Pesquisa e Produção de Conhecikmento

16
 Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 282-297. jul./dez. 2007  Pesquisa e produção do conhecimento em Serviço Social  (Research and knowledge production in Social Work) José Fernando Siqueira da Silva *  Resumo – O ensaio teórico apresentado tece comentários sobre a pesquisa e a produção do conhecimento em Serviço Social a partir de Marx e de sua tradição. Oferece, ainda, uma retomada crítica do legado marxista nessa profissão, ressaltando a pertinência e os cuidados necessários para uma interlocução profícua e propositiva entre a produção marxiana (como teoria social crítica) e o Serviço Social (como uma das profissões que atua com as múltiplas expressões da “questão social”). A partir dessas considerações, são indicados alguns aspectos importantes para a produção do conhecimento no Serviço Social, suas particularidades e sua utilidade para a formação e para a intervenção profissional do assistente social. Palavras-chave –  Pesquisa. Serviço Social. Produção do conhecimento Abstract – This essay is about research and production of knowledge in Social Service from a Marxist perspective and its tradition. It also propose the a critical revisit of the Marxist legacy in the profession, emphasizing the pertinence and necessary concern for a productive dialogue  between the Marxian production (as a social theory) and Social Service (as one of the  professions witch deals with the multiple expressions of the social issues). Based on these considerations some important aspects are indicated for t he production of knowledge in Social Service, its specificities and utility for the education and professional intervention of the social worker. Key words – Research. Social Service. Production of knowledge. Considerações introdutórias O ensaio teórico aqui apresentado trata da interlocução estabelecida entre o Serviço Social, a produção marxiana e a sua tradição, indicando aspectos relevantes para a pesquisa e a produção de conhecimentos em nível de Serviço Social. Elucida, sinteticamente, o debate travado entre eles a partir do chamado “processo de reconceituação” (NETTO, 1991), apontando os limites e as possibilidades desta aproximação. Embora o Serviço Social e a  produção teórica oriunda de Marx e de sua tradição componham instâncias diferentes e sejam antagônicos nos seus fundamentos de origem, a relação entre eles é viável, necessária e  proveitosa. A pesquisa permanente e a produção de conhecimentos em Serviço Social são °  Artigo recebido em 30.06.2007. Aprovado em 26.11.2007. *  Professor da Universidade Estadual Paulis ta Jú lio de Mesquita Filho (UNESP), São Pau lo/SP, Brasil. Doutor em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Transcript of Pesquisa e Produção de Conhecikmento

  • Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 282-297. jul./dez. 2007

    Pesquisa e produo do conhecimento em Servio Social

    (Research and knowledge production in Social Work)

    Jos Fernando Siqueira da Silva*

    Resumo O ensaio terico apresentado tece comentrios sobre a pesquisa e a produo do conhecimento em Servio Social a partir de Marx e de sua tradio. Oferece, ainda, uma retomada crtica do legado marxista nessa profisso, ressaltando a pertinncia e os cuidados necessrios para uma interlocuo profcua e propositiva entre a produo marxiana (como teoria social crtica) e o Servio Social (como uma das profisses que atua com as mltiplas expresses da questo social). A partir dessas consideraes, so indicados alguns aspectos importantes para a produo do conhecimento no Servio Social, suas particularidades e sua utilidade para a formao e para a interveno profissional do assistente social. Palavras-chave Pesquisa. Servio Social. Produo do conhecimento Abstract This essay is about research and production of knowledge in Social Service from a Marxist perspective and its tradition. It also propose the a critical revisit of the Marxist legacy in the profession, emphasizing the pertinence and necessary concern for a productive dialogue between the Marxian production (as a social theory) and Social Service (as one of the professions witch deals with the multiple expressions of the social issues). Based on these considerations some important aspects are indicated for the production of knowledge in Social Service, its specificities and utility for the education and professional intervention of the social worker. Key words Research. Social Service. Production of knowledge.

    Consideraes introdutrias

    O ensaio terico aqui apresentado trata da interlocuo estabelecida entre o Servio

    Social, a produo marxiana e a sua tradio, indicando aspectos relevantes para a pesquisa e

    a produo de conhecimentos em nvel de Servio Social. Elucida, sinteticamente, o debate

    travado entre eles a partir do chamado processo de reconceituao (NETTO, 1991),

    apontando os limites e as possibilidades desta aproximao. Embora o Servio Social e a

    produo terica oriunda de Marx e de sua tradio componham instncias diferentes e sejam

    antagnicos nos seus fundamentos de origem, a relao entre eles vivel, necessria e

    proveitosa. A pesquisa permanente e a produo de conhecimentos em Servio Social so Artigo recebido em 30.06.2007. Aprovado em 26.11.2007. * Professor da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP), So Paulo/SP, Brasil. Doutor em Servio Social pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo.

  • Silva, J. F. S. Pesquisa e produo do conhecimento em Servio Social

    Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 282-297. jul./dez. 2007

    283

    decisivas para a sobrevivncia desta profisso na contemporaneidade. Mais do que isso,

    condio bsica para sua insero crtica na diviso social e tcnica do trabalho

    (IAMAMOTO; CARVALHO, 1985) e para a qualificao dos assistentes sociais que

    cotidianamente lidam com mltiplas e complexas manifestaes da chamada questo

    social.1 importante perquirir esta trama em um setor das Cincias Humanas e Sociais

    Aplicadas, prematuramente considerado como unicamente interventivo e, tambm por isso,

    de pequena relevncia cientfica.

    1 Marcos e marcas do legado marxista no Servio Social brasileiro

    Em toda a cincia o difcil o comeo

    (MARX apud FERNANDES, org., 1989, p. 9).

    Os primeiros contatos entre o Servio Social e a tradio marxista ocorreram ao longo

    do processo de reconceituao, ou seja, a partir de um movimento de cunho latino-

    americano, de carter necessariamente sincrtico e multifacetado, que suscitou um intenso

    debate terico-metodolgico entre os assistentes sociais e consumiu uma dcada (de 1965 a

    1975 no exatamente). Esse processo manifestou, no seu interior, tendncias diversas

    predominantemente denominadas por Netto (1991) como modernizadoras (de orientao

    funcionalista CBCISS, 1989), de reatualizao do conservadorismo (de inspirao

    fenomenolgica ALMEIDA, 1986) e com inteno de ruptura (de tendncia marxista

    SANTOS, 1983), todas elas comprometidas com a discusso e a formulao de alternativas

    terico-prticas em relao ao Servio Social tradicional.2 Vale registrar que este intenso

    debate foi particularmente realizado sob ditaduras militares implantadas na Amrica Latina a

    partir dos anos sessenta do sculo XX, informao esta em nada desprezvel particularmente

    para os grupos de orientao marxista. Muitos estudantes e profissionais j formados em

    Servio Social, a partir da segunda metade dos anos 60 do sculo XX, estabeleceram seus

    primeiros contatos com o marxismo atravs dos movimentos sociais e da resistncia

    ditadura militar.

    1 A questo social aqui entendida como um complexo social que faz parte da natureza da propriedade privada

    no capitalismo, ou seja, manifestao direta da apropriao privada da produo social e da lei geral da acumulao capitalista (MARX, 1984, p. 187). Sobre esta discusso, no mbito do Servio Social, consultar o debate apresentado por Netto, Iamamoto, Yazbek e Pereira, em ABEPSS/Temporalis (2001).

    2 Chama-se Servio Social tradicional o conjunto de pressupostos doutrinrios e interventivos, sustentados na Doutrina Social da Igreja, que orientaram o Servio Social desde o surgimento da primeira escola brasileira em So Paulo (1936).

  • Silva, J. F. S. Pesquisa e produo do conhecimento em Servio Social

    Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 282-297. jul./dez. 2007

    284

    Mesmo considerando o carter sincrtico destacado anteriormente, os estudos de Netto

    (1991) mostram que as inmeras simplificaes geradas por leituras equivocadas da profisso,

    bem como as diferentes orientaes tericas, freqentemente eclticas, que tambm

    subsidiaram as diferentes concepes formadas antes, durante e depois do processo de

    reconceituao, preciso reconhecer que o Servio Social no sobreviveria como profisso

    sem essa intensa reviso terico-prtica. Como j indicava Netto (1981, p. 75) em um de seus

    primeiros balanos crticos sobre a crtica conservadora ao processo de reconceituao,

    desvelar a inpcia da crtica conservadora reveste-se de um duplo sentido: resguardar a profisso dos danos realmente contidos na tendncia restauradora e, ao mesmo tempo, acumular o flego analtico de que o Servio Social carecer, dado um novo movimento de afluxo das foras comprometidas com a revoluo social latino-americana, para transcender os seus constrangimentos institucionais.

    As primeiras influncias do marxismo no Servio Social adoadas pela autocracia

    burguesa e pela sua expresso poltica no regime militar brasileiro de 1964 (NETTO, 1992) ,

    vo adquirir maior visibilidade durante o processo de abertura democrtica lenta e gradual a

    partir da segunda metade dos anos 70 e incio dos anos 80 do sculo XX. Alm da pobreza

    terica, tambm subsidiada pelo clima poltico repressivo da poca, preciso salientar os

    inmeros rudos advindos de um marxismo sem Marx, de forte carter pragmtico e

    reproduzido em manuais populares e partidrios. Nesse contexto, o trip que sustenta a teoria

    marxiana foi simplificado por esquemas de manuais: a dialtica materialista compreendida

    como um jogo mecnico e formal entre a tese, a anttese e a sntese e a categoria da totalidade

    esvaziada por um tipo de epistemologismo e de formalismo metodolgico;3 a teoria valor

    trabalho reivindicada para sustentar uma determinao mecnica da economia, reduzindo a

    noo de condies de existncia e sua relativa prioridade em ltima instncia a um

    domnio da economia no seu sentido estrito (economicismo); a perspectiva da revoluo no

    apanhada na sua complexidade, ou seja, como uma possibilidade histrica potencializada pela

    luta de classes e por condies histricas determinadas. A revoluo, ento, aparece como

    uma tarefa do Servio Social e de um conjunto de profissionais messianicamente

    comprometidos com a capacitao, com a organizao das massas e com a

    transformao da sociedade (SANTOS, 1983). Expressa-se, aqui, uma outra importante

    confuso tambm gerada pelo clima de abertura poltica e de luta pela redemocratizao do

    Brasil: a identificao entre emancipao poltica e emancipao humana, caracterstica esta 3 Certamente marcado pela aplicao terica e pelo pragmatismo prtico e por uma identificao entre

    prtica poltico-partidria e prtica profissional (identificando prxis social e prxis profissional).

  • Silva, J. F. S. Pesquisa e produo do conhecimento em Servio Social

    Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 282-297. jul./dez. 2007

    285

    ainda presente, sob outros desafios scio-histricos, na contemporaneidade. Como j

    indicava o jovem Marx (2005, p. 42):

    A liberdade do egosta e o reconhecimento desta liberdade so a expresso do reconhecimento do movimento desenfreado dos elementos espirituais e materiais que formam seu contedo de vida. Por conseguinte, o homem no se libertou da religio; obteve, isto sim, liberdade religiosa. No se libertou da propriedade, obteve a liberdade de propriedade. No se libertou do egosmo da indstria, obteve a liberdade industrial. [...] O homem real s reconhecido sob forma de indivduo egosta; e o homem verdadeiro, somente sob a forma de citoyen abstrato. [...] a emancipao poltica a reduo do homem, de um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivduo egosta independente e, de outro, a cidado do estado, a pessoa moral (MARX, 2005a, p. 41-42; grifos do autor).

    O primeiro estudo em nvel de Servio Social mais diretamente fundamentado nas

    contribuies marxianas foi publicado na primeira metade dos anos 80 do sculo XX. Trata-se

    da obra Relaes Sociais e Servio Social no Brasil esboo de uma interpretao histrico-

    metodolgica (1985), de autoria da assistente social e professora Marilda Vilela Iamamoto,

    em parceria com Raul de Carvalho. A grande contribuio desta importante obra est na

    releitura acerca da origem e da institucionalizao do Servio Social no Brasil, sustentadas na

    proposta urbano-industrial impulsionada pelo Estado brasileiro a partir do governo de

    Getlio Vargas (1930), na modernizao do trabalho leigo catlico e no aprofundamento da

    questo social oriunda das contradies entre capital e trabalho intensificadas em todo

    territrio nacional tendo por base o legado deixado pela economia agrrio-exportadora.

    Iamamoto situa e explica o Servio Social como uma profisso inserida na diviso social e

    tcnica do mundo do trabalho, cumprindo uma funo especfica de gerenciamento de

    projetos e programas de cunho social comprometidos com a administrao das desigualdades

    sociais. A autora tambm chama a ateno para o carter controlador do exerccio profissional

    do assistente social, administrando mltiplos conflitos originados na relao capital-trabalho

    (funo historicamente atribuda profisso). Por outro lado, o estudo no necessariamente

    identifica o exerccio profissional como uma ao meramente paliativa e reprodutora da

    ordem burguesa unicamente confinada aos interesses do capital (embora eles sejam

    insuprimveis), mas indica possibilidades objetivas (concretas e historicamente dadas) para

    potencializar um outro tipo de Servio Social.

    [...] Responde tanto a demandas do capital como do trabalho e s pode fortalecer um ou outro plo pela mediao de seu oposto. Participa tanto dos mecanismos de dominao e explorao como, ao mesmo tempo e pela mesma atividade, da resposta s necessidades de sobrevivncia da classe

  • Silva, J. F. S. Pesquisa e produo do conhecimento em Servio Social

    Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 282-297. jul./dez. 2007

    286

    trabalhadora e da reproduo do antagonismo nesses interesses sociais, reforando as contradies que constituem o mvel bsico da histria. A partir dessa compreenso, que se pode estabelecer uma estratgia profissional e poltica, para fortalecer as metas do capital ou do trabalho, mas no se pode exclu-las do contexto da prtica profissional, visto que as classes s existem inter-relacionadas (IAMAMOTO, 1985, p. 75).

    Foi sob o legado deixado por essa tradio, originalmente denominado por Netto

    (1991) de inteno de ruptura (com todos os problemas e limitaes enfrentadas), que a

    aproximao entre o Servio Social, as produes marxianas e marxistas se deram ao longo

    das dcadas de 80 e 90 do sculo XX at os dias atuais. Esta interlocuo embora no seja a

    nica no campo plural que marca o Servio Social vem sendo intensamente aprimorada e

    sistematizada em inmeros livros, artigos, comunicaes de congressos e encontros de

    pesquisadores,4 bem como tem surtido efeitos prticos extremamente significativos nas

    diretrizes curriculares nacionalmente aprovadas para os cursos de Servio Social no Brasil

    (com impactos muito positivos na formao profissional), na reviso do Cdigo de tica do

    Assistente Social (1993) e na formulao de um projeto tico-poltico claramente

    comprometido com demandas oriundas da classe que vive do trabalho (ANTUNES, 1999-

    2000). Ao mesmo tempo, este debate tem desafiado os assistentes sociais a produzirem

    conhecimentos e aes comprometidas no apenas com a emancipao poltica do ser social

    (possvel de ser mantida no capitalismo ainda que a tenso entre a afirmao de direitos e o

    processo de reproduo do capital tenha se intensificado significativamente no final do sculo

    XX). preciso, tambm, sem iluses, que o Servio Social se sintonize com um outro

    horizonte que possa favorecer a emancipao humana.

    Somente quando o homem individual real recupera em si o cidado abstrato e se converte, como homem individual, em ser genrico, em seu trabalho individual e em suas relaes individuais, somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas forces propes5 como foras sociais e quando, portanto j no separa de si a fora social sob a forma de fora poltica, somente ento se processa a emancipao humana (MARX, 2005a, p.42).

    4 Com especial ateno para os Congressos Brasileiros de Assistentes Sociais (CBAS) e para os Encontros

    Nacionais de Pesquisadores em Servio Social (ENPESS). No h espao hbil, aqui, para analisar a diversidade, a amplitude, os problemas e as qualidades desta produo.

    5 Prprias foras (citao mantida a partir do texto original).

  • Silva, J. F. S. Pesquisa e produo do conhecimento em Servio Social

    Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 282-297. jul./dez. 2007

    287

    2 Pesquisa e produo de conhecimentos em Servio Social: as contribuies do enfoque crtico-dialtico

    A preocupao com a pesquisa e a produo de conhecimento em Servio Social

    recente se comparada com algumas importantes reas das Cincias Humanas e Sociais

    Aplicadas. Essa tendncia, conforme anteriormente indicado, se consolidou mais

    intensamente a partir do processo de reconceituao latino-americano, incorporando os limites

    e os avanos propiciados por este movimento. A absoluta falncia do Servio Social

    tradicional (NETTO, 1991) e as diversas alternativas a ele formuladas, recuperaram

    mesmo que inicialmente de forma pontual a necessidade da pesquisa para sintonizar a

    profisso com os imensos desafios da segunda metade do sculo XX. O carter heterogneo,

    ecltico e empirista/formalista que marcou o processo de reconceituao em suas principais e

    diversas vertentes h pouco relacionadas (NETTO, 1991), estabeleceu parmetros e bases

    tericas diferenciadas que repercutiram decisivamente em diferentes perspectivas e formas de

    pesquisa em nvel de Servio Social.

    O balano crtico da reconceituao e a maturidade do Servio Social como uma

    profisso que concentra, simultaneamente, forte carisma interventivo e densidade terica

    (particularmente e com maior intensidade na perspectiva de inteno de ruptura), criaram as

    condies objetivas para um resgate mais denso sobre o papel desempenhado pela pesquisa e

    pela produo do conhecimento em nvel de Servio Social. Tudo isso tem indicado

    claramente os parmetros universais sustentadores de uma formao profissional atual, densa,

    slida e fortemente atrelada aos desafios impostos profisso. Isso, no entanto, por si s, no

    garante que as mltiplas mediaes necessrias para a explicao da realidade enfrentada

    pelos assistentes sociais em seus diversos espaos de atuao na contemporaneidade, estejam

    sendo devidamente reconstrudas. neste contexto e sob as condies objetivas propiciadas

    pela dcada de noventa do sculo XX6 que a pesquisa reivindicada como um passo

    importante e crucial para a formao e para a interveno profissional dos assistentes sociais.

    A produo do conhecimento tambm em nvel de Servio Social carece de um

    exerccio crtico que no abdica nem supervaloriza a razo humana, ou seja, o profissinal-

    pesquisador se debrua sobre determinada realidade material, reconstruindo-a como concreto

    pensado (MARX apud FERNANDES (org.), 1989, p. 410). Nesse sentido, o que se busca a

    6 Cenrio fortemente marcado pela crise no processo de acumulao do capital, seus profundos impactos no

    mundo do trabalho (desregulamentao, precarizao e terceirizao ANTUNES, 1999 e 2000), seus ataques sistemticos garantia de direitos sociais e suas aes para compor um Estado enxuto especificamente na manuteno desses direitos (BEHRING, 2003; MONTAO, 2002).

  • Silva, J. F. S. Pesquisa e produo do conhecimento em Servio Social

    Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 282-297. jul./dez. 2007

    288

    lgica da coisa (materialmente fincada na realidade) e no a coisa da lgica (sustentada

    na cabea do profissional),7 reconstruindo categorias que necessariamente fazem parte da

    estrutura do real e exprimem formas de vida, determinaes de existncia (MARX apud

    FERNANDES, org., 1989, p. 415). Portanto, as categorias no so construes unicamente

    tericas criadas pela razo e sistematizadas em ttulos conceituais, mas sim reconstrues

    possveis da dinmica do real em uma dada historicidade. Os assistentes sociais e no

    somente eles lidam com temas e objetos de estudo inseridos no mundo e imbricados com a

    vida de seres sociais. Reivindica-se, ento, a unidade/diversa entre a ontologia (fundada na

    vida e na natureza de determinados seres que possuem histria e historicidade) e a gnosiologia

    (o movimento intelectual que persegue, indaga, desmonta e remonta a realidade com o

    inseparvel auxlio da razo), no identificando ou separando totalmente estas dimenses.

    preciso, portanto, reconstruir mentalmente o mais fielmente possvel a totalidade do

    movimento da realidade complexa e contraditria que, por sua vez, possui uma dinmica

    prpria que no abstratamente criada. O singular (parte constitutiva da totalidade), ou seja, a

    forma como o universal aparece imediatamente aos olhos dos assistentes sociais na esfera da

    vida cotidiana (HELLER, 1989) que plena, mas tende a aparecer atravs de mltiplas,

    caticas e fragmentadas demandas , serve de ponto de partida e deve ser desconstrudo na

    sua imediaticidade. A busca e a reconstruo da mediaticidade, do no aparente, passo

    necessrio para apanhar o fenmeno na sua totalidade (processo jamais capturado pelo sujeito

    na sua exatido), momento em que transbordam mltiplas mediaes, isto , conexes e

    passagens explicativas inseridas na prpria realidade, capazes de explicar as particularidades

    que unem o universal (composto por elementos explicativos mais gerais, reconstrudos a partir

    do imediatamente dado) e o singular (a forma como o universal se revela imediatamente na

    vida cotidiana).8

    O mtodo que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto no seno a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado. Mas este no de modo nenhum o processo da gnese do prprio concreto (MARX apud LUKCS, 1979, p. 38).

    Ou ainda, nas palavras de Lukcs (1979), preciso valorizar certo tipo de

    cientificidade que,

    7 Conforme nos alerta o jovem Marx ainda um democrata radical (MARX, 2005b, p. 39). 8 Nunca demais afirmar que o mtodo em Marx sempre deve ser retomado juntamente com dois outros

    pontos centrais e insuprimveis em sua obra: a teoria valor trabalho (considerando a centralidade da categoria trabalho nela a ontologia do ser social destacada por Lukcs) e a perspectiva da revoluo.

  • Silva, J. F. S. Pesquisa e produo do conhecimento em Servio Social

    Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 282-297. jul./dez. 2007

    289

    no processo de generalizao, nunca abandona esse nvel, mas que, apesar disso, em toda verificao de fatos singulares, em toda reproduo ideal de uma conexo concreta, tem sempre em vista a totalidade do ser social e utiliza essa como metro para avaliar a realidade e o significado de cada fenmeno singular; uma considerao ontolgico-filosfica de realidade em si, que no se pe acima dos fenmenos considerados, coagulando-os em abstraes, mas se coloca, ao contrrio crtica e autocriticamente no mximo nvel de conscincia, com o nico objetivo de poder captar todo ente na plena concreticidade da forma de ser que lhe prpria, que especfica precisamente dele (LUKCS, 1979, p. 27).

    Posto isso, possvel e necessrio avanar na anlise sobre a pesquisa e a produo do

    conhecimento em nvel de Servio Social. Um primeiro desafio bsico nesta direo rever a

    tendncia que, sob diferentes espectros tericos, realiza a ruptura entre a teoria e a prtica e,

    portanto, inviabiliza qualquer possibilidade da prxis. Ao assumir a prtica como uma

    dimenso prioritria e emasculadora da teoria crtica (considerada, por essa perspectiva, uma

    ao prolixa e desnecessria SILVA, 2005), o assistente social estar reforando a perversa

    identidade social e historicamente atribuda ao Servio Social desde sua origem

    (MARTINELLI, 1993): [...] somos profissionais da prtica e, por isso, o que o pior, no

    necessrio um esforo terico e investigativo consistente (atribudo s outras reas do

    conhecimento das Cincias Humanas e Sociais Aplicadas).9 Por outro lado, tendncias

    teoricistas tambm so nefastas, pois no se apropriam dos temas nevrlgicos e necessrios

    profisso. No h, neste perverso cenrio, a menor possibilidade de qualquer atitude sria

    por mais bem intencionada que seja capaz de orientar a sistematizao de dados ou, mais

    ainda, a organizao, a anlise e a produo de conhecimento no mbito do Servio Social.

    Em outras palavras, no existe pesquisa nem de longe sob essas condies.

    Parece evidente, ento, que a produo do conhecimento, realizada por meio de

    pesquisas em nvel de Servio Social, deve considerar uma relao entre a teoria e a prtica

    que no anule ou supervalorize uma em relao a outra. Em outras palavras, a unidade-diversa

    entre teoria e prtica (a prxis dialtica), carece de certo tipo de articulao em que a realidade

    enfrentada diretamente pela prtica profissional oferece elementos para que a razo terica se

    9 O que se faz, no limite, a partir dessa concepo sobre o Servio Social, recorrer pragmtica e

    ecleticamente, na medida da necessidade, s produes tericas fornecidas pelas reas responsveis por isto. O profissional, no mximo, sistematiza dados para que outros segmentos do saber produzam conhecimento. Certamente esta questo vem sendo combatida por importantes setores da profisso comprometidos com uma formao profissional ampla, consistente, crtica e propositiva. As atuais orientaes curriculares so impecveis no combate a essas tendncias. Isto no significa, no entanto, sucesso nessa empreitada. Ao contrrio, esse tratamento fragmentado tambm em nvel de Servio Social e intrnseco ordem burguesa em curso tem incorporado, discursivamente, o legado crtico expresso nas atuais diretrizes curriculares. preciso denunciar isto.

  • Silva, J. F. S. Pesquisa e produo do conhecimento em Servio Social

    Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 282-297. jul./dez. 2007

    290

    debruce sobre desafios concretos sem que, com isso, se aplique um receiturio capaz de

    solucionar, por si s, as concretas provocaes cotidianas. Isso significa que a prtica

    profissional desenvolvida em uma dada realidade e seus ineliminveis desafios so

    fundamentais para o Servio Social (fazem parte da sua natureza como profisso). As

    provocaes imediatamente apresentadas interveno profissional servem, necessariamente,

    como ponto de partida e de chegada (aps um longo caminho de desvendamento e

    reconstruo do real), processo esse apoiado no exerccio crtico da razo terica. Isso

    somente pode ser viabilizado por sujeitos histricos possveis (entre eles os assistentes

    sociais), que se apropriam das possibilidades inscritas na prpria realidade e as potencializam

    atravs de alternativas reconstrudas diante das condies objetivas disponveis

    (IAMAMOTO, 1994 e 2000). nesta relao que a pesquisa se insere como um ingrediente

    imprescindvel para o profissional mirar a realidade, dialogar criticamente com ela, produzir

    um conhecimento sobre esse processo ainda que sempre inexato e inacabado e subsidiar

    alternativas viveis para serem praticadas. Nega-se e supera-se, assim, o praticismo repetitivo

    e a onipotncia da razo terica pensante.

    [...] as possibilidades esto dadas na realidade, mas no so automaticamente transformadas em alternativas profissionais. Cabe aos profissionais apropriarem-se dessas possibilidades e, como sujeitos, desenvolv-las, transformando-as em projetos e frentes de trabalho (IAMAMOTO, 2000, p. 21).

    So fundamentais as indagaes de Simionatto (2005) sobre o hiato entre a produo

    de conhecimento dos grupos de pesquisa e as exigncias impostas profisso, ainda que no

    se possa generalizar essa lacuna. Pergunta a autora:

    Como o conhecimento produzido pode tornar-se uma ferramenta s prticas profissionais, no sentido de qualific-las enquanto expresses de uma totalidade mais ampla? Visto que o Servio Social se caracteriza pela sua dimenso interventiva, de que forma a produo de conhecimentos pode tornar o fazer profissional mais competente e qualificado? Como produzir um conhecimento que estabelea mediaes entre os processos sociais mais amplos e as diferentes esferas onde se inscreve o trabalho profissional? Como problematizar, atribuir um trato terico e, portanto, produzir conhecimentos sobre demandas e requisies que circunscrevem o campo profissional, superando a postura de denncia e contestao? (SIMIONATTO, 2005, p. 57-58).

    Mais do que concretizar os assuntos estudados nos centros de excelncia acadmica e

    nos grupos de pesquisa compostos por pesquisadores financiados pelo CNPq, CAPES,

    FAPESP, entre outros importantes rgos de fomento, preciso arrombar os muros que

  • Silva, J. F. S. Pesquisa e produo do conhecimento em Servio Social

    Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 282-297. jul./dez. 2007

    291

    separam as universidades e os mltiplos espaos de interveno profissional, mantendo os

    cuidados necessrios para enfrentar as diversas armadilhas da modernidade: o voluntarismo,

    o desmonte dos servios pblicos de qualidade, a fragmentao e a individualizao do

    conhecimento, bem como a privatizao das pesquisas seja atravs do financiamento ou da

    apropriao, com fins privados, dos recursos oferecidos pelas universidades pblicas.

    fundamental estabelecer e consolidar espaos que propiciem um dilogo permanente entre os

    centros de produo de conhecimento (incluindo a colaborao entre eles prprios) e os

    profissionais que atuam em diversos tipos de organizaes.

    Portanto, a pesquisa em nvel de Servio Social precisa perquirir temas pertinentes

    para esta profisso, para seus usurios e para os prprios assistentes sociais, utilizando a

    realidade como um necessrio celeiro emprico que, por si s, no produz conhecimento. Esta

    postura, ao mesmo tempo, funciona como uma vacina eficiente contra toda e qualquer

    sobrevalorizao da razo terica (por mais brilhante que seja), fazendo da realidade o ponto

    de partida e tambm de chegada aps um longo processo que indica ainda que sempre de

    forma insuficiente como o universal se particulariza no singular e como esta singularidade

    se universaliza. Essa relao no se revela imediatamente (embora exista efetivamente) e,

    por isso, carece de um exerccio de superao da esfera imediata baseado em uma relao

    carnal entre razo e realidade (SILVA, 2005). Destarte, a pesquisa deve reconstruir

    mediaes (conexes) que revelam como o universal se particulariza em uma determinada

    singularidade e de que forma esta singularidade contm o universal e influenciada por ele.

    Esse um desafio crucial para os assistentes sociais, sobretudo para os pesquisadores

    responsveis diretos pela delimitao de objetos de estudo, pelos vnculos institucionais,

    estimuladores de trabalhos coletivos e interdisciplinares, ou pela definio de grupos e de

    linhas de pesquisa capazes de articular a graduao, a ps-graduao (KAMEYAMA, 1998) e

    os diversos profissionais situados dentro ou fora do espao acadmico (muitos deles

    supervisores de campo no estgio curricular). Para tanto importante romper o medocre

    isolamento profissional e detonar a arrogncia acadmica. Sobre isso Yazbek (2005, p. 155-

    156) diz:

    Esse descompasso se pode observar tambm na pesquisa que, muitas vezes, no consegue trabalhar a universalidade contida no singular, que no faz os vnculos e as passagens de nossa compreenso terico-metodolgica da realidade para situaes singulares que configuram nosso exerccio profissional cotidiano. tarefa da pesquisa evidenciar os processos sociais e histricos de um tempo e lugar, em suas mltiplas dimenses, nos mostrando como a realidade se tece e se move pela ao de sujeitos sociais.

  • Silva, J. F. S. Pesquisa e produo do conhecimento em Servio Social

    Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 282-297. jul./dez. 2007

    292

    fundamental no endossar, no interior da prpria profisso, a ruptura entre o

    pesquisar e o fazer profissional. As novas diretrizes curriculares so claras quando

    reivindicam a pesquisa como um componente absolutamente necessrio para a formao e

    para a interveno profissional do assistente social, sendo ele docente ou no. Ou seja, a

    pesquisa deve se desenvolver nas universidades, articular-se com os diferentes espaos de

    insero profissional (nas condies h pouco citadas) e, mais do que isso, deve ser um trao

    central do exerccio profissional do assistente social independentemente de sua insero na

    diviso social e tcnica do trabalho. A postura investigativa necessria para descortinar as

    armadilhas da vida cotidiana, passo crucial e insubstituvel para uma interveno profissional

    crtica, propositiva e, portanto, no repetitiva. Sem este procedimento, o profissional de

    Servio Social no exerce seu papel como sujeito histrico possvel e, dessa forma, no

    coloca em movimento as possibilidades histricas de transformao inscritas na prpria

    realidade. O profissional, ento, dragado pela dinmica imediata do real, consumido pelas

    relaes cotidianamente estabelecidas. Inviabiliza-se, assim, qualquer alternativa que possa

    contribuir com a sintonia entre a profisso e da interveno profissional (guardados seus

    limites intrnsecos), e a emancipao humana.

    Diante disso, preciso reivindicar uma densa formao terico-prtica em nvel de

    Servio Social, ou seja, necessrio oferecer espaos de estudo que propiciem a apropriao

    crtica de textos originais tambm contidos nas fontes clssicas e, ao mesmo tempo, endossar

    uma formao impiedosamente sustentada na pesquisa de temas fincados na prpria realidade.

    O produto deste trabalho deve retornar ao cotidiano profissional, ser consumido e criticado

    pelos prprios profissionais, subsidiando e aprimorando a interveno dos mesmos.

    Certamente que as condies objetivas para que os assistentes sociais desempenhem este tipo

    de atividade no espao acadmico, no so as mesmas quando consideramos as exigncias

    enfrentadas pelos demais profissionais inseridos em outros espaos institucionais. Nesta

    segunda situao, as aes devem ter maior agilidade diante de desafios que exigem respostas

    rpidas. Isso, no entanto, no pode consumir o profissional ou, mais ainda, servir de

    justificativa para a adoo de uma postura pragmtica e pouco refletida. sob esse terreno

    pantanoso que se reproduz uma prtica que reitera o institudo. Em outras palavras:

    [...] preciso ter claro que o verdadeiro ponto de partida no est na cabea do assistente social, mas na realidade que desafia, provoca, orienta e indica as bases para um determinado por teleolgico que estabelece o patamar para um trabalho profissional crtico e propositivo. O profissional precisa potencializar e valorizar exatamente aquilo que freqentemente reivindicado por ele prprio como sendo a razo imediata de sua paralisia e

  • Silva, J. F. S. Pesquisa e produo do conhecimento em Servio Social

    Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 282-297. jul./dez. 2007

    293

    desnimo: as demandas, os limites e os desafios com as quais os profissionais se deparam no cotidiano profissional (SILVA, 2006, p. 170).

    Portanto, a formao terica e a pesquisa permanente so essenciais em quaisquer

    contextos de insero profissional, ainda que o tempo disponvel para a crtica e para a

    formulao de alternativas seja, evidentemente, diferente. Isso exige, simultaneamente,

    articulao entre a academia e os demais espaos em que ocorre a interveno profissional do

    assistente social (como j foi enfatizado), bem como a incorporao de uma atitude

    investigativa na prpria ao profissional que v alm da simples sistematizao de

    dados. importante elucidar, na atuao profissional do assistente social, momentos de

    decodificao crtica da realidade comprometidos com a formulao de aes e de estratgias

    que respondam com agilidade e com qualidade s demandas institucionais. Trata-se de um

    trabalho difcil desde a disponibilidade de tempo at os imensos desafios para a formao da

    massa crtica , mas, ao mesmo tempo, necessrio para a requalificao dos assistentes sociais

    e para sobrevivncia da profisso. Evidentemente que isso exigir mudanas no institudo,

    seja por parte do prprio profissional ou da cultura institucional.

    A partir desta tica, inverte-se radicalmente o significado da interveno profissional:

    o que servia de motivo para rebaixar, subalternizar e reforar preconceitos em relao

    profisso (o Servio Social uma profisso prtica, qualquer um pode ser assistente

    social, o assistente social no precisa estudar muito, entre outras afirmaes generalizadas

    sem qualquer cuidado), passa a ser um trunfo importante como ponto de partida e de chegada

    da prxis profissional (sem iluses ou fatalismos IAMAMOTO, 1994 e 2000). Afinal,

    possveis transformaes ocorrem atravs de aes prticas, ainda que elas sejam formadas,

    evidentemente, por intervenes subsidiadas pela razo terica e crtica que se debrua sobre

    a realidade (com a pesquisa inserida nesse contexto). Nesse sentido, a prtica pela prtica

    to estril quanto a teoria pela teoria. Como lembra Marx (1987) na oitava e na dcima

    primeira tese sobre Feuerbach:

    A vida social essencialmente prtica. Todos os mistrios que induzem a teoria para o misticismo encontram sua soluo racional na praxis humana e na compreenso da prxis [...] Os filsofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes formas; mas o que importa transform-lo (MARX, 1987, p. 128).

    A prxis profissional somente encontra condies objetivas para se realizar quando o

    assistente social, subsidiado pela teoria crtica, se debrua sobre um leque bastante amplo de

    assuntos com os quais a profisso lida. Entre os assuntos, podemos citar: os programas e os

  • Silva, J. F. S. Pesquisa e produo do conhecimento em Servio Social

    Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 282-297. jul./dez. 2007

    294

    projetos realizados com jovens, adultos, famlias e idosos das camadas populares, a

    implantao da poltica de assistncia social rede de atendimento, o Sistema nico de

    Assistncia Social, os Centros de Referncia de Assistncia Social, por exemplo , a violncia

    nas suas mltiplas faces, as diversas demandas na rea de sade, entre outros espaos,

    qualificando criticamente a discusso, a organizao e a operacionalizao das aes

    realizadas. Indicam-se, aqui, os limites e as armadilhas dessas alternativas (sobretudo

    aquelas centradas na sobrevalorizao da emancipao poltica) e, ao mesmo tempo, suas

    possibilidades para fortalecer e favorecer movimentos na direo da emancipao humana.

    Somente nesse nvel possvel falar em trabalho profissional sem romper, claro, com os

    marcos do trabalho abstrato insupervel no capitalismo (MARX, 1983) , edificando-o sob

    outras condies que revitalizam certo tipo de interveno profissional que satura e forceja ao

    mximo as diversas possibilidades inscritas na prpria realidade scio-histrica. O assistente

    social no perde, por isso, a lucidez de que as aes por ele implementadas, por melhores e

    mais bem intencionadas que sejam, no solucionam as contradies estruturais que

    extrapolam os marcos da profisso (intrnsecas ordem do capital). Sob esse contexto,

    edifica-se um profissional de forte base terica, de alta capacidade para dialogar criticamente

    com as demandas imediatamente impostas profisso (as singularidades que se expressam no

    cotidiano profissional), um profissional necessariamente propositivo e vacinado contra

    possveis tipos de idealismos ou de realismos que emasculam o exerccio da prxis

    profissional. Trata-se de uma postura que, sistematicamente, teoriza a realidade sem violent-

    la atravs de regras abstratamente criadas e, ao mesmo tempo, valoriza a prtica sem crer que

    ela, por si s, produz conhecimento (embora seja fonte no imediata de conhecimento).

    Comentrios finais

    Desenvolver pesquisas na contemporaneidade no exige apenas capacidade (embora

    no prescinda dela). preciso delimitar objetos de estudo que sejam relevantes para a imensa

    maioria da populao brasileira que participa da produo social, sem ser beneficiada pela

    riqueza por ela gerada. necessrio investigar os pores da sociedade contempornea,

    estruturada sob a ordem do capital (e este um fato incontestvel e no uma afirmao

    contaminada de ideologia), tendo claro que isso exigir, sempre, de uma forma ou de outra,

    atitudes polticas (assumidas ou no), indo muito alm de concluses cientficas

    comprometidas com a naturalizao da propriedade privada ou, no mximo, com certo tipo de

    crtica resignada. Obviamente que, sob esta perspectiva, no nada tranqilo produzir

  • Silva, J. F. S. Pesquisa e produo do conhecimento em Servio Social

    Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 282-297. jul./dez. 2007

    295

    conhecimento. Os incentivos, os recursos e as prioridades so cada vez mais determinados por

    interesses privados. Combater a mercantilizao da academia e das unidades educacionais e

    de fomento pesquisa tarefa necessria para a democracia e para a liberdade (no sentido

    real dessas terminologias). Mais do que isto, condio bsica para a consolidao da massa

    crtica e para uma formao profissional coerente com as atuais diretrizes curriculares do

    Servio Social e com os imensos objetivos que se colocam para alm desta profisso: a

    emancipao humana. preciso reafirmar essa radicalidade!

    Isso, entretanto, deve ir alm da denncia e da crtica estril que, em absoluto, mudam

    o mundo. preciso combater estruturas sustentadas por indivduos e por grupos, dentro e fora

    da academia, que privatizam as informaes e o conhecimento tambm atravs de pequenos

    gestos e procedimentos e reforam uma hierarquia baseada na tutela e no mando (traos

    comuns da histria brasileira). Trata-se, ento, de um trabalho que envolve valores ticos

    comprometidos com a socializao do saber e com a emancipao humana, capazes de

    impregnar individualmente e coletivamente atitudes e propostas sejam elas simples ou

    complexas. Sem esse importante ingrediente embora ele no seja o nico o Servio Social

    estar fadado ao fracasso como profisso.

    No h como suprimir tenses entre uma profisso que surgiu claramente atrelada s

    bases do pensamento conservador catlico para administrar tenses oriundas da relao

    capital-trabalho, e uma teoria social crtica estruturalmente comprometida com a superao da

    ordem burguesa (o marxismo). Por outro lado, esse vnculo conservador do Servio Social

    no se impe como uma determinao fatalista que impede a reconstruo do exerccio

    profissional do assistente social como um espao que pode, sob outro patamar, contribuir com

    nveis crescentes de emancipao (ainda que a emancipao humana no seja alcanada pela

    simples radicalizao da emancipao poltica).10 A interlocuo entre o Servio Social e a

    produo crtica sustentada em Marx e em sua tradio, no apenas til para a ampliao do

    capital cultural dos profissionais de Servio Social e para a qualificao das reflexes e das

    alternativas edificadas a partir do concreto pensado. Trata-se de uma relao crucial para

    criticar ao mximo as relaes historicamente estabelecidas entre o pensamento conservador

    (nas suas diversas expresses) e o exerccio profissional dos assistentes sociais,

    freqentemente marcado por aes tuteladoras e reiteradoras da ordem, hoje hegemnica, em

    escala planetria: a burguesa. O marxismo pode, tambm, apropriar-se de inmeros temas de

    altssima relevncia social por meio do Servio Social. Os assistentes sociais fazem parte de

    10 Consultar Lessa (2007).

  • Silva, J. F. S. Pesquisa e produo do conhecimento em Servio Social

    Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 282-297. jul./dez. 2007

    296

    uma categoria profissional que, como poucas profisses, atua nos rinces da sociedade

    burguesa madura e com as mltiplas e complexas mazelas sociais recriadas globalmente por

    esta ordem societria. Esta base emprica, advinda do exerccio profissional, de extrema

    riqueza, ainda que carea, inegavelmente, de reconstruo crtica.

    Embora seja inadequado afirmar a possibilidade de se constituir um Servio Social

    marxista, absolutamente legtimo e necessrio valorizar uma aproximao qualificada entre

    eles e consolidar um Servio Social crtico e maduro. A pesquisa e a produo de

    conhecimentos agradecem.

    Referncias

    ABEPSS. Temporalis. Braslia: ABEPSS, Grafline, ano 2, n. 3, jan./jul. 2001.

    ALMEIDA, Ana Augusta. Reflexes sobre a construo do Servio Social a partir de uma abordagem de compreenso, ou seja, interpretao fenomenolgica do estudo cientfico do Servio Social. Teorizao do Servio Social Documentos. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1986. p. 183-193.

    ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 6. ed. So Paulo: Cortez; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1999.

    ______. Os sentidos do trabalho Ensaio sobre a afirmao e a negao do trabalho. 3. ed. So Paulo: Boitempo, 2000.

    BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em contra-reforma desestruturao do estado e perda de direitos. So Paulo: Cortez, 2003.

    CBCISS. Teorizao do Servio Social Documentos: Arax, Terespolis e Sumar. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1986.

    FERNANDES, Florestan (Org.). O mtodo da economia poltica. Marx/Engels. Histria. So Paulo: tica, 1989. p. 409-417. (Coleo Grandes Cientistas Sociais)

    HELLER, Agnes. O cotidiano e a histria. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

    IAMAMOTO, Marilda Villela; CARVALHO, Raul de. Relaes sociais e Servio Social no Brasil Esboo de uma interpretao histrico-metodolgica. 3. ed. So Paulo: Cortez, 1985.

    IANNI, Octvio (Org.). Infra-estrutura e superestrutura O prefcio da Contribuio Economia Poltica. Marx sociologia. 6. ed. So Paulo: tica, 1988. p. 82-83. (Coleo Grandes Cientistas Sociais)

    KAMEYAMA, N. A trajetria da produo de conhecimento em Servio Social. Cadernos ABESS. So Paulo, n. 8, p. 33-76, nov. 1998.

    LESSA, Srgio. A emancipao poltica e a defesa de direitos. Revista Servio Social & Sociedade, So Paulo, Cortez, v. 28, n. 90, p. 35-57, 2007.

    LUKCS, Gyrgy. Introduo a uma esttica marxista. Trad. Carlos Nelson Coutinho. So Paulo: Cincias Humanas, 1978.

    ______. Ontologia do ser social A falsa e a verdadeira ontologia de Hegel. So Paulo: Livraria Editora Cincias Humanas, 1979. (2)

  • Silva, J. F. S. Pesquisa e produo do conhecimento em Servio Social

    Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 2 p. 282-297. jul./dez. 2007

    297

    ______. Ontologia do ser social Os princpios ontolgicos fundamentais de Marx. So Paulo: Livraria Editora Cincias Humanas, 1979. (1)

    MARX, Karl. A questo judaica. 5. ed. So Paulo: Centauro, 2005a.

    ______. As teses sobre Feuerbach. A ideologia Alem. 6. ed. So Paulo: 1987.

    ______. Crtica da filosofia do direito de Hegel. So Paulo: Boitempo, 2005b.

    ______. Introduo. Crtica da filosofia do direito de Hegel. So Paulo: Boitempo, 2005c. p. 145-156.

    ______. Grundrisse leneamientos fundamentales para la crtica de la economia poltica 1857-1858. Obras fundamentales. Traduo de Wesceslao Roces. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1985. v. 6.

    ______. Manuscritos econmico-filosficos. So Paulo: Boitempo, 2004.

    ______. O capital. So Paulo: Abril Cultural, v. 1, livro 1, tomo 1, 1983.

    ______ O capital. So Paulo: Abril Cultural, v. 1. livro 1, tomo 2, 1984.

    MARX, Karl; ENGELS F. A ideologia alem. 6. ed. So Paulo: 1987.

    MONTAO, Carlos. Terceiro setor e questo social. Crtica ao padro emergente de interveno social. So Paulo: Cortez, 2002.

    NETTO, Jos Paulo. A crtica conservadora reconceituao. Revista Servio Social & Sociedade, So Paulo, Cortez, v. 2, n. 5, p. 59-75, 1981.

    ______. Capitalismo monopolista e Servio Social. So Paulo: Cortez, 1992.

    ______. Ditadura e Servio Social uma anlise do Servio Social no Brasil ps-64. So Paulo: Cortez, 1991.

    ______. O Servio Social e a tradio marxista. Revista Servio Social & Sociedade, So Paulo, Cortez, v. 10, n. 30, p. 89-102, 1989.

    NETTO, Jos Paulo; DALLARI, Dalmo de Abreu. A construo e consolidao de direitos. Conferncia proferida no XI Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais Fortaleza CE. So Paulo: Instituto de Vdeo e Com., 2004. (DVD)

    SANTOS, Leila Lima. Textos de Servio Social. 2. ed. So Paulo: Cortez, 1983.

    SILVA, Jos Fernando Siqueira da. O recrudescimento da violncia nos espaos urbanos: desafios para o Servio Social. Revista Servio Social & Sociedade, So Paulo, Cortez, 89, p. 130-154, 2007.

    ______. Servio Social e violncia estrutural: notas introdutrias. Revista Servio Social & Realidade, Franca, UNESP, v. 15, n. 1, p. 159-173, 2006.

    ______. Teoria e prtica no trabalho profissional do assistente social: falsos e verdadeiros dilemas. Revista Servio Social & Realidade, Franca, UNESP, v. 14, n. 2, p. 133-154, 2005.

    SIMIONATTO, Ivete. Os desafios na pesquisa e na produo do conhecimento em Servio Social. Temporalis. Revista da Associao Brasileira de Ensino e Pesquisa em Servio Social Pesquisa e Produo de Conhecimento em Servio Social. Recife, Ed. Universitria da UFPE, ano 5, n. 9, p. 51-62, jan./jun. 2005.

    YAZBEK, Maria Carmelita. Os caminhos para a pesquisa no Servio Social. Temporalis. Revista da Associao Brasileira de Ensino e Pesquisa em Servio Social Pesquisa e Produo de Conhecimento em Servio Social. Recife, Ed. Universitria da UFPE, ano 5, n. 9, p. 147-159, jan./jun. 2005.