Pierre Raikovic - O Sono Dogmático de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

download Pierre Raikovic - O Sono Dogmático de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

of 156

Transcript of Pierre Raikovic - O Sono Dogmático de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    1/156

    O SONO DOGMATICO

    EFREU

    Kant Schopenhauer Freud

    Pierre aikovic

    Jorge

    Zahar ditor

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    2/156

    O SONO DOGMTICO

    DEFREUD

    Ka_nt Schope

    nhauer

    Freud

    Uma resposta da filosofia psicanlise e

    uma t

    en

    tati va

    de elucidr filoso

    fi

    came

    n

    te

    o

    conceito de

    inconsciente:

    so esses

    os

    obje

    tivos do

    psiquiatra e fil

    sofo Pie

    rre

    Raikovi

    c

    .neste livro polmico ecorajoso.

    Segundo o autor ao buscar uma au tonomia

    epistemolgica para a psicanlise Freud

    teria tentado de todas as maneiras desvin

    cu

    l

    -

    la da filosofia. E

    mais

    q

    ue

    o

    fato

    de

    rejeitar posies dis

    tin tas

    das su

    as

    surpre

    enderia a veemncia com que Freud o faz :

    aquele

    sque no apreendem a

    realidade

    como

    ele cometem

    tanto

    s erros e se entregam de

    ta

    l

    form

    a ilu

    so qu

    e se tom

    am

    presas de

    processos psicopatolgicos.

    Ao

    mesmo tempo

    qu

    e a

    descreye

    co

    mo pato

    l

    gica Freud sustentaque a filosofia jamais

    levou em consider

    ao

    aquilo que no pen

    samentoescapa

    consci

    ncia. Apsicanlise

    veria nesta pretensa carncia uma razo a

    inais

    para afinnar que a metafsica sempre

    se absteve de ir a

    fundo

    na questo do pen

    samento

    nad

    a

    fazen

    do

    se

    no perseguirqui

    meras.

    A partirdo

    mome

    nto em que recusamos com

    o autor a considerar evidente a autonomia

    que

    Freud

    reivindica

    para

    sua reflexo tor

    na-se necessrio buscar as condies do

    s

    urgim

    ento d

    es

    ta ltima. Como seriapo

    ssf

    vel

    admitir sem submet-las a exame as

    conclu s

    es de

    um

    saber

    que

    afirma no ter

    ou tra

    font

    e

    seno

    eleprprio e

    que

    para ju

    s

    tifi

    car a ambio de existir apenas p r

    se

    chega ao ponto de depreciarqualquer outra

    atividade do

    es

    prito por meio de uma ar-

    gumentao que no pondera sobre

    os

    an

    temas q

    ue

    pronuncia?

    Em

    meio

    ao turbilho

    de

    ataques

    lan

    ados

    por Freud con tra a filoso fia percebe-seq

    ue

    o

    ni

    co

    fil

    sofo a merecer elogios de s

    ua

    parte Schope nhauer. Claro h tam

    bm

    Kant - em quem Freud buscou vrias ve

    zes apoiar-se-

    mas

    logo seconstata que

    unicamente a viso schopenhaueriana de

    Ka

    nt que lhe motiva

    as

    alegaes. Porm

    Schopen

    ha

    uer uma fonte pec uliar: ele o

    primeiro a tentar uma sistematizao da

    perspectiva antifilosfica e por esta razo

    o autor que Pierre Raikovic

    toma

    como

    base para sua empreitada.

    Es te livro inves tiga

    os

    caminhos

    que

    leva

    ram Freud a acreditar

    qu

    e

    podia ques

    tionar

    a relao da psicanlise com

    ou tros

    sis

    te

    mas

    de pensamento que no se

    id

    entifica

    vam

    com

    o

    seu.

    M

    es

    mo

    porq

    ue

    a d

    espe

    ito

    da evide

    nt

    e insuficincia de sua argumen

    tao. o

    fr

    eu

    dismo

    n.o teria recebido de

    seu

    a

    dversrio

    filos fico uma verdadeira

    ~ p o s

    ta . Ora isto que parece uma hes itao da

    fi loso fia condenaria Freud a permanecer

    como um corpo es

    tranho

    na histria das ma

    nifestaes

    do

    esprito.

    PIERRE

    RAI

    KO

    VIC psiqu iatra e filsofo fa

    leceu em

    1993.

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    3/156

    Pierre Raikovic

    O SONO DOGMTICO

    EFREU

    Kapt, Schopenhauer, Freud)

    Traduo:

    TEilESA RESENDE

    Reviso tcnica:

    M ARCOS COM RU

    ~ s t em reoria

    psauttJltica U RJ

    Jorge Zahar Editor

    Rio de Janeiro

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    4/156

    Ttulo original:

    sotntneil

    dog

    matique.de Freud

    Kant, Schope

    nhoutr

    , Freud)

    Traduo autorizada

    da

    primeira edio

    francesa.

    publicada em 1994 por SyntMlabo, de e Plessis-Robinson.

    Frana. na coleo Les Emp

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    5/156

    umrio

    IN

    TR

    O

    DUO,

    7

    I. A POLMICA ANTIF

    ILOSFICA E

    FREUD

    A filosofia e o problema do inconsciente, 14

    ll

    A

    PRESENA

    SCHOPENHA

    UERIANA

    NO TEXTO

    FREUDIANO,

    22

    Fara da se 22

    A acusao de plg io 24

    A

    atrao por Schopenhauer,

    26

    l l t. UMA LGICA DA APARNCIA, 54

    O inconsciente: uma idia transcendental,

    O kantismo segundo Schopenhauer, 79

    O freudismo, avatar do kantismo, 82

    IV. A ARMADILHA

    DO

    IRRACIONAL, 92

    O perodo racionalista,

    92

    A inverso do pensamento freudiano, 116

    O questioname

    nt

    o da natureza humaTUJ da mulher, 126

    Um breve retorno do racionalismo, 140

    CONCLUSO,

    150

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    6/156

    O

    trabalho terico - e disso me conveno cada dia

    m i s faz pelo mundo mais do que o trabalho prtico;

    se o mundo das idias for revolucionado, a realidade

    no poder pennanecer tal qual

    .

    Hegel,

    ~

    de outubro de 1808

    Carta a Niethammer

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    7/156

    ntroduo

    A filosofia no esclareceu verdadeiramente o sentido do processo que

    Freud intentou contra ela, quando sustentou ser este campo privado

    de qualquer afinidade com o real e proceder de modo

    d e l i r a n t ~

    com

    relao atividade do esprito. Posta diante de tal desafio, a filosofia

    no reiterou, desta vez, aquilo que jamais deixou de faz -

    lo

    desde

    que se viu acusada de um antifilosofismo cuja origem to remota

    quanto o ceticismo e a sofstica dos gregos: no tanto para elaborar

    uma refutao dos argumentos do adversrio, mas antes

    para

    reanimar

    - valendo-nos aqui de uma fonnutao de Husserl - a luta contra

    o ceticismo[ ..] a fim de procurar] prend-lo, num esprito realmente

    radical, a suas razes principais ltimas e, a partir da, subjug-lo

    definitivamente . Em outras palavras, a reflexo filosfica no pde

    superar uma tal hostilidade,

    2

    uma diferena to radical. Um pouco de

    luz pode fazer-se sobre esta inaptido - que por si s

    j

    merece uma

    reflexo - se lembranno-nos de uma observao de Eric

    Wel

    em

    que este, vendo no homem duas possibilidades, a violncia e o discurso,

    assinala, a propsito da violncia que

    se

    fez discurso,

    que

    ela u

    problema para a filosofia (ao passo que) a filosofia no um proble

    ma

    para a violncia que debocha do filsofo ou o afasta quando o

    encontra atravancando o caminho no delineado que, por si, a sua

    realidade .3

    Face

    polmica de Freud, a filosofia demonstrou principalmente

    querer pr-se a salvo

    do

    problema, como

    se

    ela houvesse percebido

    que este novo adversrio lhe armasse uma cilada parecida com a que

    Royer-Collard via ocultada por um ceticismo a que predizia vitria

    certa em caso de enfrentamento com a filosofia:

    No

    se reservou ao

    ceticismo sua parte: to-logo penetrou no entendimento, ele invadiu-o

    c ~ m p l e t a m e n t e .

    4

    7

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    8/156

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    9/156

    introduo 9

    certo escrpulo de ler os textos de Freud apoderando-se de razes de

    ordem filosfica para circunscrever a significao da mensagem freu

    diana; dessa maneira, ele d provas de evidente constrangimento para

    apreciar a validez do texto em questo luz do eu penso, eu existo .

    8

    Em

    seu comentrio, vemos P.

    Ri

    coeur confrontado

    co

    m uma

    atividade racional desdobrando-se sua frente de fonna desconhecida,

    mas onde ele, apesar de tudo, constata que ela

    vi

    sa, em ltima anlise,

    com a filosofia, um saber integraL Do princpio ao fim de sua obra,

    FRE

    UD

    mostra sua determinao de esclarecer as causas e os princpios

    ltimos daquilo que retira dos discuros dos pacientes, na instncia de

    um

    o n s i ~ n t e

    que podemos identificar com

    um

    condicionado. Por

    sinal, a partir do aparecimento em seus textos de uma dimenso dita

    metapsicolgica , constatamos que seu trabalho se orienta ainda

    mais nitidamente na direo daquilo que corresponde a uma outra

    espcie de Metafsica. A anlise de sua leitura faz-nos ver que P.

    Ricoeur percebeu o essencial da perspectiva de Freud que consiste

    assim como o interior da reflexo filosfica - no desdobramento de

    uma razo da qual pode-se dizer que, sua maneira, procura em

    algum lugar seu repouso na regresso do condicionado, o qual, na

    verdade, no ainda - em si e no que toca a seu simples conceito

    - dado como real, mas pode completar a srie das condies recon

    duzidas a seu princpio ..9

    P. Ricoeur, s vezes, chega mesmo a dar ao desmantelamento

    freudiano da filosofia um estatuto que vai a

    m daquele a que geral

    mente atribumos uma hiptese da qual ainda no sabemos se ser ou

    no demolida. Assim, dentre as muitas ocorrncias onde ele parece

    ver como admissveis as lies da psicanlise, o autor da

    Philosophie

    de

    l

    volont

    (Filosofia da vontade) deixa-se surpreender participando,

    a contragosto, da destruio completa da filosofia; ele, com efeito,

    confessa: Ao fim deste processo destinado a desfazer as pretensas

    evidncias da conscincia, eu j no sabia mais o que objeto, sujeito

    e at mesmo pensamento significavam. lO

    Este comentrio permite compreender por que modo a,reflexo

    filosfica pde achar-se posta como questo da interpretao genea

    lgica, dando provas de uma resignao cuja

    fi

    nalidade parece ser a

    de escapar de um aniquilamento, o que, no entanto, s ir conduzi-la

    a desvalorizao de si mesma. Quando ela parece no lembrar-se de

    sua essncia, a filosofia mostra-se mais pronta a comprometer-se do

    que a enfrentar a idia da diminuio de seu pbli'co. o que observava

    F. Alqui quando, querendo definir o estado

    de

    esprito da reflexo

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    10/156

    1

    o sono dogmlico

    de

    Freud

    filosfica contempornea, assinalou que,

    em

    nos nossos dias, esta,

    no desejando mais ver-se isolada [ ..}, consente .em ser contami-

    nada .

    11

    Diante desta espantosa atitude

    da

    filosofia, uma questo se pe:

    o que

    o freudismo'? E para responder

    preciso que partamos -

    para examin-lo

    minuciosamente- da

    prpria polmica antifilosfica

    a fim de sabermos se, atravs dessa, seria possvel atingir a essncia

    do freudismo.

    O modo de agresso de que se vale o psicanalista

    vienense constitui, talvez, o ponto

    de

    apoio necessrio para qualquer

    trabalho de elucidao da psicanlise e de seu conceito primeiro, o

    Inconsciente. No tentar penetrar no interior desta subverso equiva

    leria, para a filosofia, a dar um destino a uma carncia, e a deixar

    que se acredite, com base

    na

    famosa expresso que anuncia

    o

    fim

    da

    Metafsica , no passar esta ltima de um ornamento ingnuo e

    fora de moda.

    NOTAS

    I

    Hu

    ss

    crl, E., Philosophie premire, trad.

    A L

    Kelkel,

    Paris.

    1970,

    t.l ,

    p.85.

    2

    Em

    vinu

    de

    desta ausncia de confrontao,

    a fil

    osofia no

    pde

    conquistar,

    aqui, aquilo que Heidegger teria chamado de sua autntica liberdade, aquela

    liberdade (verwinden) {que} se assemelha de um homem que 'domina ' (verwun-

    den) a dor e que, em vez e

    li

    vrar-se dela ou esquec-la. nela

    se

    aloja . Heidegger,

    M., Le toumant''. in

    Questions

    IV, ttad. Lauxerrois l e Roels C., Paris, t976,

    p.

    144

    .

    3. Wcil, E., Logique

    de

    ln phiwsophie. Paris, 1970, p.58.

    4. Citado

    in

    Brocharei, V., Les sceptiques grecs, Paris, reed 1969, p.393. E Brochard

    ainda acrescenta: Mais um pouco e

    se

    estariam impedindo os filsofos de ocu

    parem-se

    de

    certas coisas como

    se

    impedem as crianas

    de

    brincar

    com

    fogo''

    (ibidem).

    5. Granier, l e discours du monde, Paris, 1977, p.5.

    6. Dalbiez, R., La mithode

    psychanalytique

    et

    la doclrinefreudienne,

    Paris, 1936

    1. Ricoeur, P . e

    l interprlalion.

    Paris, 1965 p.416.

    8. Este conceito no

    e Freud e

    de

    forma alguma nossa inteno imp-lo

    leitura de Freud ou, por astcia, ach-lo em sua obra.

    um conceito que formo

    para ter a compreenso de mim mesmo quando leo Freud (bidem).

    9. Kant, E.,

    Critique de

    l

    rai.son pure.

    trad. Trmesaygues, A., e Pacaud. B

    Paris,

    81

    ed., 1975, p.421 .

    10. Ricoeur, P.. De l imerprtation.

    op

    . cit., pAIO.

    11. Alqui, F., La

    nostalgie de

    l lre, Paris, 1973, p.6.

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    11/156

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    12/156

    12

    o sono dogmtico ~ Freud

    da Metafs ica Aristteles enuncia claramente: O mesmo atributo no

    pode ao mesmo tempo pertencer e no pertencer ao mesmo sujeito,

    sob a mesma relao.''

    5

    E o fil6sofo pe-se a vilipendiar aqueles que

    seriam capazes de reconhecer a permanncia do pensamento at no

    interior dos estados patolgicos, aqueles mesmos que se subtraem s

    leis necessrias do pensamento em geral. Sustentar, iz ele, que um

    pensamento delirante continua sendo um pensamento

    ser um inimigo

    da razo, ainda

    que

    Homero [.

    ..

    ) tenha manifestamente compartilhado

    desta opinio, pois representou Heitor, delirando em conseqncia de

    seu

    f ~ r i m e n t o deitado pensando outros pensamentos, o

    que

    supe

    que

    mesmo aqueles que so privados de pensamento tm pensamentos,

    embora no sejam estes

    os

    mesmos

    :

    6

    Em outras palavras, no reconhecer o corte entre o pensamento

    normal e o pensamento patolgico, recusar a aceitar as exigncias do

    princpio da no-contradio, fazer, portanto, coexistir os

    co

    ntradit

    rios equivale, para Aristteles, a sustentar

    que

    no h verdade nem

    erro; este um procedimento caracterstico da Sofstica, este relati

    vismo individual suscitado pelos impasses do problema da atribuio.

    Podemos, dessa forma, compreender perfeitamente por que a

    recu

    sa

    de

    uma fronteira entre a l

    ouc

    ura e a razo tenha levado

    Fr

    eud

    a entrar em polmica com a fiJosofia do conceito . E no deveramos

    nos espantar com o fato de, muitas e muitas vezes, encontrarmos nos

    textos do promotor da psicanlise

    uma

    condenao

    filosofia. Por

    outro lado, s podemos ficar surpresos quando constatamos os con

    siderandos. Freud recusa a filosofia enquanto esta, pMa ele, fruto

    de um processo patolgico; ele identifica a filosofia com uma desordem

    que quer persuadir-nos ser sem valor, mas constituindo - em razo

    mesmo de sua natureza mtbida - um perigo

    para

    a razo

    em

    geral

    e para a pesquisa cientfica em particular. Durante esta luta, ns o

    encontramos, de repen

    te

    , passando em revista as tendncias nonnativas

    de sua disciplina

    que

    iro reforar-lhe a argumentao. Diversas en

    tidades nosogrficas so ento ~ x p o s t a s em sua acepo pejorativa.

    preiso frisar que este banimento da filosofia no constitui um desvio

    no interior do discurso de Freud, mas que este ltimo aqui procede

    .de forma interativa,

    em

    nome das regras que conce

    mem

    a

    uma

    higiene

    mental militante.

    Em suma, paralelamente e em contradio

    com

    a abolio da

    fronteira entre o normal e o patol6gico que permanece um dos deter

    minantes de sua perspect

    iva

    , vemos o fundador da psicanli

    se

    resta

    belecer uma separao definitiva entre estas duas

    ordens

    da vida ps-

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    13/156

    a polmica amijilosjica de Fre..d

    qui

    ca

    , mas somente quando surge a questo da filosofia. Assim, em

    19 I4, em Introduo ao narcisismo ,ele escreve que a filosofia atua

    como a parania;

    7

    um ano depois, em O inconsciente , afinna dis

    cernir, neste modo de pensar,

    uma

    forma e

    uma

    matria que caracte

    rizam a esquizofrenia:

    No

    se pode negar que nossa

    fi

    losofia adquire

    -

    na

    expresso

    .e

    no

    co

    ntedo -

    uma

    semelhana, que no gosta

    ramos de ver-lhe, com a maneira de agir dos esquizofrnicos,

    8

    Em '

    1925

    em

    Resistncias psicanlise 9e depois em termos quase idn

    ticos, em um texto

    de

    1932 ele volta a colocar a filosofia no registro .

    da psicose.

    1

    Dessa maneira, vemos

    Freud

    desacreditar a filosofia cm um

    argumento de autoridade que decide serem

    os

    m ~ i c o

    os nicos a

    deter o direito de decretar se so ou no patolgicas as produes do

    esprito, sejam estas quais forem; aos filsofos , nada restaria seno

    ignorar a natureza psicopatolgica de seus textos. No podemos aqui

    deixar de lembrar uma passagem da ntroduo psicanlise quando

    Freud

    d

    este estranho conselho a seus interlocutores: O domnio

    dos fenmenos neurticos lhes desco

    nhe

    cido; se vocs

    no

    forem

    mdicos, somente tero acesso a ele atravs daquilo

    que

    me\IS ensi

    namentos podem proporcionar-lhes, e o julgamento

    de

    melh

    or

    apa

    rncia

    no

    tem valor quando

    quem

    o f o r m u l ~ no est familiarizado

    com os materiais que esto em jogo.

    11

    Vale dizer que o

    fi

    lsofo

    jamais saberia ser advogado em causa prpria. O psicanalista se pre

    valece aqui da autoridade conferida s cincias da natureza, por con

    seguinte tambm medicina, e ele se considera abalizado para falar

    como se qualquer eventual adversrio de sua teoria fosse, pelo simples

    fato de ser oponente, um inimigo d a ~ Naturwissenchaftlehre en

    t

    o

    em franca ascenso.l2

    Es

    tas afirmaes derivam

    de

    um modo de per

    suaso assinalado j por J. Locke, em

    Um

    ensaio sobre o entendimento

    hu tU no quando faz o levantamento dos diversos tipos de argumentos

    destinados a impedir o adversrio de contra-atacar.

    13

    O movimento persuasivo de F.reud desdobra-se fazendo uso de

    dois outros temas, sendo que o primeiro tra

    ta

    da natureza p ~ g i c a

    da filosofia: de uma parte, temos a ausncia de realidade do objeto

    de

    sta

    ltima, e de outra, a afinnao segundo a qual

    ~ d l t o s o f i a

    jamais

    soube de um pensamento

    que

    fosse,

    em

    princpio, desconhecido da

    co

    nscincia espontnea. Fora isso,

    Freud

    quer tomar-lhe o fardo ainda

    mais pesado recusando o conceito de

    Weltannschau11g

    gra

    as

    ao qual

    a reflexo filosfica estariaempenhadanum

    ~ n t

    e.sforo especulativo.

    Freud deveria fazer um exame srio deste conceito antes de remexer

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    14/156

    14

    o sono Jogmtico

    de Frer ui

    em seus destroos. Em todo caso, no verdade - contrariamente

    ao que afinna nas Novas conferncias introdutrias sobre a psicantilise

    - que estivesse reservado a nossos contemporneos levantar uma

    presunosa objeo ao pretenderem que um conceito desta ordem

    fosse to mesquinho quanto desesperador, alm do fato de ele no

    levar em conta as exigncias do esprito e as necessidades da alma

    humana .

    4

    Os sistemas filosficos esto longe de se deixar levar por

    uma descrio do mundo tal como ele se refletiria no crebro do

    pensador, daquele pensador geralmente to distanciadoda e a l i d a d e ~ , IS

    mas constante o esforo dos filsofos no sentido de impedir ao

    esprito que siga esta inclinao natural.

    Freud

    se

    esquece de que, se assim for, est referindo-se a

    si

    mesmo: afinal, no foi ele quem fez de tudo isso um dos sustentculos

    da interpretao que proporcionava a.seus pacientes? Tanto assim que,

    nos

    Estudos sobre a histeria

    escreve que o psicoterapeuta age,

    na

    medida do possvel, como instrutor no ponto onde a ignorncia pro

    vocou algum medo e, como professor, ele mostra uma concepo o

    mundo

    livre, elevada, maduramente refletida ..

    .16

    Mais que o fato de rejeitar posies diferentes das suas, a ma

    neira como ele rejeita que espanta. Para justificar a sua oposio a

    determinado sistema, Freud no se funda no conceito do erro

    maneira

    de Plato ~ Descartes e nem se apia na noo de iluso, como o

    faz Kant ao denunciar a inutilidade do esforo metafsico.t7 Para o

    psicanalista, aqueles que tm uma apreenso da realidade diferente

    da sua cometem tantos erros e se entregam tanto iluso que se

    tomam presas

    de

    processos psicopatolgicos.

    A filosofia e o problema do inconsciente

    Ao mesmo tempo que ele a tem como patolgica, Freud sustenta que

    a filosofia jamais levou em c o ~ s i d e r a o aquilo que, no pensamento,

    escapa conscincia.

    18

    A psicanlise v nesta pretensa carncia uma

    razo a mais para afinnar que a Metafsica sempre se absteve de ir a

    fundo na questo do pensamento, que nada fez seno perseguir qui

    meras.

    Ora, as coisas no se passam bem assim. Na realidade, embora

    a filosofia no se separe do problema

    da

    vinualidade no pensamento,

    ela jamais foi levada a formar o conceito de um inconscier;tte no

    sentido qu Freud d palavra: uma instneia autnoma e dinmica

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    15/156

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    16/156

    16

    o sono dogmtico de Freud

    em nosso pensamento, pois desse modo no haveria nenhuma, mas

    entendo apenas que temos em ns mesmos a faculdade de produzi-la."

    22

    Os discpulos de Descartes no deixaram tambm, por sua vez,

    de abordar a questo de um esconderijo do pensamento cujo destino

    o

    de

    no

    se

    dar a

    ccmh

    ece

    r.

    Pierre Nicole, por exemplo, eyoca a

    li

    mitao de uma conscincia que, talvez, no se contente

    co

    m fazer-se

    passar por qualquer coisa que no seja

    ela

    mesma aos olhos de outrem

    mas que procede

    co

    mo

    se

    disfarando diante dos prprios olhos, pois,

    observa ele,

    freqe

    ntemente escondemos de ns mesmos aqueles

    desejos que, ao mesmo tempo, so nossos e reinam em ns, mas que

    fingimos ignor

    -l

    os e no v-los

    di

    stintamente por medo de sermos

    obrigados a contradiz-lo

    s 23

    ainda NioJe que, a partir de um texto de Ccero, observa co

    mo este, falando de uma averso sentida inconscientemente, mostra

    como tinha ele, Ccero, todos os motivos para querer ocultar de si

    mesmo sentimento to negativo. Seria necessrio a mediao de uma

    terceira pessoa para que se

    fi

    zesse luz; e Nicole relata: " Algum mais

    s'util poderia ter percebido que havia no esprito de Ccero um veneno

    oculto que se manifestou, como ele prprio confessa, embora lhe fosse

    desconhecido:"

    24

    Ultrapassamos, aqui, aquilo que Freud chama de

    pr-conscie

    nt

    e; as experincias psq

    ui

    cas dissimuladas no so atin

    gveis de forma imediata; para que emerjam conscincia preciso

    que um terceiro passe a atuar ou que, com o passar do tempo, o sujeito

    se traia ,porexem.plo, atravs

    do

    comportamento que ser ob

    se

    rvado

    p

    or

    algum capaz de dar sentido quilo que, para o interessado,

    incompreensvel.

    Todos os grandes nomes do cartesianismo tm, do no-consciente,

    uma noo que no permite definir o pensamento pe

    la

    conscin

    cia

    exclusivamente. No caso de Spinoza, esta noo corresponde a uma

    idia inadequada que se produz de forma espontnea na conscincia

    - naquilo que ser

    paraFreud, o sistema Consciente-Pr-consciente

    - , e tudo que e

    l;l

    faz

    indicar

    o

    es

    tado de nosso corpo em sua

    afetao pela presena de um objeto. As idias inadequadas no de

    rivam de um processo de inteligibilidade. elas so detenninadas pelo

    corpo exterior e pela alma enquanto esta

    ac

    har-se afetada por este cor

    po

    ex.

    terior.

    25

    Spinoza substitui a

    di

    cotomia cartesiana

    do

    claro e dis

    tinto pela idia de uma afetao, espontaneamente consciente,' a partir

    da

    qual poderemos desvendar a idia adequada que, sozinha, exprimir

    sua causa. Compreender a essncia do corpo exterior, no

    co

    nfundi-la

    mais com o efeito _que este corpo produz sobre ns, enquanto somos

    afC?tados

    por este objeto,

    um trabalho.

    Uma

    idia adequada corres-

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    17/156

    a polmi

    c l

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    18/156

    18

    o sono dogMtit::o e Frt lllll

    tarde, quando ele o retoma na CriJiaz IMjCIICulti aJe do jldm

    Tomar

    clara, sem o auxJio da presena

    de

    um

    lermro. sua propria dinmica

    inconsciente, tal como

    esta

    defmida pot Freud. seria a tarefa de

    um

    entendimento apto a pensar juntoos

    o o t r d i t d r i o s ~

    o que impossvel

    a um entendimento humano.

    Na Crtica do fa cul tltuk

    do juP

    Kant

    explica o que

    deveria

    ser

    um entendimento c p z

    de

    apreender os coottadilrios: busc odo cir

    cunscrever a contingncia ligada, a

    princpio.

    a nosso entendimento,

    ele quer distingui-lo

    dos

    outros entendimentos possveis..,_

    7

    Seus

    esforos para pensar os entendimentos conduziram-no a conceber

    um

    mundo onde o fenmeno no derivaria mais,

    como

    o caso

    do

    en

    tendimento discursivo humano, da

    causallade

    mecnica. mas agora

    da finalidade;

    desse modo, ficaria abolida a diferena entre nmenos

    e fenmenos ou,

    em tennos

    psicanalticos, entre consciente e incons

    ciente, o que tornaria possvel o desvendamento do Inconsciente atravs

    do trabalho de uma nica conscincia individual; verificar-se-ia. assim,

    a nica p

    os

    sibi )idade de uma auto-anlise. Kant comea por demonstrar

    que o entendimento humano- o entendimento discursivo- apia-se

    sobre as partes para elevar-se ao todo, sendo as partes a causa do

    todo; as partes

    do

    todo, aqui, constituem aquilo que a psicanlise

    capta atravs

    da

    sucesso dos fragmentos do discurso do paciente, e

    o todo, a globalidade

    da

    vida psquica que detenninada pelo Incons

    ciente. Para

    um

    entendimento que fosse intuitivo e marchasse

    ao

    con

    trrio; isto ,

    de

    um todo - que pode fazer o objeto

    de

    uma

    apercepo

    pa r a as partes, poderia realmente dar-se o caso de

    uma

    figura onde

    o Inconsciente

    (o

    todo) se deixaria p r e e n d ~ r

    por uma

    conscincia

    nica, uma vez que a dimenso desta, constituda pelas partes do

    todo

    ,

    permitiria apreender

    de

    fonna

    no mediata aquilo que as uniria

    entre

    si. Neste caso, a apreenso do todo princpio

    de

    possibilidade

    da

    ligao que existe entre

    as

    partes, vale dizer, entre as diferentes re

    pre

    sentaes que chegam at conscincia. De fato, Kant prope este

    modelo de entendimento elaborado a partir do entendimento humano,

    mas ocultando determinaes no pertencentes a este ltimo.

    2

    8

    so

    mente por meio deste intelecto arqutipo que se desenha a possibilidade

    de pensar

    junto

    os

    contraditrios, tarefa impossvel

    ao

    entendimento

    humano que, como a conscincia em Freud, no poderia captar

    uma

    coisa

    sem

    respeitar as prprias regras, as regras da Jgica.29

    Freud,

    por

    conseguinte, coloca-se como o nico

    que

    pode praticar

    uma auto-anlise, e logo que tentamos imprimir uma detenninao

    filosfica a

    esta

    experincia mpar tomando como referncia suas

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    19/156

    a polmica alllifilosfica de Freud 19

    prprias declaraes- ns nos damos conta daquilo que esta tentativa

    implicaria.

    A unicidade

    da

    posio afirmada por Freud sobre suas possibi

    lidades no pra aqui. Quando lemos

    sua

    obra no podemos deixar

    de surpreender-nos com a estranha semelhana que ela apresenta com

    muitas das passagens

    de O mundo como vontade

    e

    como representao

    de

    Schopenhauer

    e, em

    particular, com a homologia entre a metaps

    cologia freudiana e os Suplementos ,

    no

    segundo livro de

    O mundo

    Por outra parte, em meio ao turbilho dos ataques lanados por

    Freud contra a filosofia, percebemos que o nico filsofo a merecer,

    a seus oJhos, elogios

    Schopenhauer. Claro, h tambm Kant - em

    quem

    Freud

    vrias vezes procurou apoiar-se

    -

    mas

    rapidamente

    percebemos que se trata uni

    ca

    mente

    da

    viso schopenhaueriana de

    Kant o que lhe motiva as alegaes. Mas Schopenhauer uma fonte

    realmente particular: com ele, surge na histria da filosofia um dis

    cpulo de Kant de fato curioso;

    Schopenhauer afinna

    continuar o

    Criticismo valendo-se

    da

    autoridade - e com razo - da Ideologia

    e, atravs desta, dos empiristas.ingleses e dos enciclopedistas franceses.

    Ele

    o primeiro a tentar uma sistematizao

    da

    perspectiva antfilo-

    sfica e, por

    esta

    razo, pode ajudar-nos a elucidar o ponto litigioso

    do texto freudiano; no possvel deixar,

    como

    se fosse algo perfei

    tamente natural, este

    ltimo retomar

    um

    dos argumentos

    do

    antifilo

    sofismo desde a

    sua

    origem - referimo-nos

    irr

    ealidade da filosofia

    - e interpretar, de forma sistemtica, no s a reflexo filosfica mas

    tambm OJ ltras maneiras do pensar, como se tudQ no passasse

    de

    um

    processo delirante.

    Cumpre-nos, portanto, investigar com ateno os caminhos que

    levaram Freud a acreditar que podia questionar a relao da psicanlise

    com outros pensamentos que no fossem os seus. Mesmo porque, a

    despeito da evidente insuficincia

    de sua

    argumentao, o freudismo

    no recebeu de seu adversrio filosfico uma verdadeira resposta. Ora,

    isto que parece uma irresoluo da filosofia concede a Freu,d o direito

    de - mas ao mesmo tempo o condena a - ficar

    como

    um corpo

    estranho

    na

    histria das manifestaes

    do

    esprito.

    Freud, pelo menos

    uma

    vez, confessou ter tomado conhecimento

    da obra de Schopenhauer; trata-se

    de

    uma espcie de confidncia feita

    numa carta aLou Andras Salom,30 onde ele informa ter lido a obra

    de Schopenhauer

    por

    obrigao e sem prazer. Da a necessidade

    de

    examinar com cuidado que tipo

    de

    relao existe entre

    os

    dois textos.

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    20/156

    20

    o sonn dogmtico de Freud

    NOTAS

    I. Freud, S., L 'interprl. . .,n des rves, trad.

    I.

    Mcyerson, reed.

    D.

    Berger, Paris.

    PUF,

    1967, p.

    5J7

    .

    2. Ibidem.

    3.

    Freud, S

    Abrg

    de psychanalyse, trad. A.

    Bennan

    , reed.

    J.

    Laplanche, Paris,

    PUF, 1975, p.69.

    4. Freud, S. "La personnalit psyd ique",

    in

    Nouvelles confrinces sur la psy

    chanalyse, trad. A. Berman, Paris, co . "Ides" , Ga llimard, reed. 1978, p.69.

    5. Aristteles, Mtaphysique, trad.

    J.

    Tricot, Paris,

    1974r

    3,

    l005b

    19-20.

    6. 1bidem,

    r 5 1009b

    27-30.

    7.

    Freud,

    S.,

    "Pour

    introduire

    I

    e narcissisme

    ' '

    . in

    I

    vie sexuelte.

    trad.

    1.

    Laplanche,

    Paris,

    PUF,

    1969, p. J00-1.

    8. Freud, S. ' ' L'inconscient'' . in Mtapsychologie,

    trad.

    J. Laplanche e J.-8 Pon

    tals, Paris, ~ o i "

    ldes",

    Gallimard, reimpr. 1983. p.\22-3.

    9. Freud, S. ' ' Rsistances la psychanalyse". in Rev1w juive, Genehra, 15 mar.

    1925,

    I, 2 209

    - .

    19

    .

    10.

    Freud

    ,

    S.

    " D 'une conception

    de l'uni

    vers" , in

    Nouvelles co

    nf

    rences sur la

    psycltanalyse,

    p.

    210-l.

    11. Freud, S ..

    lmr

    od

    uction

    li

    la psyclumalyse,

    trad. S. Janklvitcb, Paris, col.

    " l

    des",

    Gallimard, 1978, p.210.

    12. " A concepo segundo a qual a psique ,

    em

    si inconsciente permitiu fazer

    da

    psicologia

    um

    ramo, semelhante a todas

    as

    outras,

    das

    cincias naturais" (Freud,

    S., Abrg de psychanalyse, op.cit., p.20-l).

    13. Locke, J ., Essai p h i l o s o p h i q ~ concemant L entendement humain, trad. P.

    Cosre. Paris, 1972, p.S73.

    14.

    o

    une concepti

    on

    de

    l'univers", in Nouvelles confrences sur la psychanalyse,

    op

    . cit., p.209.

    15

    .

    Ib

    idem, p.231.

    16. Freud,

    S., tudes sur l'hystrie,

    trad. A. Berman. Paris,

    PUF,

    1967, p.228.

    (0

    grifo

    nosso.)

    . 17. Kant, E., Cn tique de la raison pure, op.cit., p.36.

    1

    8. Dentre as muitas passagens onde Freud admite.

    uma

    adequao da reflexo

    filosfica

    com

    uma conscincia nica, tomemos

    aquela em que

    ele

    diz que "desta

    forma, (esbarra-se) na contradio dos filsofos que, embora considerando o

    'conscie

    nte

    ' e o 'psquico' como idnticos, alegavam no poder representar para

    si o

    ab

    surdo

    do

    ' inconsciente psfquico'.

    Mas

    , pacincia, a melhor coisa

    era dar

    de omb

    ros

    para

    esta idiossincrasia

    dos

    filsofos"

    (freud.

    s

    :

    Ma vie e

    t la

    psycha

    nalyse,

    lrad. M. Bonaparte, Paris, col .

    "(des"

    , Gallimard, reed.

    1981-

    p.

    40)

    .

    19. Plotino, Ennades. trad. E. Brehier, Paris, Les Belles Lenres. 1927. IV, 4, 4.

    20. " Por pensamento, entendo tudo aquilo que est de tal forma em ns que

    imediatamente nos apercebemos do que seja", Descartes, R., " Mditations

    m ~

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    21/156

    a polmica antiftlosfic de F r ~ u d

    21

    t a p h y ~ i q u e s ,

    in

    CEvres

    philosophiques, org. F. Alqui, Paris, Gamier-Flammarion,

    1967, p.586, A.T., IX, 124.

    21. Mditation

    m

    A.

    T.,

    4 1.

    22. Troisiemes objections

    et

    rponses,

    A.T., IX ,

    147.

    23. Nicole,

    P.,

    Essais

    df

    morale,

    u,

    p.88, citado

    in

    Lewis, G.,

    Le

    problerne de

    l

    'incon

    sc:ie

    nt et le .cartbianisme, Paris, co . Dito", PUf, 2

    1

    ed. I985, p.240.

    24. Nicole, P., ibidem, p.

    l63,

    citado in Lewis, G.,

    Le

    probleme de L'inconscient

    et le cartsvzisme,

    op.cit.. p.241.

    25. Spinoza, B.,

    L 'ithique,

    trad.

    Ch

    . Appuhn, Paris, Vrin, xxvn.

    26. Kant.

    E.

    " Lettre Marcus Herz

    du

    2 1

    ~ v r i e r

    1772

    " ,

    in

    CEvres

    philosophiques

    de Kant, trad. J. Rivelaygue, Paris, Gallimard, co . "Pliade". 1980.

    u,

    p.692.

    27. Kant.

    E . Critique de la facult de jl4ger,

    trad. A. Philomcnko, Paris, Vrin,

    1979, p.220.

    28. Kant, E., Critique d ~ la facult de juger, op.cil., p.220-l. "Ns d e v ~ m o s ,

    simultarieamente, pensar

    um

    outro entendimento em relao

    ao

    qual - e isto

    anterionnente a qalquer fim

    que lhe

    seja

    atribudo-

    possamos reprsentar, como

    necessria, aquela concordncia (Zusammenstimmung) das leis da natureza com

    nossa faculdade de julgar, a qual somente

    pensvel para nosso entendimento

    por meio

    da ligao

    do

    s fins [...)Tambm podemos conceber

    um

    entendimento

    que,

    por

    no ser

    como

    o nosso. discursivo, e sim intuitivo, parte

    do geral-sinllico

    (chl intuio de um todo enquanto tal) ;to particular,

    que

    r dizer,

    do

    IOdo para as

    partes, portanto, um entendimento que, igual sua representao

    do

    todo.

    no

    compreende

    em

    si mesmo a

    contingncia

    .da ligao das partes para

    tomar

    possvel

    uma fonna determinada do todo. ao passo que esta s impe ao nosso entendimento

    que

    devepartir

    das partes-

    pensadas como causas gerais

    (ais allgemein-gecklchten

    Grnden)

    pa r a

    as diferentes formas possveis que podem ser subsumidas como

    conseqncias."

    (Os

    grifos so de

    Kant)

    29

    .

    Kant, E.

    ,

    "Se ento no quisermos representar-nos, como

    convm

    a nosso

    entendimento discursivo, a possibilidade do todo

    como

    dependendo

    das

    partes,

    mas

    se

    ns

    quisermos representar-nos segundo o entendimento intuitivo (arqutipo)

    a possibilidade das partes (em

    sua

    natureza e

    em

    sua ligao)

    como

    dependendo

    do todo, uma vez

    que esta

    qualidade

    prpria de no

    sso

    entendimentp, isto

    s

    se

    poder

    fazer

    de uma maneira tal que o todo compreenda o princpio da possibilidade

    da ligao

    das

    partes (o que seria uma contradio no modo do conhecimento

    discursivo)"

    l ).

    (Ibidem, p.221.)

    30.

    Correspondance avec Lou Andras Salort L, p.l26

    .

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    22/156

    CAPTULO

    A presena schopenhaueriana

    no texto freudiano

    Fara da se

    No

    decorrer de toda sua

    obr

    a, Freud ir defender-se do fato de ter-se

    valido de outras fontes, contrariamente idia em geral admitida

    e

    expressada

    por

    Goethe da seguinte fonna: " No somente aquilo que

    nasceu conosco que nos pertence, mas tambm o que sabemos adquirir

    e constitui uma parte integrante de nossa substncia."

    1

    E apesar de,

    normalmente, situ-la entre as cincias da natureza, iremos encontrar

    Freud tambm reafirmando a total independncia

    da

    psicanlise, re

    jeitando uma aproximao que era de esperar-

    se

    em

    virtude da ani

    mosidade que demonstra com relao

    filosofia. a qual. para com-

    bat-Ia, freqente

    mente

    ope s Naturwissenschaften.

    Por

    exemplo,

    numa

    carta

    a

    Jung

    , datada de 30de novembro de 1911 , Freud expressar

    sua hostilidade,

    na

    concluso dos trabalhos de Sabina Spielrein,

    em

    termos que mostram o quanto lhe

    difcil aceitar qualquer aproximao

    de

    sua perspectiva com a

    da

    biologia:

    O

    que

    me

    parece mais duvidoso,

    que a Spielrein quer subordinar o material psicanaltico a pontos de

    vistas biolgicos; esta subordinao

    to condenvel quanto uma

    sujeio filosofia, fisiologia ou anatomia cerebral."

    2

    Parece; por

    conseguinte, que sua preocupao no reside tanto numa semelhana

    com um certo modo do saber que o obrigaria a admitir a

    ex

    istncia

    de uma

    co

    ntri buio exterior. O que o preocupa ele diz de forma

    m i to concisa, ainda nesta mesma carta: " A psicanli

    se/ara da se."

    3

    Evo

    cando as premissas

    de sua

    reOexo, Fr

    eud

    no

    reconhece qualquer

    .. precursor; dessa maneira, ele manifesta o desejo de que a psicanlise

    seja

    co

    nsiderada como engendrada

    ex nihilo,

    ou seja. antes dela o

    nada. As razes por

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    23/156

    e . ~ x 11 ~ - tt xto frtudiano 23

    q ~ e r efemento dit' reflexOO:

    ~ r e s

    dele

    o mesmo que

    ex-

    pressar uma vontade ~ ~ s e

    fora do

    c: iev.

    ccmo se

    imune aos

    deitos

    do

    passar

    dO

    t.ml( O-. ft.CUI[,.

    sem d-vid'

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    24/156

    o sono dogmcico ~ Frtud

    esta argumentao (aquela plo antimodelo) da outra que a pelo

    modelo: enquanto, nesta ltima; a pessoa

    visa - ainda que canhes

    tramente - estar em concordncia com algum e, por conseguinte,

    a conduta ad otada ser reJativamente conhecida, no argumento do

    antimodelo a pessoa se v encorajada a di stinguir-se de algum, mas

    nem por isso poder sempre inferir da uma conduta realmente pre-

    cisa.''

    8

    .

    Sendo a reflexo filosfica designada como o lugar de todos os

    obscurecimentos possveis, somos levados a acreditar que a verdade

    s pode residir em algum lugar oposto a este abismo. E, quando J.

    Boutonier pede sua opiniQ

    s

    obre questes de ordem metafsica ,

    Freud comea por responder que

    os

    problemas filosficos e seus

    fundame

    nt

    os lhe] s

    o

    estranhos, que [ele] nada sabe sobre isso, e

    tamJY.luco

    sobre a filosofia de Spinoza .

    9

    Trata-se da

    ~ p o s

    que,

    em geral, Freud dava quando se mencionavam suas relaes com

    alguma reflexo filosfica de que se dizia completamente ignorante.

    Mas quando Juliette Boutonier lhe fez uma pergunta mais precisa

    sobre a filosofia de Spinoza, como lembra P.-L

    Assoun,

    10

    Freud, pelo

    menos por uma vez, no se prendeu a essa declarao de incompetnci

    a;

    o que ele, ento, acrescentou surpreende, pois, com efeito, podemos

    ler: Se me sobrasse tempo e disposio para isso, eu poderia, pos

    sivelmente, dar-lhe meu ponto de vista. Dessa forma, Freud parece

    sugerir que esse pano de fundo que , para ele, a filosofia no seria

    inacessvel uma apreenso psicanaltica. Por outro lado, a inapreen

    siblidade, por sua prpria existncia, se faria reveladora dos limites

    do alcance de sua perspectiva.

    A acusao de plgio

    Freud mencionou o nome de Schopenhauer e a quest.o da semelhana

    entre seu texto e o do filso

    fo

    depois da publicao de ur:n artigo de

    Juliusberger, psiquiatra berlinense, membro de uma das muitas socie

    dades schopenhauerianas da poca. O mdi

    co

    alemo havia descoberto

    nos textos psicanalfticos uma foima e certos temas que j conhecia

    da leitura de Schopenhauer. Freud alude publicao de Juliusberger

    deixando transparecer certo desapontamento em virtude do efeito que

    certamente a publicao iria produzir sobre o pblico. Uma vez notada

    a semelhana de

    se

    us escritos com os de Schopenhauer, Freud se

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    25/156

    a preun schopenhaueriana

    nu

    texto freudiano

    mostra visivelmente ainda mais ansioso para tentar convencer seus

    leitores de que jamais teve qualquer coisa a ver com a filosofia. Esta

    forma de pensar, afi011a ele, somente teria atrapalhado algum que

    tivesse se empenhado em leva r a termo uma elaborao do tipo daquela

    a que ele se aplicara e lhe permitira formuJar uma perspectiva que,

    fora de dvida, compreende realmente o que a vida psquica.

    preciso observar que, at ento, Freud fala desta acusao de plgio

    sem indignao e sem pensar

    em

    desmenti-la; somente lhe importa a

    repercusso. Com efeito, ele escreve a Abraham: Juliusberger soube

    tirar bom partido das citaes que busquei em Schopenhauer, mas

    minha originalidade est ostensivamente em baixa.

    2

    Segundo Freud,

    at para ele foi objeto de espanto esta semelhana de seus trabalhos

    com os de Schopenhauer, que Juliusberger mostra ser inegvel. Ser

    um de seus discpulos, Otto Rank, que o levar a descobrir a similitude

    entre os dois textos:

    No

    que diz respeito

    teoria do recalcamento,

    eu certamente teria chegado a ela por meus

    pr

    prios meios, livre de

    qualquer influncia que me aponta

    ss

    e os caminhos. Desse modo, du

    rante

    mu

    ito tempo eu a considerei como original, at o dia em que

    Otto Rank ps sob meus olhos uma passagem de

    O mundo como

    vontade e como representao,

    onde Schopenhauer procura dar uma

    explicao para a loucura.

    13

    E Freud prossegue, tomando a existncia

    mesmo desta similitude como prova de que nada sabia dos trabalhos

    do

    filsofo at o momento em que elaborou sua teoria: O que diz

    o filsofo na passagem onde trata da repulsa que sentimos por ter de

    actitar este ou aquele lado doloroso da realidade est perfeitamente

    de acordo ,

    4

    afirma

    ele.

    com efeito,

    co

    m a noo de recalcamento

    tal como a concebo; o que posso dizer que uma vez mais

    devO

    minha descoberta insuficincia de minhas leituras 1s Se Freud pde

    revelar o mecanism do recalcamento porque ignorava a descrio

    que fizeraSchopenhauer deste, pois - acompanhando-lhe sempre o

    raciocnio - uma homologia como esta entre as duas pspectivas s

    demonstra que sua ignorncia da filosofia foi bem o que l.rte permitiu

    descobrir o mtodo da investigao que iria resultar na psicanlise.

    Dizer que quanto maior a semelhana entre os textos A e B de autores

    diferentes e que,

    por

    ser o texto B cronologicamente posterior ao A,

    maior dever ser a certeza de poder concluir que o autor de B ignorava

    o contedo de A, , no mnimo, uma afirmao surpreendente. No

    entanto, todos os que haviam realmente lido e relido as anlises

    de Schopenhauer, particularmente os textos em que o filsofo define

    conceitos que a prtica psicanaltica permitiu, tambm ela, isolar, e

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    26/156

    sem intluucia

    e ~

    nada a m pele &m lliiiiCSmD de

    I CRm

    lido e

    ~ l i d o ' .

    pccsseg.tre dcixa:r entrever aqui

    mais uma provade desoouhccer a

    obrai qwe

    o xusavam de ter

    ptagi.aQ

    o.

    O

    dese

    nvoh

    menUJ.

    deste rxifm.o.

    teahnente

    s u r p r e e n d e n t e

    acu

    sado

    de

    pl

    gio

    por

    Juliusbefger. Freild comea

    por

    dr

    ze

    t que jamais

    leu

    textos filosfiCo&

    ,

    iJU:lusi-e

    os de S d w p e t t a ~ r ~

    Ca:utdaasdo

    este'

    pooiO como

    S t

    plbo

    sap,.

    c o m a d o

    w

    neo:buma pon. de

    afuma que a leitura* telUOI P rtbfic:os. amdas t0das- as tentativ

    as.

    para

    etacidar o que J:ldes. se C' l la ln ; e se e ~ o promQtO( da. psi(;pJise.

    ainda. assim u

    f u u

    I I R dc5aJilerta

    de

    tal ome-,. isso s fu

    provar que ele jamais ~ e na pn:saa., tais textos.; 1:1ma trao.sfe

    rucia

    dedu1iv.a

    realmente smgtdlll '_

    r

    Alis., qWIIId )

    f

    oi

    obsenada a

    dcsco.wi;ettiJ Ite

    semelh.ma emre

    seus trabalbos e os:., ~ g K ; a m e n t e aateriores, de e ~ a

    primeira reao de Fmid,. roroo devemos.

    es&atr

    lcabradiro&;. 'Alio foi a

    de

    querer des'Cu]pu-

    se

    ,

    mas.

    a de - e coow um fif&'ofo ba.Yiia

    conseguido, muilos

    ao s

    mtes: dele, cna;r as graades

    li.t'lllas

    de

    1lmJ.a

    reflexo -

    no caso

    a

    sua

    -

    j que wn

    procediment0 fifosfi

    co

    na.da

    poderia dever experiucia.

    Em A t ~ ~ f K S t i a e

    11

    vitta

    ii.Utintwal.

    sua

    ..

    Quarta

    cooferncia", Freud

    reSJK*Ie a

    esta

    qoeslo.

    Nada

    b

    aqui.

    segundo ele

    ,

    que nio

    seja m&ito

    fcil de

    oompreenclef.

    '"'Talvez vocs

    irio dizer,

    dando

    de ombros, mas. isso

    a filosofa

    de

    ScbopeManer

    que o senhor nos est

    expondo

    e Dio uma teoria

    i c o t f i c a ~

    E.

    por

    que

    no, meus senbores e minhas senhoras.

    um pensador'

    ousado Do

    teria

    adivinhado a q ~ ~ i l o

    que

    depois a observao

    penosa

    e fria

    iria

    c:onfu

    mar

    17Dessa

    forma. para Jcntar banalizar

    uma

    aproximao

    ID05tnda

    como

    evidente C, ao mesmo

    tempo, procurando negar

    que houvesse

    conformidade entre os dois

    pensamenlos,

    ele,

    como se

    falasse algo

    sem

    importncia, acrescenta: ..

    tJU., do Mais .

    no r sas

    idiios nMI silo

    u a t a m ~ n . : t e

    as

    de c h o p e n h o f l ~ r

    ..."

    .

    15

    A atrao por Schopenhauer

    A maneira

    pela

    qual

    todo

    sistema se

    d ao

    trabaJho

    de

    apreender a

    realidade necessariamente tributria

    de

    ootras reflexes que conver

    gem

    para o mesmo fim, e uma determinada doutrina poder ser en

    tendida como nutrida daquilo

    que ela

    buscou

    no

    passado e naquilo

    que

    a circunscreve.

    Como

    diz M. Guroult: .. Cada

    filosofia, peJa sua

    pretenso ao

    ser

    , pe;-se parte de qualquer ou,tra Quando nio isso.

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    27/156

    aquilo que

    ela

    deixa subsislir de

    uma

    outra apenas um.a

    carne de

    que se nutre, que transforma num outro ser, des(ruidoT daquele do

    qual se beneficia.. .

    19

    E Kant resume a soluo deste problema comum

    a todo texto na seguinte

    af trJDao

    : ..

    Quando

    om autor estudao. com

    esprito livre

    de

    pn:conceitos.

    os

    peasamentos

    de outro

    s e deles se

    apropriou atravs

    de

    uma reflexo

    cujo

    desenvolvimento acompanhou

    passo

    a passo,

    ele

    oo meu enlendet, deixar ao leitor a liberdade

    de avaliar suas teses JlOVaS e di'Vetgeoles. r20

    Convm, inicialmente.

    iuvest ip se

    a

    obra do fllsofo

    de

    Frank

    furt prestava-se a es e tipo

    de

    emprslimo. Sabemos

    hoje que outros

    se apoderaram de partes inteiras de seu sistema

    cuja

    esnurura parece

    tomar

    possvel tais

    operaes..

    De

    falo,

    como

    assin

    alou

    A.

    Philonenko,

    Schopeohaocr ...

    revestiu

    sua

    intuio

    de um

    sistema l

    --

    1 [e },

    em

    conseqncia. existe orna

    soluo

    de

    cootiDuidade catre a idia e a

    sistemlica

    que

    no euoont'raJ'DoS

    em outtos p6s--t.anti81105" _21 A

    exis

    tncia deste plano

    de

    clivagem na estrutnra dos textos scbopenbaoe

    rianos

    explica

    que

    tenha

    sido

    possvel

    a mais

    de

    um

    autor exrnir

    facilmente dela o que lhes parecesse

    ~ o

    ao enriquecimento

    das prprias perspectivas. Assim,

    por

    exemplo, a propsito de certas

    passagens

    de

    unro

    e

    paz

    L Chestov observa:

    "Estas

    linhas:- To1stoi

    tirou-as quase textuabnente

    de

    O tmfndo como vontadl e cOIII ) rr:-

    prl sentao,

    bem

    como

    toda a

    sua

    teoria da morte."22 E Philonenko

    diz

    mais:

    ..

    assim

    que

    Tolstoi

    pde

    pegar

    a intuio

    sem

    o

    sistema

    e que

    h

    seguidores

    de

    Schopenhauer que nem

    chegam

    a

    saber

    da

    existncia uns dos outros."23

    Voltando ao caso de Freud, j dissemos

    como

    ele, apoiando-se

    na

    noo

    de

    recalcamento, havia sustentado

    que

    a homologia entre

    os

    dois textos, fato que

    no

    contestava,

    era

    exclusivamente devida

    ao

    acaso e de

    fonna

    nenhuma a seu suposto conhecimento

    dos

    ' textos,

    co

    ntrariamente quilo que denunciara Juliusberger,

    para

    quem a filo

    sofia schopenhaueriana continha

    j os

    elementos da perspectiva psi

    canalftica. Esclarecer a ques

    to

    do emprstimo feito por Freud aos

    textos de Schopenhauer no poder, evidentemente, constituir

    um

    fim

    em

    si. No se trata, no que toca a no

    ssa

    pesquisa, de

    partir

    de uma

    elaborao para procurar as causas psicolgicas e histricas,

    mas de

    ap

    reendermos aquilo que a condio de possibHdade e alcanar,

    ento, as prprias estruturas

    da

    ati vidade racional. Parafraseando aqui

    Kant, no teria feito Freud parte daquela mesma classe de

    "contes

    tadores" que pertence tambm Schopenhauer?

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    28/156

    8

    c sono dog.mti

    de

    Freud

    Quando afirma que o Eu representa aquilo que se denomina

    razo ,24 Freud sustenta que a principal funo desta instncia a de

    proteo

    da

    individualidade; depois de l e m b ~ a r A

    u ~

    o p ~ p e l constru

    tivo do Eu consiste em intercalar, entre a ex1genc1a puls10nal e o ato

    prprio a satisfazer esta ltima, uma atividade intelectual que, aps

    considerar o estado de coisas presentes e as experincias passadas,

    ir, atravs de tentativas experimentais, avaliar as conseqncias

    da

    linha da conduta pretendida ,

    2

    s e le estipula que

    o

    Eu passa a ser

    dominado pela preocupao com a segurana. Sua misso a

    da

    conservao do Self queo Isso parece negligenciar .

    6

    _

    Para definir aquilo que em cada indivduo caractenza a funao

    do

    intelecto, Schopenhauer se valeu tambm

    do

    termo

    conservao,

    frisando que o intelecto tem por funo natural cuidar

    da

    conservao

    do indivduo, uma tarefa que, em geral, lhe difcil de cumprir .

    27

    Em Schopenhauer, a preocupao de preservar esta individualidade

    enquanto tal

    o que anima aquilo que h de racional no indivduo,

    ao passo que em Freud ela se manifesta atravs do d e s d o b r ~ m e n t o de

    uma estratgia defensiva cujo sentido polemolgico est perfeitamente

    presente no primeiro; o autor de mundo como vonta_de e c

    o ~ o

    representao via o indivduo prisioneiro de um r e m a n e a m e n ~ o

    terior necessrio a sua sobrevivncia como indivduo. E a finaltdade

    que dava a esta estratgia era a de tomar mais suportveis as repre

    sentaes

    que,

    se fossem livres para aceder, tais

    o m ~

    so,

    c o ~

    cincia, teriam constitudo um perigo para a manutenao de uma -

    dividualidade que exige um m ~ i m o de coeso interna. ainda que

    custa deum desconhecimento. Desta forma podemos ler em O mundo

    conw vontade e co

    mo

    representao

    que o intelecto tem

    de

    resignar-se

    a esta r e v i r a ~ o l t a por mais penosa q'ue lhe seja, pois a vontade o

    exige i.mperiosamente: ou melhor dizendo, as resistncias manifestadas

    a propsito desta

    mudana no partem da inteligncia [ .. ], mas

    ~ a

    prpria vontade que, parcialmente, atrada para uma representaao

    pela qual, por outra parte, sente repulsa_ Esta representao,

    na

    rea

    lidade, por

    um

    lado, a interessa porque

    ela

    a anima, mas ao mesmo

    tempo o conhecimento abstrato lhe diz

    que esta representao lhe

    causar inutilmente um choque penoso

    ou

    indigno, e ser neste mo

    mento que a vontade tomar uma deciso de acordo com este ltimo

    conhecimento obrigando o intelecto a obedecer.

    28

    Quando Schopenhauer fala de

    uma

    deciso

    ' ' da

    Vontade, de

    vemos lembrar-nos que Freud igualmente admitiu que no Inconsciente

    se tomavam decises

    .29

    Freud, aqui, foi levado por Schopenhauer

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    29/156

    a pre rena schopenhdueriana no textn freudiano

    29

    a enunciar uma contradi

    o cujas conseqncias visivelmente no sou

    be avali ar. Dizer que o Inconsciente lugar de decises d no mesmo

    que sustentar que existe , nele, uma atividade que pennite a escolha

    ent

    re

    uma afirmao e uma nega

    o.

    Isso, portanto, n

    o

    s afirmar

    que o Inconsciente encerra a negao

    -coisa

    por sinal, que Freud

    constantemente rejeita ; mas tambm aceitar a idia de que o prin

    cpio do terceiro excludo- que est na base de toda deciso- rege

    o funcionamento do Inconsciente. Com efeito, no se pode, numa

    deciso, admitir uma soluo inte rmediria para aquilo que o prprio

    enunciado do princpio do ter

    ce

    iro excludo. Ora, Freud, que no

    reconhece a negao no interior do Inconsciente, no admite igual

    mente que este ltimo esteja suje

    ito

    aos princpios da lgica.

    Isso no altera o fato de Freud acreditar-se, a partir da, autorizado

    a achar que h, no aparelho psquico, uma determinada estrutura que

    decide sobre a estratgia defensiva , uma organizao cuja natureza

    teleolgica

    ,

    para ele, a de prot

    ege

    r o indivduo e que j existia nas

    anli ses de O mundo como vontade e como representao Schope

    nhaucr discemia um conjunto de operaes que tinham por objetivo

    proteger a conscincia individual dos contedos representativos que

    ela no teria suportado, ou antes, os contedos repr.esentativos que a

    Vontade decidia serem perigosos para a preservao da individuali

    dade. Atravs da leitura de sua principal obra tomamos conhecimento

    das detenni.naes essenciais daquilo que

    Fr

    eud ir, mais tarde, de

    nominar recalcamento. Nos

    S

    uplementos , livro n, Schopenhauer

    descreve a e1aborao de uma estratgia intrapsquica cujo procedi

    mento ser, em todos os sentidos, o do futuro recalcamento freudiano.

    Encontramos operando

    um

    movimento que, como um campo

    de

    foras,

    permite ao sujeito suprimir ou manter afastado - do campo da

    conscincia uma representao decorrente de seu elo com uma incli

    nao que lhe seria insupt>rtvel se tivesse

    de

    integr- la ao conjunto

    daquilo que capaz de dizer de si prprio; bem antes de Freud,

    Schopenhauer escrevia que muitas vezes n.o sabemos o que d e e ~

    jamos ou tememos. Podemos acalentar um desejo por muitos anos

    sem confess-lo para ns, sem mesmo chegar a ter dele uma clara

    conscincia; que sua r

    eve

    la

    o

    parece perigosa para nosso amor

    prprio, para a boa opinio que precisamos ter de ns mesmos; mas

    to logo o desejo se concretize, a alegria sentida nos ensina, no sem

    alguma confuso, que havamos desejado aquele acontecimento com

    todas as nossas foras; seria o caso, por exemplo, da .morte de um

    parente prximo de quem somos herdeiros

    .30

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    30/156

    3

    o sono dogmtico

    e

    FnuJ

    Para ~ r

    apreensvel o determinante

    de tal e s t r t g i ~ ~

    lana mo

    de

    uma imagem

    que

    coneribuiu para

    simbolizar

    ~

    esta noo capital da psicanlise.

    Trata-se

    do famoso

    guardiao

    que

    Freud instala"

    na

    antecmara e que

    yiga

    cada tendncia psquica,

    fazendo-a

    passar

    pela

    censura

    que

    a

    impede

    de

    entrar no

    salo,

    caso

    no

    seja ela de seu agrado .

    31

    metfora logo nos faz recordar aquela

    de

    que

    se

    serviu Schopenhauer, muito parecida

    na

    linguagem e

    de

    sentido

    rigorosamente idntico: o intelecto,

    depois de ter investigado

    e pesado uma

    quantidade

    de

    dados

    32

    esperava

    pela deciso

    de uma

    Vontade

    inconsciente que fazia sua

    entrada como

    o

    sulto

    na sa

    la

    do Div

    para pronunciar

    como

    de

    cos

    tume uma permisso ou uma

    recusa"

    _33

    Se

    o Inconsciente

    promulga uma

    permisso ou

    uma

    r

    ec

    u

    sa

    no importa, para Freud, o que con

    ta

    que esse mecanismo seja

    passado

    no plano do valor conclusivo

    da

    sentena. Ele, com efeito,

    no deixa

    de

    explicitar, na Intr

    od

    uo psicanlise

    que

    a difer

    ena

    bem

    pouca e o resultado praticamente o mesrrio se o guardio envia

    determinada

    tendncia

    quando

    ela ainda

    est na soleira

    da porta ou

    se ele a faz

    passar

    depois de j ter penetrado no salo .

    34

    Ao fim de

    reflexo idntica, Schopenhauer havia atribudo interesse ao resultado

    final

    da

    investigao

    do

    sulto

    , escrevendo, ento,

    que

    a

    Vontade

    " po

    de

    certamente apresentar diferenas

    de

    grau, mas no uma diferena

    essencial" .35

    O guard

    io

    de Freud3

    6

    - como o sulto de Sc

    hope

    nh

    auer

    -

    constitui uma verdadeira pessoa,3

    7

    pois

    so

    mos obrigados a reconhecer

    nele a capaci

    dade

    de distinguir o verdadeiro do falso, o bem

    do

    mal,

    alm da faculdade de justificar os motivos de suas

    decises

    face a

    outros seres racionais. Haveria, portanto, no interior

    do Incons

    ciente,

    um princpio de

    conhecimento

    que indicaria formalmente ClQUilo que

    til ou que pode ser funesto para determinado indivduo como tal,

    e isto quaisquer que sejam s mudanas prprias a todo e qualquer

    i

    ndiv

    duo.

    Seg

    undo Freud - e Schopenhauer- na instncia incons

    ciente

    aloja

    -se uma funo que transcende o indivduo. Uma tal fa

    culdade mantida um pouco sombra: ns s a percebemos atravs

    de

    uma metfora onde evitamos eluc

    idar

    aquilo a que ela quer dar

    acesso.

    Ao

    mesmo

    tempo, deixamos

    aparece

    r

    so

    mente uma

    conscincia

    que ti

    vemos

    o

    cuidado

    de desvalorizar de tal

    maneira

    que a descre

    vemo

    s como se estivesse

    sendo sacudida

    de

    um

    Jado para outro por

    d ~ c i

    s e s para ela imprevisveis

    que,

    no entanto, so mais justificveis

    que aquelas que a razo poderia promulgar. De fato ,

    os

    decretos que

    visam assegurar a sobrevida do indivduo so promulgados por

    esta

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    31/156

    31

    faculdade i.aconscieale

    de

    discriminlo - p

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    32/156

    32

    o sono dogm ico de Freud

    leitura do Critcismo, contudo, no basta para demonstrar a sujeio

    de Freud ao texto schopenhaueriano. Quando muito, ela nos leva a

    observar que, em concordncia com o que di zem comentaristas.como

    Victor Cousin, K. Fischer e N. Hartmann, Freud se teria limitado a

    expor uma interpretao do kantismo que nada tem a

    e n ~ i n a r n o s

    sobre o como de sua leura. Enquanto todos aqueles le1tores -

    que partiCipam de uma interpretao antropolgica

    da_

    r ~ t i c a d

    r a z ~

    pura,

    inclusive Schopenhauer - esforaram-se por JUStificar a parti

    cularidade de suas leituras da filoso

    fi

    a kantiana, nos textos de Freud,

    em vo buscaramos tentativas de justificao como estas que, no

    entanto, bastariam para autenticar a interpretao tendenciosa dos con

    ceitos kantianos como sendo prpria de quem a fez. O prprio Scho

    penhauer consagra longas linhas procurando confrontar seu ponto de

    vi sta com os de Kant, e podemos, da leitura de O mundo como vontade

    e como representao,

    fi

    car sabendo o porqu do desvirtuamento_ ope

    rado por seus comentrios. A exposio de motivos schopenhauenanos

    justificando determinada compreenso da Crtica da razo pura tem

    importncia bastante para contribuir de maneira notvel para o escla

    recimento da aporia contida no texto; esta interpreto do Criticismo

    faz com que Schopenhau

    er

    entre para a genealogia de certas correntes

    de uma modernidade que se ps a servi1r do antifilosofismo. Se

    estamos ou no de acordo com tal apreenso do kantismo - uma

    apreenso que

    parcial e o violenta- no vem ao caso, no

    esta

    a inteno do presente estudo.

    Comeamos a poder elucidar a natureza e o alcance da inspirao

    schopenhaueriana em Freud a partir do instante ein que e s t u d a ~ o ~ o

    procedimento racional seguido pelo filsofo de Frankfurt para distin

    guir a existncia

    do

    Ente supremo, vale dizer, da Vontade que, em

    seu sistema, se revela o determinante ltimo de qualquer ente. Quando

    faz a justificao do Querer inconsciente, Schopenhauer parece se

    apoiar num ensinamento kantiano onde ele pretende

    e n c o n t r ~ r

    uma

    desvalorizao da percepo que tornaria necessrio o reconhecimento

    daVontade.

    De

    fato, em

    O mundo como vontade e como representao,

    ele sustenta que a percepo emprica total dos objetos que se apre

    sentam a ns, por ser ela essencialmente e principalmente determinada

    [ .] pelas formas e funes de nossa faculdade de conhecer? torna

    inevitvel que a representao dos objetos seja radicalmente distinta

    da essncia deles [ ..e] jamais ultrapassaremos a representao, quer

    dizer, o fenmeno, se partirmos do conhecimento objetivo, vale dizer,

    da representao; ficaremos do lado de fora das coisas, sem penetrar

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    33/156

    a presena schopenhauerlntJ no texto freuditJno

    33

    no ntimo de seu ser, sem conhecer aquilo que elas so em si e por

    si. At este ponto estou de acordo com Kant.

    4

    Schopenhauer ir,

    ento, opor a esta incognoscibildade do mundo exterior uma possi

    bilidade de conhecimento de nova espcie que se assenta sobre o

    mundo interior e que dever poder basear-se na fonnulao das de

    terminaes do Eu enquanto vontade: Mas face verdade que ele

    [Kant] estabeleceu, enunciei uma outra que constitui

    se

    u contrapeso;

    ns no somos somente o sujeito que conhece, pois pertencemos ns

    mesmos

    categoria das coisas a serem conhecidas, ns mesmos somos

    a coisa em si, e em

    co

    nseqncia, se no pudermos, partindo de fora,

    penetrar

    no

    ntimo das coisas, no prprio ser delas, resta-nos um

    caminho aberto que parte de dentro para fora: este ser, de certo modo,

    uma via subterrnea, uma comunicao secreta que, por urna espcie

    de traio, ir,. de sbito, introduzir-nos na fortaleza contra a qual

    fracassaram todos os ataques vindos de fora.

    4

    2

    Freud retomar exatamente o mesmo discurso quando for sus

    tentar que nem todo saber inapreensvel, pois se aquele que est

    fundamentado no mundo exterior impossvel, o conhecimento do

    mundo interior abre-se investigao. No trecho em que apela para

    a autoridade

    de

    Kant, escreve Freud: ... no ir demorar muito para

    termos a satisfao de saber que a correo da percepo interna no

    oferece dificuldade to grande quanto a da percepo externa e que

    o objeto interior menos inconhecvel

    do

    que o mundo exterior .

    4

    3

    Aquilo que corresponde ao

    objeto

    interior de Freud - e que

    Schopenhauer chama o ''interior da fortaleza - determinado por

    fatos psquicos, os mesmos que so vistos desacreditados a partir de

    Descartes e que Schopenhauer decidiu, ao contrrio, retomar porque

    os considera como providos de uma cognoscibilidade superior

    do

    mundo exterior. Kant dava como inconhecvel uma tal experncia do

    Eu porque ela se densenvolveria unicamente num tempo subjetivo,

    no permitindo, por isso, ao Eu de sei: objetivado no tempo da fsica.

    Justamente porque as representaes do u do Eu enquanto vontade

    -

    se desenvolvem no tempo (e no tambm atravs

    do

    espao e

    da causalidade, como

    o caso das representaes do mundo exterior)

    que Schopenhauer acredita poder descobrir aqui uma via privilegiada

    para abordar a coisa em

    si

    que a Vontade sobre a qual, diz ele,

    em si inconhedvel.

    Para fornecer as provas da existncia desta Vontade, Schopen

    hauer se v obrigado, em seguida, a demonstrar que ela , ao mesmo

    tempo, una no universo e est presente

    em

    cada ser individual. E

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    34/156

    4

    o sono dogmtico de Freud

    Freud, com o Inconsciente, se ver confrontado com o mesmo pro

    blema; iremos, alis, encontr-lo levando com sucesso sua demons

    trao atravs de

    u

    procedimento idntico ao de Schopenhauer. Para

    pr em evidncia a universalidade da Vontade, o

    aUlor

    de

    O mundo

    como vontade

    e

    como representao

    parte da constatao de que cada

    um de ns tem possibiJdade de fazer, pois existe uma conscincia.

    A partir desta evidncia, ele enuncia que podemos passar para uma

    outra evidncia: a cada indivduo corresponde uma conscincia. s t ~

    no s detm o conhecimento como tambm as manifestaes

    do

    opet

    (apetite); na esfera desta apetncia, no h dificuldade

    em

    considerar como idnticas todas as conscincias, sejam humanas ou

    animais, pelo menos do ponto

    de

    vista particular: em cada ser vivo

    reconhecemos imediatamente aquilo que tem origem nesta Vontade,

    como desejos, temores, etc. Como explcita Schopenhauer, trata-se de

    um raciocnio

    por analogia

    que permite reconhecer esta identidade

    de essncia nos humanos e nos animais e que se situa no plano das

    motivaes de seu comporlamento. Disso, conclumos que, em

    O mun-

    do como vontade e como representao,

    cada ser animado encerra

    uma mesma Vontade: Ns praticamente s conhecemos a conscincia

    como uma qualidade dos seres animados [ ..] aquilo

    que

    sempre se

    encontra em cada conscincia animal, mesmo a mais imperfeita e a

    mais fraca, aquilo que lhe constitui a base

    o sentimento imediato

    de

    uma apetncia ora satisfeita, ora contrariada, em graus diversos

    [ ..] Sabemos,

    c o

    efeito, que o animal quer, sabemos inclusive o

    que

    ele quer, o ser e o bem-estar, a vida e a persistncia na espcie;

    e como os objetos desta vontade so idnticos aos da nossa, no

    hesitamos em atribuir ao animal todos os afetos da vontade que ob-

    servamos em ns mesmos [ .. ] Todos os atos e todos os gestos que,

    nos animais, exprimem movimentos da vontade, ns imediatamente

    os compreendemos, por analogia, com nosso prprio ser.

    44

    Encontramos o mesmo raCiocnio nos textos fundadores da psi

    canlise, quando Freud, perseguindo fim idntico ao de Schopenhauer,

    esfora-se por mostrar, tambm ele, que o psiquismo individual encerra

    um mesmo fundamento, a saber, o Inconsciente. Ele relata que,

    para

    demonstrar a existncia de

    um

    mesmo Inconsciente em cada individuo,

    em cada aparelho psquico, preciso, antes de mais nada, ter provado

    a existncia de uma conscincia em cada um; para tanto, basta seguir

    um procedimento perfeitamente habitual, um raciocnio que, parafra

    seando Schopenhauer, ele qualifica de inferncia p r analogiam ,

    o que lhe permite passar do reconhecimento da existncia de

    sua

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    35/156

    a presena schopenhaueriana no texto freudiano

    35

    prpria conscincia ao reconhecimento de uma conscincia em qual

    quer ser individual. Freud escreve que a hiptese do inconsciente

    tambm uma hiptese perfeitamente legtima na medida em que, ao

    estabelec-la, ns no nos afastamos nem um pouco da maneira de

    pensar que, normalmente, supomos correta. A conscincia em cada

    um

    de ns somente proporciona a conscincia de seus prprios estados

    psquicos; o fato de outro homem ter tambm uma conscincia, isto

    apenas significa uma inferncia estabelecida,

    p r

    analogiam, para tor

    nar o comportamento deste homem co.mpreensvel, fundamentando-nos

    na percepo daquilo que ele diz e faz (mais justo, por sinal, do ponto

    de vista psicolgico, seria descrever as coisas da seguinte maneira:

    ns atribumos, sem que isto exija qualquer reflexo especial, a todo

    ser fora de ns, nossa prpria constituio,

    por

    conseguinte, 1ambm

    nossa conscincia;

    e

    nossa compreenso pressupe esta identifica

    o).

    5

    Para passar

    do

    reconhecimento

    da

    conscincia em cada indivduo

    ao reconhecimento do Inconsciente, Freud adota procedimento similar

    ao de Schopenhauer.

    no conjunto dos atos e das representaes( na

    prpria pessoa ) que devemos aplicar o mesmo raciocnio: seria acon

    selhvel generalizar, diz Freud, a constatao de que,

    em

    cada psiquis

    mo individual, existe uma ordem daquilo que s aparece logicamente

    como fazendo parte integrante do

    ps

    iquismo; os processos psquicos

    assim determinados, e que no so acessveis conscincia podem,

    ento, ser vistos como processos psquicos inconscientes, o que sig

    nifica, para Frcud, que eles so parte integrante desse Ente denominado

    Inconsciente ; mas escreve ele: A psicanlise nada exige, fora o

    fato de que este procedimento de inferncia seja tambm aplicado

    .

    prprja pessoa, embora certamente no exista tendncia constitucional

    para faz-lo. Ao dar este passo, preciso que se diga que todos os

    atos e todas as manifestaes que observ em mim e que sei conectar

    com o resto de minha vida psquica devem ser julgados como se

    pertencessem a uma outra pessoa e que se deve exp1ic-los atribuin

    do-lhes uma vida psquica.

    46

    Freud encontra-se, aqui, na genealogia

    de uma segu nda ordem de pensamentos que corresponderia a uma

    pessoa que , ao mesmo tempo, uma outra e a mesma. De qualquer

    maneira, ele continua sempre naquela impossibilidade da lgica tra

    dicional - interposta por Schopenhauer

    -

    que, sendo ela prpria

    avatar do hilemorfismo aristotlico, no pode pensar, ao mesmo tempo,

    o indivduo e o pensamento.

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    36/156

    36

    o sono dogmtico

    e

    Freud

    Schopenhauer, para demonstrar a existncia de uma s Vontade

    em todo e qualquer esprito individual. e depois Freud, para tomar

    evidente a necessidade da presena de um mesmo Inconsciente em

    cada aparelho psquico, apianHe

    os dois naquilo que parece cmum

    a todos os psiquismos; em seguida, deste reconhecimento de um uni

    versal, presente em

    cada

    indivduo, eles deduzem uma

    coisa comum:

    no primeiro, a Vontade inconsciente e no segundo, o Inconsciente

    Tal modo de demonstrao levanta o problema da relao existente

    entre esta coisa comum que unae aquela que existe em cada indivduo.

    Sobre a Vontade, Schopenhauer diz que ela

    completamente

    i n d e ~

    pendente da pluralidade. embora suas manifestaes no t e ~ p o e

    ~ o

    espao sejam infinitas.

    Ela

    una; no

    maneira de um

    ~ b J e t o

    cuJa

    unidade somente reconhecida pela oposio com a pluralidade pos

    svel, tampouco maneira de um conceito de unidade que s existe

    pela abstrao

    da

    pluralidade. Mas ela como qualquer coisa que se

    acha fora do espao e do tempo, fora do princpio de individualizao,

    . d I al'd d

    47

    quer dizer. de qualquer perspectiva e p ur t .a e. .

    Atravs desta maneira de apreender a umdade da Vontade,

    cemimos uma espcie de r ~ a t i s m o das essncias que nos conduz

    controvrs

    ia

    dos universais. De fato, Schopenhauer levanta de novo

    esta quest.o, problema que Freud. por sua vez, ir veicular com sua

    noo de um Inconsciente que est .presente no universo e, simulta

    neamente, da

    mesma

    forma em cada indivduo. J Pierre Ablard

    criticava todas as linguagens que transformam os acidentes em subs:

    tncia por meio

    e

    uma

    substantificao dos atos e das qualidades. E

    este o 'tipo de alterao que constatamos em

    o

    mundo como vontq de

    e como representao

    onde Schopenhauer, a partir

    do

    fato de que

    todos os indivduos manifestam desejo, angstia, clera etc.. forma

    da o conceito de uma coisa, a Vontade, que definida cpmo um

    Ente. Freud proceder rigorosamente da mesma maneira com relao

    aos comportamentos, atos falhos, sonhos: o Inconsciente .um Ente

    - u ~ Ente do qual podemos dizer que absoluto na medida em que.

    para ele, tal conceito exprime a idia de que este Inconsciente o

    lugar da substantificao das qualidades da vida psquica que resultar

    ~ u m a

    coisificao;

    esta

    era

    j

    a soluo admitida

    na

    primeira teoria

    de Gullaume de Champeaux, ela prpria paradigma da posio dos

    reai s na discusso sobre os universais. Esta problemtica ser retomada

    por Ereud,

    para quem o complexo de dipo. apesar de uno, est

    igualmente presente m cada homem; somente os acidentes, isto , as

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    37/156

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    38/156

    38

    o sono dogmtico de Freud

    geiros que parecem at

    ma

    is fortes que aqueles que esto submelidos

    ao

    Eu

    [ ..], ou ento sobrevm impulses que parecem provir de uma

    pessoa estrangeira; embora o Eu

    as

    n ~ u ele se v assustado e

    obrigado a tomar precaues contra elas. O Eu fala para si .mesmo

    que existe aqui uma doena,

    uma invaso estrangeira

    e redobra a

    vigilncia, mas no pode compreender por que se sente to estranha

    mente incapaz.

    53

    Dentre as crticas dirigidas psicanlise, talvez a principal seja

    a de que ela nos tenha levado a abdicar da razo, daquela fora que,

    segundo Descartes, a nica coisa que nos faz sermos homens e

    nos distingue dos animais .

    54

    A cr

    ti

    ca torna-se ainda mais severa

    pelo fato de a razo perder seu sta

    tu

    s de soberana para ficar na condio

    de simples cidado privado de seus direitos cvicos. Parece que de

    tanto ir atrs das pegadas de Schopenhauer, Freud acabou fazendo da

    razo (ou

    da

    conscincia, pois, nele, os dois termos so intercambi

    ve is) uma criatura incapaz, e viu-se, em seguida, na impossibilidade

    de organizar uma sociedade composta de seres to desunidos. o que

    d

    a entender Henri

    Ey

    quando escreve: ... ao jogar. no Inconsciente,

    toda a estrutura do

    ser

    consciente, o aparelho psquico se dissolve.

    Esta , em nos

    sa

    opinio, a principal contradio do sistema do In

    consciente freudiano. Ela constit

    ui

    , no prprio Freud, uma

    in

    verso

    de sua intuio fundamental e primeira do Inconsciente. Este, pela

    coerncia lgica de seu sistema. e deve ser 'autnomo' , qu

    er

    dizer,

    tem de subtrair-se radicalmente conscincia sob pena de con:fundir-se

    com o Pr-consciente e perder, em definitivo, seu sentido absoluto de

    renncia e de negao [ ..], uma das exigncias

    da

    doutrina constan

    temente reafirmada por Freud (at 1915) e reafirmada por todos seus

    discpulos como dogma

    a de separar o Jcs. do Cs. Ora,

    ba

    sta repor

    tar-nos ao que acabamos de expor sobre as infiltraes e confuses

    das trs instncias ou sobre a retomada da questo do recalcamento

    para convencermo-nos de que Freud novamente voltou a atacar este

    ponto. Sobretudo em Das Unbewuss

    te

    quando a separao entre os

    doi s sistemas Bw-V.bw (Consciente-Pr-consciente) e U.bw (lncons

    ciente) , aqui preenchida pela teoria das 'ramificaes' do incons

    ciente e de uma dupla censura - ou ainda em

    as

    ch

    und

    das Es

    quando nos convida a lembrar que no

    h

    duas variedades de incons

    ciente, mas uma s e que ele, ao invs de separar o Pr-consciente

    do Inconscienle , de preferncia os aproxima.

    55

    A emergncia do tema da eminncia do Inconsciente insepa

    rvel, na

    pe

    na de Freud, do

    ap

    arecimento de determinaes que j

  • 8/10/2019 Pierre Raikovic - O Sono Dogmtico de Freud - Kant, Schopenhauer, Freud

    39/156

    a presena schopenhaueriana no

    uxro

    freudiano

    conhecemos de Schopenhauer. O fim do reinado da razo e tambm

    da impossibilidade de qualquer relao entre a ordem o querer in

    consciente e a esfera racional so duas determinaes essenciais deste

    .irracionalismo que vamos encontrar cada

    ve

    z mais ntido em Freud.

    Uma das principais dificuldades do texto psicanaltico desaparece

    quando ele se encontra confrontado com a questo de saber qual o

    determinante ltimo do recalcamento. A no-unicidade

    da

    resposta

    impedir Freud de elaborar o cnon das leis do funcionamento do

    aparelho psquico e esta carncia ir pesar muito na validade da in

    terpretao psicanaltica. No decorrer da leitura dos textos de Freud,

    iremos descobrir. com efeito, que o princpio deste mecanismo origi

    nrio c fundador da psicanlise, que

    o recalcamento, ora

    o cons

    ciente, ora o inconsciente. Esta indeterminao bem como a influncia

    sempre crescente do Inconsciente sobre o determinismo da vida ps

    quica - proporcionais progresso do tempo no texto freudiano -

    correspondem idia-chave de um schopenhauerismo que est assim

    resumido por C. Rosset: Entre o Querer e o intelecto, no existe

    qualquer relao possvel: o domnio do Querer tal que ele aniquila

    suas prprias dependncias e rompe, de um s golpe, qualquer relao

    com estas.

    6

    Rosset ainda acrescenta que,

    ao

    inverter os termos

    da

    relao, Schopenhauer exagerou na subordinao das funes intelec

    tuais: ele as tirou de cena e de tal fo rma que, se uma no

    va

    fo ra d s

    funes volitivas

    n

    o comandar tudo, nada mais ela explicar

    .57

    Na impossibilidade de elucidar a relao entre Vontade e intelecto,

    Schopenhauer, sem qualquer constrangimento, vale-se de imagens que

    supostamente deixam transparecer esta relao: por diversas vezes,

    ele compara a Vontade com um fogoso cavalo cujo cavaleiro, no

    conseguindo domin

    ar

    o animal, v-se transportado a um Jugar onde

    no tinha inteno

    de

    ir. Outra variante versando sobre tema quase

    igual a que diz: Aquilo que representa as rdeas e o freio para um

    cavalo indomvel, representa o intelecto para a vontade humana. 58

    Tambm Freud ir recorrer a estas mesmas imagens quando tentar

    passar a seus leitores a natureza da relao entre o consciente e o

    inconsciente. Como o filsofo de Frankfurt, por vrias vez