Plantas, cantos e molduras

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Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Luiz Claudio Mubarac.

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Plantas, cantos e molduras

Ricardo Cesar Alves

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Luiz Claudio Mubarac.

São Paulo2012

Sumaya Mattar Moraes

Ana Cândida Franceschini de Avelar Fernandes

Luiz Claudio Mubarac

A Neia, Meiko e Karina.

Agradeço aos meus pais, Valter e Neia, pelo incentivo de sempre.

Agradeço à Meiko pelo carinho, apoio e por tudo o que tem me ensinado.

Agradeço aos amigos com os quais tive boas conversas, por meio das quais aprendi muito.

Agradeço a todos os professores que participaram de minha formação.

Sumário

Introdução 15

Comigo-ninguém-pode: a planta e minha motivação inicial para figurá-la 17

Cantos 35

Molduras 53

O curso de artes plásticas e o problema da busca/construção de uma poética pessoal 71

Referências bibliográficas 83

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Os três primeiros textos que se seguirão nas próximas páginas são considerações acerca de elementos presentes em minha produção artística dos últimos três anos: as folhagens comigo-ninguém-pode, os cantos (ou a ideia de canto) e as molduras. Temo que algumas partes possam parecer vagas ou confusas. Atribuo parte da culpa por isso à complexidade da atividade criadora. Na busca por uma poética pessoal, acabamos talvez não tendo clareza exatamente de onde muitas coisas vêm. Às vezes algo que pode parecer muito claro para nós enquanto criamos uma gravura, um desenho ou uma pintura, quando pensamos que sabemos exatamente o porquê de estarmos fazendo isso ou aquilo, depois de passado algum tempo somos capazes de enxergar outras motivações implícitas ainda mais esclarecedoras. Acontece também, de às vezes criarmos algo com uma ideia tão fixa, com a intenção de conseguir discutir certos assuntos tão definidos por nós próprios e depois a obra concretizada não sugerir a menor pista daquilo que a motivou. Acredito que isso acontece muito em meus trabalhos, e um exemplo claro é o que se seguirá

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no próximo texto, em que afirmo ter partido de uma vontade de discutir o gênero pintura quando pintei um vaso da planta comigo-ninguém-pode. Na verdade, não tenho a ilusão de com a construção de uma pintura conseguir transmitir assuntos pontuais nos quais pensei. O que me diverte é perceber os caminhos que nossos pensamentos percorrem para escolher fazer isso ou aquilo, nossos jogos mentais, nossas brincadeiras íntimas, mesmo que muitas vezes eles não se explicitem totalmente nos trabalhos, como já disse. Talvez possa parecer desnecessário, mas nunca é demais, ressaltar que não pretendo com esses textos que se seguem explicar meus trabalhos ou fornecer respostas definitivas. Meu interesse em escrevê-los visa a uma reflexão pessoal sobre meu processo de construção em arte e a um enriquecimento da leitura dos meus trabalhos. No último texto, também apresento algumas considerações a respeito de minha passagem pelo curso de artes plásticas e sobre meu aprendizado, das dificuldades com as quais me deparei quando me dispus a entender meus interesses, escolher minhas ações, enfim, quando desejei iniciar um trabalho autoral.

Comigo-ninguém-pode A planta e minha motivação inicial para figurá-la

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Dieffenbachia é o nome científico genérico de uma planta à qual popularmente se atribui o poder de espantar mau-olhado e proteger o ambiente em que vive. Também é de conhecimento geral essa planta ser tóxica e poder causar danos àquele que a ingere. Em vários sites na internet, principalmente os que tratam de jardinagem, encontramos advertências para manter a planta longe do alcance de crianças e animais. Talvez seja por essas peculiaridades acima descritas que não seja de se estranhar o nome popular dessa folhagem utilizada na decoração de interiores: “comigo-ninguém-pode”. Este nome é uma declaração em primeira pessoa, que podemos dizer ser possível ligá-lo intimamente a esses dois “poderes” da planta: 1) a toxicidade, que pode ser constatada objetivamente - e os cientistas acreditam que se trata de uma defesa natural das Dieffenbachias contra animais herbívoros1; e 2) o poder de proteção do ambiente

1 MAYO, S. J.; BOGNER, J.; BOYCE, P. C. The Genera of Araceae. [England, Surrey, Richmond]: Royal Botanic Gardens, Kew, 1997. p. 22.

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contra mau-olhado, maus espíritos, más energias etc, ou seja, uma defesa no plano místico, não objetivo. Não encontrei fontes confiáveis que respondessem se o nome popular comigo-ninguém-pode refere-se mais à sua toxicidade, ou mais à crença de protetora do ambiente. Parece-me que ambas as explicações são possíveis. De um jeito ou de outro, comigo-ninguém-pode é uma nomeação que de certa forma personifica a planta, pois sabemos que uma planta não declara nada, não se utiliza do pronome “comigo” e talvez tampouco tenha consciência de que a natureza as projetou de forma a serem nocivas ao infeliz que se aventure a provar de suas folhas.

Essas peculiaridades da comigo-ninguém-pode citadas acima foram motivos a mais que me fizeram crer ser interessante, em 2009, desenhar um vaso dessa planta que eu possuía (figura 1). Além disso, o vaso era algo que se encontrava ao alcance de minha visão, era parte de meu espaço de vivência. Já havia feito antes alguns desenhos (figura 2), pinturas e fotografias de um pote de vidro (improvisado como vaso) com flores. Pensava no vaso como um objeto de cultura, criado para acolher e aprisionar em seu interior uma planta, que por sua vez nos remete a ideia de natureza, mas que uma planta passa a ser cultura, domesticada ao ser posta dentro de um vaso.

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Escrevi inúmeras vezes “comigo-ningué-pode” na página à esquerda da página com o desenho da planta, que fiz num de meus cadernos. A questão do nome era muito importante. O desenho foi feito em caráter projetivo, a intenção era transformá-lo numa grande pintura de pelo menos 2,5 m de altura e ironizar com a pintura enquanto linguagem artística, esta que por muito tempo ocupou posição hegemônica ao longo da história da arte, usar uma planta com nome provocativo e arrogante para personificar e comentar a própria pintura. Por isso a escala deveria ter ares de monumental, pois a grande pintura, aquela mais prestigiada pelas academias, era a pintura histórica de grandes dimensões. O gênero natureza-morta, que é onde poderia se encaixar a pintura de um vaso de planta, ao contrário, esteve associado a um tamanho em que os objetos na maioria das vezes eram representados numa dimensão próxima ao seu tamanho natural. Ou seja, não era característica da pintura de natureza-morta ter dimensões monumentais. Então eu aspirava monumentalizar uma planta comigo-ninguém-pode, com uma resolução formal bastante naturalista, tencionando chamar atenção para essa hegemonia da pintura, que sempre se sobrepôs às outras formas de arte, tendo ela virado sinônimo de arte e relegando a patamares inferiores a gravura e a escultura. Por muito tempo a pintura pôde declarar ela própria “comigo

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ninguém pode”, mas minha questão era a seguinte: continua a pintura ainda hoje ocupando uma posição privilegiada, principalmente quando se diz respeito a um mercado de arte? E mesmo que a pintura não ocupe o papel hegemônico nas artes visuais, no sentido de ser o lugar privilegiado onde os desenvolvimentos mais importantes da arte acontecem – e de fato ela parece não mais ocupar esse lugar – não teria sido ela resistente o suficiente para continuar existindo a despeito de todos os discursos apocalípticos em torno da morte da pintura ou o fim da arte? É também num certo sentido de resistência que podemos dizer que a pintura possui poder. Mesmo com o advento de novas tecnologias e com o surgimento de novas linguagens no campo da arte, por exemplo, o que se convencionou chamar genericamente de performance, ainda existe espaço para a prática dessa linguagem tão tradicional que é a pintura. E nesse sentido não só a pintura pode ser considerada numa posição de resistência, mas sobretudo, as práticas de gravura.

A partir do primeiro desenho da planta produzi uma pinturinha com tinta acrílica sobre papel, de 26 x 18 cm (figura 3). A ideia de transformar essa pinturinha numa pintura megalômana, de transpor exatamente a composição da imagem como estava para uma tela de 2,5 m de altura não se concretizou. Posteriormente, um

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ano depois, colei a comigo-ninguém-pode de pequenas dimensões numa chapa de mdf para produzir uma pintura maior (mas nem perto de 2,5 m) de 116 x 60 cm chamada Eu achava que era grande (figura 4). Encontrei esse título no meio da música Do you remenber Laura, da jovem compositora e cantora brasileira Lulina2, na música o eu-lírico relembra vivências da infância de menino, e num trecho declara: “Quando (eu) era pequeno achava que era grande / Quando eu cresci eu encolhi”. Pareceu-me perfeito para nomear a conclusão dessa história do projeto não realizado da forma como a princípio fora pensado, que queria ser grande, mas acabou se conformando em ser pequeno e achar que podia ser ou era grande. Não só a pintura não é grande como a própria planta é uma planta jovem, de seis ou sete folhas apenas. Acredito que ao pintar uma moldura clássica em torno da pintura em papel que foi colada, chamo ainda mais atenção para a questão da pintura enquanto linguagem e o papel exercido por ela ao longo da história da arte ocidental. Na pintura Eu achava que era grande também confluem outras explorações que vinha realizando, como a ideia de moldura e a repetição de módulos básicos que produz uma estampa, uma superfície regular.

2 LULINA, álbum: Cristalina, 2009, gravadora: YB Music.

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Aquele primeiro momento em que pintei, desenhei e fotografei flores num vasinho e depois o início do trabalho com o comigo-ninguém-pode, me incitaram novo interesse em relação a plantas, especialmente por folhagens. Além da comigo-ninguém-pode, já desenhei e/ou pintei espadas de São Jorge, o tinhorão, a samambaia, e o cactos. Folhagens são plantas decorativas que talvez passem de maneira um pouco mais despercebida pela nossa visão. Não é de meu interesse representar flores, tento construir um eu-poético um pouco mais silencioso, embora as formas rajadas das folhagens sejam sedutoras, flores são ainda mais extravagantes e possuem carga simbólica mais acentuada. Outra ideia surgida ao longo do trabalho com vasos e folhagens é a que uns dos lugares destes no mundo são os cantos, e o pensar o canto, me levou a outros trabalhos. Neles penso no canto não só como espaço físico e objetivo, encontro angular de duas superfícies ou retas, mas o canto enquanto metáfora do “fora do centro”.

Folhagens também podem ser metáforas de passividade. Ao contrário do que declara o nome comigo-ninguém-pode, ela é inerte apesar de viva, e passiva, pelo menos desde que não seja ingerida. A espada de São Jorge tem nome combativo, é uma planta com nome de arma, mas não possui outra ligação com

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espada além de seu formato semelhante, e não ataca, mas inversamente é um ser vivo facilmente atacável e indefeso, ironicamente uma planta, passiva, muda e silenciosa.

Figura 1Sem título, 2009lápis grafite sobre papel30 x 40 cm

Figura 2Sem título, 2009lápis grafite sobre papel30 x 20 cm

Figura 3Comigo-ninguém-pode, 2009tinta acrílica sobre papel26 x 18 cm

Figura 4Eu achava que era grande, 2010tinta acrílica, caneta hidrográfica e papel sobre mdf116 x 60 cm

Cantos

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Cultivo o ódio à acção como uma flor de estufa. Gabo-me comigo da minha dissidência da vida.

Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa1.

“Estar num canto não é tão difícil. O difícil é ficar quieto no canto. Porque no canto você quer saber o que acontece no meio.” Escrevi isso em um de meus cadernos. Algumas vezes coisas que escrevo me sugerem ideias de títulos para meus trabalhos. O trecho transcrito acima exemplifica um caso. Na verdade, penso que minha motivação para escrever isso está entrelaçada com o sujeito que aspiro construir com meus trabalhos, e penso que o canto é algo que me ajuda bastante a falar sobre esse sujeito. Os primeiros trabalhos cujos títulos foram motivados diretamente pelo escrito acima são os Estudos para conseguir ficar num canto I, II e III (figuras 5, 6 e 7). Quando intitulo os pequenos trabalhos de

1 PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego: Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Organização Richard Zenith. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Trecho 103, p. 131.

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“estudo...” estou não só fazendo referência ao que é quase como uma categoria nas artes plásticas, um estudo preparatório para a realização de outro projeto, mas ao mesmo tempo dando prosseguimento à prática que tenho exercido em meus trabalhos de nomeá-los com frases emitidas em primeira pessoa. Visto dessa maneira os enunciados carregam ambigüidade que me interessam explorar. Nesses trabalhos de pequenas dimensões pintei vasos de plantas, pois entre vários outros motivos, os quais citei no texto anterior, imagino que eles nos sugerem elementos mudos e passivos em seus lugares, cujo objetivo principal é adornar um ambiente, mas que às vezes são pouco notados.

Cantos são encontros de retas ou de planos, lugares distantes do centro, um canto normalmente é periferia de determinada área. Talvez o canto possa ser metáfora de um lugar poético, como tão bem escreveu Gaston Bachelard em seu livro Poética do Espaço2. Neste livro, o filósofo escreveu um capítulo dizendo que o ponto de partida de suas reflexões foi o seguinte: “todo canto de uma casa, todo ângulo de um aposento, todo espaço reduzido onde gostamos de nos esconder,

2 BACHELARD, Gaston. A filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; traduções de Joaquim José Moura Ramos... (et al.). São Paulo: Abril Cultural, 1978.

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de confabular conosco mesmos, é para a imaginação, uma solidão, ou seja, o germe de um aposento, o germe de uma casa3”. Penso que manter-se num canto é de certa forma promover uma espécie de “exercício de invisibilidade”, desejo de abster-se das discussões e pensamentos centrais. Aquilo que se posiciona no centro é mais visado, mais passivo de ser contestado. O canto é um refúgio possível, é onde se aguarda ou se termina, onde se é “deixado de canto”. Consideremos um canto padrão, um dos cantos internos de um cômodo de quatro paredes, nele um vaso de planta estará limitado e ao mesmo tempo parcialmente protegido pelas paredes. O canto se torna um nicho. Construí nichos escuros para vasinhos de plantas nos Estudos para conseguir ficar num canto. As extravagantes estampas não adentram esses nichos, esses lugares reservados, e dentro deles as plantas ocupam posição central. Kasimir Malevich exibiu seu Quadrado negro sobre fundo branco4 num canto e Vladimir Tatlin criou relevos para esse lugar

3 BACHELARD (1978), p. 286.4 DANTO, Arthur. Após o fim da arte: A arte contemporânea e os limites da história. Tradução de Saulo Krieger. São Paulo: Odysseus Editora: 2006. p.170: “Quando o Black Square [Quadrado Negro] de Malevich foi apresentado pela primeira vez na grande exposição 0-10 em Petrogrado, de dezembro de 1915 a janeiro de 1916, ele pendia em diagonal no canto da sala e próximo do teto, posição tradicional dos ícones russos”.

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específico5. Assim o canto foi uma escolha, e passamos a percebê-lo como lugar latente de possibilidades e novos significados. Inúmeros artistas já invadiram o canto físico e expuseram seus trabalhos nesse lugar, dando atenção a ele. Mas o canto que eu buscava era justamente outro, era um canto comum, um canto qualquer, lugar bom por não ser notado. Um canto para eu colocar minhas ideias, meus vasos de planta, um lugar de pouco movimentação e passagem de pessoas. Um lugar onde eu pudesse alimentar a esperança ingênua de livrar-me dos falatórios e justificativas, em que nada precisasse de muito esforço para ser realizado, onde houvesse contentamento com pouco. Talvez conseguir um canto qualquer seja fácil, mas quando se tem consciência de que nele se está, assola a vontade de procurar por lugar de maior prestígio. E tentar manter-se num canto é buscar deliberadamente a inércia. É empreender o elogio da inação talvez numa medida bastante próxima de como escreveu Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa, em seu Livro do Desassossego6.

5 GULLAR, Ferreira. Etapas da Arte Contemporânea: do cubismo à arte neoconcreta. São Paulo: Nobel, 1985. p. 130: “A nos valermos da descrição que fazem, das obras de Tatlin, Michel Seuphor e Juan-Eduardo Cirlot, o contra-relevo foge à estabilidade do pedestal e do muro, ficando suspenso por fios de ferro estendidos de diversas maneiras no encontro de duas paredes”.6 PESSOA (2006), op. cit.

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Em uma gravura em metal que realizei em 2011 (figura 8), resguardei um dos cantos da superfície da maneira negra gravando com o buril7 uma moldura ornamentada. Não nomeei esta gravura, mas havia feito com grafite um desenho preparatório para ela abaixo do qual escrevi “estudo para continuar num canto” (figura 9). De certa forma eu estava me preparando para me colocar diante de uma chapa de cobre e exaustar-me na operação repetitiva com o berceau8, para produzir a área negra, e no trabalho minucioso com o buril para dar forma à moldura. Debruçar-me sobre o pequeno quadrado de cobre foi mais um canto sossegado o qual tive a minha disposição.

No trabalho Prefiro um lugar no canto que um

7 Buril é um instrumento utilizado na gravura em metal para a produção de linhas. Há vários tipos de buris e são grosso modo pontiagudos de forma a produzir incisões retirando material da chapa de metal (sem produção de saliências na borda das incisões) o que resulta em linhas “bem definidas” e com um pequeno alto-relevo quando a matriz é impressa.8 Berceau é um intrumento próprio da gravura em metal, de aço plano, com um de seus lados convexos, cheio de pequenas saliências em forma de pontos capazes de produzir perfurações e simultaneamente elevações numa chapa de metal, sem haver retirada de material. O resultado obtido com a impressão de uma chapa de metal retículada com o berceau é um preto (ou outra cor que seja usada para impressão da estampa) de característica dita “aveludada”. Cf. BUTI, Marco e LETYCIA, Anna (orgs.). Gravura em metal. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Imprensa Oficial do Estado, 2002.

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lugar ao sol (figura 10), um ursinho de pelúcia e uma samambaia repousam cada qual em um dos cantos do mesmo retângulo negro na metade superior da pintura. Abaixo, recortes de escritos em grafite copiados de um livro qualquer. Cuidadosamente acumulados formam tramas de enunciados que seduzem o espectador à leitura, mas, por estarem desordenados, o frustra na tentativa de compreensão de um discurso lógico. Novamente o próprio título da pintura “Prefiro um lugar no canto que um lugar ao sol” declara o desejo de um local para refúgio. O lugar ao sol não é positivo neste caso, é lugar de desconforto. É uma anedota o relato de surgimento desse título. O que me fez encontrar uma antítese para o local no canto, que é o lugar ao sol, foi quando tive certos trabalhos expostos num local em que ao cair da tarde formava-se uma fresta de luz do sol incidindo diretamente sobre parte deles, que os iluminava de forma desigual e formava neles uma linha contrastando a área exposta ao sol e a parte na sombra. Além de interferir negativamente na visualização das pinturas, corria-se o risco delas sofrerem algum tipo de desbotamento causado pela luz. Esse é concretamente um lugar ao sol indesejado, que contraria a expressão popular metafórica, em que buscar um “lugar ao sol” é buscar um lugar bom. Talvez algumas vezes seja mais conveniente ficar num cantinho recebendo luz indireta,

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ainda que a visibilidade seja menor e o espaço menos prestigioso. Talvez algumas vezes seja mesmo necessário certo refúgio. Preferir um lugar ao canto que um lugar ao sol é buscar esse refúgio.

Por fim, penso ter desviado um pouco o tom de meus cantos com a pintura Enquanto espero, eu canto (figura 11). Os papéis com escritos realizados em serigrafia, recortados e colados na pintura são os versos da música Canto Livre, escrita pelo casal Bené Nunes e Dulce Nunes e interpretada pela cantora Nara Leão. O título da pintura também é um dos versos. Transcrevo abaixo a letra dessa música9:

Enquanto espero eu cantoSe desespero eu cantoEnquanto vou eu cantoNa eterna volta eu cantoE me encanto de cantarSe quando perdida eu cantoCanto, canto...

Se não tem sentido o meu cantarQual o sentido de não cantar?Se na manhã primeira eu não canteiNa derradeira eu cantareiTodas as buscas têm o seu cantarTodos os cantos são de encontrarCanto, canto...

9 Fonte das informações e letra da música disponível em: http://www.naraleao.com.br. Acesso em: 11 de julho de 2012.

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Vejo nessa letra o canto como um ato de consolo, repouso e conforto, que se transfigura numa questão existencial “Se não tem sentido o meu cantar / Qual o sentido de não cantar?” Meu local de repouso e conforto é similar, e obviamente não é o canto como uma expressão vocal, mas sim o trabalho de construção de imagens. Penso, afinal, que em Enquanto espero eu canto a exuberância da planta comigo-ninguém-pode deu razão de existência ao canto qualquer, que foi centralizado, emprestou a ele um novo sentido e vigor, um canto caloroso, um espaço definitivamente desejado, no qual se é possível habitar e ter força.

Figura 5Estudo para conseguir ficar num canto I, 2011tinta acrílica e papel colado sobre mdf17 x 39 cm

Figura 6Estudo para conseguir ficar num canto II, 2011tinta acrílica, caneta esferogáfica e papel colado sobre mdf 10 x 26,5 cm

Figura 7Estudo para conseguir ficar num canto III, 2011tinta acrílica e papel colado sobre mdf26 x 26 cm

Figura 8Sem título, 2011buril e maneira negra10 x 10 cm

Figura 9Estudo para gravura em metal, 2011lápis grafite sobre papel12 x 20 cm

Figura 10Prefiro um lugar no canto que um lugar ao sol, 2011tinta acrílica e papel escrito a grafite sobre mdf90 x 90 cm

Figura 11Enquanto espero, eu canto, 2012acrílica e papel serigrafado sobre mdf160 x 92 cm

Molduras

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A primeira vez que trabalhei com molduras circundando áreas monocromáticas foi quando fiz uma porção delas em um de meus cadernos e as preenchi com pinceladas vermelhas (figura 12). De certa forma, mais uma vez eu penso ter sido motivado por uma vontade de comentar o gênero “pintura”. Pinturas monocromáticas não necessitam de molduras, quanto mais molduras clássicas ornamentadas. A pintura monocromática é do tempo em que a pintura deixou de ser uma janela, para ser mais como um objeto. É claro que pode haver diferentes motivações que levem a fatura de uma pintura que é uma superfície coberta com uma única cor. Arthur Danto escreve sobre como pode haver ideologias diversas ou até opostas que motivem a produção de objetos com formas visíveis semelhantes1. Mas o que parece ser uma constante é a pintura monocromática possuir uma lógica bastante diversa da pintura tradicionalmente considerada como uma janela, nesta, a moldura fazia

1 DANTO (2006) op. cit. p. 169.

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a transição para um espaço ilusório que imita uma situação visível seja esta situação real ou imaginária. A pintura monocromática mesmo que não seja considerada tanto por sua materialidade e enquanto objeto concreto, ela pode estar relacionada a uma realidade imaterial e espiritual, mas dificilmente corresponde à imitação de uma realidade visível. Portanto, penso que uma pintura monocromática emoldurada possa ser uma espécie de paradoxo, ou mesmo uma ironia. Se estamos acostumados a ver pinturas tradicionais miméticas mediadas pela moldura decorada, pode ser que trazer uma superfície de uma só cor para dentro desta moldura cause certo estranhamento. Isso porque uma terá sofrido certa influencia da outra, ou seja, se a pintura interna for considerada através da lógica da moldura, ela poderá ser vista como representação de algo, e o que uma superfície vermelha, por exemplo, poderia estar representando visualmente senão outra pintura monocromática vermelha ou a própria cor vermelha? Mas ao mesmo tempo em que ela pode ser uma representação (lembremos que estamos falando em termos de representação devido à presença da moldura), ela também é a própria coisa representada, ela é vermelha e é uma pintura monocromática. Vendo pela lógica da pintura monocromática a moldura ganha maior concretude e é de certa forma posta em evidência,

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ganha destaque a formalidade de seus elementos, mas ao mesmo tempo ela ironicamente mostra-se mais figurativa e imitadora da natureza do que a pintura monocromática em seu interior - isto acontece quando os ornamentos da moldura imitam arranjos vegetais, por exemplo. É como se existisse uma superfície preenchida apenas para que existisse uma moldura e como se a existência da moldura fosse mais importante que o que há dentro dela, ou em outros termos, como se a pintura se tornasse uma espécie de moldura para moldura.

Pode ser que todas as colocações acima feitas se tornem inúteis, ou ao menos devam ser reconsideradas, já que em nenhum de meus trabalhos realizados até agora a moldura clássica se materializa concretamente, ou seja, em nenhum dos casos usei uma moldura verdadeira (de madeira ou de outro material, em relevo) e nem montei em torno de uma pintura monocromática. Desde que consideremos uma moldura tridimensional como objeto de representação de meus desenhos/pinturas/gravuras ou que vejamos uma pintura monocromática de tinta a óleo sobre a tradicional tela como objeto de representação das áreas negras ou vermelhas que realizei em gravura, então tudo não passa de representações daquele objeto paradoxal que descrevi no parágrafo anterior. De certa forma o entorno destas pinturas monocromáticas emolduradas, que é uma área de fundo

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que poderia ser associada a papéis de parede, reforçam todo o jogo de representação. Isso ocorre ainda mais nos trabalhos em litografia (figura 13, 14 e 15), em que os vasos, as plantas contribuem ainda mais para armar um ambiente. As superfícies emolduradas passam a ser elementos desse ambiente.

A gravura foi um meio que me possibilitou explorar a moldura de maneira bastante proveitosa. Como molduras normalmente são simétricas, posso produzir módulos que são apenas uma parte da moldura inteira e depois montá-los para que formem ela toda. Realizei colagens sobre papel a partir de módulos básicos de estampas impressas em papel japonês e cujas matrizes são placas de revestimento de piso utilizadas e descartadas, similares ao linóleo (figuras 16, 17 e 18). Pelo fato do suporte para a matriz já ter sido utilizado, sua superfície continha algumas incisões ou buracos, dos acidentes sofridos durante o tempo que serviu para ser pisada e que são visíveis nas grandes áreas impressas em preto. Esses acidentes da superfície se repetem simetricamente nas figuras dos quadros monocromáticos e evidenciam o jogo que os formam, ou seja, revelam que as partes são “iguais” e que um rearranjo delas torna possível a construção de uma estrutura unificada, isso também é reforçado pelas linhas de junção das partes, que é ausência de colagem, é o fundo branco do papel

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que a suporta. Essas linhas foram elementos bem vindos em meu trabalho, elas reverberam a geometria das composições e embora também apareçam na junção das partes do fundo estampado, acredito que é quando elas cortam os quadros enegrecidos que atuam com maior potência. Nesses trabalhos o que há no interior da moldura é a superfície da matriz não trabalhada, onde menos houve ação do artista. A parede estampada se torna extensão da moldura, juntas elas são o coroamento dos núcleos negros. É como se a pintura a ser exibida fosse tudo ou fosse nada, ou como já dito anteriormente, mais importante do que a pintura, fosse a moldura que a acolhe ou a parede que a suporta.

Figura 12Sem título, 2008caneta esferográfica e tinta acrílica sobre papel15 x 10 cm

Figura 13Sem título, 2012colagem com litografias sobre papel45 x 60 cm

Figura 15Sem título, 2012colagem com litografias sobre papel45 x 60 cm

Figura 14Sem título, 2012colagem com litografias sobre papel45 x 60 cm

Figura 16Sem título, 2011colagem com linóleogravuras sobre papel100 x 70 cm

Figura 17Sem título, 2011colagem com linóleogravuras sobre papel100 x 70 cm

Figura 18Sem título, 2011colagem com linóleogravuras sobre papel100 x 70 cm

O curso de artes plásticas e o problema da busca/construção

de uma poética pessoal

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Em toda pratica criadora há fios condutores relacio-nados à produção de uma obra específica que, por sua vez, atam a obra daquele criador, como um todo. São princípios envoltos pela aura da singularidade do ar-tista; estamos, portanto, no campo da unicidade de cada indivíduo. São gostos e crenças que regem o seu modo de ação: um projeto pessoal, singular e único.

Cecília Almeida Salles1

Lembro-me da crise sofrida em meu fazer artístico nos anos inicias da graduação. Acredito que seja comum que isso aconteça, principalmente quando como em meu caso, que vim do interior de São Paulo e tive contato praticamente nulo com a produção de arte atual. Antes de vir morar na capital, a arte com a qual tive contato, na escola ou fora dela através de reproduções, não ultrapassou a produção moderna. Talvez eu até já tivesse me deparado com alguma forma de arte mais contemporânea, mas a experiência deve ter sido tão fraca e a carência de conhecimento a respeito deve ter sido

1 SALLES, Cecília Almeida. Gesto inacabado: Processo de criação artística. São Paulo: FAPESP: Annablume, 2004. p. 37.

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tamanha que retive pouco ou nada em minha memória. Meu conhecimento de artistas se limitava aos pintores mais famosos da história da arte, e as referências mais recentes as quais eu apreciava no âmbito da pintura eram artistas como Van Gogh, Picasso, Frida Kahlo, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Monet, entre outros, e ao estudar para a prova específica de seleção para o curso de artes plásticas conheci melhor alguns outros como Vassily Kandinsky ou Piet Mondrian, aos quais também passei a apreciar, mas sempre se tratavam de artistas que podemos situar no âmbito da arte moderna.

Ao realizar uma monografia para uma das disciplinas do curso sobre o trabalho de Hélio Oiticica e a passagem de sua obra ao campo da tridimensionalidade e da vivência, tive meu primeiro contato mais aprofundado com uma teoria de desenvolvimento progressivo da pintura que a levava para um rompimento de seu limite enquanto linguagem. Ao estudar o período de Hélio Oiticica referente ao movimento Neoconcreto inevitavelmente deparei-me com os textos de Ferreira Gullar que se dispunha a teorizar o momento de transformação nas obras de um grupo de artistas que remodelava a relação espectador-obra. Penso que as Etapas da Arte Contemporânea2 de Ferreira Gullar são

2 GULLAR (1985). op. cit.

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análogas do esforço promovido por Clement Greenberg para justificar em termos históricos um desenvolvimento lógico seguido pela arte ocidental que em sua visão, nos Estados Unidos, culminava no expressionismo abstrato. Longe de querer eliminar as diferenças entre o crítico estadunidense e o brasileiro Ferreira Gullar, quero chamar a atenção para a semelhança de disposição em narrar certo desenvolvimento seguido pela arte ocidental a fim de legitimar uma forma de arte, que conseqüentemente é defendida como a mais interessante, ou até mais verdadeira, por aquele que a promove. No famoso Manifesto Neoconcreto de 19593 o crítico brasileiro declara que o movimento se via como continuador das pesquisas de Mondrian, Pevsner, Malevitch, Gabo, Sofia Tauber-Arp etc. Além das primeiras leituras feitas para o mencionado trabalho sobre Hélio Oiticica, haviam as outras indicadas pelos professores em suas disciplinas – e não só naquelas de história da arte, mas também nas disciplinas ditas “práticas”. Considero muito relevante meu contato com muitos dos textos reunidos na coleção A Pintura4, organizada por Jacqueline Lichstenstein.

3 GULLAR, Ferreira. “Manifesto Neoconcreto”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 mar. 1959.4 LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A pintura: textos essenciais. 14 vol. coordenação da tradução de Magnólia Costa. São Paulo: Editora 34, 2005.

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Esses são marcos que minha memória resgata como importantes, como primeiros contatos significativos com teoria de arte. Ao me deparar com as narrativas históricas que pareciam legitimar e dar maior importância a uma linguagem artística em detrimento de outras, fiquei sem saber a “direção” que deveria seguir para ser um artista de meu tempo. Qual era o ponto que devia ser continuado?

Nada do que eu desenhava ou pintava parecia ser digno de ser chamado de arte, não parecia ser conseqüência de uma reflexão interessante minha ou de alguma convicção que eu possuísse. Penso que eu estava me deparando com o problema da busca/construção de uma poética pessoal. Algumas vezes me pareceu inevitável não comprar o discurso desenvolvimentista/progressiva/evolucionista da arte que citei anteriormente. Passava a desqualificar meus desenhos ou pinturas miméticos e tendia a dar mais valor a ideia de fazer uma arte que fosse mais preocupada com um teor conceitual do que com seu aspecto formal, hoje vejo o quanto essa separação é errônea e artificial. A pintura abstrata não se mostrava como solução, eu admirava Mondrian e sabia da importância que o pintor havia exercido na história da arte, mas via para onde Oiticica tinha levado os limites da cor, com os Parangolés, por exemplo, e isso parecia ser uma realização irreversível que não

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poderia ser desconsiderada. Claro que ela não deve ser desconsiderada, mas hoje posso entender um pouco melhor em como podemos considerar o feito de Hélio Oiticica e, ao mesmo tempo, continuar a pintar vasos, plantas, molduras, ursos de pelúcia e tudo o mais ao que a nossa visão se oferece.

Conforme foram se acumulando minhas experiências com arte contemporânea, através das aulas do curso, das leituras e das visitas às exposições que realizava, foi diminuindo minha angústia em relação à legitimidade de meu fazer artístico. Acredito que a experiência visual variada, o contato direto com obras de arte de todo o tipo, acelera exponencialmente o aprendizado sobre elas. Essa foi minha experiência, porque ao travar contato com a produção atual, dos artistas vivos, jovens ou com carreiras já estabelecidas pude perceber efetivamente a variedade de formas possíveis, as potencialidades que ainda possuem as formas tradicionais da arte como pintura, escultura, gravura etc. Aos poucos fui percebendo que as conquistas feitas pelos artistas ao longo da história da arte não deveriam implicar necessariamente numa recusa às formas anteriores. Também percebi o quanto é perigoso assumir formas de arte como privilegiadas ou mais legítimas de serem feitas do que outras, o quanto isso pode ser uma espécie de “academia” da arte contemporânea, que tenta

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regular por pressões externas a produção do artista.Uma das coisas que pude descobrir foi meu

interesse em trabalhar no campo da bidimensionalidade. Descobri que com apenas duas dimensões podemos obter infinitas construções, infinitas poesias, infinitos arranjos, enfim. Talvez algo que me tenha ajudado a chegar nessa compreensão se deva ao fato de ter me aproximado um pouco mais do universo da dança, por virtude de algumas aulas que assisti no curso de especialização para professores onde trabalho como assistente, chamado Linguagens da Arte. Nas aulas da professora Inês Bogéa, tive um breve contato com a história da dança, bem como assisti alguns vídeos sobre dançarinos elaborados pela São Paulo Companhia de Dança. Se um dançarino pode ser tão expressivo e fazer arte com tão poucos recursos, a partir de seu único e próprio corpo gerar tantos significados, ou seja, mesmo quando ele se limita a fazer uma coisa que parece tão historicamente estabelecida (ainda mais quando se trata de balé clássico), por que eu acho que devo fazer algo extremamente radical, ou que não poderia mais desenhar ou pintar com medo de não estar acrescentando nada à arte? Acho que eu gostava da ideia de produzir coreografias em superfícies bidimensionais, ou mesmo música com formas e cores. Hoje, cada vez mais, vejo o quão específica é cada área da arte.

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Muitas vezes recorremos às analogias porque elas são pedagógicas, ajudam a entender muitas coisas. O Ponto e linha e sobre plano de Kandinsky5, por exemplo, em que ele várias vezes faz referência ao universo musical para justificar a existência de uma pintura abstrata, é muito ilustrativo dessa ideia de analogia entre as artes. Outra coisa que me fez refletir a partir do universo do bailarino, principalmente tomando sua imagem clichê, era a disciplina necessária pra o desenvolvimento de algo significativo. Ao que me parece, foi quando aceitei a disciplina como algo salutar e necessário em meu processo, que as coisas começaram a andar. O aceitamento da disciplina, a busca por rigor e paciência no desenvolvimento do trabalho, foi necessário para que eu pudesse anotar ideias e perceber as repetições delas ao longo do processo. Ter um caderninho onde escrever coisas, desenhar inúmeros projetos de trabalhos ajudou-me a compreender melhor os assuntos com os quais eu queria lidar. Quando eu folheava as páginas do caderno relembrando o que já havia feito, começava a ver alguma lógica ligando coisas que num primeiro momento poderiam parecer bastante diversas. Mesmo os projetos desenhados no caderno que não vieram a se

5 KANDINSKY, Wassily. Ponto e linha sobre plano: contribuição à análise dos elementos da pintura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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realizar e que talvez nunca mais se realizem, não foram um trabalho em vão, não foram perdidos, acredito que eles fizeram parte de uma cadeia necessária, são etapas pelas quais precisei passar para o desenvolvimento de outros projetos.

Quando digo que a angústia em relação ao meu fazer artístico diminuiu conforme pude aprofundar minha experiência com o trabalho de outros artistas, estou dizendo isso somente em relação à dúvida que tinha da legitimidade de se produzir coisas que se encaixam dentro das categorias tradicionais como a gravura ou a pintura. Hoje tenho convicção de que isso é possível e mesmo assim insiste outra angústia, seja ela causada por uma satisfação não completa ao término de cada trabalho (mesmo tendo consciência dessa esperança na satisfação completa ser uma utopia), seja causada pelo fantasma pairando a todo o momento que é a pergunta se o trabalho não caminha para se tornar algo repetido e desinteressante, enfim, o medo de que num dado momento as ideias percam subitamente o vigor.

Acredito que ter consciência de como se dá meu próprio processo de aprendizagem em arte ou das etapas pelas quais tenho de passar para produzir determinado trabalho, auxilia-me não só em minha atuação como artista, mas no possível trabalho que realizarei como professor de arte. Ter sido um aluno da licenciatura

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me faz questionar a todo o momento quais são as especificidades desse campo do conhecimento chamado arte, quais são as especificidades que ela possui que faz ligar campos tão diversos tanto dentro das artes visuais, como entre estas e a música, a dança etc. Além disso, o desenvolvimento de um trabalho artístico me fornece experiência e me ajuda a comunicar a outras pessoas onde a arte pode estar. Penso que uma das mais valiosas coisas que um professor de arte pode fazer é desmanchar os mitos e clichês relacionados aos artistas e às obras por eles produzidos. E uma das formas de desfazer mitos é evidenciar a natureza processual da criação de uma obra de arte, é contar a sua história e mostrar que na maioria dos casos ela não é criada a partir de uma ideia surgida do nada, que de repente brota da cabeça do artista gênio.

Evidenciar os processos que me levaram a realizar alguns trabalhos nesses últimos anos foi o que eu tentei fazer com os textos apresentados nesse trabalho de conclusão de curso. A formatação dos trabalhos artísticos que realizei ao longo do curso refletia muita das questões que eram levantadas ao longo desse processo de aprendizagem, se mostravam como materialização de minhas preferências, meus anseios e entendimento acerca da construção em arte. Por isso considerei relevante o esforço em destacar momentos mais importantes de um complexo caminhar que deu origem ao que atualmente

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venho realizando. Ademais, penso que a beleza, mais do que estar numa obra única e separada de seu contexto, ela se mostra na relação desta com o seu todo, na posição em que se situa em um percurso criativo. Não é uma coisa bela conseguir apreender, nem que seja em partes, a poética de um artista? Não é mais belo ainda quando percebemos que existem diferentes poéticas entre os artistas e que essa variedade de formas, dizendo respeito à unicidade de cada indivíduo, tende ao infinito?

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