de campo mais intenso em Barbados, uma das vilas que está
dentro do Parque Nacional do Superagui e é a partir dela que faço considerações acerca
das dinâmicas internas na região. A história de formação das vilas da baía de Pinheiros
está diretamente ligada ao suíço Charles Perret-Gentil, que no ano de 1852 comprou um
terreno de 35.000ha, a Fazenda Superagui, de um casal de ingleses. O terreno abrangia
grande parte das vilas rurais do atual município de Guaraqueçaba banhadas pela baía de
Pinheiros: a península do Superagui, parte da Ilha das Peças e uma parte continental do
município, onde Perret-Gentil investiu na criação de uma colônia suíça particular,
chamada Colônia Superagui.
Foi durante o período da Colônia que se estabeleceu um intenso vínculo entre as
atuais vilas da região. A partir da compra de lotes de terra em diferentes lugares da baía
de Pinheiros, os colonos europeus e brasileiros constituíram suas famílias e pequenos
povoados. Em uma carta de William Michaud11
do ano de 1886 destinada à sua irmã
11
Willian Michaud foi um colono suíço que se mudou para a região de Superagui durante o período da
Colônia. Ele morou até o fim da sua vida na região que hoje compreende a ilha de Barbados e Saco do
Morro, e tem bastante destaque na bibliografia sobre a região por ter sido um importante articulador local.
Além de ser pintor, Michaud construiu a primeira escola da região onde lecionou por bastante tempo e
também foi quem ficou à frente da administração da Colônia junto com João Sigwalt. É bastante
lembrado por empreender inúmeras atividades relacionadas a carpintaria e conhecimentos de medicina
alternativa. Casou-se com uma nativa e ainda hoje é lembrado com muito orgulho por seus descendentes.
5
Nancy, que morava na Suíça, e publicada no trabalho de Lichtsteiner (2008), o pintor
define Superagui:
Superaguy, 20 de fevereiro 1886, Cara irmã [Nancy]
[...] Superaguy é uma região e não uma povoação ou aldeia, cada um habita
sobre o seu terreno, deveria antes dizer que Superaguy é uma aldeia de duas
milhas de comprimento. [...] Tradução livre da autora (LICHTSTEINER,
2008:55).
Portanto, as famílias foram se estabelecendo nesses diferentes lugares e
constituindo pequenos povoados que hoje correspondem as 23 “ilhas” ou
“comunidades” que circundam as baías de Laranjeiras e Pinheiros. Descrever Barbados
como “comunidade” possui um sentido político, sendo a categoria oficial no que diz
respeito à forma como os moradores se afirmam em relação aos turistas, pesquisadores e
ao órgão gestor do Parque Nacional do Superagui. Foi somente depois da criação do
Parque que as vilas formalizaram as Associações de Moradores, pois precisavam deste
registro para viabilizar reivindicações. Uma vez que a categoria “comunidade” está
relacionada ao processo de criação do Parque, podemos afirmar que seu uso está
relacionado a praticas e demandas sociais do grupo a partir da inserção do mesmo na
esfera política, ao propor atos de demanda pelo reconhecimento territorial12
.
A categoria “ilha” indica a maneira pela qual a população local – ou filhos13
da
região – se referem, entre si, ao seu território. Cada vila, insular ou continental, é
chamada pelos locais como “ilha”. Nesse sentido, ao fazer referência às dinâmicas
internas faço uso deste termo para indicar a territorialidade14
do grupo neste contexto
específico, não deixando de considerar que o sentido dado ao território pelos moradores
da região implica em territorialidades múltiplas, pela fluidez com que essas categorias
são mobilizadas nas diferentes redes de relações.
Barbados mantém relações cotidianas muito próximas com as outras ilhas, pois é
através das águas calmas do mar de dentro da Baía de Pinheiros que os moradores
transitam diariamente em suas embarcações para pescar, visitar parentes nas ilhas ou ir
até a sede do município. Antes das restrições ambientais, os moradores alternavam a
pesca e com as roças, fazendo uso do mar ou da terra em épocas específicas do ano e
segundo regras internamente estabelecidas. Com a interdição das roças, a pesca se
12
OLIVEIRA (1998). 13
Ao falar em filhos da região, me refiro à maneira como a população local define quem é nascido nas
vilas das baías de Pinheiros e Laranjeiras. Quem nasce em Barbados, por exemplo, é “filho de Barbados”. 14
Uso o termo territorialidade pensado por Little (2002:03), como um “esforço coletivo de um grupo para
ocupar, usar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-o assim
em seu ‘território’ ou homeland”.
6
tornou a única prática permitida aos moradores, mas com muitas restrições. A
fiscalização nas baías é feita pelo IAP e pela Polícia Ambiental Força Verde.
Frente às interdições os moradores estabeleceram novas regras quanto ao uso do
mar entre as famílias, pelo fato de existirem cada vez menos “bons pesqueiros” nas
baías da região. Segundo meus interlocutores, um pesqueiro é um local apropriado
principalmente para a pesca com linha, mas não exclusivamente. São seções do mar de
dentro em que a profundidade é maior e por esse motivo, os botos que se alimentam de
uma grande quantidade de peixes não se aproximam destas áreas, o que lhes rende mais
pescado. Na região da baía de Pinheiros existem atualmente três bons pesqueiros,
“Alagado”, “Chumbinho” e “Pedrinha”, que são reconhecidos pelo pescador através da
paisagem. Para identificar o local do Alagado, por exemplo, o pescador guia o barco até
uma área do mar de onde se vê logo a frente uma grande árvore branca que se destaca
na mata fechada. O local onde o barco deve estar faz um ângulo com o trapiche de
Barbados e com outro morro localizado próximo ao Saco do Morro – que junto à ilha de
Pinheiros, é representada politicamente pela associação de moradores de Barbados. É a
partir desses pontos específicos em terra que se reconhece um pesqueiro.
Foram poucos os momentos em que tive oportunidade de pescar, pois a pesca é
uma atividade majoritariamente masculina e as mulheres apenas pescam quando vão
junto com seus maridos. Em uma manhã fui convidada por uma família para pescar no
Alagado com linha. Levamos certo tempo para encontrar um lugar bom para parar o
barco, pois próximo ao pesqueiro estavam muitas redes de outros pescadores. O
descontentamento do pescador que nos guiava frente às redes deixadas por moradores
me chamou a atenção, as mesmas estavam muito próximas ao pesqueiro e muito
próximas umas das outras. Ele dizia “Tá vendo essas redes? A gente identifica cada
uma aqui, sabe de quem é. Essa aqui é de fulano, aquela é de cicrano15
. E aqui é assim,
se um pescador acha que sua rede não tem que estar aqui ou por outros
desentendimentos, tem pescador que vem aqui e corta a rede mesmo, não tá nem aí”.
Em seguida perguntei a ele, “mas corta por que?”. Ao que o pescador respondeu, “corta
pra mostrar que morador também manda aqui, não é só o IBAMA”. Essa fala
demonstra que os moradores também formulam e põem em prática determinadas leis.
Leis criadas a partir das leis ambientais e muitas vezes em acordo com elas, porém
adaptadas a seu modo de pensar as relações entre si e como são divididos os espaços
15
Por se tratar de um assunto delicado para os moradores, optei por não identificar seus nomes.
7
marítimos entre as famílias. Assim como enfatiza Duarte (2013:99) em sua pesquisa
sobre a região,
O mar, da mesma maneira que a mata, possui uma lógica de uso
compartilhado com regras sociais já incorporadas pelos moradores (sem a
necessidade de serem ainda hoje verbalizadas ou oficializadas em acordos)
para a otimização destes usos. Existem pontos familiares tradicionais de
pesca, sem haver, no entanto, quaisquer marcações físicas para defini-los. Os
pescadores da região respeitam tais regras não formalizadas como os antigos
pontos tradicionais de cerco de cada família dentro da baía.
Cada família sempre teve seus pontos de pesca e roça no território, que
abrangem o terreno onde fica sua casa, uma área na terra e uma área no mar, como se
esta fosse uma extensão daquela. São pontos tradicionais das famílias, como apontado
por Duarte (2013), estabelecidos entre os moradores ao longo de sua permanência na
ilha. Falo em “permanência” para apontar que deslocamentos entre as ilhas próximas
são comuns entre os moradores, motivados geralmente por casamento. Algumas pessoas
de outras ilhas se mudaram para Barbados porque casaram com algum filho de lá ou
porque os pais de seu/sua companheiro(a) se mudaram para lá.
Essa divisão de sessões do mar por família é decorrente da prática de pesca
através do cerco, atividade proibida no estado do Paraná através de portaria do
IBAMA16
. O cerco, também conhecido como cerco flutuante ou fixo é uma armadilha
de pesca que foi muito utilizada na região. Segundo moradores de Barbados, o cerco era
feito de ripas de taquara amarradas umas às outras formando um círculo que era fixado
no mar através de âncoras improvisadas. Tecnicamente o cerco funciona como uma
armadilha, pois os peixes entram através das taquaras e delas não conseguem sair, pois
contém redes que impedem sua saída17
. Por se tratar de uma armadilha fixa, o ideal é
que ela seja colocada em águas calmas, sem muita correnteza e em lugares profundos,
características da baía de Pinheiros. O cerco podia ficar na água no máximo três ou
quatro meses e possibilitava ao pescador escolher os peixes de maior tamanho. Os
menores eram devolvidos ao mar em uma atitude consciente dos moradores de que “se
pegássemos os peixes pequenos não íamos ter o que comer no próximo ano”.
16
A proibição do cerco, entre outros tipos de pesca e uso de apetrechos, foi estabelecida pela Portaria nº
12 do IBAMA, em 20 de março de 2003. Trata-se de uma portaria estadual e causa bastante
descontentamento entre os moradores, primeiro pela pesca com cerco possibilitar ao pescador coletar um
número maior de peixes e de uma forma mais fácil, e, segundo, pelo fato de ser permitida no estado de
São Paulo. Como Guaraqueçaba faz divisa com o Cananéia-SP, os paranaenses ficam indignados por
saber que seus vizinhos podem continuar essa prática ali, logo ao lado. 17
Trata-se de uma explicação bastante simplificada do cerco, que é minuciosamente descrita no trabalho
de Mussolini (1980), que estudou essa técnica de pesca trazida por japoneses ao litoral paulista.
8
A necessidade de fixar a armadilha demandou a divisão de seções do mar entre
as famílias. Portanto, a eficácia da pesca através do cerco dependia do acordo e respeito
mútuo entre as famílias, e segundo meu interlocutor os cercos deveriam ficar distantes
no mínimo 50 metros uns dos outros. Portanto, assim como os moradores delimitam
terrenos em terra, delimitaram espaços no mar e apesar da interdição desta técnica
específica de pesca, alguns acordos foram mantidos entre as famílias. A regra da
distância entre os cercos ainda é respeitada hoje, porém em relação às redes que são
fixadas no mar por algumas horas. Embora para essa técnica os pescadores não possuam
uma única possibilidade de local, pois dependem do fluxo das marés, meu interlocutor
afirmou, “não tem nem sentido eu não respeitar a rede do próximo, pois se eu coloco
uma rede minha perto da dele nós dois saímos prejudicados”.
Algumas regiões da baía de Pinheiros que possuem ótimos pesqueiros ficam
próximas aos antigos espaços de instalação do cerco de algumas famílias. Um
informante em Barbados me relatou algumas histórias envolvendo dois pontos de pesca
muito bons, que segundo ele pertencem exclusivamente a duas famílias distintas. As
famílias moram no mesmo lugar há muitos anos sem nunca terem se deslocado para
outras ilhas, o que aos olhos dos moradores, torna esse sentimento de posse ainda mais
legítimo, uma vez que costuma ser respeitado por todos. Apesar dos casais continuarem
morando no mesmo lugar, seus filhos partiram para outras ilhas e com frequência vão
até os pesqueiros de suas famílias para pescar. Parentes mais distantes também tem
permissão para pescar nessas áreas, porém há uma regra clara, na qual não familiares
não são bem vindos aos olhos dos “donos”, a menos quando convidados. Por se
tratarem de bons pesqueiros, todos querem pescar lá e em vários momentos durante o
trabalho de campo vi pescadores convidando alguns parentes dessa família para os
acompanharem até lá. Os convites eram sempre acompanhados de brincadeiras dos
pescadores que davam risada da situação embora sempre respeitassem esse acordo – o
que assinala um aspecto moral em respeitar esses acordos. Porém, um de meus
interlocutores relatou diversas brigas dessas famílias com pescadores que insistiram em
pescar nesses lugares mesmo sem estar acompanhados daqueles que têm permissão.
Algumas dessas brigas resultaram inclusive em denúncias aos órgãos gestores, que
segundo meu interlocutor, “foi um aviso pra mostrar que ele é o dono mesmo”.
Relatos como esse demonstram que as leis ambientais são internamente
manejadas pelos moradores para a criação de leis locais. Embora o embate principal se
dê entre os pescadores e os órgãos fiscalizadores – a respeito de onde e como é
9
permitido pescar; é relevante perceber que existem momentos em que os próprios
moradores ativam as fiscalizações quando motivados por desentendimentos internos, e
em casos extremos são responsáveis por denunciar práticas. Não afirmo com isso que
não há um senso de coletividade local contra os órgãos fiscalizadores, pelo contrário, o
mais comum durante o trabalho de campo foi presenciar e ouvir relatos de casos em que
os pescadores avisaram uns aos outros quando estavam ocorrendo fiscalizações, sempre
no sentido de um proteger o outro contra uma ameaça a que todos estão sujeitos. Além
das regras criadas pelos moradores quanto aos pesqueiros, existem também outras
regras que se referem ao uso da terra, definidas pelos moradores em articulação com a
legislação ambiental e causadoras de conflitos tão eloquentes como o que foi citado
anteriormente. A principal questão aqui é menos a adequação das leis ambientais ao
contexto local, mas apontar que há um ordenamento social pautado na moralidade entre
as famílias e entre vizinhos. Uma vez que há um descontentamento entre os moradores
por desobediência a essa ordem moral e que a situação não é resolvida a partir do
diálogo, as pessoas optam por articular a ameaça que as leis ambientais representam.
O contexto político nas “comunidades”
Na década de 1980 foram criadas as três principais unidades de conservação da
região, em 1982 a Estação Ecológica de Guaraqueçaba (decreto nº 87.222), em 1985 a
Área de Proteção Ambiental (APA) de Guaraqueçaba (decreto nº 90.833) e em 1989 o
Parque Nacional do Superagui (decreto nº 97.688). A criação e gestão das unidades de
conservação no Brasil estavam a cargo de diferentes órgãos até 1989 – o Instituto
Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), a Superintendência da Pesca
(SUDEPE), a Superintendência da Borracha (SUDHEVEA) e a Secretaria Especial de
Meio Ambiente (SEMA) – ano de criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis, o IBAMA. Atualmente o órgão gestor é o Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pela gestão de
310 unidades de conservação (nível federal) em todos os biomas brasileiros, das quais
137 são Unidades de Conservação de Proteção Integral e 173 são Unidades de
Conservação de Uso Sustentável18
.
18
Informações retiradas do site oficial do ICMBio (www.icmbio.gov.br). Apesar de constar a informação
detalhada de 137 UC de proteção integral e 173 UC de uso sustentável o que dá a soma de 310 unidades
de conservação, há no site a referência de que atualmente são 313 unidades.
10
No ano de 2000 o país sancionou a lei nº 9.985 instituindo o Sistema Nacional
de Unidades de Conservação (SNUC), com normas e critérios para a “criação,
implantação e gestão das unidades de conservação”. O SNUC se constitui de todas as
unidades de conservação brasileiras a nível federal, estadual e municipal. A lei do
SNUC é composta por 60 artigos que definem conceitos e as bases para a criação das
unidades e avança no sentido de definir a pesquisa sobre as regiões em que elas serão
implantadas e a consulta prévia à população a ser afetada. Porém, apesar de ser
considerada um avanço no que diz respeito aos direitos das populações tradicionais, a
lei do SNUC tem pontos fracos19
. Segundo Clayton Ferreira Lino (2004:10), ainda que
o Decreto de 2002 exija a consulta pública antes da criação de qualquer UC, há “falta de
clareza no tratamento de questões centrais de uma forma mais operativa, especialmente
no que envolve as questões fundiárias e sociais (em particular no que toca as populações
tradicionais e indígenas)”.
Uma importante definição da lei do SNUC é o plano de manejo, documento que
está em processo de elaboração no Parque Nacional do Superagui e sobre o qual damos
destaque para compreender a organização política dos moradores da região. Como
dispõe a lei em seu artigo 2º, parágrafo XVII, o plano de manejo é um
documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de
uma unidade de conservação, se estabelece o seu zoneamento e as normas
que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive
a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da unidade
(BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de Julho de 2000).
Na prática um plano de manejo representa um compêndio das leis internas de
cada unidade de conservação. O documento prevê uma série de estudos, pois é a partir
dele que se estabelecem as normas que definem o uso da área, o manejo dos recursos
naturais e o zoneamento, cujo objetivo, segundo o artigo 2º, parágrafo XVI, é a
“definição de setores ou zonas em uma unidade de conservação com objetivos de
manejo e normas específicos, com o propósito de proporcionar os meios e as condições
para que todos os objetivos da UC possam ser alcançados de forma harmônica e eficaz”.
Ou seja, sem essas definições a tarefa do órgão gestor se torna difícil, principalmente na
relação com os moradores. Talvez por isso a lei do SNUC defina que o plano de manejo
19
Inclusive destacados por Clayton Ferreira Lino, na época presidente do Conselho Nacional da Reserva
da Biosfera da Mata Atlântica e coordenador da rede Brasileira de Reservas da Biosfera, no Caderno nº
18 da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica.
11
deve ser elaborado em um prazo máximo de cinco anos a partir da data de criação da
unidade de conservação.
A resolução dos conflitos socioambientais na região do Superagui é ainda mais
complexa pelo fato de que, em 24 anos de gestão da UC, nenhum plano de manejo foi
elaborado. A falta de normas que definam o uso da área, o manejo dos recursos naturais
e o zoneamento dificultam a relação dos moradores com o órgão gestor. Com a
implantação das unidades de conservação, os moradores da região precisaram se
organizar politicamente frente às restrições de manejo e à indefinição do zoneamento,
formalizando em cartório Associações de Moradores nas ilhas. E assim, dando
condições para as mesmas se organizarem politicamente em comunidades, o que
auxiliou a articulação interna das ilhas a partir da representatividade que as associações
de moradores exercem em relação a assuntos externos.
Outra forma de organização é o Movimento dos Pescadores Artesanais do
Paraná (MOPEAR) formado no ano de 2008 por alguns de pescadores do Superagui e
do município de Pontal do Paraná. A formação do movimento teve o apoio da Rede
Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais, uma articulação entre segmentos de
populações tradicionais do Paraná que atua junto a grupos que passam por conflitos
semelhantes – territoriais, socioambientais e privação de direitos. A Rede promove
fóruns e seminários para que os grupos fortaleçam uns aos outros e participem dos
encontros ajudando na formação política de novos movimentos. Foi através do apoio de
outros segmentos já consolidados – como os faxinalenses – que o MOPEAR se
constituiu. Na cartilha do movimento, elaborada através do Fundo Brasil de Direitos
Humanos (FBDH), os representantes afirmam que as discussões que orientam suas lutas
e o conhecimento acerca das leis que amparam seus direitos foram conhecidas através
das oficinas de Operadores de Direito, propostas pela equipe deste projeto do FBDH.
Segundo a cartilha, o Movimento atua em duas linhas principais. Uma delas é a defesa
dos direitos das populações que se autoidentificam como povos tradicionais, cujo
território foi “transformado em unidades de conservação”. E a outra se concentra em
estimular as comunidades para “a luta pela recuperação dos territórios tradicionalmente
ocupados, hoje situados dentro do Parque”.
Apesar de recente, o MOPEAR está bastante articulado com vários órgãos
públicos, OnGs, projetos acadêmicos e sociais. Em dezembro de 2013 o Movimento
12
convocou uma audiência pública intitulada “Encontro sobre a violação de direitos
humanos provocados pelos Parques Nacionais em territórios de comunidades caiçaras e
pescadores e pescadoras artesanais no Paraná”, realizada na Barra do Superagui,
comunidade em que está localizada a sede do ICMBio no Parque. O objetivo era
apresentar ao ICMBio sua apreciação sobre os estudos preliminares do Plano de Manejo
– que está sendo elaborado por uma empresa de consultoria contratada – que foram
enviados às comunidades no mês de setembro de 2013.
Junto ao ofício nº 050/2013 – PARNA Superagui/DIREP/ICMBio, direcionada
“aos comunitários do entorno e de dentro” foram entregues dois “produtos” do
Diagnóstico do Plano de Manejo do Parque Nacional do Superagui (PNS): o “Relatório
Técnico Preliminar Socioeconômico e Histórico-Cultural do PNS” e o “Relatório
Técnico contendo o diagnóstico da situação e proposições do Uso Público para o PNS”.
Segundo o ofício, as comunidades teriam 30 dias para analisar e fazer considerações
acerca dos estudos20
. A partir daí que os pescadores, mobilizados através do Movimento
dos Pescadores Artesanais no Paraná (MOPEAR) e do Movimento dos Pescadores e
Pescadoras do Brasil (MPP) procuraram pesquisadores com quem já tinham contato
para ajudá-los na leitura e análise dos produtos, pois os mesmos possuem um
vocabulário técnico de difícil compreensão para quem não está adaptado a termos
acadêmicos e jurídicos21
.
Os representantes do MOPEAR solicitaram a estes pesquisadores um parecer
técnico para entregar ao ICMBio, confiando nas considerações elaboradas pelos
mesmos, uma vez que todos têm experiência em campo na região. É necessário dar
ênfase à confiança que o movimento deposita nesses pesquisadores, demonstrando a
efetividade da rede de relações entre moradores das ilhas e agentes externos. Motivados
por diferentes lideranças políticas da região (todas integrantes do MOPEAR), 19
pesquisadores de diversas áreas do conhecimento entraram em contato uns com os
outros para elaborar um documento técnico que auxiliasse os pescadores em sua luta
20
Contextualizando brevemente, o Relatório Técnico Preliminar Socioeconômico e Histórico Cultural do
PNS traz um diagnóstico das comunidades situadas dentro e no entorno do Parque com o objetivo de
revelar aspectos do histórico de ocupação, patrimônio cultural, aspectos demográficos e econômicos,
infraestrutura, domicílios, organização social e especulação imobiliária – elaborado por uma engenheira
agrônoma e um economista. E o Estudo para o Uso Público e Turismo no PNS traz um diagnóstico do uso
público, das ofertas turísticas, das potencialidades de cada comunidade, informações sobre visitantes do
Parque e da região e propostas de uso e turismo – elaborado por três turismólogos. 21
Pude perceber durante a reunião que os representantes de ambos os movimentos não tem apenas
compreensão do vocabulário jurídico, mas total domínio das leis e decretos que dizem respeito a sua
pauta política. Nesse sentido cabe pensar que o movimento apesar de possuir um domínio das leis nas
suas falas, não o possui no âmbito textual.
13
política. Também fui convidada a elaborar o parecer e participei da escrita do
documento. Com o parecer pronto e apreciado pelo Movimento, as lideranças
organizaram a audiência pública dividindo-a em dois momentos. O primeiro foi
destinado à exposição dos problemas enfrentados pela população local desde a criação
das unidades de conservação na região, na mesa “Conflitos Territoriais e Direitos
Étnicos: Olhar das comunidades tradicionais pesqueiras atingidas pelo Parque Nacional
de Superagui e Parque da Ilha dos Currais”. O segundo, destinado ao debate entre
MOPEAR e MPP com o ICMBio, na mesa “A posição do ICMBio face os direitos
territoriais de povos e comunidades tradicionais no PNS”. Foram convidados a
participar do encontro, além dos gestores do Parque, o Coordenador da regional Sul do
ICMBio, movimentos sociais, Instituto e Universidade Federal do Paraná, Comissão de
Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Paraná, Comissão de Direitos
Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Defensoria Pública, Ministério Público
Estadual, Secretaria da Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, Rede
Puxirão de Povos e Comunidades Tradicionais.
O objetivo da reunião foi fazer com que o ICMBio ouvisse as reivindicações dos
pescadores por um plano de manejo efetivamente participativo, com respaldo em
bibliografias sobre a região e conhecimento acerca das leis ambientais mas,
principalmente, das leis que reconhecem os direitos dos moradores enquanto população
tradicional.
Antes de iniciar a reunião – no dia seis de dezembro de 2013 – na Barra do
Superagui, os moradores de uma das comunidades organizou uma passeata onde cerca
de 30 pessoas carregavam faixas e bradavam o grito de luta do Movimento, “Na terra e
no mar nós vamos lutar!” 22
. As faixas e cartazes faziam referência às restrições
impostas pela unidade de conservação e à maneira como o Plano de Manejo vem sendo
elaborado, como podemos ver em algumas: “Comunidade tradicional de Tibicanga.
Como vamos pescar no asfalto? Precisamos de Terra... Precisamos de Mar... O Plano de
Manejo tem que mudar!”; “Chega de repressão. Só queremos JUSTIÇA! Por uma
verdadeira participação dos pescadores (as) artesanais no plano de manejo de
Superagui”; “Opressão: até quando?”; “Fora plano de manejo. Queremos o nosso,
queremos participar!”; “Mais uma cultura que tiraram de nós (roça)”.
22
A reunião foi filmada e editada a pedidos do Mopear e está disponível para visualização em:
https://www.youtube.com/watch?v=XHHN0e6SHCI.
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O evento teve apoio da população local, mas pela dificuldade no deslocamento
até a Barra do Superagui, o público teve quase em mesma quantidade moradores e
agentes externos. A reunião começou com uma “mística” – inspirada no Movimento
sem Terra - na qual foi encenada a vida dos pescadores antes e depois da criação do
PNS. A encenação deu ênfase ao ponto de vista da população local sobre a criação do
Parque Nacional do Superagui como algo totalmente imposto e sem consulta,
enfatizando também a ação violenta dos órgãos fiscalizadores.
A mesa destinada ao olhar das comunidades sobre os conflitos territoriais e
direitos étnicos teve o relato de alguns moradores, de representantes de outros
segmentos dos povos tradicionais, de um dos pesquisadores responsáveis pelo parecer
técnico e de um advogado popular que exerce sua função junto à Rede Puxirão. Na fala
do representante faxinalense fica clara a proposta de articulação em rede (através da
Rede Puxirão) quando ele afirma que “quando é momento de luta eu não levo apenas a
pauta do meu segmento, mas a pauta de todos os povos tradicionais!”. Apresento
também a fala de uma representante dos Ilhéus do Rio Paraná em apoio à causa dos
pescadores artesanais:
Aonde tá o direitos humanos, aonde tá o direito de comunidades
tradicionais? Será que alguém competente tem conhecimento da
OIT 169? Por favor, vocês autoridades competentes, eu acho
que tá faltando conhecimento da OIT 169, porque nós já temos
o conhecimento. [...] Eu vou deixar aqui um pedido como
brasileira, como patriota que sou: direitos humanos, se é que
existe, se manifestem a nosso favor, porque aqui a coisa tá
abusiva e nós não queremos participar daquela selva de pedra
que a gente vê em São Paulo. [...] Deixem-nos viver. Eu só peço
os nossos direitos como seres humanos. [...] hoje criam parques
nacionais como se não existissem famílias lá dentro [...] Nós só
queremos um pedaço de terra, com um pouco de água para nós
viver.
A segunda mesa foi destinada a resposta do ICMBio frente às falas em defesa
dos pescadores. O chefe do Parque e o coordenador da regional Sul do órgão gestor
apresentaram falas negativas em relação às demandas apresentadas pelo MOPEAR, e
apesar da insistência das lideranças em não terminar o encontro até que o órgão gestor
acatasse todas as suas reivindicações, isso não aconteceu. Entraram para o debate
somando forças a causa dos pescadores, outros órgãos públicos, pesquisadores e dois
deputados federais membros da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia
Legislativa do Paraná. A Defensoria Pública da União afirmou que se fosse preciso
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viabilizaria uma medida judicial para que as violações aos direitos humanos que
ocorrem na região cessassem imediatamente. E assim como a Defensoria, os
representantes das outras instituições apontaram o não cumprimento, por parte do
ICMBio, das leis do SNUC, da Lei da Mata Atlântica, do Decreto nº 6.040 e da
Convenção 169 da OIT. Por parte do coordenador regional do órgão gestor foi firmado
o compromisso de que o parecer técnico seria entregue aos seus superiores dentro do
ICMBio e que os gestores locais do órgão se responsabilizariam em dar continuidade ao
diálogo.
Em vias de terminar o encontro e sem uma resposta positiva do órgão gestor, foi
proposto que se criasse um grupo de trabalho para acompanhar toda a elaboração do
plano de manejo com representantes dessas diferentes esferas, e principalmente
representantes do ICMBio. Em fevereiro de 2014 foi realizada a primeira reunião do
grupo de discussão. Dentre os integrantes estavam as lideranças do MOPEAR, alguns
dos pesquisadores que assinaram o parecer técnico, os deputados ligados à Comissão de
Direitos Humanos da ALEP, representantes do CAOPDH do MP estadual e da
defensoria pública estadual e da união. Apesar de firmado o compromisso, nenhum dos
gestores do Parque compareceu à reunião que foi marcada com bastante antecedência.
O grupo já se encontrou duas vezes para fazer um balanço da atuação do
ICMBio após a entrega do parecer técnico e propôs alguns objetivos a curto, médio e
longo prazo, estabelecendo aos diferentes grupos (pesquisadores, MPE, DPE, DPU,
deputados) diferentes tarefas. Aos pesquisadores foi incumbida a tarefa de aprofundar
os estudos sobre as práticas que o grupo assinala como tradicionais. Foi também
proposta uma parceria entre as Defensorias Públicas para questionar as autuações do
ICMBio, do IBAMA, do IAP e da Polícia Ambiental. Para ambas as defensorias e para
o MPE ficou combinado o questionamento da Instrução Normativa nº 29 – lei que
define algumas regras sobre a pesca industrial e a pesca artesanal; e o MOPEAR ficou
responsável pelo “trabalho de base”, ou seja, mobilizar os moradores da região quanto
à importância de sua participação nas discussões e na luta em relação à elaboração do
Plano de Manejo.
A audiência pública realizada na Barra do Superagui e a consolidação de um
grupo para discutir o processo de elaboração do plano de manejo estabilizam, e em
alguma medida, atualizam as redes de relações entre os moradores e os agentes
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externos. Nesse sentido, a presença de diversos agentes, além de movimentar o
cotidiano das comunidades, proporciona a incorporação de novo vocabulário, de novos
conceitos e categorias identitárias por parte dos moradores. A escrita do parecer técnico
pelos pesquisadores e a fala de representantes do Ministério Público, da Defensoria
Pública e dos deputados estaduais durante a audiência pública e todo apoio oferecido à
causa, fortaleceram as relações entre moradores e alguns agentes externos. A criação do
MOPEAR através do apoio da Rede Puxirão também traz questões e formas de atuação
diferenciadas. A maneira como a audiência foi estruturada através da mística, dos
cantos, a constante repetição da frase que representa a luta do movimento “Na terra e no
mar nós vamos lutar!”, diz muito sobre a forma de atuação dos segmentos que fazem
parte da Rede Puxirão. Não afirmo com isso que essas idéias são impostas aos
moradores e de que os mesmos não teriam condições de criar um movimento e atuar
politicamente frente ao órgão gestor. Pelo contrário. Essa relação com agentes externos
só é possível a partir da agência dos moradores, através das suas articulações entre si e
em relação a quem é de fora. Essas relações apenas possibilitam novas configurações,
não as definem.
Considerações finais
Ao longo do meu trabalho de campo em Barbados, duas questões sempre
chamaram a atenção. A primeira está relacionada às dinâmicas internas estabelecidas
entre os moradores em função das interdições ambientais. Por se tratar de uma região
com um contexto ambiental específico são muitas as pesquisas em diferentes áreas do
conhecimento que refletem uma relação antagônica entre as populações tradicionais e as
unidades de conservação. No entanto, o trabalho de campo demonstrou que diferente
das imagens criadas sobre a região, que refletem certo isolamento e uma vitimização das
populações residentes, a relação entre os moradores e o ICMBio é muito mais complexa
e permeada por inúmeros conflitos internos e anteriores entre os moradores. Há muito
mais agência que uma suposta vitimização. Apesar de a população ser refém de uma
ameaça constante ao seu modo de vida, protagonizada pelas leis ambientais, ou pelo
“Ibama”, ela tem intencionalidade e uma maneira local de viver frente às interdições.
Portanto, não podemos dizer que as leis ambientais vêm de fora e permanecem na
região sem nenhum agenciamento por parte da população local.
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A segunda questão é referente à constante presença de agentes externos nas
vilas. Em todas as minhas idas a Barbados ou às outras vilas sempre encontrei algum
pesquisador ou produtor cultural, ou soube de uma visita de representantes do
Ministério Público. O assédio por parte de pesquisadores aos moradores da região é
tanto, que algumas vilas têm se fechado à sua presença. Em Barbados encontrei
dificuldades para conversar com alguns moradores e muitas vezes fui questionada sobre
qual “projeto” iria desenvolver na comunidade. Ao mesmo tempo, muitos os aceitam e
estão sempre dispostos a ajudar. Nesse sentido vale pensar também nos agenciamentos
decorrentes dessas relações com agentes externos, pois ao mesmo tempo em que alguns
moradores estão fartos pelo fato dessas pessoas não acrescentarem às comunidades,
outros e, principalmente as lideranças, veem positivamente a presença destes agentes. A
audiência pública organizada pelo Movimento descreve algumas dessas relações
conectadas à mobilização da identidade de pescador artesanal. A formação do
MOPEAR e a elaboração do parecer técnico apresentado ao ICMBio refletem a
dinâmica dessas redes de relações. No entanto, além da mobilização da identidade de
pescador artesanal a presença de agentes externos na região também é permeada por
vários projetos assistencialistas que influem bastante sobre o cotidiano dos moradores.
Ao falar em agência me refiro ao conceito como é pensado por Sherry Ortner
(2007), como algo “sempre negociado interativamente” (2007:74). Ao destacar a
agência de indivíduos ou grupos a autora afirma que o conceito de agência tem duas
faces, uma voltada à intencionalidade e à ideia de perseguir projetos (que são definidos
culturalmente); e a outra, relacionada ao poder e ao fato de agir em relações de
desigualdade, assimetria e de forças sociais em jogo, ou seja, exercer poder sobre
(dominação) ou ser contra o poder (resistência). Ao refletir sobre o contexto aqui
apresentado, os moradores da região do Superagui possuem agência em ambos os
sentidos. Por estarem sujeitos às interdições das leis ambientais e ao mesmo tempo
articularem essas leis para ordenar o uso do seu território internamente – entre si – os
moradores estão em uma relação de poder (desigual) com os órgãos fiscalizadores, mas
não apenas. O seu ato de internamente manejar essas leis a um modo local indica, ao
mesmo tempo, uma forma de resistência, e também uma agência de projetos, no sentido
em que os indivíduos agem com intenção de perseguir objetivos e ir além “de suas
próprias estruturas de desigualdade” (:68). Segundo a autora essas duas faces da agência
se misturam, se entrelaçam em uma relação (:58). Do mesmo modo, na organização
política e na relação com agentes externos, a agência dos moradores está na articulação
18
interna e também na articulação com pessoas de fora para mobilizar a identidade de
pescador artesanal.
Ao descrever as relações envolvidas nos conflitos socioambientais tivemos como
objetivo complexificar e dissolver as imagens que apenas vitimizam a região e não
levam em conta a agência dos moradores nesses conflitos. Existem outras questões
envolvidas no conflito que estão relacionadas à diversidade dos agentes externos em
atuação na região e que serão apresentadas na dissertação.
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