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    Arqueologia da violnciapesquisas de antropologia poltica

    Pierre Clastres

    Prefcio de Bento Prado Jr. | Traduo de Paulo Neves

    Publicado em 1980 | Edio brasileira de 2004

    Editora Cosac & Naify

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    NDICE

    Captulo 1

    O ltimo crculo ................................................................................... 18Captulo 2Uma etnografia selvagem...................................................................... 38

    Captulo 3Atrativo do cruzeiro.............................................................................. 47

    Captulo 4Do etnocdio ........................................................................................ 54

    Captulo 5Mitos e ritos dos ndios da amrica do sul................................................ 64

    Captulo 6A questo do poder nas sociedades primitivas ........................................100

    Captulo 7Liberdade, Mau encontro, Inominvel ....................................................107

    Captulo 8A economia primitiva...........................................................................121

    Captulo 9O retorno das luzes .............................................................................137

    Captulo 10Os marxistas e sua antropologia ...........................................................146

    Captulo 11Arqueologia da violncia: a guerra nas sociedades primitivas....................158

    Captulo 12Infortnio do guerreiro selvagem ..........................................................188

    Sobre o autor .....................................................................................223

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    Prefcio*

    A outrem, mais competente, caberia a tarefa de apresentar e analisar de formasistemtica a obra de Pierre Clastres, parcialmente conhecida pelo leitor brasileiro,graas traduo de seu livro A sociedade contra o Estado.1 Outro o propsitodesta breve nota, que pretende apenas apontar alguns momentos de seu itinerriointelectual, que (interrompido embora por uma morte precoce) marcou tofundamente a etnologia, o pensamento poltico e a filosofia da Frana de nossos dias.Tarefa menor que, estando ao alcance de quem teve a sorte de conviver com o autordesde o incio da dcada de 60, pode ser til ao leitor, dando-lhe uma viso (mesmo

    que impressionista) do movimento nico que, atravessando etapas sucessivas, vemculminar em seus ltimos escritos, reunidos neste volume. Como, com efeito,compreender plenamente uma obra sem reconstituir o andamento sinuoso queconduziu sua expresso) mais completa? Aquele caminhar, por vezes hesitante, quea verso final tende a obliterar, mas que no deixa de habitar o espao aparentementebranco de suas entrelinhas.

    Talvez no seja intil recuar no tempo: como Lvi-Strauss, Pierre Clastresiniciou na etnologia a partir de uma formao prvia no campo da filosofia. Mas,ainda que tenha dado seus primeiros passos nesse novo domnio sob a inspirao domesmo Lvi-Strauss, certo que tal converso no correspondeu a uma ruptura toradical como a descrita em Tristes trpicos, onde a filosofia ultrapassada no eraconservada, mas rejeitada como retrica escolstica e estril. No caso de PierreClastres, o respeito pelo mestre da etnologia francesa no o conduzia a umadenegao do passado ou da filosofia: a prtica da anlise estrutural no interrompeuo convvio, por exemplo, com a filosofia alem. Caso raro, para quem se lembra da

    atmosfera intelectual da poca, quando o "estruturalismo" (o efeito ideolgico oumundano da anlise estrutural) se apresentava como uma espcie de Juzo Final daRazo, capaz de neutralizar todas as ambigidades da Histria e do Pensamento. Seno me falha a memria, no incio dos anos 60, mesmo durante sua dura convivnciacom os "primitivos" do Paraguai, Clastres no interrompeu sua meditao a respeitoda Carta sobre o humanismo e dos Ensaios e conferncias de Heidegger. Hertico deprimeira hora, e no momento mais vigoroso e dogmtico da vaga "estruturalista", nohesitava em vislumbrar, na hegemonia dos modelos lingsticos na prtica das

    * Este texto foi publicado como "nota preliminar" primeira edio brasileira deste Arqueologia da violncia pesquisas de antropologia poltica (Brasiliense, 1982).1 Pierre Clastres,A sociedade contra o Estado (So Paulo: Cosac & Naify, [1974] 2003).

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    cincias humanas, algo como um eco da hegemonia do Logos, da idia de que "alinguagem a manso do Ser" e de que o Homem "habita a linguagem". Para aortodoxia da poca, docemente positivista, mais que heresia, tal sintonia seriaperigoso sintoma de "irracionalismo" ou obscurantismo.

    Avesso, assim, ao cientificismo do tempo, compreensvel que Pierre Clastresse distanciasse desde sempre da vertente puramente formalista por onde deslizavaento boa parte dos discpulos de Lvi-Strauss. Mas essa heresia primeira no sefundava apenas numa questo de gosto filosfico ou, mais simplesmente, de umaopinio externa prtica cientfica. Detenhamo-nos, por um instante, no belssimoensaio "La Philosophie de la chefferie indienne" [A filosofia da chefia indgena],publicado em 1962, acessvel ao leitor na edio brasileira de A sociedade contra oEstado, que exprime exemplarmente o primeiro momento da obra. O texto nos

    importa porque, sendo ponto de partida, revela com clareza o ponto de heresia quecomeamos a descrever: esse clinamen, cujo ltimo resultado o presente volume e a

    forma que o anima. No apenas a presena da palavrafilosofia no ttulo (e que, noentanto, tem histria), nem a ausncia de qualquer algoritmo ao longo do texto, quenos interessam no momento (embora uma e outra coisa no sejam indiferentes nadefinio de um estilo). O que nos interessa nesse ensaio, que alcanou grandenotoriedade logo aps sua publicao, o modo pelo qual ele pe em xeque atransparncia da troca e da comunicao como regra de constituio da sociedade.

    No cabe, aqui, resumir esse texto mais que conhecido, mas sublinhar a maneira sutilpela qual o autor mostra como o exerccio do poder nas sociedades primitivasintroduz um mnimo de obscuridade na clareza da pura reciprocidade. O problema odo chefe, sujeito de um poder sem eficcia e de um discurso sem interlocutores.Nesse ponto crtico, uma sociedade que se desdobra segundo o esquema dareciprocidade encontra sua sombra ou seu negativo: o lugar onde se interrompequalquer comunicao. E, no entanto, esse negativo possui substncia, j que indispensvel costura da sociabilidade. A lio que da se tira a seguinte: nobasta construir os modelos da troca para captar o serdessa sociedade. Para tanto, preciso captar algo como uma intencionalidade coletiva, mais profunda do que asestruturas que a exprimem, a qual funda justamente uma sociabilidade que cerca opoder como negativo, para prevenir sua separao do corpo social, assim como capaz de transformar a linguagem (que era signo) em valor. Desde o primeiromomento, ontologia do social e reflexo sobre o Poder esto intimamente associadas.

    Mas, com essa deciso terica, no apenas o famoso imprio da "estrutura" que

    entra em crise, pois, com ele, o fio diacrnico das "filosofias da histria" que sofreum grande abalo. No paradoxal, com efeito, que uma sociedade se organize para

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    impedir o nascimento de uma figura que ela desconhece? O tempo, tal como no-lorepresentamos comumente, no severamente subvertido? Presente, Passado, Futurodo cabriolas e parecem embrulhar-se de maneira incompreensvel. Mas,simplifiquemos e datemos: no fim da dcada de 60 e no comeo da seguinte que

    Pierre Clastres abre o segundo momento de seu itinerrio. a que comea a tirar osefeitos tericos mais gerais de seus primeiros trabalhos e passa da pura etnologia paraaquilo que poderamos chamar de crtica da etnologia. As chamadas cinciashumanas pensariam, hoje, as sociedades primitivas de modo diverso da filosofiaclssica? De fato, a metafsica clssica (e as cincias humanas dela dependentes)habituou-nos a pensar o tempo como linear e a histria como cumulativa:imaginemos uma linha ascendente, que conduz do menos ao mais, do nada ao ser, dopossvel ao real. J Bergson denunciava uma coisa e outra, particularmente em sua

    bela crtica da idia do nada e da iluso retrospectiva. Decifrar o passado como umpresente incompleto descrever o passado como perfurado pelos alvolos do nada,diria Bergson. No muito diferente o que diz Clastres a respeito da representaodominante das sociedades sem Estado: esse organismo que abriga, em seu interior, ovolume de uma pura ausncia. Mas ser bem assim, ou tal proposio deriva dailuso retrospectiva e das miragens da ausncia, fantasmas de nosso pensamento?Iluso retrospectiva, miragem da ausncia, concepo do Estado como destino dahumanidade - todos esses pr-juzos esto entrelaados na representao tradicional

    do primitivo e da Razo, que permanece viva em grande parte da etnologia, nafilosofia da histria e da poltica em nossos dias. Mas - esta a insidiosa perguntaformulada por Pierre Clastres - e se tentssemos pensar de maneira diferente? Por queno pensar a sociedade primitiva em sua plena positividade, liberta da relao linearque a condena ao seu outro ou a seu depois} Com essa questo, o panoramaproblemtico muda de figura: o que se descreve como carncia pode perfeitamenteser descrito como a autarquia de uma sociedade indivisa. O nascimento do Estadono precisa necessariamente ser considerado como a passagem do vazio ao pleno;pode ser visto, mesmo, como queda, passagem da indiviso para a diviso.

    Algum poderia perguntar: "Se assim , como dar conta do nascimento doEstado?". Prudente, Pierre Clastres no pretende responder (embora suas ltimaspesquisas sobre a guerra talvez caminhassem nessa direo, como se pode adivinharem "Arqueologia da violncia", cap. II, infra). Mas podia descartar, pelo menos,algumas respostas correntes. Principalmente a que v o fio condutor da passagem ou

    a lgica do salto na calma continuidade da histria econmica. Como a resposta que

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    uma dentre as respostas fornecidas pelos clssicos do marxismo,2 e que veio a tornar-se nica no marxismo hoje dominante. o que transparece, por exemplo, no prefcioao livro de Marshall Sahlins e nos vrios textos que polemizam de maneira to alegree cruel, com os etnomarxistas. Ao contrrio dessa viso, no a diviso econmica

    que cria as condies do poder separado; pelo contrrio, a emergncia do Estado ouda diviso social que desencadeia aNecessidade, destino e economia.Eis, portanto, que este itinerrio fecha seu crculo: saindo da filosofia, passando

    pelo trabalho etnogrfico de campo, l descobrindo a articulao entre a ontologia dosocial e a reflexo sobre o Poder, ampliando o alcance terico do primeiro passo nadireo de uma crtica das cincias humanas, somos devolvidos s questesfundamentais da filosofia poltica {em tempo, se Clastres era leitor de Heidegger,sempre foi leitor atento da Filosofia do direito de Hegel e do Contrato social e

    Rousseau). Antes mesmo da publicao, em 1974, de A sociedade contra o Estado,seus ensaios j haviam sido acolhidos como ponto de referncia essencial da filosofiafrancesa. o que eu podia perceber, acompanhando os cursos das universidades deParis, j em 1970, antes talvez do que o prprio Clastres, muito ocupado em seutrabalho solitrio. Mas, repito, o crculo se fecha com o terceiro momento da obra, esua expresso exemplar o texto sobre La Botie, tambm presente neste volume. O

    Inominvel, expresso que figura no ttulo desse ensaio, d o que pensar. Pois no apenas a uma antropologia poltica que se chega ao fim do itinerrio (ou ao reinicio

    de uma perptua reiterao), mas imbricao entre antropologia, poltica emetafsica ou melhor, arqueologia simultnea desses discursos, hoje dispersos.Se o etnlogo era obrigado a abandonar sua sociedade, a exilar-se numa sociedadeoutra, para melhor compreender a sua, o pensador, ao contrrio do cientista, obrigado a desertar o pensamento poltico presente, buscar seu outro no passado, paramelhor assimilar aquilo que rumina no presente. Principalmente se esse outro, comoLa Botie, comea por colocar em questo a evidncia que normalmente (dosclssicos aos contemporneos) se via como ponto de partida: o paradoxo, por eleformulado, da submisso como objeto de desejo, e no como destino sofrido doexterior. Tarefa intil, talvez, para os cientistas polticos, para quem a poltica nooferece mistrio, mas indispensvel para aqueles a quem a histria contemporneaobrigou a desconfiar de suas mais caras certezas. O que o Poder? Seria esta umapergunta v?

    * * *

    2Cf. Claude Lefort, "Marx: de uma viso da histria a outra", inAs formas da histria (So Paulo: Brasiliense, 1979).

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    Fixei trs pontos e tracei uma linha, de maneira grosseira, como soem fazer osleigos. Sobretudo no pude sequer evocar a fisionomia viva do autor e do homemlivre que deixou passar por seu pensamento (no recalcou) o horror dos dois"mundos" que dividem nosso planeta. Pelo menos mostrei alguns dos momentos do

    impacto que o pensamento de Pierre Clastres exerceu sobre seu amigo brasileiro.Bento Prado Jr.

    LEMBRANAS E REFLEXES SOBRE PIERRE CLASTRES:ENTREVISTA COM BENTO PRADO JNIOR

    Realizada em sua casa em So Carlos (SP), em julho de 2003, por Piero deCamargo Leirner e Luiz Henrique de Toledo,* para a Revista de Antropologia do

    Departamento de Antropologia Social da USP.

    Agradeo Revista de Antropologia e a meus colegas da UFSCar, que me doagora a oportunidade de lembrar meu saudoso amigo Pierre Clastres. E certo que suaobra cada vez mais lida e valorizada, tanto no Brasil como na Frana. Mas talvezescape ao leitor de hoje algo de essencial em seus escritos visvel apenas entre asnvoas das entrelinhas , mais facilmente acessvel para quem com ele conviveucomo amigo prximo: aquilo que h de propriamentepessoal e irrepetvel no perfil

    intelectual de Clastres e que seu estilo asctico e rigoroso tende a esconder.O curioso que h poucos meses, conversando com Hlne Clastres, convidei-a

    para uma visita a nossa Universidade, em So Carlos. Ela poderia falar, para ns, desua prpria obra penso aqui, entre outros escritos, no belo livroA Terra sem Male da de seu marido, to essencialmente ligadas uma outra e reciprocamenteiluminadoras. A resposta no foi imediatamente positiva, mas permito-me guardar aesperana de receb-la num futuro prximo para ouvi-la a respeito desse captulo topeculiar do "estruturalismo" francs, especialmente nas dcadas de 60 e 70 do sculopassado, cuja fora s aparece plenamente nos dias de hoje.

    Professor, conte sobre seu encontro com os Clastres.

    Na verdade, conheci Pierre antes de Hlne. Foi logo depois da volta de minhaprimeira viagem Frana, em 1963. No segundo semestre desse ano, FernandoHenrique me convidou sua casa para que eu conhecesse dois antroplogos francesesque passavam pelo Brasil em direo ao Paraguai: Pierre Clastres e Lucien Sebag.

    * Professores Adjuntos do Departamento de Cincias Sociais, da Universidade Federal de So Carlos.

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    Hlne ficara em Paris - ela aguardava, se a data acima est correta, o nascimento deseu filho Jean-Michel. Algum tempo depois (dois anos?), acompanhada de seu filho,foi encontrar-se com Pierre entre os ndios do Paraguai, que deram ao menino o belonome deBaimam (pequena coisa redonda).

    Alis, no s a mim que falta a memria. Recentemente, para estabeleceralguns dados biogrficos do autor para a nova edio de A sociedade contra oEstado,1 a coordenadora telefonou-me perguntando a respeito de datas: estadias noBrasil, cursos na USP etc. Telefonei para a Hlne em busca de ajuda, mas seu auxliofoi muito pequeno. Os tempos passam...

    De qualquer maneira, a partir da segunda estadia de Pierre no Brasil, ficamosmuito prximos. Muitas manias, tericas e outras nos eram comuns. Freqentemente,na rua Maria Antonia [no centro de So Paulo], o Pierre me perguntava: "Que

    horas so?". E minha resposta, acrescentava : "Il faut commmorer cela/". Aprendiento algumas verses do ato da libao em argot, como: se jetter quelque chosederrire la cravate ou se picrter la cervelle.**Em 1969, quando fui cassado pelo AI-5 e tive de retornar Frana, acabei alugando um apartamento no limite de Paris,entre Vanves e Issy-les-Moulineaux, bem perto do dos Clastres, com quemmantivemos contnua e perfeitamente fraternal convivncia at agosto de 1974. Paramim foi um profundo abalo saber, trs anos mais tarde, do acidente que o levou morte. Naqueles anos chegamos a passar (eu, Lcia e nossos filhos) trs frias juntos:

    no Laric, num pequeno castelo do sculo XVI nos Alpes [ver foto p. 2, supra], depropriedade dos pais de Hlne; nas Cvennes, numa casa secundria de Pierre eHlne; e na Gasconha, em Boussens, na casa do pai de Clastres. curioso notar quePierre, fino escritor, era gasco (como d'Artagnan) e s veio a aprender o francs naescola.

    Ele lecionou na Universidade de So Paulo quando veio para c?

    Se no me engano, lecionou formalmente na USP em sua segunda estadia, em1967, mas em maio de 68 j estava empenhado em construir slidas barricadas nosboulevards de Paris. No entanto, antes de ele dar incio a suas atividades docentes,pude ouvi-lo no apartamento do Grard Lebrun, quando fez uma exposio informalde seu texto "Philosophie de la chefferie indienne".2 Grosso modo, a chefia umlugar particular e diferencial no sistema de trocas e comunicaes (de bens, mulherese palavras). O chefe recebe mulheres sem compromisso de reciprocidade (embora

    1 Cosac & Naify, 2003** As duas expresses so equivalentes a "tomar umas e outras"; literalmente, correspondem a "jogar alguma coisa atrs da gravata" e"botar picrato (elemento do vinho) no cerebelo". [N.E.]2 Texto de 1962, publicado sob o ttulo "Troca e poder: filosofia da chefia indgena", inA sociedade contra o Estado, op.cit., cap. 2.

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    seja obrigado generosidade na retribuio de bens materiais) e, sobretudo, obrigado a emitir um discurso interminvel (por assim dizer), sem inter-locuo ouqualquer dimenso performativa. Chefia = discurso sem poder. Como se o sociusenclausurasse a chefia no mnimo espao imaginvel - uma espcie de "priso". No

    avesso do paradoxo "obedincia voluntria", o paradoxo inverso: "chefia sem poder".E claro que a exposio me impressionou forte e imediatamente. E acrescento que aexpresso Philosophie de Ia... foi sugerida ou imposta por Lvi-Strauss. Talvezporque o texto lhe parecesse ultrapassar a pura etnografia, caminhando j na direode uma teoria geral da Poltica e do Estado. Na direo da estranhssima idia de queuma sociedade sem Estado no desconhece a essncia do Estado; pelo contrrio, capaz de prevenir-se contra sua emergncia! No limite, como no h pensamento pr-lgico, no h paraso pr-poltico. Desde a origem, o verme est no fruto.

    Curioso, pois justamente nesse texto, em que faz uso de termos do estruturalismo toem voga naquela poca, Clastres talvez d um passo tambm para afastar-se dele, no ?

    De fato, importante sublinhar essa deriva ou esse desvio face ortodoxia.Alis, em meu Prefcio (ver supra) insisto nesse aspecto e o associo relaopermanente de Clastres com a filosofia, mesmo se distncia. Isto me visvelporque tnhamos mais ou menos a mesma idade e havamos lido a mesma bibliografiafilosfica.

    No h dvida de que, no fim da dcada de 50 e incio da de 60, a palavraestruturalismo remetia essencialmente obra de Lvi-Strauss. No se conhecia aindaessa espcie de ideologia que explodiu na mdia no fim da dcada de 60,identificando Lvi-Strauss, Lacan, Foucault, Barthes etc, autores de obras todistantes, em tantos aspectos, umas das outras. Tanto que, em 1968, convidado afazer uma conferncia em Curitiba, comecei minha exposio afirmandodramaticamente: "No existe isso que se chama de pensamento estruturalista!". Insistinas diferenas radicais que separavam essas obras e na riqueza que se perdia namesmice do amlgama ideolgico.

    Mas desde sempre Clastres percorreu um itinerrio muito particular, mesmo emrelao ortodoxia lvi-straussiana, porque jamais foi tentado a abandonar ohorizonte da filosofia pelo do formalismo algbrico (o imprio dos "grupos detransformao") que havia aspirado para dentro de si a maioria dos discpulos doautor d'As estruturas elementares do parentesco. Itinerrio marcado pela remannciados interesses filosficos (como Hlne, Pierre foi aluno de Gilles Deleuze, que

    ambos pareciam admirar muito) e pelo evidente gauchisme de que Clastres jamais sedemarcou. Lembro-me de uma frase curiosa de sabor kantiano , em que ele

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    dizia "A revoluo impossvel, mas devemos agir como se ela o fosse". Alis eusublinho, no Prefcio j referido, o outro aspecto dessa heterodoxia: o fato de queClastres nunca deixou de ser um leitor da Carta sobre o humanismo de Heidegger. Eno impossvel pensar a idia das relaes entre estrutura da linguagem e estrutura

    da natureza sobre o fundo da idia da "linguagem como Manso do Ser"...O que mais me marcou na obra de Clastres foi o fato de sua idia central colocarem cheque uma espcie de "evolucionismo" implcito na antropologia poltica,exemplarmente ilustrada, no sculo XIX, pela filosofia da histria de Engels, quepassou a fazer parte do ABC do marxismo ou, pelo menos, do marxismo vulgar.

    Trata-se de uma relao com a filosofia seguramente diversa da queencontramos em Lvi-Strauss. Para este, passar para a antropologia era livrar-se deuma carga intil. Para ele, a filosofia sempre esteve ligada filosofia praticada na

    universidade, ao vazio das "dissertaes", em que possvel demonstrar tudo ou nadapor meio de uma dialtica puramente abstrata - no fundo, mera retrica. Para Lvi-Strauss tudo se passa como se a filosofia fosse essencialmente uma iluso, ou umaforma pobre do pensamento selvagem. o que se pode, talvez, vislumbrar numpargrafo muito curioso de O Totemismo hoje. Em certo momento desse livro, elesublinha como alguns textos de Bergson so esclarecedores para a compreenso damitologia de uma tribo indgena da Amrica do Norte. Esclarecedores, por mostraruma afinidade profunda com essa mitologia. Bergson, penseur sauvage... Sendo

    capaz de explicar a mitologia, o antroplogo explica tambm a metafsicabergsoniana...3

    No caso de Clastres, no encontramos nada de semelhante a essa arrogantediminuio da filosofia. No tinha a pretenso de escrever como filsofo ou, pelomenos, como filsofo "profissional", se tal coisa existe. Mas sua prtica da etnografiaacaba por desaguar na reflexo filosfica. talvez por essa razo que a obra dePierre, como a de Hlne, esto voltando a ser pontos de referncia essenciais, comose fosse necessrio transcender, de algum modo, o estilo do "estruturalismo", paramanter seu esprito mais vivo e assegurar sua permanncia, para alm das ondulaessuperficiais dos maneirismos, da moda intelectual ou da ideologia.

    Talvez isso se deva tambm ao fato de haver um movimento dentro da antropologiabrasileira que pretende, a partir da dita "filosofia indgena", fornecer vises alternativas prpria filosofia ocidental...

    A vocs se referem ao [Eduardo] Viveiros de Castro... Com quem, alis, pude

    discutir o assunto numa ANPOCS recente. Mas, voltando ao Clastres, posso acrescentar

    3Cf. Henri Bergson,Les Deux sources de la mora/e et de la religion (Paris: PUF, [1932] 1948).

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    Giannotti no gostam muito de boteco, no ?". Ao que respondi: "Infelizmenteno").

    Giannotti critica, em Trabalho e reflexo a metafsica de Clastres.6 No Prefcio{supra) que o senhor escreveu, ao contrrio, essa metafsica assume um valor

    positivo.Giannotti faz uma crtica muito fraca, confessemos. A despeito da complexidadede sua obra (desde a "ontologia do social" de inspirao feno-menolgica at aincorporao das idias de Wittgenstein, passando por Hegel e Marx) impossvel -apesar da graa que h na aluso aos versos de "A tabacaria", de Fernando Pessoa,sobre a "metafsica do comer chocolate" no ver a a resistncia do pensamentoespeculativo (a "lgica" especulativa da posio/reposio) ao trabalho etnogrficono que ele tem de mais concreto e iluminador. Em Clastres no encontramos

    nenhuma ontologia a priori daproduo. Mas, como diria Wittgenstein, nos limitesde seu trabalho etnogrfico, algo de metafsico deixa-se ver ou mostrar. Mais queuma metafsica positiva, uma metafsica interrogativa.

    Trata-se de interrogaes essenciais que no poderiam emergir seno daexperincia etnogrfica, e que so inacessveis a um armchair philosopher, para usara expresso de Sir Bertrand Russell, contra os filsofos da "virada lingstica". OGiannotti, que no etnlogo, s percebe as conseqncias filosficas do trabalho,sem reportar-se slida base de que derivam. Sinceramente prefiro o movimento

    regressivo que nos leva do fato s suas condies formais ou transcendentais. Parece-me perigoso o caminho inverso, da deduo do emprico ou de seu enquadramentoautoritrio num esquema prvio desenhado pela imaginao especulativa: porexemplo, algo como a "forma lgica" da prxis na sua mais abstrata generalidade.Quando se trata de pensar sociedades ou a Histria, ento...

    curioso, pois a escola sociolgica francesa tambm se caracteriza pelo carter coletivo

    da produo intelectual e Clastres destoa um pouco...

    Clastres estava ligado institucionalmente ao Laboratoire d'Anthropolo-gieSociale do Collge de France, do qual Lvi-Strauss era o diretor. Mas isso no oimpediu de, mais tarde, colaborar intensamente com o grupo da revista Libre,liderada pelo Claude Lefort, e que reunia tambm pessoas como Mareei Gauchet,Miguel Abensour, Cornelius Castoriadis, Krzysztof Pomian e Maurice Luciani.

    6Cf. Jos Arthur Giannotti, Trabalho e reflexo (So Paulo: Brasiliense, 1984), p. 160: "Muitas vezes Clastres faz mais metafsica doque teoria, toma a tica do Ser abstrato, com a simplicidade de quem come chocolate. Se existe metafsica em comer chocolate, parapens-la convm lembrar que o chocolate precisa ser produzido antes de ser comido, e o Ser, um contedo para ser efetivamentepensado".

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    Clastres compartilhava sua experincia de campo com o senhor?

    Em nossas conversas ele sempre relatava suas experincias. Comecemos pelasmais engraadas. Certa vez, uma ndia, tentando seduzi-lo, chegou a pedir auxlio aseu principal marido (tratava-se de uma sociedade polindrica), que disse a Clastres

    que no haveria problema, que a boa ordem seria restabelecida com uma puniopuramente simblica. Ele fingiria atingi-lo na cabea com seu tacape, masinterromperia o gesto antes do choque. Clastres guardou a idia da punio simblica,mas recusou os avanos da mulher e a argumentao do zeloso marido. Duas outrashistrias, relativas aos informantes indgenas: a do informante incompetente e a doinformante malvolo. O primeiro, interrogado a respeito da palavra guaranicorrespondente a jamais, foi incapaz de responder imediatamente. No dia seguinte,todo alegre, trouxe a resposta; a palavra seria... "ni noticia", e acrescentou: Guaranilegtimo! O segundo, a quem Clastres perguntara o nome de uma ave que sobrevoavaa paisagem, respondeu prontamente: "tatu". Prelibava, certamente, os mal-entendidosem que seu interlocutor se enredaria com esse uso extravagante da lngua indgena!

    Outra situao pouco confortvel era a das lutas com os Yanomami, gente muitoforte. Clastres tambm era forte e praticava carat constantemente (pude v-lo, nasfrias que passamos juntos, exercitando-se em quebrar tijolos e pedaos de madeiracom a "lmina" da mo, que era sempre necessrio enrijecer). Mas ele temia que,

    entre os Yanomami, o bom esporte se tornasse luta real e por que no? mortal.Recorria ento a um golpe infalvel: fazia ccegas no adversrio. Prtica indita quedesmontava os ndios que, morrendo de rir, interrompiam a peleja.

    Uma preocupao cuidadosa com a dimenso no-agonstica do jogo, transformar o jogo num esporte, numa competio. O que no deixa de suscitar uma espcie de nostalgiada sociedade primitiva.

    Pode-se falar, creio, de nostalgia. Mas, no caso de Clastres, assim como no de

    Rousseau, no se trata de um convite a um retorno impossvel. No se pode lerRousseau como fazia Voltaire que, depois de ler o segundo Discurso, escreveu aJean-Jacques dizendo que j estava velho demais para voltar a andar de quatro...

    Ironia, talvez?

    Ironia, certamente e formidvel piada, de um grande especialista nesse gneroliterrio. Mas, tambm, enorme equvoco. Voltaire no podia entender Rousseau, queafirmava explicitamente que no se pode regredir na Histria.

    Mas, de qualquer forma, em Clastres no h uma nostalgia ingnua.

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    No, ao contrrio. Trata-se antes de lanar luz sobre o presente de uma maneiraque no linearmente catastrofista. No caso de Rousseau talvez se possa falar emcatastrofismo, j que ele pensa que, a partir de um certo momento, a Histria caminhanecessariamente na direo de uma multiplicao da violncia: a linguagem perde sua

    fora e cede lugar violncia fsica. Desse ponto de vista, Rousseau ope-sefrontalmente ao otimismo da Filosofia das Luzes. A antropologia poltica de Clastresno d lugar a uma teleologia da histria, quer otimista, quer catastrofista. No queno deixa de aproximar-se, pelo menos nesse ponto, de Michel Foucault, queconheceu pessoalmente no Brasil em 1965. Mas jamais festejou o "Retorno doEspiritual em Poltica", como fez Foucault por ocasio do acesso de Khomeini aopoder no Ir.

    0 senhor classificaria Clastres como um etnlogo de campo?

    Quanto a isso no h a menor dvida. Seu primeiro livro7 a primeira evidncia;trata-se de etnografia pura. Mesmo quando se encaminha na direo de umaantropologia poltica que toca os limites da filosofia poltica, ele sempre o faz a partirde sua extensa experincia de campo.

    E o senhor acha que a experincia de campo foi muito transformadora para Clastres emrelao sua pessoa?

    Creio que sim. Basta pensar em seu itinerrio: iniciou o curso de filosofiaem 1954 e deve t-lo terminado em 1958, quando comeou a assistir s aulas deLvi-Strauss e interessar-se mais pela antropologia. Vejamos as datas [apanha umexemplar de A sociedade contra o Estado e passa em revista as datas e os dadosbiogrficos]: "[...] Durante as aulas de licenciatura comea a interessar-se por estudosetnolgicos, seguindo o curso de Lvi-Strauss no Collge de France a partir de1960".8 Provavelmente assistimos juntos s aulas de Lvi-Strauss no ano letivo de1962-63. No me lembro dele nas aulas, nem seria possvel lembrar. Recordo quefreqentei o curso ao lado do Fernando Henrique e do Giannotti. Essas aulas eram

    assistidas por umas cem pessoas, mais ou menos. [Segue lendo] "Em 65 defende suatese de doutorado 'Vida social de uma tribo nmade - os ndios Guayaki doParaguai'". A tese se transformaria em seu primeiro livro. Note-se que entre o comeodo interesse pela antropologia e a redao desse excelente livro medeiam apenascinco anos. E a histria de uma converso, de uma mudana de hbitos que no soapenas intelectuais, mas que atingem a carne da vida cotidiana na sua totalidade.Provavelmente essa converso no foi to difcil, porque aparentemente ele semprehavia sido algo rebelde face s regras que governam nosso cotidiano. Estava dealgum modo preparado para uma converso que no foi apenas do olhar ou da teoria,

    mas uma transformao de seu prprio modo de viver, na sua mais trivial7 Cf. Crnica dos ndios Guayaki. So Paulo: Editora 34, [1972] 1995.8 P. Clastres, A sociedade contra oEstado, op.cit., p. 273.

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    materialidade. Certa vez falou-me, por exemplo, sobre a dificuldade que tinha noParaguai, logo de incio, em simplesmente dormir. Em noites de frio mais intenso, osndios dormiam em volta da fogueira sem a menor dificuldade, pois giravamespontaneamente o corpo de maneira a aquec-lo de todos os lados, como um frangono espeto de um grill eltrico. Mas ele acordava constantemente, semi-assado de um

    lado e gelado do outro. S aos poucos aprendeu a tcnica do que poderamos chamarde "sono giratrio". Como se v, tornar-se etngrafo implica, entre outras coisas,drsticas transformaes de nossas inconscientes "tcnicas corporais". Sem esquecerque Pierre efetivamente aprendeu a "andar na floresta". Depois desse aprendizado(que nos faz lembrar do aprendizado dos "adventcios", que se tornavam"bandeirantes" ao indianizar-se, mudando o modo de pisar, conforme a descrio deSrgio Buarque de Holanda9), acometido de forte malria, foi capaz de caminhar maisde 300 quilmetros atravs da floresta, para buscar o necessrio atendimento mdicono mundo urbano.

    Por isso podemos at evocar essa inspirao maussiana em seu trabalho de campo. Elese aproxima muito mais do refinamento etnogrfico maussiano do que do formalismo derivadoda obra de Lvi-Strauss.

    Certamente. Ele teve uma experincia de campo, de pura etnografia, muito maisextensa do que a do prprio Lvi-Strauss, no?

    Ah, sim. Talvez, ento, observando isso como reflexo na prpria teoria dele, seria

    possvel pensar como o sujeito aparece nessa estrutura. Enfim, o sujeito dotado de vontade,esse ser social primitivo que tem uma vontade, um desejo e um temor, talvez um sujeito queficou impresso na experincia etnogrfica de Clastres.

    Eu no havia pensado nesse aspecto, mas me parece que voc tem razo.Seguramente Pierre jamais participou do montono coro dos profetas da "morte dosujeito". De qualquer modo isso confirma a complementaridade entre a conversoterica e a prtica, entre o sujeito reflexivo e o sujeito inconsciente: nada menosrefletido do que as tcnicas corporais...

    Mudando um pouco de foco, interessante como ele faz da guerra um fatorpositivo, tal como fica marcado em seus ltimos escritos. A guerra tomada a partir,digamos, de sua contrapartida mais positiva para a sociedade.

    Eu precisaria reler esses ltimos textos. Mas posso dizer como ele me apresentoua coisa. Falando dos Yanomami, dizia: a temos uma sociedade composta de vriastribos, dividida no meio pela linha que separa amigos e inimigos, uma sociedadeestruturada, enfim, em torno da Guerra. O que me lembro que, segundo Clastres, ocoeficiente de violncia, envolvido na guerra, era quase igual a zero. As aldeias eram

    9 Cf. Srgio Buarque de Holanda, Caminhos e fronteiras (So Paulo: Companhia das Letras, [1957] 1994), cap. 1.

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    cercadas por paliadas altas e as incurses guerreiras consistiam em raras iniciativasde poucos heris que, durante a noite, lanavam algumas flechas por sobre a paliada,atingindo eventual ou acidentalmente alguma criana ou algum animal, ferindo oombro de um ou outro guerreiro que vagueasse pela noite. E, logo em seguida, os

    atacantes fugiam o mais rpido possvel para suas aldeias. A violncia eclodia, porassim dizer,fora da Guerra. Ela irrompia nas festas em que uma tribo recebia outra,sua aliada, para uma confraternizao; sobretudo quando os convidados eram aliadosdistantes. Como se o aliado mais distante fosse, mais que o inimigo, o verdadeiroobjeto da violncia social. Algumas vezes (necessariamente raras), em meio festa,os convidados eram atacados; os homens massacrados e as mulheres e crianasseqestradas. A violncia era enorme, mas muito pouco freqente, pois de outromodo o sistema no funcionaria, proibindo qualquer forma de aliana. Ela eclodia,

    repito, entre aliados distantes, mas sempre aliados, como sempre ocorreu na nossaEsquerda: o principal inimigo no exatamente a Direita, mas aquele que est suaesquerda ou sua direita dentro da prpria Esquerda, embora hoje utilizemos poucoas flechas e os tacapes [risos]. Assim, a violncia controlada e reduzida, mas jamaiseliminada, como seria o caso numa viso idlica e nostlgica ("idealista") dasociedade primitiva.

    Tenho a impresso de que ele se aproximava de uma espcie de arqueologia daGuerra quando a morte interrompeu seu itinerrio. Sinceramente baseio-me mais em

    nossas conversas. Mas se voc me perguntar como e onde termina a reflexo dePierre Clastres sobre a violncia e a poltica, responderei simplesmente: no sei.

    Em relao convivncia que vocs tiveram na Frana, o senhor ressaltou como o ladorebelde francs de Clastres casou com a etnologia. Mas de que maneira, posteriormente, o"lado etnlogo" dele adentrou, digamos, na vida de cidado francs ocidental?

    Digamos que ele retornou mais instrumentado para manter-se subversivo [risos].

    Ele tinha efetivamente uma vida de militncia poltica na Frana?J me referi sua participao em maio de 68. Pierre certamente esteve

    envolvido politicamente (se no me engano ao lado de gente como Flix Guattari) naoposio guerra da Arglia. Mas ignoro ligaes poltico-partidrias. No possoesquecer, entretanto, que ele chegou a colaborar, nos anos 70, com uma enciclopdiaanarquista italiana, se no me falha a memria.

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    Captulo 1

    O LTIMO CRCULO

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    O ltimo crculo*

    Adeus viagens, Adeus selvagens..C. Lvi-Strauss

    "Escuta! a corredeira."A floresta ainda no permite ver o rio, mas o rumor das guas chocando-se

    contra as grandes pedras se faz ouvir nitidamente. Quinze ou vinte minutos demarcha e alcanaremos a piroga. J no sem tempo. Um pouco mais e eu acabariaminhas cabriolas rente ao cho, com a cara na lama, rastejando no hmus que sol

    nenhum jamais seca como Molloy...**

    Ainda que imagin-lo na Amaznia seja meiodifcil.

    H cerca de dois meses, Jacques Lizot e eu circulamos pelo extremo sul daVenezuela, no territrio dos ndios Yanomami, ali conhecidos pelo nome de Waika.Sua regio a ltima inexplorada (inexpugnada) da Amrica do Sul. Beco sem sadaao mesmo tempo do lado venezuelano e do lado brasileiro, essa parte da Amazniaope at hoje uma srie de obstculos naturais penetrao: floresta ininterrupta, riosque deixam de ser navegveis quando nos aproximamos de suas nascentes,

    afastamento de tudo, doenas, malria. Tudo isso pouco atraente paracolonizadores, mas muito favorvel aos Yanomami, que so a ltima sociedadeprimitiva livre, na Amrica do Sul com certeza, e provavelmente tambm no mundo.Quanto aos responsveis polticos, aos homens de empreendimento e finanas, estesse entregam cada vez mais imaginao, como os Conquistadores de quatro sculosatrs, e crem adivinhar, nessa parte desconhecida da Amrica do Sul, um novo efabuloso Eldorado, onde se encontrar de tudo: petrleo, diamantes, minrios rarosetc. At que isso ocorra, os Yanomami permanecem os senhores exclusivos de seuterritrio. Atualmente, muitos deles, como se dizia ainda h pouco, nunca virambrancos, e h apenas vinte anos quase todos ignoravam inclusive a existncia dos

    Nabe. Inacreditvel fortuna para um etnlogo. Lizot estuda esses ndios, j estevecom eles dois anos, que no foram de repouso, fala perfeitamente sua lngua e iniciaagora uma nova temporada. Eu o acompanho por alguns meses.

    Passamos a primeira quinzena de dezembro fazendo compras em Caracas: motorpara a piroga, fuzil, alimentos, objetos de troca com os ndios, como faces,

    * Publicado originalmente em Les Temps Modernes, n. 298, maio 1971.** Personagem de Beckett. [N,T.]

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    machados, quilmetros de linha de pesca de nylon, milhares de anzis de todos ostamanhos, pacotes de caixas de fsforos, dezenas de carretis de fio de costura(utilizado para prender as plumas flecha), o belo tecido vermelho que os homensutilizam para suas tangas. De Paris, trouxemos uns dez quilos de finssimas prolas

    negras, brancas, vermelhas e azuis. Como me surpreendo com as quantidades, Lizotcomenta brevemente: "Voc vai ver. Isso desaparecer mais depressa do queimagina". De fato, os Yanomami so grandes consumidores, temos que aceitar essefato se quisermos no apenas ser bem acolhidos, mas simplesmente acolhidos.

    Um pequeno bimotor do exrcito nos transporta. O piloto no quer levar todo onosso carregamento, por causa do peso. Abandonamos ento os alimentos.Dependeremos dos ndios. Quatro horas mais tarde, aps ter sobrevoado a regio dassavanas e o comeo da grande floresta amaznica, aterrissamos mil e duzentos

    quilmetros ao sul, na pista da misso salesiana estabelecida h dez anos naconfluncia do Ocamo e do Orinoco. Breve parada, o tempo de saudar o missionrio,um gordo italiano jovial e simptico com barba de profeta; carregamos a piroga, omotor fixado e partimos. Quatro horas de piroga a montante.

    preciso celebrar o Orinoco? Ele merece. Mesmo prximo de sua nascente, no um jovem, mas um velho rio que faz rolar sem impacincia, de meandro emmeandro, sua fora. A milhares de quilmetros de sua foz, ele permanece ainda muitolargo. Sem o rudo do motor e da passagem do lquido sob o casco, nos

    acreditaramos imveis. No h paisagem, tudo semelhante, cada lugar do espao idntico ao prximo: a gua, o cu e, nas duas margens, as linhas infinitas de umafloresta planetria... No tardaremos a ver o interior de tudo isso. Grandes avesbrancas decolam das rvores e voam em grupo diante de ns, estupidamente; por fim,elas compreendem que preciso virar de bordo e passam para trs. De vez em quandoalgumas tartarugas, um jacar, uma grande arraia venenosa confundida com o bancode areia... No muito mais. durante a noite que os animais surgem.

    Crepsculo. Da imensido vegetal emergem colinas dispostas como pirmides.Os ndios nunca as escalam: l residem enxames de espritos hostis. Ultrapassamos aembocadura do Mavaca, afluente da margem esquerda. Algumas centenas de metrosainda. Uma silhueta corre pela alta ribanceira, agitando um tio, e agarra a corda quelhe lanamos: chegamos em Mavaca, entre os Bichaansiteri. Lizot construiu ali suacasa, muito prxima do chabuno (casa coletiva). Cordialidade do reencontro entre oantroplogo e seus selvagens; visivelmente os ndios esto felizes de rev-lo (naverdade, ele um branco muito generoso). Uma questo logo resolvida: sou o

    irmo mais velho... Na noite j se ouvem os cantos dos xams.

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    No prolongamos a estadia. No dia seguinte ao amanhecer, partida para umavisita aos Patanawateri. bastante longe: primeiro, meia jornada de navegao,sempre a montante, depois uma jornada completa de marcha, velocidade ndia. Porque essa expedio? A me de um jovem colaborador habitual de Lizot originria

    desse grupo, embora casada num outro. J h vrias semanas est em visita aosparentes. Seu filho quer v-la. (Na verdade, esse desejo filial acompanhado de umdesejo muito diferente, como se ver a seguir.) A coisa se complica um pouco porqueo grupo do filho (ou do pai) e o grupo natal da me so inimigos ferrenhos. E o

    jovem, em idade de ser um bom guerreiro, arrisca-se simplesmente a ser flechado seaparecer por l. Mas o lder dos Patanawateri, tio materno do rapaz, de algum mododisse aos guerreiros: "Ai de quem tocar no filho de minha irm!". Em suma: podemosir.

    Vamos, e no propriamente um passeio. Toda a zona do sul do Orinoco particularmente pantanosa: baixios inundados onde se mergulha s vezes at o ventre,ps presos nas razes, esforo para arrancar-se suco da lama e, ainda assim,acompanhar o ritmo dos outros que do risadas de ver umNabe em dificuldade, todaessa vida furtiva imaginada na gua (as grandes serpentes venenosas), e avanandosempre na mesma floresta, virgem de cu e de sol. A Amaznia, ltimo paraso?Depende para quem. Considero-a antes infernal. No falemos mais disso.

    Parada ao cair da noite, num acampamento provisrio que cai a pique. Armam-

    se as redes, acendem-se as fogueiras e come-se o que se tem, sobretudo bananasassadas nas cinzas. Vigia-se o vizinho, para que no pegue uma quantidade maior.Nosso guia, homem de meia-idade, dotado de um incrvel apetite. Ele comeria debom grado minha poro, mas pode esperar.

    No dia seguinte, por volta do meio-dia, banho rpido num riacho. a etiqueta: ochabuno no est distante e convm apresentar-se asseado. No demoramos apenetrar nos pomares, muito grandes, onde crescem centenas de bananeiras. Os dois

    jovens que nos acompanham pintam o rosto com urucum. Mais alguns passos e surgea massa do grande teto circular. Rapidamente nos dirigimos para o setor ocupadopelas tias maternas de nosso amigo Hebewe. Uma surpresa: no h um nico homemadulto, exceto trs ou quatro velhos. O chabuno, enorme, abriga pelo menos cento ecinqenta pessoas. Crianas brincam na praa central, ces esquelticos ladramfragilmente. A me e as tias de Hebewe, sentadas sobre os calcanhares, fazem umalonga litania de recriminaes contra o filho e sobrinho. A me no o considerasuficientemente atencioso: "Eu estava te esperando h muito tempo. Voc no vinha.

    Que infelicidade ter um filho assim!", enquanto ele, estendido na rede, aparenta amais completa indiferena. Depois disso nos recebem, isto , trazem-nos um pur de

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    banana, quente, muito bem-vindo. Alis, nos trs dias que passamos ali, a me deHebewe, fina e encantadora dama selvagem, prope-nos a toda hora comidas, sempreem pequena quantidade: frutos da floresta, pequenos caranguejos e peixes dopntano, carne de tapir etc. As bananas (assadas verdes nas cinzas) acompanham

    tudo. poca de frias; come-se, fica-se balanando na rede, tagarela-se, peida-se.(Os Yanomami so verdadeiros artistas nesse ponto, no que so favorecidos pelasbananas. No silncio noturno, uma fuzilaria interminvel. Quanto a nossos prpriosdecibis, mal se fazem ouvir, do pena de ouvir...) H destinos piores.

    A bem dizer, a tranqila lentido das coisas deve-se em grande parte ausnciados homens. As mulheres so muito mais reservadas, menos inclinadas insolnciado que seus maridos. Todos partiram para a guerra contra um grupo inimigo, osHasubueteri. Uma guerra yanomami um ataque de surpresa, ataca-se ao alvorecer,

    quando os inimigos ainda esto dormindo, todas as flechas so disparadas por cimado telhado. Os ferimentos e as raras mortes ocorrem na maioria das vezes por acaso,em conseqncia das flechas que caem. Os atacantes fogem ento a toda pressa, poisos outros no demoram a lanar o contra-ataque. Gostaramos de esperar o retornodos guerreiros, que a ocasio, diz-me Lizot, de uma cerimnia muitoimpressionante. Mas no se pode ficar muito tempo em visita sem tornar-seimportuno; alm disso, nossos companheiros tm bastante pressa de voltai. Elesfizeram o que queriam, no esto interessados em prolongar sua estadia. No dia de

    nossa chegada, Hebewe conversou longamente com sua me. Ele a interrogou sobreos parentes, queria saber quem eram seus primos. Mas no para enriquecer seuconhecimento genealgico; seu objetivo era identificar aqueles com quem no tinhaparentesco, isto , com quais das moas podia se deitar. Com efeito, em seu prpriogrupo os Karohiteri ele tem parentesco com quase todos, todas as mulheres lheso interditas. Portanto, precisa busc-las noutra parte. Eis a o motivo principal desua viagem, e ele ir alcan-lo. Ao anoitecer, suas prprias tias lhe trazem umamenina de catorze ou quinze anos. Os dois esto na mesma rede, ao meu lado. A

    julgar pelo rebulio, pelos movimentos violentos que agitam a rede, pelos murmriosabafados, a coisa no parece funcionar espontaneamente; a garota no quer. Eleslutam por algum tempo e ela consegue escapar. Zombamos de Hebewe. Mas ele nodesiste; alguns minutos depois, chega uma garota de doze ou treze anos, com os seiosmal despontando, e esta consente. Suas brincadeiras duram a noite toda, numadiscrio extrema. Ele precisou honr-la sete ou oito vezes; ela no tem do que sequeixar.

    Alguns minutos antes da partida, distribuio de presentes. Todos os quedesejam alguma coisa o obtm, claro que na medida do nosso estoque e sempre em

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    Um homem do grupo defronte veio raptar uma mulher casada. Os amigos doofendido amontoara-se nas pirogas, atravessam o rio e vo reclamar justia aosoutros. E l, durante pelo menos uma hora, o que se ouve uma exploso de injrias,vociferaes histricas, acusaes aos berros. Dir-se-ia que vo se entrematar, no

    entanto a cena antes divertida. As velhas dos dois campos, em particular, soverdadeiras provocadoras. Estimulam os homens a combater com uma irritabilidade eum furor terrveis. O marido enganado est imvel, apoiado sobre sua borduna: eledesafia o outro a um combate singular. Mas o homem e sua amante fugiram, semarmas, para a floresta. No h duelo, portanto. Aos poucos os clamores cessam e,muito singelamente, todos voltam para casa. Havia nisso muito de teatro, embora asinceridade dos atores no pudesse ser posta em causa. Alis, muitos homens exibemno crnio raspado grandes cicatrizes, adquiridas nesses duelos. Quanto ao marido

    trado, ele recuperar a mulher em poucos dias, quando ela, fatigada de fazer amor e jejuar, voltar ao domiclio conjugai. Ento receber um bom corretivo, pode estarcerta disso. Os Yanomami nem sempre so ternos com suas esposas.

    Sem atingir o tamanho do Orinoco, o Ocamo um grande rio. A paisagem igualmente tediosa, floresta contnua, mas h menos monotonia na navegao: preciso estar atento aos bancos de areia, s pedras flor da gua, s rvores enormesque barram a passagem. Estamos a caminho do Alto-Ocamo, territrio dos Shiitari,

    como so chamados pelos Yanomami do sul. Trs ndios esto conosco, entre elesHebe-weeo lder dos Bichaansiteri da margem direita. No momento da partida, ele seapresentou vestido dos ps cabea, camisa comprida at os joelhos, calas e, o maissurpreendente, tnis de basquete. Normalmente anda nu, como quase todos, o pnispreso pelo prepcio a um cordo atado em volta da cintura. Ele se explica: "OsShiitari so grandes feiticeiros. Certamente vo colocar feitios em todos oscaminhos. Com isto protejo os ps". Quis vir conosco porque seu irmo mais velho,que ele no v h pelo menos vinte anos, vive entre os Shiitari. Quanto a ns,queremos visitar grupos novos e fazer comrcio com eles. Como a viagem toda sefar por gua, podemos levar muitos objetos; no h limite de peso como quando seanda a p.

    Aos poucos, a topografia muda. Uma cadeia de colinas domina a margemdireita, a floresta cede lugar a uma espcie de savana com vegetao dispersa.Distingue-se nitidamente uma cascata que cintila aos raios do sol. No cardpio do

    jantar, um pato que Lizot matou na jornada. Exijo que ele seja assado e no fervido,

    como de hbito. Os ndios consentem contra a vontade. Enquanto ele assa, afasto-meum pouco e deparo, a menos de duzentos metros, com um acampamento provisrio.

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    esto contentes. Bom comeo para uma sesso xamanstica. O irmo visitante, queem seu grupo ocupa uma posio de lder, tambm xam de mdia categoria. Nograu inferior, os pequenos xams medicam sua famlia, ou os ces. Obtidos dosbrancos h no muito tempo, esses animais ocupam na hierarquia das criaturas um

    estatuto prximo da humanidade: como as pessoas, eles so queimados quandomorrem. Mas os ndios tm poucas atenes com eles: praticamente no osalimentam. Os ces so forados a se encarregar da lixeira dos chabuno.

    Os considerados grandes xams ultrapassam todos os outros em experincia,educao, nmero de cantos que conhecem e de espritos que podem invocar. Entreos Bichaansiteri, h um dessa qualidade. Ele celebra seu ofcio quase diariamente,mesmo quando ningum est doente (tendo assim necessidade de muita droga). que preciso proteger sem descanso a comunidade de todos os males e espritos ruins que

    os xams dos grupos inimigos no cessam de mobilizar contra ela. Ele prprio no sepriva de enviar ao exterior todas as doenas capazes de aniquilar os outros. Entre osndios, um povo de fantasmas atormenta o mundo dos homens.

    Os cantos, repetio obsessiva da mesma linha meldica, permitem no entantoalguns efeitos de voz: ento eles oscilam, s vezes, entre o gregoriano e a msica pop.Belos de ouvir, combinam-se com exatido ao movimento lento da dana vaivmcom os braos cruzados ou erguidos ao longo do abrigo. Maldito seja quemduvidar da seriedade desses ritos! (Afinal, trata-se da vida e da morte.) No entanto, o

    xam detm-se de quando em quando, para dizer sua mulher: "Leva depressabananas ao nosso parente fulano de tal! Esqueceram de lhe dar". Ou ento,aproximando-se de ns: "Escuta, Lizot! Estou precisando de um pouco de linha depesca". E, muito singelamente, retoma seu ofcio.

    Subimos um pouco mais o Ocamo para uma caada noturna, o que nos vale umencontro inesperado. Um pequeno grupo yanoma-mi acaba de instalar-se beira dorio, o chabuno ainda no est terminado. Somos seus primeiros brancos, o exotismoest de nosso lado. Para ns no h surpresa, eles no so muito diferentes dos outros.Todas as tribos possuem agora instrumentos metlicos, mesmo aquelas com as quaisno se estabeleceu nenhum contato. De modo que, entre os grupos da margem doOrinoco e os do interior, as diferenas so pequenas: entre os primeiros, destaca-seuma aparncia de mendicidade (devido s roupas) mas no muito profunda, j que avida social e religiosa no foi de modo algum afetada (pelo menos at agora) pelasvs tentativas dos missionrios. Em suma, no h yanomami "civilizados" (com tudoo que esse estado significa de degradao repugnante) a serem opostos a yanomami

    ainda "selvagens", todos sendo igualmente guerreiros orgulhosos e pagos.

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    Quatro jovens gesticulam na ribanceira. Acostamos. Eles esto beatificados eno o dissimulam. Sua excitao diante dosNabe to grande que tm dificuldade dese exprimir e estalos de lngua freiam a torrente das palavras, enquanto, com grandestapas nas coxas, ritmam pequenos saltos no mesmo lugar. um verdadeiro prazer v-

    los e ouvi-los jubilar assim. Simpticos Shiitari. Na volta, algumas horas mais tarde,oferecemos a eles um dos trs jacars que Lizot matou.No dia da partida, trocamos nossos bens por droga. No para uso pessoal, mas

    para lev-la s tribos da Serra Parima, muito desprovidas dela. Para ns ser umexcelente passaporte. O lder est contente, fez bons negcios com os companheirosde seu irmo, que lhe promete uma visita mais tarde. Em troca de todas as suasroupas (que sabe poder substituir facilmente junto aos missionrios), ele obtm umaboa quantidade de ebena. No momento de se afastar da margem, um incidente: um

    dos dois rapazes que nos acompanharam por ocasio da subida pelo rio (deve ter trezeou catorze anos), salta bruscamente para dentro da piroga. Quer ir embora conosco,quer viajar. Uma mulher, sua me, atira-se gua para ret-lo. Ele pega ento umpesado remo e tenta golpe-la. Outras mulheres acodem e conseguem tir-lo, louco deraiva, do barco. Ele morde com violncia a me. A sociedade yanomami muitoliberal em relao aos rapazes. Permitem-lhes fazer quase tudo o que querem.Inclusive os encorajam, desde a primeira infncia, a se mostrar violentos e agressivos.Os pequenos praticam brincadeiras geralmente brutais, coisa rara entre os ndios, e os

    pais evitam consol-los quando, tendo recebido uma bordoada na cabea, acorremberrando: "Me! Ele me bateu!" - "Bate mais forte nele!". O resultado - visado - dessapedagogia a formao de guerreiros.

    Passamos facilmente pela corredeira. Desfile ao contrrio dos mesmos espaos,no mais interessante. Acampamento para passar a noite. Dormimos j h algumashoras quando desaba um aguaceiro. A toda pressa, desmontamos as redes e buscamosum precrio abrigo debaixo de grandes folhas. A chuva passa, voltamos a deitar e adormir. Uma hora depois, tudo recomea: chuva, despertar em sobressalto, buscarabrigo etc. Desagradvel noite de Ano Novo.

    De volta a Mavaca, ficamos sabendo o resultado do combate que, duas semanasantes, opusera os Patanawateri aos Hasubueteri. Triste balano: quatro mortos, ao queparece, entre estes ltimos (para um efetivo de quarenta a cinqenta homens), trsdeles por armas de fogo. O que aconteceu? Os primeiros se aliaram, para esse ataque,com um outro grupo, os Mahekodoteri. So homens muito belicosos, em guerra

    permanente com quase todas as tribos da regio. (Matariam de bom grado Lizot, que amigo de seus inimigos.) Junto do chabuno deles est estabelecida uma das trs

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    misses salesianas. O que mostra bem o fracasso dos padres, que no conseguiram,em quinze anos, atenuar em nada o ardor combativo dos ndios. Tanto melhor. Essaresistncia sinal de sade.

    O fato que esses ferozes Mahekodoteri possuem trs ou quatro fuzis, presente

    dos missionrios, sob promessa de utiliz-los somente para a caa, em hiptesealguma na guerra. Mas v convencer guerreiros a renunciar a uma vitria fcil! Noso santos. Desta vez, guerrearam como os brancos, mas contra as flechas de outrosYanomami. No era imprevisvel. Os assaltantes deviam ser em torno de oitenta -dispararam, ao amanhecer, saraivadas de flechas sobre o chabuno, para depois serecolher na floresta. Mas, em vez de tomar na corrida o caminho de seu territrio,esperaram os outros. Quando um grupo atacado, os guerreiros no podem deixar dese lanar na contra-ofensiva, sob pena de passar por covardes. Todos logo ficariam

    sabendo disso e seu chabuno se tornaria o alvo de outros grupos (para raptar asmulheres, roubar os bens e, simplesmente, pelo prazer da guerra). Os Hasubuetericaram portanto na emboscada. Os fuzis, que no esperavam de modo algum,trovejaram, um homem caiu. Logo foi atingido por flechas que acabaram de mat-lo.Atordoados, seus companheiros retrocederam em desordem, lanando-se no Orinocopara atravess-lo a nado. Ali, trs deles pereceram, dois por bala, um por flecha. Umdos feridos, resgatado das guas, recebeu o golpe de misericrdia: arco enterrado noventre... O dio aos inimigos poderoso... Agora, os Hasubueteri preparam a

    desforra. De pai para filho, as paixes se herdam.Um tanto transtornados por esse acontecimento, os missionrios, fortemente

    pressionados por Lizot, decidem no mais fornecer, durante alguns meses, muniesaos ndios. Sbia deciso, pois os Mahekodoteri, exaltados por esse primeiro sucesso,utilizariam a partir de ento seus fuzis em cada combate e, confiantes em suasuperioridade, multiplicariam os ataques. Haveria hecatombes, enquanto com asflechas isso quase impossvel. (Exceto no caso, muito raro, em que um grupoconvida um outro a uma festa, com a inteno deliberada de massacrar os visitantes chegada. Foi o que aconteceu, h alguns anos, quando os Bichaansiteri responderam aum convite de tribos meridionais: trinta deles perderam ento a vida, flechadostraioeiramente no chabuno.)

    Passamos as trs primeiras semanas de janeiro a circular pacificamente entreMavaca e os grupos ribeirinhos do Manaviche, outro afluente do Orinoco. Semprovises de comida, fomos nos restaurar junto aos ndios, em pequenas visitas dedois ou trs dias. Mesmo quando faltam carne ou peixe, h sempre o recurso das

    bananas (mais de seis espcies so cultivadas). As estadias entre os Karohiteri, osmelhores amigos de Lizot, so muito agradveis. Sentimo-nos descontrados, as

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    pessoas so amveis, pouco exigentes, capazes mesmo de gentileza. O xam meoferece carne de tapir e insiste para que eu fique entre eles. Muito diferente dosoutros grupos onde, mal chegados, somos imediatamente assaltados: "Me d isto, med aquilo. No tenho mais anzis, preciso de uma machadinha. O que tem na tua

    mochila? bonita a tua faca! etc". E isto sem parar. So infatigveis e, no fosse aforte impresso que Lizot exerce sobre eles, tentariam simplesmente roubar nossascoisas. As poucas frases que aprendi e que ficaram gravadas por t-las pronunciadocentenas de vezes, resumem-se ao seguinte: "No tenho muito. No temos isso. Notemos mais. Espera! Mais tarde! etc". Fatigantes Yanomami.

    No lhes falta humor e so muito dados pilhria. Para comear, evitam porprincpio, mesmo entre eles, dizer a verdade. So inacreditveis mentirosos. De modoque preciso muita pacincia de controle e verificao para validar uma informao.

    Quando estvamos na Parima, cruzamos um caminho. O jovem que nos guiava,interrogado sobre sua destinao, respondeu que no sabia (ele havia percorrido essecaminho talvez umas cinqenta vezes). "Por que s mentiroso?" "No sei." Comoeu perguntasse um dia o nome de uma ave, deram-me o termo que significa pnis,uma outra vez, tapir. Os jovens, em particular, adoram os ditos chisto-sos: "Vemconosco at o pomar. Vamos te enrabar!". Em nossa viagem aos Patanawateri,Hebewe chama um garoto de uns doze anos: "Se me deixares te enrabar, te dou meufuzil". Todos ao redor do gargalhadas. um gracejo muito comum. Os jovens so

    muito impiedosos com os visitantes de sua idade. Por algum pretexto, levam-nos ato pomar e ali os dominam para desatar o cordo que prende o pnis, supremahumilhao. Brincadeira comum: voc dorme inocentemente na rede, quando umadetonao o mergulha numa nuvem nauseabunda. Um ndio veio peidar a dois ou trscentmetros de seu rosto...

    A vida nos chabuno principalmente cotidiana. Como em toda parte, alis, asrupturas da ordem costumeira guerras, festas, rixas etc. no se produzem tododia. A principal atividade a produo de alimento e dos meios de obt-lo (arcos,flechas, cordas, algodo...). No devemos imaginar que os ndios so subalimentados.Vivendo da agricultura, essencial, da caa, da pesca os animais que servem decomida so relativamente abundantes e da coleta, os Yanomami se saem bastantebem. Sociedade de abundncia, portanto, de um certo ponto de vista, no sentido deque todas as necessidades das pessoas so satisfeitas e inclusive com acrscimo, poish produo de excedentes, consumidos durante as festas. Mas a ordem dasnecessidades asceticamente determinada (nesse sentido, os missionrios criam entre

    alguns grupos a necessidade artificial de roupas inteis). Por outro lado, afecundidade, o infanticdio e a seleo natural asseguram s tribos um timo

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    demogrfico, tanto no plano da quantidade quanto no da qualidade, se possveldizer. O grosso da mortalidade atinge as crianas durante os dois primeiros anos devida: as mais resistentes sobrevivem. Donde o aspecto florescente e vigoroso dequase todos, homens e mulheres, jovens e velhos. Se as aldeias no so formigueiros,

    todos esses corpos so, ainda assim, dignos de andar nus.Uniformemente, na Amrica do Sul, diz-se que os ndios so preguiosos. Defato, eles no so cristos e no julgam necessrio ganhar o po com o suor de seurosto. E como, em geral, antes para ganhar o dos outros que as pessoas seempenham em faz-los transpirar, compreende-se que para eles alegria e trabalhosejam exteriores um ao outro. Dito isto, saibamos que entre os Yanomami todas asnecessidades da sociedade so satisfeitas ao preo de uma atividade mdia (pelosadultos) de trs horas de trabalho por pessoa e por dia. Lizot fez essa medida com um

    rigor cronomtrico. O que no novidade, j se sabe que assim na maior parte dassociedades primitivas. Mas lembremos esse fato, no momento de exigir a aposentariaaos sessenta anos. No insistamos.

    Civilizao de lazer, portanto, j que essas pessoas passam vinte e uma horas pordia sem fazer nada. Elas no se entediam. Sesta, brincadeiras, discusses, droga,banhos, comida: consegue-se matar o tempo. Sem falar do sexo. No dizemos queeles s pensem em sexo, mas isso conta, sem dvida. Yapeshi! ouve-se comfreqncia: tenho vontade de fazer amor!... Um dia, em Mavaca, um homem e uma

    mulher lutam no cho da casa. H queixas, gritos, protestos, risos. A mulher, queparece saber o que quer, passou a mo entre as pernas do homem e agarrou seustestculos. Ao menor movimento que ele faz para escapar, uma pequena presso.Deve estar doendo, mas ela no solta: "Ela quer copular! Tem vontade de copular!".E, de fato, parece que copularam ali mesmo.

    Como se as relaes entre as pessoas no fossem suficientes para alimentar avida da comunidade, os fenmenos naturais tornam-se acontecimentos sociais. que,de certa maneira, no h natureza: uma desordem climtica, por exemplo, logotraduzida em termos culturais. Desaba uma tempestade, num fim de tarde entre osKarohiteri, precedida de violentas rajadas de vento, que ameaam arrancar ostelhados. Imediatamente, todos os xams (seis ou sete, o grande e os pequenos)postam-se de p em torno da casa e tentam, com gritos e grandes gestos, expulsar aborrasca. Lizot e eu somos chamados a tambm agir com os braos e a voz. Pois asrajadas de vento so, na realidade, espritos ruins, certamente lanados pelos xamsde um grupo inimigo.

    Gritos agudos, ao mesmo tempo insistentes e queixosos, irrompem subitamentede todos os lados, em Mavaca. H umas vinte mulheres, espalhadas ao redor de todo

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    o chabuno. Cada uma est munida de um ramo de folhagem e golpeia com ele o solo.Dir-se-ia que querem fazer sair dali alguma coisa. exatamente isso. Uma crianaest gravemente enferma, sua alma a deixou, as mulheres procuram-na, chamam-napara que reintegre o corpo e restitua a sade ao pequeno. Elas a encontram e, pondo-

    se em linha, a impelem para a frente em direo ao chabuno, agitando seus ramos.No lhes faltam graa nem fervor... Junto a ns se encontra o xam.Espontaneamente, ele pe-se a contar em voz baixa o mito que fundamenta e explicaesse ritual feminino. Lizot anota furiosamente. O homem pergunta ento se, entrens, as mulheres fazem a mesma coisa: "Sim, faziam, mas h muito tempo.Esquecemos tudo". Sentimo-nos empobrecidos.

    Tambm presenciei os ritos da morte. Foi entre os Karohiteri... Por volta dameia-noite, somos despertados pelo canto profundo do xam, ele tenta medicar

    algum. Isso dura um momento, depois ele se cala. Ento se eleva na noite umagrande lamentao, coro trgico de mulheres diante do irremedivel: uma crianaacaba de morrer. Os pais e os avs cantam em volta do pequeno cadver, encolhidonos braos da me. A noite toda, a manh toda, sem um instante de interrupo. Nodia seguinte, as vozes roucas, arranhadas, so dilacerantes. As outras mulheres dogrupo se revezam para se associar ao luto, os homens no abandonam as redes. opressivo. Sob o sol, e cantando ao mesmo tempo, o pai prepara a fogueira. Nessemeio tempo, a av dana em volta, com o neto morto na faixa de transport-lo s

    costas: cinco ou seis passos para a frente, dois ou trs para trs. Todas as mulheres serenem sob o telheiro morturio, os homens cercam a fogueira, arco e flechas namo.

    Quando o pai coloca o corpo sobre a fogueira, as mulheres irrompem emgemidos, todos os homens choram, uma mesma dor nos atravessa. No se poderesistir ao contgio. O pai quebra seu arco e suas flechas e lana-os ao fogo. Afumaa libera-se e o xam precipita-se para for-la a ir diretamente ao cu, pois elacontm espritos malficos. Cerca de cinco horas mais tarde, quando as cinzasesfriaram, um parente prximo recolhe minuciosamente num cesto os menoresfragmentos sseos que escaparam combusto. Reduzidos a p e conservados numacabaa, eles daro ensejo, mais tarde, a uma festa funerria. Na aurora do diaseguinte, todos vo at o rio, as mulheres e as crianas para se purificar com cuidado,os homens para lavar suas flechas, maculadas pelas emanaes funestas da fumaa.

    Por volta de 20 de janeiro, pusemo-nos a caminho para uma expedio at a

    Serra Parima. Tem-se primeiro que subir o Orinoco durante cerca de dois dias. Comopassamos diante do chabuno dos Mahe-kodoteri, vrios ndios nos ameaam com

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    gestos e palavras. Lizot mantm-se cuidadosamente no meio do rio, eles seriam bemcapazes de disparar flechas contra ns. Passagem fcil de uma primeira corredeira.Uma grande lontra descansa sobre uma pedra e mergulha sem quase perturbar asuperfcie da gua. Com habilidade, cortando cips com os dentes, nossos

    companheiros constroem o abrigo para a noite. Percebe-se que, se a importao deinstrumentos metlicos se interrompesse bruscamente, a relao dos ndios com oambiente no seria excessivamente afetada por isso: eles retomariam as tcnicas desempre (o fogo substituindo o metal). Lizot mata uma grande capivara, mas aperdemos, arrastada pela corrente. Esperando que um tronco possa det-la,procuramo-la durante uma hora, em vo. uma pena, seriam uns cinqenta quilos decarne boa. Nesse local tambm encontramos uma pedra usada para polir. No diaseguinte, outra corredeira se apresenta, mas desta vez no a franqueamos; teremos de

    prosseguir a p. A montante, o Orinoco j quase deixa de ser navegvel. Perdendosuas majestosas propores, ele transforma-se aos poucos numa torrente. Estamosmuito perto de sua nascente, que foi descoberta no faz muito tempo.

    Terminamos a jornada e passamos a noite no chabuno dos Shui-miweiteri quedomina a alta barreira rochosa. Ritos de acolhida habituais; oferecemos droga aochefe: rara aqui, ela imediatamente preparada e consumida. "Fiquem conosco, eleinsiste, no vo ver os outros. Eles so maus!" Esses bons apstolos no esto emabsoluto interessados no nosso bem-estar. Esto preocupados com os presentes que

    iremos distribuir aos outros grupos: gostariam de ficar com esse man. Mesmo assimnos oferecem um guia. freqente um grupo convidar outro para trocas e julgar, noltimo momento, que deu mais do que recebeu. Ento, sem a menor cerimnia, eleschamam os outros, que esto de partida, de volta e, sob ameaa, obrigam-nos aretribuir as ddivas, mas sem devolver as que eles prprios obtiveram dos parceiros.A idia de contrato certamente os faria rir. Sua palavra algo que jamais pensariamem dar. Cabe a ns sair dessa dificuldade.

    Durante a noite, todos so acordados pelos gemidos cada vez mais fortes de umamulher enferma. O diagnstico imediato: uma alma do outro mundo se apoderou doalter ego animal da mulher, uma lontra. As outras mulheres fazem ento a pacienteandar de um lado a outro, imitando os gritos do animal, para faz-lo voltar. Otratamento eficaz, pois ao amanhecer ela se levanta saudvel de corpo... Associedades, poderamos dizer, permitem-se apenas as doenas que podem tratar, ocampo da patologia mais ou menos controlado. Certamente por isso nossa prpriacivilizao, capacitada por sua cincia a descobrir tantos novos remdios, v-se

    perseguida por tantas doenas. O resultado da corrida entre as duas no evidente.Pior para ns.

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    A Parima no verdadeiramente uma cadeia com vales. antes um conjuntodesordenado de montanhas cnicas ou piramidais, pressionadas umas contra asoutras, muitas vezes com mais de mil metros de altura e separadas na sua base porbaixios pantanosos. Os caminhos entre os chabuno da regio seguem as cristas dos

    montes: sobe-se, desce-se, torna-se a subir etc. penoso, mas, pensando bem (esendo bom o estado de sade), menos cansativo do que chafurdar na gua estagnadaou resvalar nos troncos apodrecidos que servem de pontes. Aps um trajeto de quatrohoras, chegamos aos Ihi-rubiteri. Mal paramos ali (apenas o tempo de deixar a ebenapara sermos bem-vindos na volta), apesar da insistncia das pessoas em nos reter(sempre a questo dos presentes que sero distribudos aos outros). Seguimos adiante,e pode-se dizer que um longo caminho. Eu pelo menos o digo. Por fim, felizmente,e ao anoitecer, entrada na aldeia dos Matowateri.

    H compensaes. Valeu a pena vir at aqui. Ao penetrarmos no chabuno, nossadam com urna formidvel ovao. Eles reconhecem Lizot. Somos cercados pordezenas de homens brandindo arcos e flechas, que gritam e danam ao nosso redor:"Shori! Shori! Cunhado! Cunhado! Toma estas bananas, e estas! Somos amigos!

    Nohi! Amigos!". Quando h cachos demais em nossos braos estendidos, eles ostiram e substituem por outros. a alegria. Aleluia!Hei! Hei! Ainda assim nos deixamrepousar um pouco. No por muito tempo, no o suficiente, pelo menos no que mediz respeito. Pois me vejo logo puxado, agarrado, transportado por um bando de

    exaltados que gritam juntos coisas incompreensveis. O que est havendo?Em primeiro lugar, est presente no chabuno (por essa razo superpovoado) um

    grupo visitante que nunca viu brancos. Os homens, intimidados de incio,permanecem atrs dos outros, sem ousar muito nos olhar (as mulheres esto maisafastadas, sob o telheiro do chabuno). Mas logo perdem sua reserva, aproximam-se,tocam-nos, e a partir de ento no h como det-los. Em segundo lugar, eles seinteressam muito mais por mim que por Lizot. Por qu? No posso explicar sem medescrever brevemente. Em nossas marchas, andamos com o torso nu, evidentemente,vestidos com um pequeno calo e tnis de basquete. Nossas anatomias soperceptveis e, conseqentemente, o sistema piloso (nada exagerado, convm dizer)que adorna meus peitorais. E isso fascina os ndios que, sob esse aspecto, no somuito diferentes de Lizot. Sou o primeiro bpede peludo que eles vem. Noescondem seu entusiasmo: " A ko! Como peludo! Wa koi! um peludo muitogozado! Parece um grande tamandu! Mas um verdadeiro tamandu! J viram algoassim?". Custam a crer e no se controlam mais, entram em delrio e insistem

    absolutamente que eu d a volta completa no chabuno a fim de que as mulheres,balanando-se tranqilamente em suas redes, tenham o espetculo a domiclio. Que

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    fazer? No pedem meu consentimento e sou levado a desfilar em volta da casa, comoum bicho curioso, em meio a um concerto ensurdecedor de exclamaes (ver maisacima). Naquele momento, incapaz de me pavonear, sinto-me antes um Jesus em suapaixo. Pois as mulheres no se contentam de olhar ou de tocar: elas puxam,

    arrancam os plos, para ver se so firmes, e tenho muita dificuldade de proteger opassarinho. Momentos como esses marcam. No caminho, ganhei um monte debananas. Melhor que nada... Enquanto isso, Lizot, misericordiosamente, torce-se derir.

    Durante nossa estada houve uma bela sesso de xamanismo. Nossa droga eracomemorada. O xam danou e cantou muito, travou um rude combate com umesprito ruim que ele por fim conseguiu aprisionar num cesto. Ento, matou-o agolpes de machado, para depois, completamente exausto pela luta, cair no cho,

    ofegante. Os espectadores o encorajavam calorosamente.Em vez de seguir adiante na Parima, empreendemos o caminho de volta.

    Tambm foi proveitoso. Fizemos uma parada no chabuno dos Ihirubiteri onde, na ida,apenas havamos passado. E ali pudemos assistir festa mais solene dos Yanomami,o reahu, consumo ritual das cinzas de um morto. A alguma distncia do chabuno,atravessamos um acampamento provisrio, ocupado pelos convidados dos Ihirubiteri.Eles se preparam para a festa da tarde, mas no perdem a ocasio de nos extorquir:caixas de anzis, rolos de linha de pesca, sempre a mesma coisa.

    O lder nos instala perto dele no chabuno e nos oferece pur de bananas e batatasdoces. Ele possui um enorme par de testculos que balanam graciosamente e noscausam uma forte impresso. Mas o proprietrio parece ach-los normais. Se osvisitantes ao lado se preparam, aqui tampouco h descanso. Cada homem limpa comcuidado a frente de seu lugar de repouso; com a mo ou pequenas vassouras, retiram-se cocs de cachorro, ossos, espinhas, restos de cestos, caroos e pedaos de madeiraespalhados em toda a volta do chabuno. Quando tudo est limpo, as pessoas deitam-se e h um breve tempo morto.

    Ento a festa comea. Corno que propulsados, dois garotos de uns doze anosirrompem no chabuno e percorrem, danando, com arcos e flechas erguidos, toda asua circunferncia, em sentido inverso um do outro. Eles inauguram a dana deapresentao dos visitantes. Chegam juntos sada e logo so acompanhados por doisadolescentes, depois por adultos, sempre dois a dois e cantando. A cada cinco ou seispassos, param e danam sem sair do lugar, lanando s vezes suas armas ao cho.Alguns brandem machados metlicos ou faces de mato. Em princpio, comenta

    Lizot, eles exibem durante a dana os objetos que tm a inteno de trocar. Dessamaneira, os outros sabem de antemo o que esperar e podem comear a calcular.

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    Em todo o abrigo ouvem-se gritos, assobios: os espectadores aprovam,aplaudem, encorajam, clamam em voz alta sua admirao. So sinceros? Comeandoa conhecer os Yanomami, desconfio e imagino que, no ntimo, eles devem dizer-se:"essa gente no sequer capaz de danar corretamente". De minha parte, porm, no

    lhes pouparei elogios. Todos esto magnificamente pintados, sobre os corpos nusondulam e movem-se os crculos e as linhas de vermelho urucum e preto jenipapo.Outros esto pintados de branco. Alguns ostentam suntuosos ornamentos de plumas,nas orelhas e nos braos, e a dura luz da tarde faz cintilar as mais vivas cores dafloresta.

    Tendo os homens desfilado aos pares (desta vez, as mulheres no danam), todos juntos, no mesmo ritmo e ao som dos mesmos cantos, do uma espcie de voltaolmpica. Para dizer de um modo simples e breve: bonito.

    To logo os visitantes encerram sua apresentao, celebra-se o rito que motiva afesta. Os homens que, nos dois grupos, tm um lao de parentesco com o morto, vocomer suas cinzas. As mulheres e as crianas esto excludas da refeio. Umaimensa folha, ligada nas duas extremidades como uma canoa enchida quaseat a borda de pur de bananas. Sou incapaz de avaliar a quantidade, masseguramente h dezenas de quilos ou litros. As cinzas so espalhadas no pur eprovavelmente no alteram seu gosto. Trata-se de canibalismo, por certo, j que osmortos so comidos, mas de uma forma muito atenuada em relao de outras partes

    da Amrica do Sul. Os convivas esto agachados em volta do recipiente, do qual seservem com suas cabaas. Os cantos de luto das mulheres oferecem um rudo defundo ao banquete funerrio dos homens. Tudo isso feito sem ostentao, os no-participantes prosseguem sua atividade, ou sua passividade. Todavia, a festa do reahu um momento crucial na vida de um grupo. O sagrado est no ar. Seramos muitomal vistos se nos aproximssemos da cena. Quanto a tirar fotos, nem pensar... Ascoisas da morte devem ser tratadas com prudncia.

    E ento a vez de os anfitries devolverem a cortesia aos visitantes. Pintados,emplumados e enfeitados, os homens danam. Mas fazem isso, visivelmente, commenos convico que os outros, certamente julgando que no vale a pena despendermuito esforo por eles. A seguir, so feitas as trocas. O chabuno murmura. Cada ummostra suas riquezas, aprecia o tamanho das pontas de flechas, a retido dos bastes,a solidez das cordas, a beleza dos ornamentos. As coisas vo e vm, tudo numrelativo silncio e numa grande desconfiana recproca. Trata-se de no fazer mausnegcios.

    J anoiteceu mas a festa continua. Agora, os adolescentes dos dois grupos (sovinte ou vinte e cinco) celebram um rito de caa. Cantando e danando juntos, com

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    arcos e flechas erguidos bem alto, durante horas eles fazem ressoar na noite amarcao de seus passos. Uma vida admirvel anima a fora de suas vozes.

    Praticamente no pregamos o olho. Depois da dana dos jovens caadores,segue-se, at o amanhecer, o ritual de separao, os dois grupos fazendo suas

    despedidas. Trata-se de um duelo oratrio. Um homem de um grupo, sentado, recitabem alto e muito rpido, como uma salmodia, uma srie de frases. Da outraextremidade do chabuno responde o parceiro, que deve simplesmente repetir o que ooutro disse, sem se enganar, sem omitir uma s palavra e mesma velocidade. Nada dito de especial, apenas se trocam notcias, mil vezes repetidas, com o nicopretexto de fazer tropear o adversrio para ridiculariz-lo. Quando os dois homensterminam, so substitudos por outros dois e assim por diante.

    A primeira claridade do dia, tudo se interrompe. A festa terminou. Os

    convidados recebem dois enormes pacotes de alimentos, carne e bananas, preparadosde antemo pelos organizadores do reahu e bem embalados em folhas (os Yanomamiso especialistas em embalagem). E o sinal de partida. Silenciosos e rpidos, elesdesaparecem na floresta...

    Quanto a ns, amos em direo ao Orinoco. Paramos por um instante para nosaliviar. Os ndios esto sempre interessados na nossa maneira de urinar. Eles seagacham: uma grosseria deixar ouvir o rudo do jato no cho. Um deles me observacom ateno. "Voc mija como um velho. ? completamente amarelo."

    No foi um retorno triunfal, foi algo bem mais modesto. E quando Lizot, queandava frente, exclamou: "Escuta! a corredeira!", no fui galante, no disse:"J?". Encerremos o assunto.

    Mil anos de guerras, mil anos de festas! o que desejo para os Yanomami. Umailuso? Receio que sim. Eles so os ltimos sitiados. Uma sombra mortal se estendepor toda parte... E depois? Talvez se sintam melhor, uma vez rompido o ltimocrculo dessa ltima liberdade. Talvez se possa dormir sem ser despertado uma nicavez... E algum dia, ao lado dos chabuno, haver ento perfuradoras de petrleo; noflanco das colinas, escavaes de minas de diamante; policiais nas estradas, lojas beira dos rios... Harmonia em toda parte.

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    Captulo 2

    UMA ETNOGRAFIA SELVAGEM

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    Uma etnografia selvagem*

    A propsito dos Yanoama 1

    Proclamemos de sada que nenhuma objeo ou reserva afetar o respeito e asimpatia merecidos por este livro sobre o qual dizemos, com prazer e sem reticncia,que um grande livro. E reconheamos tambm a admirao que Elena Valero, aautora quase annima dessa obra impressionante, cujo relato foi recolhido aogravador pelo afortunado mdico italiano Ettore Biocca, suscitar, na alma de todoleitor inocente. Tendo dado a cada um o que lhe devido, passemos ordem do dia.

    O livro , pode-se dizer, uma autobiografia que conta vinte e dois anos da vidade uma mulher, sem fazer disso o tema exclusivo, embora s isso fosse em si mesmo

    fascinante. Pois, na experincia pessoal de Elena Valero, acha-se misturada,englobada, descrita com traos ao mesmo tempo firmes e sutis, a vida social apreendida em sua diferena mais intensa e em sua riqueza mais detalhada de umasociedade primitiva: a tribo indgena dos Yanoama, que vive nos confinsvenezuelano-brasileiros, nas montanhas da Serra Parima. O encontro entre Elena e osndios aconteceu em 1939, quando ela linha onze anos de idade. Uma flechaenvenenada no ventre efetuou o primeiro contato, quando um bando de ndios emguerra atacou sua famlia, brancos pobres do Brasil em busca de madeiras preciosas

    nessa regio ento ainda inexplorada. Os pais e os dois irmos fugiram, Elena foicapturada pelos assaltantes, espectadora inconsciente da ruptura mais brutal e maisimprevista que se possa imaginar na vida de uma garota que sabia ler e escrever, ecom a primeira comunho feita. Os ndios a levaram e a adotaram; ela tornou-semulher no meio deles, depois esposa de dois maridos sucessivos, me de quatromeninos; ao cabo de vinte e dois anos, em 1961, abandonou a tribo e a floresta paravoltar ao mundo dos brancos. Para E. Valero foram, portanto, vinte e dois anos

    para ns quase inacreditveis de aprendizagem, sofrida no incio com dor elgrimas, depois bem mais descontrada e experimentada inclusive como felicidade,da vida selvagem dos ndios Yanoama. Assim, pela boca dessa mulher que o acasoprojetou para alm de nosso mundo, obrigando-a a integrar, assimilar e interiorizarem seu ntimo, e at mesmo em sua dimenso mais familiar, a substncia de umuniverso cultural que subsiste a anos-luz do dela , pela boca de E. Valero falamverdadeiramente os ndios, pois graas a ela desenha-se aos poucos a figura domundo deles e de seu ser-no-mundo, e isto no modo de um discurso livre, sem

    * Publicado originalmente emLHomme, I, n.9, 1969.1 Ettore Biocca, Yanoama. Rcit d'une femme brsilienne enleve par les Indiens (Paris: Plon, "Terre humaine", 1968).

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    coero, originado de seu prprio mundo e no do nosso, justaposto ao outro semtoc-lo.

    Em suma: pela primeira vez, sem dvida milagrosamente, quase se poderiadizer , uma cultura primitiva relata-se ela prpria, o Neoltico expe diretamente

    seus prestgios, uma sociedade indgena descreve-se a si mesma de dentro. Pelaprimeira vez, podemos nos introduzir no ovo sem arromb-lo, sem quebrar a casca:ocasio bastante rara e que merece ser celebrada. Como foi isso possvel? A resposta evidente: porque E. Valero decidiu um dia interromper sua grande viagem, cujorelato jamais teria sido possvel de outro modo. Portanto, num certo sentido, o mundoindgena, apesar do longo contato que ela teve com ele, expulsou Elena de seu seio,permitindo assim nele penetrarmos por intermdio de seu livro. Ora, a partida damulher nos leva a refletir sobre a chegada da garota, sobre essa "aculturao" s

    avessas que suscita a questo: como pde E. Valero tornar-se to profundamentendia e no obstante deixar de s-lo? O caso apresenta um duplo interesse, primeirono que se refere a uma personalidade excepcional, a seguir pela luz que projetaindiretamente sobre o movimento inverso dos ndios em direo ao mundo branco,sobre essa repugnante degradao que os cnicos ou os ingnuos no hesitam embatizar com o nome de aculturao. A idade da garota deve reter nossa ateno. Suaentrada no mundo indgena se fez violentamente, por um rapto. Mas parece-nos queela tinha a idade ideal para ao mesmo tempo assumir esse traumatismo e finalmente

    adaptar-se nova vida, e para manter em relao a esta uma distncia, por menor quefosse, um recuo, por mnimo que fosse, que a impediu de tornar-se completamentendia e a incitou mais tarde a decidir voltar para seu primeiro mundo, um mundo queela nunca esqueceu totalmente.2 Alguns anos mais jovem, isto , no tendo aindaintegrado perfeitamente sua civilizao de origem, ela teria certamente efetuado umsalto radical, teria se tornado uma Yanoama e nunca mais teria pensado no seu lugarde origem.

    E. Valero no o nico caso de criana branca raptada pelos ndios. Mas, quasesempre, elas desaparecem definitivamente. A razo simples: trata-se de crianasmuito jovens, que em pouco tempo morrem ou, mais provavelmente, perdem todamemria de seu lugar de origem. Para nossa sorte, a particularidade de Elena que,aos onze anos, ela j era, e irreversivelmente, uma branca, uma pessoa do Ocidente.Percebe-se claramente por seu relato que, depois de vinte e dois anos, ela nem sequer

    2 Aqui se observa, a nosso ver, a diferena entre um documento como Yanoamae as autobiograf