Pezinho Da Noite - Rosângela Trajano
Transcript of Pezinho Da Noite - Rosângela Trajano
Quando as aves falam com as pedras
e as rãs com as águas –
é de poesia que estão falando.
Manoel de Barros
Projeto gráfico e revisão
Da autora
Capa
Jean Sartief
Copyright by
Lucgraf
Brasil, 2020
Este livro pode ser reproduzido no todo ou em partes com
os créditos da autora
Lei 9.610/98
Prefácio
O cotidiano é do dia - e também é da noite
Pezinho da Noite, poemário de Rosângela Trajano, nos
convida a entrar nesse mundo tão presente no universo
infantil mas tão pouco explorado na literatura nacional. Na
medida em que avança a discussão sobre as negritudes na
academia brasileira e vemos uma série de inspirados livros
dedicados a crianças negras e indígenas, assim também vai
avançando a contemplação de espaços considerados tabu na
literatura relativa ao mundo infantil, como é o caso da noite.
Frequentemente, a noite tem sido associada pela mídia à
violência nas ruas, assim como à profundeza do
inconsciente pela psicanálise e ao mistério espiritual por
diversos tipos de religiosidade, desde as animistas até as
monoteístas. Rosângela define esse espaço em suas
múltiplas dimensões, e três premissas emergem com força
nesta definição: a noite é negra; a noite também é das
crianças; a noite é, muito especialmente, das crianças
negras. A noite, menos assustadora do que acolhedora na
narrativa da autora, recebe o corpo negro na intimidade para
se tornar um.
Nos versos deste poemário emerge uma grieta de
significados próximos do self, em que o espaço da noite
também pode ser um lugar de autorreconhecimento, no qual
luas cheias, pijamas de bolinhas, negros sorrisos e sonhos
abrigados convivem cotidianamente. Nesses registros de
noite oceânica também há pesadelos, cocô de pássaro e
opressão, pois a infância não somente está feita de cantigas
e brincadeiras, ela também é território de sentimentos
doloridos e árduos de serem compartilhados.
Independentemente do contexto, toda infância tem seu
mistério e sua dor.
E quanto mais ainda então aquelas experiências de
vulnerabilidade, em que a raça-cor, o gênero, classe social,
as deficiências ou o fato de crescer em um lar violento
acrescentam a essa experiência. Assim, o Pezinho da Noite
de Rosângela contribui para um fortalecimento do direito
das infâncias a habitar espaços complexos, de muitas
dimensões, onde a subjetividade possa ser alimentada e
resguardada.
É meu desejo que o mundo adulto abrace essa singela joia
lírica interseccional e que esses poemas, feitos com
palavras fáceis de dizer e de lembrar, acompanhem em
performances espontâneas, cantos e jingles os espaços
domésticos e públicos onde nossas crianças, especialmente
nossas crianças negras, se sintam acolhidas e possam
continuar se apropriando do espaço da noite, que também
lhes pertence.
Ana Gretel Echazú Böschemeier
Professora Departamento de Antropologia/UFRN
Status: Escrevendo e traduzindo.
Apresentação
Escrever um livro é como plantar um pé de fruta. A gente
espera o tempo da colheita para sorrir igual criança. Hoje,
plantei Pezinho da noite e espero que os frutos sejam doces
e criem nódoas nas suas vestes internas e externas que
despertem para um pensar crítico e reflexivo sobre a
negritude.
Falar de negritude para crianças não é tarefa fácil. Tem que
saber usar as palavras, cuidar delas com carinho, ninar,
colocar para dormir com todo o cuidado e depois acordá-las
com um cheiro de quem ama as pessoas do jeitinho que elas
são.
Todos os dias eu tinha que me pintar de branca e pentear os
meus cabelos para me parecer com “gente”. Era assim que
todos faziam com que eu me sentisse. Mas, não é isso que
desejo para as milhares de crianças negras do nosso país.
Essa gente é todo fruto que brota de uma semente plantada
na alma da criança desde a tenra idade chamada amor.
A autora
A menina noite
Nunca dorme
Vai passear
Pela negritude
Do outro lado
Do riso mar
A história
É uma viúva secular
Noite linda
Brincos de argolas
Espera um anjo
Vestido de preto
Cair do céu
No seu pensamento
Lábios de papel
Contam relógios
Uma noite tua
Cada riso teu
É brinquedo
Criado na alma
Ideia menina
Que não se cansa
De correr
Atrás da esperança
O anoitecer de agosto
Tem vontades negras
Perto de estações
Vazias de tristezas
Alegrias encantam
Aves brincantes
É noite o teu riso
Uma noite para Deus
Ouvi as luas
Contarem histórias
Meninos são cocadas
Que a gente traz
Na barriga negra
Com dedo no umbigo
Pezinho da noite
Deixa pegadas
Em guizos azuis
No canto do coração
A criança cresce
Lá dentro um dragão
Acorda a flor negra
Noite de criança
Veste pijamas
Feitos de bolinhas
Na pele negra
Tem uma dama
Que sempre sorri
Ao soninho atrasado
Dorme, noite minha
Noite encantada
Dorme a lua
No céu negro
Que vira jacaré
Ao coçar o pé
É segredo da noite
Pintar meninos
Anoitecidos
Uma noite ao sol
Brincam os outonos
Sem se cansarem
Flores também querem
Ser negras meninas
Com tranças na alma
A sonharem coisinhas
Nunca esquecidas
O sol é amigo da noite
Poema à noite
Cantam os lírios
E a negra flor
A sorrir do tempo
Meio zonza
Acordou assustada
Com uma ave
Fez cocô no seu pé
Noite saudosa
Deixou do outro lado
O seu chapéu
Negro sonho
Não faz visita
Dia nenhum mais
Acabam as ruas
Na porta fechada
A noite bela
Cria uma lebre
Que gosta de pintar
Meninos negros
No seu sonhar
A brincarem
De ciranda
Em luas cheias
Noite minha
Traz mistérios
Na pele negra
Sofrida
Bem acordada
Risonha de si
Quando ganha
Uvinhas do sol
Noites dorminhocas
Nunca se cansam
De voar céus
Um mundo melhor
À negritude
Espelho para vida
Amores aos séculos
Vestidos em lugares
Abrigos de sonhos
Em noite quente
Há um menino
De pele negra
Que dorme
De calção
No chão da lua
Atrás do vento
À espera de amor
Belo sentimento
Duas noites
Ontem o céu viajou
Levou a flor negra
Na sua bagagem
Subir montes
Atravessar rios
É preciso coragem
Para não esquecer
De sorrir novamente
Meia noitinha
Esse menino
Com olhos
Em mundos
Artesãos de sonhos
A pele negra
Também ama
Girassóis azuis
Em vasos de barro
Boa noite
Sou um tomate
Da cor negra
Alegre a brincar
Quero viver
Entre as flores
E os leões
Daquele lugar
Onde nasce o amor
Senhora noite
Passeia na rua
Da flor negra
Com três sapatos
Essa noite surda
Lábios rosados
Visita meninos
Em oceanos peraltas
Deixa um pouco de si
Leva muito de mim
É gentil senhora
O relógio da noite
Não conta as horas
Dorme na parede
A noite descansa
No sofá do acaso
É preciso tecer
Amor às crianças
Sem tempo contado
Para amar a história
Avós têm lembranças
Chuva de noites
Voltava da batalha
Debaixo de um sol
Sem vestes
Um lírio negro
Deu-me seu encanto
Enquanto chovia
Noites estreladas
Ao meio-dia
E eu sorria
Ainda há amor
O bicho da noite
A noite é menina
Em casinha
De botão preto
Cria um elefante
Na agulha de mão
A costurar
Meio coração
No casaco do menino
Que deseja um dragão
Noite amiga
Esse pedaço de céu
Dentro da sacola
Conversa de amores
Ao menino negro
Que não colhe flores
Com medo da mão
Ódio escondido
Onde dorme a opressão
Fere o dedão
Mas não fica de mal
A boniteza da noite
Há noites filhas
De fadinhas
São tão bonitas
Assim escondidas
Do meio tempo
Que nunca quer brincar
De amar dois ventos
Há noites bonitas
Em pés de meninos
A negritude é vida
Céu da noite
Passa a onça
No meio do mato
Perdeu as pintas
Está negra
Sorriem as estrelas
Da onça engraçada
Que comeu cocada
Para virar negra
Ser igual
Ao olhinho da noite
Busca o seu céu
Entre noites
O menino perdeu
Soninho órfão
Foi dormir atrás
Da porta da rua
Onde a lua
Sabe brincar
De negritude
Que nunca chora
Vive a se alegrar
Bola da noite
A bola rola
Rola a bola
Menino negro
Negro menino
Sabe amar
Ama viver
Dentro da bola
A bola rola
Rola a bola
Asas da noite
Se esta rua
Fosse minha
Pediria aos céus
Virar anjo
Dá asas à noite
Para voar mundos
Onde meninos negros
Choram suas fomes
Amor, alimento vivo
Coração da noite
Sempre que beijo
O último menino
Da meia-noite
Visto a negritude
E vou passear
No coração da noite
A visitar histórias
Tia Anastácia
Conhece minha vida
Sou a negrinha do
Passarinho morto
A cor da noite
Tem sentinelas
Dormindo nos céus
Anjos fogem
À meia-noite
A negritude sonha
Com flores alegres
Em corações doces
Salvas do ódio
Recebem carinho
Afeto faz o menino
Virar herói em chão duro
Numa aquarela
Pintada de preto
A cor da noite sorri
Posfácio
Era uma vez uma Noite que vivia esquecida pelo próprio
Tempo. Mesmo quando alguém se lembrava dela,
geralmente era para falar sobre coisas tristes, como o medo,
o pesadelo, a violência e a morte. Ou então, para dizer como
ela “conseguia” ficar bonita quando havia uma lua bem
branca e brilhante no céu ou quando muitas estrelas,
também bem branquinhas e mais brilhantes ainda, a
enfeitavam. A Noite, por isso, chegava a ter medo dela
própria.
Certa ocasião, porém, uma fada negra, capaz de bordar
tecidos de palavras, resolveu olhar para a Noite e cobri-la
com o tecido do Amor. Vestida com esse tecido de versos
sensíveis, a Noite conseguiu se olhar no espelho do Tempo
e descobriu que não precisava de mais nada, a não ser de
coragem, para olhar para si mesma e compreender a
imensidão de sua beleza.
E a Noite se viu com lindos “brincos de argola”; percebeu
“alegrias” que “encantam” habitando seu sorriso; viu em
sua pele negra “uma dama/que sempre sorri”; constatou sua
magia capaz de transformar o “céu negro” num “jacaré”
(um segredo lindo guardado no pé!); descobriu,
deslumbrada, que “o sol é seu amigo”; vislumbrou-se como
uma senhorinha, “flor negra/com três sapatos”, toda prosa
por ser, ela mesma, uma “Ideia menina/Que não se
cansa/De correr/Atrás da esperança”.
Deslumbrante em seu vestido de Amor, a Noite resolveu
ser, ela própria, espelho também e convidou meninos e
meninas de todas as idades a aprenderem beleza com ela.
Beleza que tem todas as cores da negritude, que, afinal,
também é feita de azuis, amarelos, vermelhos, verdes,
marrons, roxos, brancos e toda a infinita gama de misturas
que a experiência de viver em plenitude permite.
A Noite, enfim, se tornou plena. E forte. E capaz de dizer
um sonoro “NÃO!” às vozes que a oprimiam e silenciavam.
Quando a Noite, vestida de Amor, se fez plena, o mundo
anoiteceu ao som da mais linda cantiga de fraternidade e
respeito. E os mais lindos desenhos da Noite se espalharam
pelas casas e pelos corações das crianças, reinventando a
Vida.
Danda Pezinho da Noite é o nome da fada.
Christina Ramalho
Professora da Universidade Federal de Sergipe