Pirata e Sereia

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Conto extraído do livro Utopias Piratas de Peter Lamborn Wilson

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Há alguns anos havia uma torre alta no extremos cabo Marabata. Os cristãos a chamavam Torre Branquilla (Torre Branca) e era conhecida pelos maometanos como El-Minar. O Dia inteiro a Torre vigiava o mar. À noite, dormia embalada pelo murmúrio do vento sobre as águas. Era uma torre antiga cujas paredes eram cobertas por trepadeiras retorcidas. Escorpiões se escondiam entre as pedras, e djin malignos se reuniam ali ao pôr-do-sol. Os ciganos que sabiam de todas as coisas, diziam que a torre fora construída por portugueses que chegaram ali para lutar contra maometanos. Os montanheses de Andjera estão mais bem informados: Eles dizem que a torre foi construída por Lass el-Behar, o pirata, a fim de esconder seus tesouros em suas paredes.

Lass el-Behar viera de Rabat. Era um navegador hábil e perito em uma arte ainda mais difiçíl - a de comandar. Os espanhóis e os italianos conheciam bem demais esse nome. A fragata de el-Behar era pequena e rápida como uma andorinha. Os remos movidos por cem escravos cristãos de galé faziam-na deslizar velozmente por sobre as ondas. A nau era temida por causa da ousadia de seus marinheiros e seus muitos canhões, todos diferentes, que o pirata capturava de naves cristãs de várias nacio-nalidades.

Lass el-Behar era jovem, bonito e corajoso. Muitas cativas cristãs se apaixonaram por ele, assim como as filhas de ricos e poderosos maometanos. Mas ele rejeitava igualmente o amor de cristãs e maometanas porque seu navio lhe era mais impor-tante do que a beleza das mulheres. Lass el-Behar amava seu navio, o companhei-rismo de seus valentes guerreiros e as gloriosas batalhas que mais tarde vieram a ser celebradas em verso e prosa. Acima de tudo, era o mar que ele amava. Amava-o com uma paixão tão profunda que não podia viver longe dele, e falava com ele como os homens falavam com sua amadas. Seus guerreiros diziam que na hora da prece Lass el-Behar desviava os olhos da direção de Meca para contemplar o mar.

No dia do Aid el-Kbir (sacrifício do carneiro), Lass el-Behar, que estava na aldeia de El-Minar com seus companheiros de armas, recusou-se a ir a Tânger para ouvir o sermão do cádi e orar na companhia dos devotos.

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- Vão se quiserem - disse a seus homens - Quanto a mim, vou ficar aqui.

E se fechou em sua torre. De lá podia contemplar o mar e os navios se movendo lentamente no horizonte. O charqui, mais brisa do que vento, fazia a água dançar sobre a cálida luz de verão.

“O melhor sermão do cádi”, pensou el-Behar, “nunca poderia se igualar a beleza desta cena. Que oração, por mais perfeita que fosse, poderia se igualar ao doce mur-múrio de águas agitadas? O que pode ser tão poderoso quanto o mar, que se estende de uma margem do mundo à outra ? Ah, quem me dera que as ondas fossem uma mulher para que eu pudesse me casar com ela, e o oceano uma mesquita dentro da qual eu pudesse orar.”

Enquanto estes pensamentos passavam por sua mente, uma tempestade se formou a oeste, precipitou-se sobre as planícies e montanhas e rugiu em torno da torre. As gaivotas fugiram de medo. Bandos de carneiros correram freneticamente para seus cercados. A tempestade durou um dia e uma noite.

Quando o vento se acalmou e o mar parou de bramir como milhares de bois, Lass el-Behar desceu de sua torre. Na estreita faixa de areia entre as pedras e a água ele viu uma mulher estendida, pálida e fria. Aproximou-se dela.

_ Deve ser uma cristã - disse para si mesmo -, porque seu cabelo é da cor de ouro novo.

Ele a ergueu nos braços.

_ Talvez ainda esteja viva. A mulher abriu os olhos, eram verdes, verdes como as algas que crescem nas racha-duras das pedras. Era uma bahria, uma jinniyeh (djinni feminina) do mar, uma se-reia. Sua beleza era mágica, e el-Behar se apaixonou loucamente por ela. Esqueceu seus guerreiros por causa dela. Esqueceu também sua galera veloz, sua glória e até

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suas preces a Alá.

_ Amo-a mais do que tudo na terra - disse ele certa vez para ela -, mais do que minha vida e minha salvação.

Durante o equinócio, o mar furioso novamente martelou a torre e ameaçou a al-deia próxima. Suas águas se mesclaram com o Rio Charf e chegaram até o jardim de Tanger al-Balia.

_ O mar vai esmagar nossa torre minha amada, vamos fugir para as montanhas.

_ Porque temer o oceano? - perguntou a bahria, com um sorriso. - Você não o ama acima de tudo? Não esta constantemente louvando sua força e seu poder? Não desvia teu olhar da direção de Meca para contemplar o mar? Eu sou uma filha do mar. Vim para recompensa-lo pelo seu amor por ele. Agora o mar me chama de vol-ta. Adeus, Lass el-Behar, você nunca mais me verá.

_ Não me abandone, não me deixe, eu imploro. Sem você, nunca conhecerei a felici-dade.

_ A felicidade - respondeu a bahria - só faz parte da vida daqueles que temem e honram Alá. Eu tenho que deixá-lo. Não ouso desobedecer a à voz que me chama, mas você pode me seguir se quiser.

A bahria se afastou com a maré e Lass el-Behar a seguiu até as profundezas te-nebrosas do mar. E nunca mais foi visto. Ele dorme sobre as ondas, entre a Mon-tanha Tarik (Gibraltar) e o Cap des Trois Fourches. E só despertará depois que os homens forem julgados por suas ações e a terra se tornar apenas a sombra de uma sombra que por fim desaparecerá.

Por Alá Todo-Poderoso.

(Trecho extraído do texto “A lenda de El-Minar”, Chimenti, 1965)