Pezinho Da Noite - Rosângela Trajano

74

Transcript of Pezinho Da Noite - Rosângela Trajano

Pezinho

Da

Noite

(Poemas para crianças)

Rosângela Trajano

Pezinho

Da

Noite (Poemas para crianças)

Lucgraf

Natal

2020

Quando as aves falam com as pedras

e as rãs com as águas –

é de poesia que estão falando.

Manoel de Barros

Para Aimée Malva, com afeto.

Projeto gráfico e revisão

Da autora

Capa

Jean Sartief

Copyright by

Lucgraf

Brasil, 2020

Este livro pode ser reproduzido no todo ou em partes com

os créditos da autora

Lei 9.610/98

Prefácio

O cotidiano é do dia - e também é da noite

Pezinho da Noite, poemário de Rosângela Trajano, nos

convida a entrar nesse mundo tão presente no universo

infantil mas tão pouco explorado na literatura nacional. Na

medida em que avança a discussão sobre as negritudes na

academia brasileira e vemos uma série de inspirados livros

dedicados a crianças negras e indígenas, assim também vai

avançando a contemplação de espaços considerados tabu na

literatura relativa ao mundo infantil, como é o caso da noite.

Frequentemente, a noite tem sido associada pela mídia à

violência nas ruas, assim como à profundeza do

inconsciente pela psicanálise e ao mistério espiritual por

diversos tipos de religiosidade, desde as animistas até as

monoteístas. Rosângela define esse espaço em suas

múltiplas dimensões, e três premissas emergem com força

nesta definição: a noite é negra; a noite também é das

crianças; a noite é, muito especialmente, das crianças

negras. A noite, menos assustadora do que acolhedora na

narrativa da autora, recebe o corpo negro na intimidade para

se tornar um.

Nos versos deste poemário emerge uma grieta de

significados próximos do self, em que o espaço da noite

também pode ser um lugar de autorreconhecimento, no qual

luas cheias, pijamas de bolinhas, negros sorrisos e sonhos

abrigados convivem cotidianamente. Nesses registros de

noite oceânica também há pesadelos, cocô de pássaro e

opressão, pois a infância não somente está feita de cantigas

e brincadeiras, ela também é território de sentimentos

doloridos e árduos de serem compartilhados.

Independentemente do contexto, toda infância tem seu

mistério e sua dor.

E quanto mais ainda então aquelas experiências de

vulnerabilidade, em que a raça-cor, o gênero, classe social,

as deficiências ou o fato de crescer em um lar violento

acrescentam a essa experiência. Assim, o Pezinho da Noite

de Rosângela contribui para um fortalecimento do direito

das infâncias a habitar espaços complexos, de muitas

dimensões, onde a subjetividade possa ser alimentada e

resguardada.

É meu desejo que o mundo adulto abrace essa singela joia

lírica interseccional e que esses poemas, feitos com

palavras fáceis de dizer e de lembrar, acompanhem em

performances espontâneas, cantos e jingles os espaços

domésticos e públicos onde nossas crianças, especialmente

nossas crianças negras, se sintam acolhidas e possam

continuar se apropriando do espaço da noite, que também

lhes pertence.

Ana Gretel Echazú Böschemeier

Professora Departamento de Antropologia/UFRN

Status: Escrevendo e traduzindo.

[email protected]

Apresentação

Escrever um livro é como plantar um pé de fruta. A gente

espera o tempo da colheita para sorrir igual criança. Hoje,

plantei Pezinho da noite e espero que os frutos sejam doces

e criem nódoas nas suas vestes internas e externas que

despertem para um pensar crítico e reflexivo sobre a

negritude.

Falar de negritude para crianças não é tarefa fácil. Tem que

saber usar as palavras, cuidar delas com carinho, ninar,

colocar para dormir com todo o cuidado e depois acordá-las

com um cheiro de quem ama as pessoas do jeitinho que elas

são.

Todos os dias eu tinha que me pintar de branca e pentear os

meus cabelos para me parecer com “gente”. Era assim que

todos faziam com que eu me sentisse. Mas, não é isso que

desejo para as milhares de crianças negras do nosso país.

Essa gente é todo fruto que brota de uma semente plantada

na alma da criança desde a tenra idade chamada amor.

A autora

A menina noite

Nunca dorme

Vai passear

Pela negritude

Do outro lado

Do riso mar

A história

É uma viúva secular

Noite linda

Brincos de argolas

Espera um anjo

Vestido de preto

Cair do céu

No seu pensamento

Lábios de papel

Contam relógios

Uma noite tua

Cada riso teu

É brinquedo

Criado na alma

Ideia menina

Que não se cansa

De correr

Atrás da esperança

O anoitecer de agosto

Tem vontades negras

Perto de estações

Vazias de tristezas

Alegrias encantam

Aves brincantes

É noite o teu riso

Uma noite para Deus

Ouvi as luas

Contarem histórias

Meninos são cocadas

Que a gente traz

Na barriga negra

Com dedo no umbigo

Pezinho da noite

Deixa pegadas

Em guizos azuis

No canto do coração

A criança cresce

Lá dentro um dragão

Acorda a flor negra

Noite de criança

Veste pijamas

Feitos de bolinhas

Na pele negra

Tem uma dama

Que sempre sorri

Ao soninho atrasado

Dorme, noite minha

Noite encantada

Dorme a lua

No céu negro

Que vira jacaré

Ao coçar o pé

É segredo da noite

Pintar meninos

Anoitecidos

Uma noite ao sol

Brincam os outonos

Sem se cansarem

Flores também querem

Ser negras meninas

Com tranças na alma

A sonharem coisinhas

Nunca esquecidas

O sol é amigo da noite

Poema à noite

Cantam os lírios

E a negra flor

A sorrir do tempo

Meio zonza

Acordou assustada

Com uma ave

Fez cocô no seu pé

Noite saudosa

Deixou do outro lado

O seu chapéu

Negro sonho

Não faz visita

Dia nenhum mais

Acabam as ruas

Na porta fechada

A noite bela

Cria uma lebre

Que gosta de pintar

Meninos negros

No seu sonhar

A brincarem

De ciranda

Em luas cheias

Noite minha

Traz mistérios

Na pele negra

Sofrida

Bem acordada

Risonha de si

Quando ganha

Uvinhas do sol

Noites dorminhocas

Nunca se cansam

De voar céus

Um mundo melhor

À negritude

Espelho para vida

Amores aos séculos

Vestidos em lugares

Abrigos de sonhos

Em noite quente

Há um menino

De pele negra

Que dorme

De calção

No chão da lua

Atrás do vento

À espera de amor

Belo sentimento

Duas noites

Ontem o céu viajou

Levou a flor negra

Na sua bagagem

Subir montes

Atravessar rios

É preciso coragem

Para não esquecer

De sorrir novamente

Meia noitinha

Esse menino

Com olhos

Em mundos

Artesãos de sonhos

A pele negra

Também ama

Girassóis azuis

Em vasos de barro

Boa noite

Sou um tomate

Da cor negra

Alegre a brincar

Quero viver

Entre as flores

E os leões

Daquele lugar

Onde nasce o amor

Senhora noite

Passeia na rua

Da flor negra

Com três sapatos

Essa noite surda

Lábios rosados

Visita meninos

Em oceanos peraltas

Deixa um pouco de si

Leva muito de mim

É gentil senhora

O relógio da noite

Não conta as horas

Dorme na parede

A noite descansa

No sofá do acaso

É preciso tecer

Amor às crianças

Sem tempo contado

Para amar a história

Avós têm lembranças

Chuva de noites

Voltava da batalha

Debaixo de um sol

Sem vestes

Um lírio negro

Deu-me seu encanto

Enquanto chovia

Noites estreladas

Ao meio-dia

E eu sorria

Ainda há amor

O bicho da noite

A noite é menina

Em casinha

De botão preto

Cria um elefante

Na agulha de mão

A costurar

Meio coração

No casaco do menino

Que deseja um dragão

Noite amiga

Esse pedaço de céu

Dentro da sacola

Conversa de amores

Ao menino negro

Que não colhe flores

Com medo da mão

Ódio escondido

Onde dorme a opressão

Fere o dedão

Mas não fica de mal

A boniteza da noite

Há noites filhas

De fadinhas

São tão bonitas

Assim escondidas

Do meio tempo

Que nunca quer brincar

De amar dois ventos

Há noites bonitas

Em pés de meninos

A negritude é vida

Céu da noite

Passa a onça

No meio do mato

Perdeu as pintas

Está negra

Sorriem as estrelas

Da onça engraçada

Que comeu cocada

Para virar negra

Ser igual

Ao olhinho da noite

Busca o seu céu

Entre noites

O menino perdeu

Soninho órfão

Foi dormir atrás

Da porta da rua

Onde a lua

Sabe brincar

De negritude

Que nunca chora

Vive a se alegrar

Bola da noite

A bola rola

Rola a bola

Menino negro

Negro menino

Sabe amar

Ama viver

Dentro da bola

A bola rola

Rola a bola

Asas da noite

Se esta rua

Fosse minha

Pediria aos céus

Virar anjo

Dá asas à noite

Para voar mundos

Onde meninos negros

Choram suas fomes

Amor, alimento vivo

Coração da noite

Sempre que beijo

O último menino

Da meia-noite

Visto a negritude

E vou passear

No coração da noite

A visitar histórias

Tia Anastácia

Conhece minha vida

Sou a negrinha do

Passarinho morto

A cor da noite

Tem sentinelas

Dormindo nos céus

Anjos fogem

À meia-noite

A negritude sonha

Com flores alegres

Em corações doces

Salvas do ódio

Recebem carinho

Afeto faz o menino

Virar herói em chão duro

Numa aquarela

Pintada de preto

A cor da noite sorri

Posfácio

Era uma vez uma Noite que vivia esquecida pelo próprio

Tempo. Mesmo quando alguém se lembrava dela,

geralmente era para falar sobre coisas tristes, como o medo,

o pesadelo, a violência e a morte. Ou então, para dizer como

ela “conseguia” ficar bonita quando havia uma lua bem

branca e brilhante no céu ou quando muitas estrelas,

também bem branquinhas e mais brilhantes ainda, a

enfeitavam. A Noite, por isso, chegava a ter medo dela

própria.

Certa ocasião, porém, uma fada negra, capaz de bordar

tecidos de palavras, resolveu olhar para a Noite e cobri-la

com o tecido do Amor. Vestida com esse tecido de versos

sensíveis, a Noite conseguiu se olhar no espelho do Tempo

e descobriu que não precisava de mais nada, a não ser de

coragem, para olhar para si mesma e compreender a

imensidão de sua beleza.

E a Noite se viu com lindos “brincos de argola”; percebeu

“alegrias” que “encantam” habitando seu sorriso; viu em

sua pele negra “uma dama/que sempre sorri”; constatou sua

magia capaz de transformar o “céu negro” num “jacaré”

(um segredo lindo guardado no pé!); descobriu,

deslumbrada, que “o sol é seu amigo”; vislumbrou-se como

uma senhorinha, “flor negra/com três sapatos”, toda prosa

por ser, ela mesma, uma “Ideia menina/Que não se

cansa/De correr/Atrás da esperança”.

Deslumbrante em seu vestido de Amor, a Noite resolveu

ser, ela própria, espelho também e convidou meninos e

meninas de todas as idades a aprenderem beleza com ela.

Beleza que tem todas as cores da negritude, que, afinal,

também é feita de azuis, amarelos, vermelhos, verdes,

marrons, roxos, brancos e toda a infinita gama de misturas

que a experiência de viver em plenitude permite.

A Noite, enfim, se tornou plena. E forte. E capaz de dizer

um sonoro “NÃO!” às vozes que a oprimiam e silenciavam.

Quando a Noite, vestida de Amor, se fez plena, o mundo

anoiteceu ao som da mais linda cantiga de fraternidade e

respeito. E os mais lindos desenhos da Noite se espalharam

pelas casas e pelos corações das crianças, reinventando a

Vida.

Danda Pezinho da Noite é o nome da fada.

Christina Ramalho

Professora da Universidade Federal de Sergipe

Este livro foi composto na fonte

Times New Roman,

tamanho 18.