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  • 8/2/2019 Piva Xamanismo

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    II Colquio daPs-Graduao em Letras

    UNESP Campus de Assis

    ISSN: 2178-3683

    www.assis.unesp.br/coloquioletras

    [email protected]

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    VVIISSEESS DDAA NNAATTUURREEZZAA CCSSMMIICCAA:: RROOBBEERRTTOO PPIIVVAA,, XXAAMMAANNIISSMMOO EE PPOOEESSIIAA

    Jos Juvino da Silva Jnior

    (Mestrando UFPE/Recife CAPES)

    RREESSUUMMOO:: O artigo vises da natureza csmica: Roberto Piva, xamanismo e poesia faz umaanlise das imagens do mundo natural engendradas pelos poemas do autor nos livros Ciclonese Estranhos Sinais de Saturno. O texto investiga ainda os posicionamentos biopoticos doautor em relao ao processo de mecanizao da vida humana e desencantamento do mundomoderno perpetrado pelo sistema do capitalismo global. Este artigo procura deslindar asarticulaes que o poeta Roberto Piva faz da mitologia e do xamanismo como plataformas paraa gestao de uma poesia que conduza ao xtase (ao sagrado) e que renove as possibilidadesde contato com o acervo do imaginrio humano ancestral e seja, ainda, palavra deenfrentamento ao discurso hegemnico do racionalismo do pensamento ocidental.

    PPAALLAAVVRRAASS--CCHHAAVVEE:: poesia; xamanismo; mundo natural; vises.

    Vises e vertigens, delrios, transes e xtases: a potica de Roberto Piva,

    como uma fbula do imaginrio radical, enxerga o mundo natural como umapossibilidade para a realizao de um devir csmico-potico, uma possibilidade de

    desenvolvimento do sujeito em contato fecundo e frtil com a pulsao da natureza. O

    poeta busca incorporar em sua dico e palavra o acervo de sabedoria presente nas

    prticas xamansticas. Assim, a poesia se transmuta num lugar para o exerccio

    orgnico de aproximao entre o ser humano e o mundo natural, como observamos

    num trecho final do poema A oitava energia, do livro Estranhos sinais de saturno

    [...] Que voc conhea manguezais

    & realidades no-humanasQue so a essncia da PoesiaQue voc conhea o sussurro do SolNa gua ferruginosa dos seus olhos. (PIVA, 2008, p. 69)

    A natureza passa a ser vista como um organismo ativo, permeado de

    significados que transcendem os limites da razo humana. E o poeta abandona a

    pretenso de criar um poema que seja um discurso sobrea natureza; antes, a poesia

    se manifesta como o lugar onde a natureza se materializa, apresenta a si mesma, fala,

    em suma, torna-se presena, verdadeira presena:

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    Gavio Cabur

    Eu atravessei manguezais& estrelassementes espalhadas

    na voz do olho obscurorpteis abandonados no p das estradasEsta Serra enforca o horizontenmade do Absoluto. (PIVA, 2008, p. 67)

    A potica de Roberto Piva se constri na articulao do sonho e da intuio e

    se move nos campos abertos do imaginrio, criando um regime de permanente

    dilogo com as foras naturais, como podemos observar no poema Jurema Preta:

    Sou alunodas rvores

    alma eltricanas veredas maissecretas

    Catimb sonmbulo& seus palcios

    meu crnio virando brasasdesfolhando meu coraomananciais transfiguradosna memria. (PIVA, 2008, p. 166)

    Roberto Piva reelabora o material das tradies do imaginrio

    xamnico/mtico, utilizando-o como magma, como gatilho para sua dico potica. No

    poema citado, por exemplo, o autor faz referncia jurema sagrada, tradio religiosaremanescente dos ndios que habitavam o litoral do Nordeste brasileiro e dos seus

    pajs, grandes conhecedores dos mistrios do alm, das plantas e dos animais.

    O poeta, ao se aproximar intuitivamente do mundo natural transfigurado

    num xam visionrio , inaugura uma relao dialgica, no-mecanizada com a

    natureza. Assim, o poeta-xam se move dentro das esferas de um mundo natural

    prenhe de significados csmicos. A poesia de Roberto Piva se transforma num espao

    para o encontro vertiginoso entre o poeta e os contedos simblicos/mticos inscritos

    no mundo natural de maneira cifrada. A potica visionria de Piva busca, ento,

    realizar/materializar uma leitura orgnica da realidade. A poesia opera uma escritura

    capaz de colocar em movimento os mananciais simblicos dos lugares de poder da

    existncia:

    A poesia mexecom realidades no-humanasdo planetaprofecias

    espritos animaisvidncia

    estrela bailarina

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    lugares de poderfogo do cu. (PIVA, 2008, p. 82)

    O autor enfatiza tambm em seus poemas os desdobramentos socioambientais

    perversos da mentalidade mecanicista, como registra no manifesto da selva maisprxima, em que se l um verso como os produtos qumicos, a indstria

    farmacutica & os miasmas roero teus ossos (PIVA, 2006, p. 148). Piva vai de

    encontro lgica ocidental de dominao da natureza e seu consequente processo de

    desencantamento do ambiente selvagem. Como diz Mircea Eliade,

    a experincia de uma natureza radicalmente dessacralizada umadescoberta recente, acessvel apenas a uma minoria das sociedadesmodernas, sobretudo aos homens de cincia. Para o resto daspessoas, a natureza apresenta ainda um encanto, um mistrio,

    uma majestade, onde se podem decifrar os traos dos antigosvalores religiosos. No h homem moderno, seja qual for o grau desua irreligiosidade, que no seja sensvel aos encantos da natureza.No se trata unicamente dos valores estticos, desportivos ouhiginicos concedidos natureza, mas tambm de um sentimentoconfuso e difcil de definir, no qual ainda se reconhece a recordaode uma experincia religiosa degradada (ELIADE, 2008, p. 126).

    Ancorando-se no reconhecimento desta espcie de nostalgia mgico-

    religiosa, inconsciente, latente no homem moderno, Piva vai reinventando os ritmos

    para novas tribos, anunciando rupturas, brechas no discurso ideolgico da

    modernidade. A poesia, ento, se reveste de uma carga proftica e de um cartertransgressor, aventando possibilidades mticas para a existncia do homem moderno.

    Ainda no manifesto da selva mais prxima, o poeta nos diz:

    estrelas penduradas na fuligem / Catecismo da PerseveranaIndustrial / Os governos existem pra preparar a sopa do GeneralEsfinge / Os governos existem pra voc pensar em poltica eesquecer o Teso / Batuque Nuclear Anjo-Fornalha / poesia urbano-industrial em novo ritmo / Cidade esgotada na feira pr-Colapso /recriar novas tribos / renunciar aos trilhos / Novos mapas da realidade/ roteiro ertico roteiro potico / Horcio & Lester Young / Tribos degarotos nas selvas / tambores chamando pra Orgia / fogueiras &

    plantas afrodisacas / Abandonar as cidades / rumo s praiassalpicadas de esqueletos de Monstros / rumo aos horizontes bbadoscomo anjos fora da rota / Terra minha irm / entraremos na chuva quefaz inclinar nossa passagem os Guaimbs / Delinqncia sagradados que vivem situaes-limite / do Caos, da Anarquia Social quenasce a luz enlouquecedora da Poesia / Criar novas religies, novasformas fsicas, novos anti-sistemas polticos, novas formas de vida / Ir deriva no rio da Existncia (PIVA, 2008, p. 148-149).

    A poesia se situa como um contra-discurso, como um ato de rebeldia, de

    revolta contra a ideologia cientificista. A poesia se afigura como um elemento

    provocador, como um chamado para a convergncia dos desertores do projeto

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    moderno de dominao da natureza. A potica de Piva tem em mente o processo

    moderno de esvaziamento e desencantamento do mundo e consciente de que

    a viso do universo como uma grande mquina, enunciada, entre

    outros, por Francis Bacon (1561-1626), Ren Descartes (1596-1650)e Isaac Newton (1642-1727), representou o golpe decisivo contra ouniverso orgnico habitado por nossos ancestrais. Se, como afirmaWesteling, os povos do Paleoltico veneravam uma figura fecunda deMagna Mater ou Grande Me, esses homens completaram oprocesso de aniquilao dela, iniciado com o domnio do deus celestemasculino judaico-cristo. Em vez da terra como me nutriz, osfilsofos naturais postularam um universo redutvel a uma montagemde peas que funcionam de acordo com leis regulares, as quais oshomens, em princpio, poderiam conhecer em profundidade(GARRARD, 2006, p. 91).

    A conscincia deste processo de mecanizao das relaes do homem com o

    mundo natural se traduz na potica de Roberto Piva numa produo de escritos que

    procuram desconstruir a lgica cartesiana, ocidental, secular de domnio e

    dessacralizao da natureza ao postular um contato dinmico, afetuoso e delirante

    com as estruturas mticas, simblicas do mundo selvagem. Este dualismo de vises

    (viso mecanicista VS xamnica/vitalista) pode ser expresso pelo esquema conceitual

    do filsofo Peter Sloterdijk: a mobilizao copernicana (processo de racionalizao

    operado pela modernidade) e o desarmamento ptolomaico (processos

    contemporneos de reencantamento do mundo, restabelecimento de uma viso

    orgnica). De acordo com Sloterdijk,

    quem sentir vertigem total face representao moderna do mundopoderia, talvez, perceber que no sujeito copernicano contemporneosobrevive um Ptolomeu eterno; para este o mundo da iluso antiganunca deixou de ser uma ptria uma morada sensorial. Continuarepresentando para ele a ordem vagarosa de sincronias entre o corpoe a terra, de propores entre gestos e realidades. O Ptolomeumovimenta-se na iluso autntica dos esquemas antigos que nosorientaram em relao natureza do mundo antes da revoluocopernicana. Se os habitantes de sistemas explosivos sentem falta dealgum tipo de orientao esttica concreta, precisam de uma

    conscientizao ptolomaica. Chamo de desarmamento ptolomaicoesta volta consciente da vertigem copernicana de representao paraa nova conscincia antiga (SLOTERDIJK, 1992, p. 62-63).

    Ao processo de desencantamento do mundo natural engendrado pela

    modernidade, Piva contrape um projeto calcado na apreenso mgica do

    ambiente/realidade, operando uma espcie de desarmamento ptolomaico, uma

    sabotagem potica contra a ideologia dominante, contra a lgica hegemnica do

    projeto moderno. O poeta adentra a sua Floresta Sacrlega como quem reinaugura

    uma ritualizao orgnica da relao/aproximao entre o homem e a natureza.

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    I

    neste diao sol transparentecu ertico abertocom olhos de borra

    de vinhoo brilho solar cantao deserto atravessa o

    cuptalas selvagensdo horizonte sem fim

    II

    Pelos direitos no-humanos do planeta

    a Ilha comprida

    nadanas pradarias do Cugavio pandemniotalhado na partemais dura do vento

    III

    mscara ertica loucado vero

    o chefe dos roedoresquizumbeia

    sua fome de sombra

    grande& o Invisvelaparece (PIVA, 2008, p. 56-57).

    Para alm de um antropocentrismo estreito, o poeta experimenta o mergulho

    num conhecimento proveniente de uma relao csmica e mtica com o mundo

    natural, procurando captar as informaes/mensagens de maneira no-racional,

    integrando-as numa dimenso mgica. Assim, o poeta, semelhana de um xam, se

    pe em contato com ventos, montanhas, espritos, animais, etc. procurando

    compreend-los e relacion-los ao ordenamento do cosmos - visto como um

    organismo vivo, real e sagrado.

    O poeta, em sua vertigem visionria, xamnica, pe a nu as estruturas

    latentes do universo numa criao textual delirante. E o poema manifesta, materializa,

    condensa os contedos simblicos dispersos/inscritos na natureza. Em sua dana de

    xtase, o poeta vai devorando os signos mticos do mundo natural, acolhendo em sua

    escritura as manifestaes do maravilhoso e do fantstico, recolhendo o

    encantamento do universo numa linguagem transfigurada, vertiginosa. O poeta

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    apresenta, via linguagem, as vises dos frutos simblicos da rvore csmica,

    reencenando um rito xamnico, pois

    o xam opera sempre atento aos sinais que possam ser lidos sua

    volta; ele ouve as pulsaes da terra, compreende o carter dosventos e tempestades, entende o que lhe dizem os animais, extraiconhecimento de plantas sagradas, vale-se das propriedadesmedicinais dos reinos mineral, vegetal e animal que o cerca, e prevem razo de eventos observados a tendncia das coisas vindouras. 1

    A criao potica de Roberto Piva se abre ao encontro das foras naturais.

    Este encontro instaura uma escritura atravessada por irrupes de uma energia do

    mundo natural situada para alm do entendimento do racionalismo redutor e

    mecanicista. A natureza se transmuta numa fonte de poder csmico, um ambiente

    mtico, um texto sagrado:O poder do xam decorre do entendimento que se estabelece entreele e as hostes espirituais que o rodeiam, visto que no se discuteque o xam possa perceber a realidade sutil disfarada por detrsdos eventos corriqueiros da vida, como por exemplo, o vo rasantede um pssaro, a passagem de um morcego em hora de sagraoritualstica, o rugir de uma fera, a queda de uma rvore, etc. Apercepo intuitiva no se limita, obviamente, esfera animal; todanatureza pode servi-lhe de texto sagrado, e o xam interage com oesprito da lagoa, com a fora da montanha, com as entidades dofogo e assim por diante. 2

    O poeta, num devir alucinatrio, se joga ao dilogo com os elementos domundo natural, numa aproximao cheia de energia e delrio. A escrita potica de Piva

    condensa os traos csmicos do universo que permeiam os aspectos sutis da vida,

    transfigurando-os num magma criativo e inovador para a sua poesia. O poeta

    reverbera as atitudes do xam em comunicao com a ordem natural/csmica e o

    poema se configura como uma aproximao do mundo natural, uma relao de

    aprendizagem:

    Espinheira Santa

    planta de cabeceirada Deusa

    substnciado tempo

    & suas coresritos lunaresepifanias da seivaensinou meu corao a ficar

    em estado de Raios sabemos quem somos

    depois de voc

    se mover (PIVA, 2008, p. 168).

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    Na escrita potica de Piva, o homem se pe em permanente e vital contato

    com a natureza, que passa a ser vista numa configurao renovada de proximidade

    como numa re-atualizao da figura da terra como Terra Mater (Terra Me). O ser

    humano, no lugar de uma relao conflituosa e blica com o ambiente natural, dispe-se numa abertura dialgica e existencial para com a natureza. O homem se aproxima

    para um dilogo afetuoso, um dilogo entre duas verdadeiras presenas, um dilogo

    numa dimenso csmica.

    Assim entendida, a poesia se converte na possibilidade renovada para o

    homem moderno de uma relao imersiva, prxima com o mundo natural, eliminando

    a viso mecanicista que aventa a suposta separao do homem (conceitualmente

    definido como apartado em seu mundo cultural) do meio natural. Essa potica se fia

    numa viso do mundo natural como organismo, como ser que se desdobra numaespcie de companheirismo, de co-presena. O homem deixa de praticar o credo de

    sua excluso existencial/conceitual do ambiente natural. Assim, torna-se consciente de

    sua imerso na rede orgnica que atravessa e rene os seres vivos e o ambiente. O

    prprio planeta passar a ser visto como um organismo, um ente, um ser. O dilogo

    entre ser humano e outras espcies se reafirma como uma realidade possvel.

    Segundo John Berger,

    seguidamente se encontra a convico de que foi o homem quemno teve capacidade de falar com os animais da histrias e lendasde seres excepcionais, como Orfeu, que podiam falar com animais nalinguagem deles (BERGER, 2003, p. 14).

    Com a poesia como configurao de um lcus xamnico, Roberto Piva

    apresenta a ideia de uma reverso da excepcionalidade em relao capacidade de

    falar com animais, demonstrando que este dilogo no s possvel, como se

    instaura, se fundamenta no terreno criativo/criador da linguagem potica:

    o amor

    grita na minha gargantaa serpenteo gavioo jaguarme vemcomo seu Duplo. (PIVA, 2008, p. 29)

    A ideologia moderna efetuou a marginalizao dos animais, retirando-os do

    nosso cotidiano e impossibilitando uma relao afetiva/efetiva entre humanos e

    animais. No seu lugar, criou zoolgicos, bichos de pelcia, documentrios da vida

    selvagem e animais domsticos que so a face exposta do processo de afastamento e

    mecanizao da vida animal. Como nos diz John Berger,

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    zoolgicos, brinquedos animais realistas e a difuso comercial amplada imagstica animal, tudo isso iniciou quando os animais comearama ser afastados da vida cotidiana. Poderamos supor que taisinovaes foram compensatrias. Mas na realidade as prpriasinovaes pertenciam ao mesmo movimento cruel de disperso dos

    animais (BERGER, 2003, p. 31).

    Ao contrrio da disperso dos animais, a potica de Piva procura conduzir a

    um reencontro, em que os animais tm presena, olhar. A relao entre eles e o poeta

    no se estabelece a partir de uma hierarquia, de uma lgica de dominao. Antes, o

    poeta visto pelos animais, reconhecido como um duplo. Esta considerao repercute

    numa dimenso mais ampla se considerarmos que no mundo moderno os

    animais so sempre observados. O fato de que podem nos observarperdeu todo o significado. Eles so os objetos de nosso

    conhecimento sempre crescente. O que sabemos sobre eles umndice de nosso poder; e assim um ndice do que nos separa deles.Quanto mais sabemos, mais distantes eles ficam (BERGER, 2003, p.22)

    Roberto Piva, atravs de sua ritualizao potica, da construo de uma

    linguagem visionria, inventa o poema como um lugar, como uma dimenso em que o

    reencontro entre humanos e outras espcies (bem como paisagens, rios, frutas,

    vegetais, etc.) escapa s prticas reducionistas e mecnicas inscritas na vida

    moderna. Mircea Eliade afirma que a

    imitao xamnica dos gestos e das vozes dos animais pode passarpor possesso, mas talvez fosse mais exato dizer que o xam tomaposse de seus espritos auxiliares; ele que se transforma emanimal, do mesmo modo como obtm resultado semelhante usandouma mscara de animal; ou ento se poderia falar ainda de uma novaidentidade do xam, que se torna animal-esprito e fala, canta ouvoa como os animais e os pssaros (ELIADE, 2002, p. 112).

    Operando num texto dialgico, Roberto Piva encena uma poesia xamnica,

    uma mitologia da relao entre os diversos seres e o ambiente, bem como vai tecendo

    uma poltica que se encaminha para alm dos muros estreitos do antropocentrismo,

    reverberando os direitos no-humanos do planeta. Como afirma o poeta Claudio

    Willer,

    a identificao entre xamanismo e poesia corresponde radicalizao da defesa do meio ambiente, dos direitos no-humanosdo planeta, j declarada nos manifestos que encerravam suaAntologia Potica de 1985. A vida, em suas manifestaes naturais, impregnada pelo sagrado; a natureza, habitada por deuses 3.

    Em seu manifesto utpico-ecolgico em defesa da Poesia & e do Delrio,

    Roberto Piva diz que,

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    [...]estamos sendo destrudos em nosso ncleo biolgico,nosso espao vital & dos animais est reduzido apropores nfimas

    quero dizer que o torniquete da civilizao estprovocando dor no corpo & baba histrica [...] (PIVA, 2006, p.

    143).

    A escritura transgressora e rebelde de Roberto Piva constri seu discurso

    como foco de resistncia ontolgica contra a viso cartesiana da vida. Ao invs de

    conceber o homem como um ser alienado dos processos naturais, isolado, a poesia

    xamnica do autor engendra uma senda de permanente conexo entre o homem e as

    diversas manifestaes da rede da vida. O poeta, em sua intuio visionria, vitalista,

    reconhece que

    no existe nenhum organismo individual que viva em isolamento. Osanimais dependem da fotossntese das plantas para ter atendidas assuas necessidades energticas; as plantas dependem do dixido decarbono produzido pelos animais, bem como do nitrognio fixadopelas bactrias em suas razes; e todos juntos, vegetais, animais emicroorganismos, regulam toda a biosfera e mantm as condiespropcias preservao da vida (CAPRA, 2002, p. 23).

    O autor encara a viso da sacralidade csmica da natureza como alternativa ao

    mundo moderno, cujo projeto de consumo reduziu o mundo natural s noes de

    mercadoria e recursos. A potica xamnica de Roberto Piva transforma-se num

    elemento que concorre para a recuperao do sagrado e do mgico enquanto forasnaturais, caminhando para aproximar-se de vises no-mecanicistas do mundo

    natural, recolocando questes a respeito do dilogo no-hierrquico entre o homem e

    os outros seres. Segundo Capra,

    a viso unificada, ps-cartesiana, da mente, da matria e da vidatambm implica uma reavaliao radical da relao entre os sereshumanos e os animais. A filosofia ocidental, na grande maioria dassuas manifestaes, sempre concebeu a capacidade de raciocinarcomo uma caracterstica exclusivamente humana, que nos distinguiriade todos os animais. Os estudos de comunicao com chimpanzs

    demonstraram de maneira dramtica a falcia dessa crena. Deixamclaro que entre a vida cognitiva e emocional dos seres humanos e ados animais s h uma diferena de grau; que a vida um todo semsoluo de continuidade, no qual as diferenas entre as espcies sogradativas e evolucionrias. A lingstica cognitiva confirmouplenamente essa concepo evolutiva da natureza humana. Naspalavras de Lakoff e Johnson, a razo, mesmo em suas formas maisabstratas, no transcende a nossa natureza animal, mas faz uso dela[...] Assim, a razo no uma essncia que nos separa dos outrosanimais; antes, coloca-nos no mesmo nvel deles (CAPRA, 2002, p.79).

    Neste quadro ps-cartesiano, repleto de brechas para a irrupo de um novo

    imaginrio e uma nova viso de mundo, contraposta moderna, Piva passou a

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    estudar e praticar o xamanismo, recorrendo a tericos como Mircea Eliade e o acervo

    das prticas culturais indgenas e afro-brasileiras. O poeta, a partir de sua poesia

    xamnica, acessa uma dimenso mgica do mundo natural, como nos rituais de

    invocao de seu animal totmico/xamnico, o gavio:

    Ritual dos 4 ventos & 4 gavies

    Ali onde o gavio do Norte resplandecesua sombra

    Ali onde a aventura conserva os cascosdo vodu da aurora

    Ali onde o arco-ris da linguagem estcarregado de vinho subterrneo

    Ali onde os orixs danam na velocidadede puros vegetais

    Revoada das pedras do rio

    Olhos no circuito da Ursa Maiorna investida louca

    Olhos de metabolismo floralAlmofadas de florestaFocinho silencioso da suuarana com

    passos de sabotagemCarne rica de Exu nas couraas da noiteGavio-preto do oeste na tempestade sagradaIncendiando seu crnio no frenesi das aucenas.

    (PIVA, 2008, p. 72)

    Para o poeta, a natureza um mundo csmico que o projeto moderno tem

    atacado e reduzido a movimentos e leis mecnicas, numa voragem destrutiva. E ascidades passam a constituir o cenrio/espao efetivo para a destruio do mundo

    natural. O projeto potico de Roberto Piva, ento, aponta para a contradio entre o

    natural, como campo do potico, e o urbano, encarnao do projeto moderno

    mecanicista. Esta contradio se acentua em versos como eu caminho seguindo/ o

    sol/ sonhando sadas/ definitivas da/ cidade-sucata, (PIVA, 2008, p. 58) ou a rua

    muito estreita/ para o exrcito/ de folhas/ & seu AX (PIVA, 2008, p. 65).

    O projeto potico de Piva atenta para as redues, para as domesticaes do

    homem efetuadas pela modernidade. A sua poesia, como criao de um ambiente, ritoe linguagem xamnica, encarna a imagem do confronto, da recusa da ideologia

    moderna e seu projeto diminuidor do ser humano. Um processo que pode ser

    exemplificado na relao do homem com animais de estimao:

    A pequena unidade onde vive a famlia carece de espao, terra,outros animais, estaes do ano, temperaturas naturais, e assim pordiante. O animal de estimao esterilizado ou sexualmente isolado,extremamente limitado em seus exerccios, privado de quase todooutro contato animal, e alimentado com comida artificial. Esse oprocesso material que est por trs do trusmo de que animais deestimao passam a se assemelhar a seus donos ou donas. Eles so

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    resultados do modo de vida do seu proprietrio (BERGER, 2003, p.20).

    As crticas de Roberto Piva, ventiladas por suas declaraes e posturas,

    poemas e manifestos, dirigem-se mecanizao dos gestos, domesticao ealienao inscritas na ordem da vida moderna, normatizao do desejo, etc. O

    poema, afigurado como um ritual xamnico, vai de encontro ordem imposta do

    projeto moderno e seus perpetuadores. Piva, por exemplo, num texto recolhido na

    seo Sindicato da Natureza, chega a identificar o movimento falacioso da

    cristandade ao tentar associar a figura de So Francisco a um discurso ecolgico,

    demonstrando como as posturas, ideias e concepes crists so antiecolgicas. O

    poeta, ainda, recupera a figura do deus Dioniso, situando-o como uma espcie de

    patrono da ecologia:

    importante lembrar Dionysos neste momento em que a igrejaCatlica nos impe So Francisco de Assis como patrono daEcologia. [...] No Brasil, quando chegaram as caravelas de Cabral, oprimeiro ato dos padres foi um ato antiecolgico: cortaram a primeirarvore para fazer a cruz da primeira missa. [...] Nos anos 60 quandoeu falava de Ecologia, a resposta das pessoas, que se amontoavamem bandos direita & esquerda, era sempre uma profisso de f naprpria mediocridade: com tanta gente passando fome, esse caravem falar da natureza. Como se a vida do cretino no dependesseexatamente do equilbrio ecolgico. Os trabalhadores tm a CUT, aCGT. A ona pintada no tem sindicato. Os rios no tm sindicato. O

    mar no tem sindicato (PIVA, 2008, p. 178).

    O poeta se erige como um visionrio contra as posturas redutoras da vida

    material/natural. Para Piva, a viso de mundo crist (e sua forma de relacionar-se com

    a terra) tolheu o nimo e extraiu a vitalidade dos homens, criando uma mentalidade

    cujo foco est descolado da imanncia da natureza, situando-se num alm, numa

    transcendncia fechada:

    De fato, a viso do mundo judaico-cristo, com seu Deus situado forado Tempo & do Espao imobilizado na Eternidade, representa a

    concepo mais antiecolgica de que temos notcia. Meu reino no deste mundo significa que o mundo poder estar entregue a todotipo de devastao, quer por bombas, agrotxicos, industrializaoetc., pois para este ponto de vista o planeta Terra um lugar depassagem, um vale de lgrimas, um lugar de expiao [...] Com oadvento do Cristianismo, ocorreu a dessacralizao do mundo, quepara os pagos era povoado de deuses. O que for feito Terra,recair sobre os filhos da Terra diz o ditado dos ndios peles-vermelhas, adoradores do peiote, do Sol, da Lua, do coiote & dofalco. Amnsico & anestesiado pela civilizao urbana industrial,robotizado em seus sentimentos, limitado em sua viso pelosedifcios & muros das cidades o homem moderno no sente mais aalegria csmica & pag de participar de um nascer do sol de um

    crepsculo, do silncio das ilhas perfumadas, do instinto, da

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    imensido dos mares silenciosos, das estrelas. Reprimindo a crianaque existe nele, o homem moderno aniquila os deuses do jbilo emseu corao. Deixa de improvisar sua vida, enquadrando-se namarcha uniforme da sociedade organizada & vestida (PIVA, 2008, p.181-182)

    O diagnstico realizado por Piva do mundo urbano-industrial aproxima-se de

    uma leitura sociolgica efetuada por Max Weber sobre o desenvolvimento do

    capitalismo levado s suas ltimas consequncias:

    Ainda ningum sabe quem habitar essa estrutura vazia no futuro ese, ao cabo desse desenvolvimento brutal, haver novas profecias ouum renascimento vigoroso de antigos pensamentos e ideais. Ou se[...] tudo desembocar numa petrificao mecnica, coroada por umaespcie de auto-afirmao convulsiva. Nesse caso, para os ltimoshomens dessa fase da civilizao tornar-se-o verdade as seguintes

    palavras: especialistas sem espritos, folgazes sem corao estesnadas pensam ter chegado a um estdio da humanidade nunca antesatingido (WEBER, 1990, p. 130-140).

    A poesia de Roberto Piva, em sua criao de uma linguagem imanente

    inscrita nas energias csmicas da natureza, configura-se como uma tomada de partido

    por uma revoluo nos hbitos, na mentalidade e no modo de vida do homem

    moderno. A poesia, como linguagem faiscante e encantada, convida a participao

    num rito de imerso na natureza selvagem. A poesia, como palco/espao de recriao

    da cena xamnica, recoloca o homem moderno em face da possibilidade de sua

    conexo com o sagrado e as repercusses do mundo mtico. A poesia xamnica de

    Roberto Piva atua como geradora de novas profecias e registro de vidncias, pondo

    em movimento os cometas vivos do xtase.

    O poeta - trabalhando com os mananciais do imaginrio e dos ritos ancestrais

    - cria um cenrio simultaneamente sereno e delirante para um convvio fraterno e

    alucinado entre os diversos seres da rede da vida. A poesia de Roberto Piva abriga no

    mesmo peito as vises e as vertigens da natureza csmica, povoada por rios,

    montanhas, pssaros, espritos etc.

    O poeta-xam mobiliza os sentidos para uma reinveno da existncia do

    homem moderno. A poesia atua numa operao de guerrilha psquica contra a ordem

    estabelecida do capitalismo. O poeta retrabalha o imaginrio a favor de uma

    reeducao das posturas dos sujeitos contemporneos e seus modos de se

    relacionarem com a Terra. A poesia, criada num regime de vivncia dos devaneios,

    repercute uma dimenso mgica e alucinada no nosso corpo mamfero. Roberto Piva

    escreve:

    come teu cogumelo

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    no corao do sagradofazendo sinais arcaicosprocura entre praias, montanhas

    & manguesa mutao das formas

    sonha o mundo num s tempoo cogumelo mostrar o caminhos o predestinado falaa luz lils do cogumelolevar ao rio das imagensSombras danam neste incndio.(PIVA, 2008, p. 111)

    RReeffeerrnncciiaass bbiibblliiooggrrffiiccaass

    BERGER, J. Sobre o olhar. So Paulo: Editorial Gustavo Gili, 2003

    CAPRA, F. As conexes ocultas. So Paulo: Editora Cultrix, 2002

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    WEBER, Max. A tica protestante e o esprito do capitalismo. Lisboa: Presena, 1990.