PODER E ESCRAVIDÃO ebook

184

Transcript of PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Page 1: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

1

Page 2: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

2

Page 3: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

3

PODER

E ESCRAVIDÃO

O Caso do Avaliador de Escravos

no Município da Corte (Rio de Janeiro, 1808-1831)

Rio de Janeiro

Page 4: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

4

Registrado na Biblioteca Nacional – Escritório de

Direitos Autorais.

Direção Editorial: Samantha Rosa.

Revisão: O Autor.

Diagramação: DINIGRAF.

Capa: DINIGRAF.

Não é permitido a reprodução de parte alguma desta

obra sem a permissão do Autor.

PEDIDOS

Av. Passos, 122 – Gr. 401 – Centro

E-mail: [email protected]

[email protected]

Tel.21 2223-0088

20051-040 Rio de Janeiro – RJ

Page 5: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

5

Às minhas meninas,

cujo mundo colorido

enche de cores o meu.

Page 6: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

6

Page 7: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

7

S u már i o

Prefácio, 9

Marilene Rosa Nogueira da Silva

MAIS QUE UMA SERENDIPIDADE

(a guisa de introdução), 13

Capítulo 1

PODER LOCAL E CONTROLE, 19

1.1. A Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, 24

1.2. As Câmaras Municipais e o Senado carioca, 35

1.3. Um perfil dos homens bons, 52

Capítulo 2

PODER LOCAL E REPRESENTAÇÃO, 64

2.1. Câmara Municipal e construção da realidade, 64

2.2. Funções e atribuições, 77

Capítulo 3

O AVALIADOR DE ESCRAVOS:

UM TIPO ESPECÍFICO DE PODER, 101

3.1. A construção da realidade, 101

3.2. Saber e poder, 119

3.3. O caminho da provisão, 132

Capítulo 4

PODER E HIERARQUIZAÇÃO, 139

4.1. Status e representatividade, 139

4.2. Vontade e exclusão, 164

Considerações finais, 173

FONTES E BIBLIOGRAFIA, 177

Page 8: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

8

Page 9: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

9

ão inúmeras e complexas as questões que

mobilizam a escolha de um objeto de pes-

quisa. Algumas vezes este parece emergir

como obra do acaso. Entretanto, sabemos que é ne-

cessário estar familiarizado com a temática, ou seja,

é fundamental uma leitura aprofundada da historio-

grafia para que se possa elaborar perguntas, selecio-

nar o material empírico, definir metodologias, enfim

escolher uma teorien – um modo de ver norteador da

pesquisa.

Luciano Rocha Pinto desde a graduação vem

perseguindo, ou sendo perseguido, pela relação es-

cravidão e cidade. Nesse trabalho, desenvolvido co-

mo dissertação no Mestrado de História da Univer-

sidade do Estado do Rio de Janeiro, experimenta o

fazer de uma História que assume os riscos e subje-

tividades em sua problematização da noção de ver-

dade. Como um historiador de ofício nesses tempos

pós modernos, ele inventa, ou melhor dizendo, cons-

Page 10: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

10

trói um novo, ou pelo menos, renovado conhecimen-

to sobre a ordem escravista.

Como sua orientadora pude acompanhar a for-

mação do historiador competente, preocupado com

os problemas das diferenças e desigualdades sociais

presentes na cidade, capital de um império nos trópi-

cos, objeto das intervenções urbanas da modernidade

dos tempos da república oligárquica. Uma Paris tu-

piniquim que bota abaixo os lugares de memória das

Áfricas cariocas. Como pesquisador criterioso situa

as testemunhas e seus lugares de falas, evitando cair

nas armadilhas do anacronismo. Assim, ao discutir

as relações de poder na capital da corte, marcada e

demarcada pela escravidão ultrapassa as soluções

maniqueístas da vitimização ou heroificação, procu-

rando entender os limites e as limitações de um tem-

po. Os homens e mulheres escravizados, embora

assujeitados, não deixam de ser sujeitos de suas his-

tórias. Nas hierarquizações produzidas por uma socie-

dade escravista, não estariam à margem ou mesmo

fora do sistema. Muito pelo contrário eles seriam o

próprio sistema. Nesse sentido, o trabalho destaca o

papel normalizador da Câmara na definição das for-

mas da inclusão subordinada não apenas para os

escravos, mas, principalmente, para os senhores de

escravos numa complexa e heterogênea sociedade.

O avaliador emerge, nessa relação de poder,

como um cargo de considerável relevância na dinâ-

mica do “mercado de almas” durante a legalidade

do tráfico. Os marcos cronológicos do trabalho apa-

Page 11: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

11

recem como pontas de iceberg: 1808, relaciona-se

as transformações decorrentes da vinda da família

real, quando o crescimento da cidade demandava

novos negros e negras para as atividades que se

ampliavam e diversificavam. Já 1831 expõe o impas-

se sobre o fim do tráfico com a lei nacional que

proibia a entrada de escravos no país – a chamada

lei para inglês ver, uma ficção jurídica que não con-

segue deter o crescimento do vultoso negócio. En-

tretanto, de acordo com as pesquisas de Luciano, a

figura do avaliador de escravo desaparece dos anais

da Câmara. Como justificar isso? Para responder

essa e outras questões, convido o leitor a acompa-

nhar, na trama urdida em quatro capítulos, as com-

plexas relações de uma cidade mediada pela escra-

vidão. Penetrar na instância burocrática da Câma-

ra Municipal carioca num momento delicado de

constituição do Estado Nacional. Enfim, analisar as

posturas municipais e seus efeitos de poder na iden-

tificação dos conflitos, no controle e na punição dos

impasses institucionais entre o mundo da casa e da

rua. Aceitem o convite de Luciano, mergulhem num

tempo e numa cidade que ainda não era considerada

maravilhosa.

Profª Drª Marilene Rosa Nogueira da Silva*

–––––––––– *Coordenadora do Laboratório do Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais

(LEDDES-UERJ).

Page 12: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

12

Page 13: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

13

(a guisa de introdução)

sta descoberta é quase daquele tipo a que chama-

rei serendipidade, uma palavra muito expressiva,

a qual, como não tenho nada de melhor para lhe

dizer, vou passar a explicar: uma vez li um romance bastan-

te apalermado, chamado Os três príncipes de Serendip:

enquanto suas altezas viajavam, estavam sempre a fazer

descobertas, por acaso e sagacidade, de coisas que não es-

tavam a procurar…

Serendipidade então passou a ser usada para descrever

aquela situação em que descobrimos ou encontramos algu-

ma coisa enquanto estávamos procurando outra, mas para a

qual já tínhamos que estar, digamos, preparados. Ou seja,

precisamos ter pelo menos um pouco de conhecimento so-

bre o que “descobrimos” para que o feliz momento de se-

rendipidade não passe por nós sem que sequer o notemos.1

Foi percorrendo as páginas do romance Um defeito de

cor de Ana Maria Gonçalves que nos deparamos com este

relato e com a curiosa palavra “serendipidade”, que surgiu

aos 28 de janeiro de 1754 na carta de Horace Walpole, pre-

cursor do Romance Gótico e autor do conhecido The Castle

of Otranto (1764). Em sua carta conta a um amigo como

–––––––––– 1GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006, p. 9.

Page 14: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

14

havia, por acaso, encontrado uma pintura antiga e muito

valiosa. A explicação é bastante interessante e ilustra muito

bem o nosso primeiro contato com as fontes referentes aos

Avaliadores de escravos.

Em 2003, quando pesquisávamos o mercado do

Valongo, a compra de escravos, e leilão, nos deparamos com

um códice no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro

denominado Avaliadores de Escravos. Havia mais referên-

cias em dois outros códices. Esta documentação burocrática

foi produzida pela Câmara Municipal carioca. São proces-

sos, na sua maioria, quase totalidade, incompletos, de diver-

sos homens que faziam pedido ao Senado da Câmara para

exercerem a função de Avaliadores dos cativos que estavam

sob o poder da Câmara. São três códices principais, com não

mais de uma centena de folhas cada referentes aos anos de

1775 e 1830. A partir do ano seguinte o comércio de escra-

vos passou a ser oficialmente proibido e a função, possivel-

mente, se extinguiu. O estado da documentação é bom, com

alguma deterioração, que, de modo geral, não ofereceu pro-

blema para a leitura. Entretanto, o que exigiu maior atenção

foi à desorganização da encadernação, pois os processos

receberam uma nova numeração sobre a original, que procu-

ramos seguir. Em alguns casos, não havia ordem sequencial.

Poucos processos estavam inteiros.

Muitos fizeram desta ocupação seu sustento por lon-

gos anos e até por toda a vida. Função ambicionada, de

provisão pública temporária, representava, nos oitocentos,

a legalidade e requeria idoneidade atestada pelos comer-

ciantes da praça e escrivães da Câmara. Ocupação provisó-

ria de muitos, carreira vitalícia de alguns, o Avaliador esta-

va envolvido numa atmosfera de interesse, status e poder.

Para compreender tal processo, voltamos nossa atenção

para a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, o maior

mercado de escravos, não só do Brasil, mas de todas as

Américas.

Page 15: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

15

No século XIX a escravidão estava no seu auge e em

nenhum outro momento se comercializou tantos escravos e,

em especial, na sua primeira metade. Assim, tomamos como

ponto de partida a chegada da corte portuguesa em 1808. Oca-

sião de singular desenvolvimento para a cidade e de grande

importância para o “comércio de almas”, com a abertura dos

portos. Outro evento significativo é a extinção do tráfico legal

de escravos. “Atendendo ao tratado firmado em 1826 com a

Inglaterra e ratificado no ano seguinte, o Brasil decretou, em 7

de novembro de 1831, a ilegalidade daquele comércio”,2 pro-

mulgando a primeira lei contra a entrada de escravos africanos

no país. Tal medida previa pesadas penas a quem vendesse,

transportasse ou comprasse escravos africanos recém-chega-

dos, os chamados boçais, estabelecendo a prova de conheci-

mento da língua portuguesa para identificá-los.3

Os relatos do século XIX, mais especificamente dos

viajantes, desconhecem a figura do Avaliador de escravos.

Os diversos processos endereçados ao Senado da Câmara

da cidade do Rio de Janeiro, com petições à função, no

entanto, endossam sua existência. Quem era? Onde atua-

va? Qual a sua singularidade dentro deste agitado comér-

cio carioca? Qual sua representatividade político-social?

Quem poderia assumir esta função? Era ele parte da “boa

sociedade”? São questões importantes que, juntamente

com outras, buscaram precisar esta figura, até então, bas-

tante enigmática.

A partir da produção burocrática da Câmara apreende-

mos as especificidades deste ofício, que ocupou a vida de

muitas pessoas e fez de tantas outras aspirantes, caso não

apenas de fortuna, do status que o ofício poderia proporcio-

–––––––––– 2BASILE, Otávio N. de C. O Império Brasileiro: panorama político. In: LINHARES, Maria

Yedda (org.). História Geral do Brasil, 9a ed., 11a reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990, p. 241.

3VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002,

p. 474.

Page 16: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

16

nar. Era o Avaliador a mão do Estado e da legalidade que

ganhava as praças da cidade e gerava divisas aos cofres

públicos, reiterando, em nome de Sua Majestade, não apenas

a mão de obra, mas, a hierarquia escravista e seu status quo.

Elaboramos duas hipóteses principais e norteadoras do

trabalho. A mais genérica refere-se ao ambiente na qual o

Avaliador se insere politicamente. Pensamos as câmaras

municipais como organismos político-administrativos, inse-

ridos na lógica do império português, mas, que viviam uma

condição real de autonomia, o que não quer dizer autogeren-

ciamento. Na prática, elas articulavam com desenvoltura os

interesses da elite que ocupava seus quadros. Tal desenvol-

vimento encontrará algum limite de poderes na reforma pom-

balina. A hipótese principal refere-se ao Avaliador de escra-

vos como um agente do poder local. Munido de tal represen-

tatividade, posicionava-se ao lado da legalidade promovendo

a legitimação da ideologia escravista e hierarquizando os

indivíduos mediante a posse do trabalhador cativo. Mais que

gerar divisas aos cofres públicos ele legitimava a estrutura

escravista daquela elite camarária que se beneficiava com a

estrutura arcaica vigente na América portuguesa.

Desejamos, de modo geral, relacionar a presença do

Avaliador de escravos na Câmara Municipal carioca, anali-

sando as especificidades do ofício em sua estruturação orga-

nizacional, precisando as relações político-representativas e

privilegiando o poder estatal e os micropoderes que vêm à

tona na vida cotidiana. Especificamente, buscamos explorar,

no Capítulo 1, a importância crescente da cidade no contexto

imperial. Demonstramos a situação de autonomia das câma-

ras municipais, nos primeiros séculos de colonização lusa na

América, e, como após 1750 este processo foi subvertido pelo

governo de Pombal. Analisamos, também, a formação da elite

camarária em seu desenvolvimento temporal. Posteriormente,

no segundo capítulo, mapeamos a Câmara Municipal da

cidade do Rio de Janeiro no primeiro quarto o século

Page 17: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

17

XIX, identificando a estrutura de cargos e funções, assim

como as respectivas atribuições funcionais. Localizamos,

no Capítulo 3, a função e as respectivas atribuições do Ava-

liador de escravos, contextualizando o ofício nos moldes da

Câmara Municipal carioca e precisando os capitais envolvi-

dos e requeridos para o provimento na função. Por fim, no

Capítulo 4 analisamos como este mecanismo de hierarquiza-

ção está baseado no monopólio da nomeação, nas relações de

representatividade, dominação e legitimação do discurso,

regime de verdade estruturado com vias à reiteração temporal

e beneficiamento pessoal, assim como as redes de poder em

seus mecanismos de inclusão e exclusão.

O presente trabalho se insere na perspectiva da nova

história política, uma vez que o objeto, atravessado pela

noção de poder, ater-se-á a um grupo profissional específico,

um subconjunto da sociedade, perfeitamente passível de

especulação. Conforme definição de René Rémond, a “uni-

formemente narrativa, escrava do relato linear…”4, mais inte-

ressada pelas minorias privilegiadas, cedeu lugar a uma histó-

ria política que “exige ser inscrita numa perspectiva global

em que o político é um ponto de condensação (…) [aprofun-

dando] o jogo dos interesses, as correspondências entre os

pertencimentos sociais e as escolhas políticas…”5

O Avaliador de escravos representa uma esfera do

poder instituído da sociedade carioca dos oitocentos. Efetua-

mos um diálogo com a história administrativa, uma vez que

mapeamos a instância normalizadora do Avaliador, ou seja, a

Câmara Municipal. Pensamos a noção de poder conforme as

matrizes discursivas de Pierre Bourdieu e Michel Foucault.

Como o conhecimento é dialogal, articulamos, com todos os

riscos que isso pressupõe, os autores em questão apropriando-

nos de noções bastante singulares à realização deste trabalho,

–––––––––– 4REMOND, Réne. Por uma História Política. Rio de Janeiro: FGV, 2003, p. 17. 5Ibidem., p. 445.

Page 18: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

18

a partir de uma abordagem qualitativa. O Avaliador de escra-

vos, de serendipidade a objeto de estudo, revela um olhar

sobre as relações de poder. Desvela seus encontros, blo-

queios, jogos de força e estratégias de luta e dominação. É a

emergência de um tipo particular de exercício de poder.

Page 19: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

19

1

PODER LOCAL E CONTROLE

Câmara Municipal, no século XIX, era o lócus

privilegiado de exercício e manutenção do poder.

Os ocupantes de seus cargos eram denominados

Homens bons, “expressão usada na América Portuguesa para

traduzir uma atitude mental típica do Antigo Regime, que era

incapaz de considerar os indivíduos como nascidos iguais e

dotados dos mesmos direitos”.6 A dinâmica do poder local

carioca, suas redes de manutenção e solidariedade são impor-

tantíssimas na compreensão do modo de ser daquela elite

aristocrática fragmentada,7 pouco homogênea, mas extrema-

mente solidária.

Oliveira Viana, enfocando os diversos modos do ser

solidário e da gênese do sentimento de solidariedade, de-

preende uma síntese assaz aplicável à aristocracia camarária,

uma vez que “a solidariedade humana é, historicamente, um

produto do medo, resulta da necessidade de defesa contra os

–––––––––– 6VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 284.

7SCHWARTZ, Stuart B (a). Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo, Pers-

pectiva, 1979.

Page 20: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

20

inimigos comuns, feras ou homens” 8 Se, de fato o medo é a

chave da autopreservação, nada mais simples a constatação

da solidariedade como preservacionismo de uma dada condi-

ção social. A análise destas redes de apoio mútuo, portanto,

darão forma às relações de poder que desejamos traçar, pelo

menos no que se refere à identificação daquela elite envolvi-

da no processo de hierarquização, para melhor compreender o

modo de ser da administração colonial local e suas articula-

ções de tomada e/ou manutenção do poder.

Não se pode negar que estes homens foram atores ati-

vos na construção de um projeto que potencializava a união

de diversos fatores e um único interesse: o poder e sua reite-

ração temporal. Não é novidade que para muitos autores a

administração colonial era complexa. Atribuições e compe-

tências se misturavam num grande carrossel que, girando em

torno de si mesmo, não conseguia ver além dos limites rígi-

dos fixados pela coroa ou pelos poderes locais. A síntese

completa deste Estado e expressão de poder era a figura do

rei que delegava seu poder nas diversas funções, cuja divisão

era “mais formal que funcional”.9 Não havia definições níti-

das quanto às atribuições. “O Brasil não constituía para os

efeitos da administração metropolitana, uma unidade. O que

havia nesta banda do oceano, aos olhos dela, eram várias

colônias (…) sob o nome oficial de capitanias”.10

Neste con-

junto heterogêneo de províncias que se integravam à monar-

quia lusa, nossa unidade referia-se apenas ao ordenamento

geográfico, pouco conforme a realidade administrativa.

O Estado metropolitano e a administração portuguesa

no Brasil, “não possuíam um organograma nítido de cargos e

–––––––––– 8VIANA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil. In: Intérpretes do Brasil, 2a ed.,

3o vol. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 1055. 9PRADO Jr., Caio. Administração. In: Formação do Brasil Contemporâneo, 23ª ed.,

7a reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2004, p. 299. 10Ibidem, p. 303-304.

Page 21: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

21

funções”,11

havendo uma grande distância entre o país for-

mal, conforme as normas jurídicas, e o país real. “O governo

central colonial frequentemente exercia apenas uma jurisdi-

ção nominal”,12

os juízes, ainda na virada do século XVIII

para o XIX exerciam funções judiciais e, conjuntamente,

administrativas, contexto próprio das sociedades de Antigo

Regime. Não havia uma centralização administrativa funcio-

nal e coerente. A colônia portuguesa entre 1624 e 1775, por

exemplo, estava dividida em dois Estados distintos: o Estado

do Brasil e o Estado do Maranhão e Grão-Pará. As adminis-

trações eram totalmente independentes.13

E se, posteriormen-

te manteve-se uma unidade territorial e administrativa esta

surgiu em função de uma opção dentre tantas outras, cuja

manutenção da unidade correspondia aos interesses de um

“tipo de elite política existente à época da Independência,

gerada pela política colonial portuguesa”.14

O que fica evidente aqui é o fato de que a centralidade

administrativa nos trópicos sofreu um longo processo de ges-

tação, cujo enraizamento e concretização aconteceu dentro de

um “conjunto de estratégias e práticas administrativas exerci-

das pela coroa portuguesa em sua gestão governativa no

ultramar”.15

O esmeril de tal administração será a política de

privilégios que tornar-se-á responsável pelo fortalecimento

do poder central, alimentando-se e, ao mesmo tempo, susten-

tando os poderes locais com honrarias, aprimorando, desta

forma, seu corpus burocrático.

–––––––––– 11WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. M. Formação do Brasil Contemporâneo,

2a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 310. 12Ibidem, p. 315. 13CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial. Teatro

de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2003, p. 14. 14Ibidem, p. 21. 15GOUVÊA, Maria de Fátima. Poder político e administração na formação do complexo

atlântico português (1645-1808). In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOU-

VÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial por-

tuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 288.

Page 22: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

22

A administração da América Portuguesa estava marca-

da pela confusão de poderes e atribuições, uma máquina

complexa que funcionava mal.16

Evidente que esta aparente

descerebração da administração central favoreceu o fortale-

cimento das elites locais, tornando possível o estabelecimento

de poderes regionalizados bem definidos que gestavam inte-

resses próprios ao mesmo tempo em que viabilizavam a con-

tinuidade do Império luso. Segue-se a condição de autonomia

das municipalidades e o posterior processo centralizador

desenvolvido pela coroa em meados do século XVIII na

administração pombalina.

Esta aparente contradição que opõe o centralismo

administrativo português e os diversos poderes locais encon-

tra sua razão de ser na própria natureza do Estado monárqui-

co moderno que não exerceu poder absoluto sobre seus súdi-

tos e nem mesmo chegou a implementar uma centralização

administrativa ou jurídica completa. “Foram sim, até o final o

Antigo Regime, marcadas pelos particularismos corporativos,

pela resistência de corpos políticos tradicionais e pelas hete-

rogeneidades regionais, herdadas da época medieval”17

Neste

sentido fica fácil perceber como o processo de centralização

política, em seu esforço por convencimento e legitimação, de

modo algum significou controle dos micropoderes. A cons-

trução de uma centralização administrativa esbarrava nos

usos e costumes tradicionais, nas relações de poder e interes-

ses financeiros locais, diante dos quais cabia à coroa não a

repressão e o uso da força, mesmo que em momentos especí-

ficos tenha se valido deste mecanismo, mas do convencimen-

to pela promoção, que na maioria das vezes surgia nos prece-

dentes honoríficos de investidura.

–––––––––– 16VIANA, Oliveira. Op. cit., p. 1038. 17SOUZA, Avanete Pereira. Poder local e autonomia camarária no Antigo Regime: o

Senado da câmara da Bahia (século XVIII). In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINE,

Lúcia Amaral (Orgs.). Modos de Governar: ideias e práticas políticas no império por-

tuguês (séculos XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2005, p. 312.

Page 23: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

23

Parecia inviável a construção de um corpo burocrático

centralizado sem a participação das elites locais, por isso, a

necessidade “de uma política de distribuição de cargos e, por-

tanto, de mercês e privilégios”,18

cuja governabilidade no ultra-

mar viabilizava-se segundo a inclusão dos poderes locais que,

de alguma forma, legitimavam o poder central metropolitano.

Identifica-se, assim, uma economia política de privilégios.19

Evidente que esta dinâmica objetiva reforçar os laços de sujei-

ção e promover a efetivação, tão próprio do Antigo Regime, do

sentimento de pertença dos vassalos (reinóis e/ou ultramarinos)

à centralidade do poder monárquico. Esta relação imbricada que

se formava entre o público e o privado nas políticas administra-

tivas se transpassavam e aos poucos o centralismo monárquico

se fortalecia com a maior presença de funcionários da coroa e

com o comprometimento daqueles homens bons que se aproxi-

mavam e assumiam o modo de ser cortesão. Este processo de

beneficiamento múltiplo pode ser visto como “uma repactuação

política entre o centro e a periferia imperial”.20

É importante, então, passarmos à caracterização do per-

fil destes cidadãos, termo que lhes é próprio e não aplicável a

todos, para percebermos o desenvolvimento de um perfil que

assumiu diversas características pela própria influência da

corte que promovia o consentimento pela investidura e pro-

moção dos indivíduos no campo social e simbólico, sem

falar, evidentemente, no político e econômico. Mas se o dese-

jo de hierarquização estimulava a legitimação da Coroa, tam-

bém não podemos negar o desenvolvimento histórico dos

poderes locais, a importância política e geopolítica que a

cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro e, de modo espe-

–––––––––– 18GOUVÊA, Maria de Fátima. Poder político e administração na formação do complexo

atlântico português (1645-1808). Op. cit., p. 287. 19BICALHO, Maria Fernanda Baptista. As câmaras ultramarinas e o governo do Império.

In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). Op. cit., p. 219.

20ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: companhia das Letras, 2000, p. 303.

Page 24: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

24

cial, a sua Câmara Municipal adquiriram ao longo do tempo.

Neste sentido, passamos a vislumbrar, brevemente, a situação

da cidade no império luso, a importância das câmaras muni-

cipais, principalmente a carioca e seu status quo e, enfim,

focaremos o desenvolvimento do perfil daqueles homens

bons, buscando precisar a construção desta elite e consequen-

temente da burocracia camarária.

1.1. A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro

A Câmara Municipal do Rio de Janeiro está imersa em

um contexto de profundas transformações. Entre 1790 e 1840

a cidade era o centro econômico e político do sudeste brasi-

leiro.21

Tal prerrogativa, evidente, não é aleatória. Sua condi-

ção como núcleo da Região Sudeste, sede do governo central

da colônia (1763), posteriormente da Corte Portuguesa

(1808), só foi possível graças ao encadeamento de diversos

fatores que viabilizaram o estabelecimento de políticas na

qual o Rio de Janeiro tornou-se palco de diversas transforma-

ções, desde sua gênese até seu processo de independência.

No século XIX carioca, atualiza-se uma conjuntura na

qual o Rio de Janeiro concretiza seu papel como centro do

sudeste e cabeça do Império. “Foi a geopolítica, e não a

economia que permitia ao Rio de Janeiro destacar-se no

ambiente colonial”.22

O porto carioca intensificou suas ati-

vidades, passando a receber 1/5 do total de africanos impor-

tados pela colônia, em meados de 1710. Vinte anos depois, a

praça carioca passou a receber 40% a mais em relação às

duas décadas anteriores, na qual englobava 1/3 do total de

africanos importados. Além disso, tornou-se o mais impor-

–––––––––– 21FRAGOSO, João Luís. Homens de Grossa Aventura: Acumulação e hierarquia na praça

mercantil do Rio de Janeiro (1790 -1839). Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 1998, p. 305. 22FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlânti-

co, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de

Janeiro, c. 1790 – c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 63.

Page 25: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

25

tante porto receptor das importações do Ultramar e reexpor-

tador dos produtos europeus.

O olhar de muitos viajantes sobre a cidade, na primei-

ra metade dos oitocentos, confirma a importância do porto

no contexto atlântico, inclusive valorizando a posição da

cidade na rota internacional. “Numa época em que a nave-

gação à vela era o único meio de transporte para viagens

além-mar, a escala no Rio de Janeiro fazia-se quase que

obrigatória”.23

De fato, a cidade encontrava-se em posição

privilegiada, sendo um bom porto de arribada para conserto

de avarias e abastecimento de água e gêneros alimentícios.

Pierre Sonnerat, navegador e naturalista francês, esteve na

cidade em 1748 e dentre os diversos comentários que faz,

um auxilia nossa apreciação do porto carioca que, segundo

ele, “é um dos maiores e mais belos do mundo e um ponto

de arribada bastante frequentado pelos navios que vão para

as Índias ou de lá retornam”.24

Chancel de Lagrange, outro francês, esteve no Rio em

condição bem adversa. Ele fazia parte da esquadra do almi-

rante René Duguay-Trouin, que invadiu a cidade em 1711. A

invasão francesa ao Rio de Janeiro durou dois meses, de 12

de setembro a 13 de novembro daquele ano, e levaram consi-

go um polpudo resgate arrancado dos cariocas e também

alguns comentários sobre a cidade. Descrevendo o Rio de

Janeiro, o jovem Lagrange afirma: “depois da Bahia de Todos

os Santos, ela é a cidade mais importante do país, tanto em

decorrência da proximidade com as minas quanto em razão

do movimento do seu porto”.25

Evidente, é preciso cautela quanto à valorização absoluta

destes testemunhos. No entanto, se tomados em conjunto, com

–––––––––– 23 MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (1800-

1850). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 14. 24SONNERAT, Pierre. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Outras Visões do Rio de Janeiro

Colonial: antologia de textos – 1582-1808. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000, p. 189. 25LAGRANGE, Chancel de. Ibidem, p. 140.

Page 26: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

26

as devidas precauções, podem ser indícios de uma realidade. O

Rio de Janeiro alimentava diversas conexões no além-mar com

a rota do tráfico de escravos, com aquelas ligadas ao comércio

imperial ou mesmo como porto de parada e abastecimento das

rotas transatlânticas. A proximidade com a região das minas,

no entanto, constitui outro fator que promoveu o crescimento

da cidade e sua importância no sudeste colonial, favorecida

mais uma vez pela sua condição geográfica, embora, apenas

isso não explique por completo sua posição hegemônica no

contexto da colônia, mas é denunciante.

A invasão francesa ao Rio de Janeiro nos aponta para um

diferencial em relação às outras capitais. Por que invadir o Rio

de Janeiro e não, por exemplo, a Bahia, então, sede do governo

central da colônia? Que desejos inspiraram duas invasões?

Antônio Brito de Menezes, governador do Rio de Janeiro, em

1718, escreveu à Coroa sobre a falta de ministros na adminis-

tração da justiça na capitania. Esta carência, segundo ele,

decorria do fato de ser a cidade “opulenta mais que todas as do

Brasil, por razão do seu largo comércio, e serem os seus gêne-

ros os mais preciosos”.26

Decerto, estes ataques estabelecem

um indicativo sobre a realidade da capitania no contexto colo-

nial. Uma espécie de reconhecimento à sua opulência.

A descoberta de ouro fez crescer ainda mais o papel

estratégico do Rio de Janeiro, graças à sua proximidade com

as regiões auríferas. Um comentário do governador Luís

Vahia Monteiro27

aponta para esta condição privilegiada da

cidade no conjunto dos negócios imperiais e no comércio

com as áreas mineradoras. Dizia ele: “Esta terra é hoje um

império, donde carrega todo o tráfico da América, e descarre-

–––––––––– 26 AN, cód. 80: vol. 1, p. 40. 27Governador da capitania do Rio de Janeiro, entre 1725 e 1732, ficou famoso pela truculência

com que exerceu o cargo. Devido ao seu temperamento explosivo ficou conhecido como “Onça”. A irracionalidade de suas atitudes transformou seu apelido em uma referência tempo-

ral para expressar algo fora de moda ou fora de propósito: “suas ideias são do tempo do

Onça” (cf. Revista História Viva, nº 18. São Paulo: Editora Duetto, 2005, p. 17).

Page 27: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

27

ga todo o peso, e aviamento dos governos das Minas Gerais e

São Paulo”.28

Não demoraria muito o Rio de Janeiro substi-

tuiria Salvador em importância no sistema mercantil imperial

e se tornaria a principal cidade da América portuguesa.

Sua elite mercantil estava entregue a diversos ramos de

comércio, seja na navegação de cabotagem, redistribuindo

produtos de origem ultramarina ou mesmo no próprio comér-

cio e tráfico de almas além-mar. Graças a esta estrutura mer-

cantil, os negociantes sediados no Rio de Janeiro tiveram aces-

so privilegiado ao ouro das Gerais, servindo de ponte entre as

regiões auríferas e o comércio ultramarino. Ademais, a região

das minas desde muito cedo se encontrou sujeita ao Rio de

Janeiro e seus negociantes. “Essa subordinação deu-se desde o

início, por meio do crédito”.29

Os negociantes do Rio de Janei-

ro, como também os situados na Bahia e Portugal tinham o

costume de adiantar estoques ou emprestar dinheiro. A falta de

estrutura da região mineradora facilitou a aproximação dos

interesses, uma vez que a produção de gêneros alimentícios

nas Minas era insuficiente para o sustento de uma população

masculina que se avolumava nas faisqueiras. Assim, “preços

fantásticos eram pagos pelos alimentos, durante esta luta em

prol da sobrevivência. Um gato ou um cachorro eram vendidos

por trinta e duas oitavas de ouro, um alqueire de milho por

trinta ou quarenta, e um frango esquelético por doze”.30

Em meio a esta situação de dependência, beneficiaram-

se aqueles com melhores condições de oferta. Desde muito

cedo a região das minas se viu dependente dos negociantes da

–––––––––– 28SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá. Os homens de negócio do Rio de Janeiro e sua atuação

nos quadros do Império Português (1701-1750). In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria

Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). Op. cit., p. 75. 29Ibidem, p. 89. 30BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade

colonial, 3a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 71.

Page 28: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

28

praça carioca. “Desde o início da colonização das áreas mine-

radoras, „foi sempre o comprar-se tudo fiado‟”.31

Como resul-

tado temos a região mineradora subordinada economicamente

ao Rio de Janeiro. Só averiguada esta condição podemos

entender porque da capitania do Rio de Janeiro saíam três

caminhos à região das minas, sendo um novo aberto por

ordem do governador do Rio de Janeiro, Arthur de Sá e

Menezes no final do século XVII.

Uma vez que os primeiros trajetos demoravam muito,

cerca de um mês, esta empreitada foi encomendada à Garcia

Rodrigues Paes. Este devia ser mais direto e assim foi feito. O

caminho ia por terra até Irajá e seguia os rios Iguaçu, Paraíba e

Paraibuna até as minas.32

Posteriormente, outra estrada foi aber-

ta ligando diretamente São Paulo ao Rio de Janeiro. Estes cami-

nhos, não tinham outro objetivo senão facilitar o acesso do cre-

dor ao devedor e escoar com maior facilidade o produto. A

dependência se torna tão marcante que extrapola a outros seto-

res. Vale a nota que até mesmo o bispo do Rio de Janeiro ficou

responsável por atender a população da região das minas na

primeira metade dos setecentos. Apenas em 1745 foram criados

bispados nas regiões mineradoras, como Mariana, por exemplo.

Nesta mesma direção podemos pensar num fato inusitado:

a criação do Tribunal de apelação (Relação) no Rio de Janeiro,

que começou a funcionar em 15 de julho de 1752. Russel-

Wood, trata o fato como um recurso “adotado pela coroa para

melhorar a eficiência do sistema legal nas zonas de minera-

ção”.33

Este, que era o principal tribunal superior criado na

América Portuguesa, servia de corte de apelação em última ins-

–––––––––– 31SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda;

GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). Op. cit., p. 89. 32RUSSEL-WOOD, A. J. R. O Brasil Colonial: o ciclo do ouro, c. 1690-1750. In:

BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina: América Latina Colonial, vol. II. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília: Fundação Alexandre de

Gusmão, 1999, p. 480. 33Ibidem, p. 487.

Page 29: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

29

tância e, possivelmente, “também desempenhava funções admi-

nistrativas e legislativas, a exemplo da fiscalização de órgãos e

funcionários da administração colonial”.34

O Tribunal da Rela-

ção do Rio de Janeiro, no entanto, exerceu jurisdição não apenas

no sudeste. A ela cabiam as treze comarcas compreendidas pelas

capitanias do Sul e do interior colonial,35

também Angola e São

Tomé, escapando-lhe apenas o Estado do Maranhão. Sem nos determos por demais nesta questão, o que

importa é perceber que a instalação deste importante Tribunal no Rio de Janeiro surge em função do capital simbólico que a cidade do Rio de Janeiro vinha adquirindo no cenário do império português. Discordamos de Russel-Wood quanto ao objetivo deste Tribunal que passa a existir não em função de um melhor atendimento legal à região das minas, mas como uma opção política em prol da centralização monárquica. Como seria possível atender tantas regiões na colônia e mais duas na outra margem do Atlântico? A impossibilidade de realização dos objetivos explícitos nos inquieta e reforça um dos objetivos deste capítulo, que busca demonstrar o quanto se esforçou a coroa por submeter os poderes locais à centrali-zação político-administrativa. Neste sentido, entendemos que este tribunal enquadra-se perfeitamente no conjunto das di-versas medidas que objetivaram fortalecer o governo central numa região de importância crescente. Sobre estas medidas encontramos seu coroamento na política de Pombal.

A partir de 1750 acontecimentos diversos anunciam

uma virada nas relações entre metrópole e colônia. Tais fatos

marcam o fim e o início de períodos singulares.36

Identifica-

–––––––––– 34VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro:

Objetiva, 2001, p. 563. 35MAURO, Frédéric. Portugal e o Brasil: a estrutura política e econômica do Império,

1580-1750. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina: América Latina

Colonial, vol. I. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília: Fundação

Alexandre de Gusmão, 1999, p. 491. 36CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. A crise do colonialismo Luso na América Portu-

guesa (1750-1822). In: LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil, 9a ed.

Rio de Janeiro: Elsevier, 1990, p. 111-126.

Page 30: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

30

se, portanto, três episódios determinantes de um novo perío-

do: o Tratado de Madri (1750), que determina o fim de uma

expansão de facto, onde os domínios portugueses expandem-

se a oeste e estabelecem novas fronteiras. Limites estes que

seu substituto, o Tratado de Santo Ildefonso (1777) muda

pouca coisa de substancial daquela situação básica definida

há quase três décadas. Importante dizer, e é sobre isso que

estamos de alguma forma desenvolvendo, que este expansio-

nismo de facto não ocorreu de jure. Daí a tendência centrali-

zadora que se segue após as definições geográficas. Se antes

a corda estava solta para expandir limites, agora, ela está esti-

cada e puxa numa mesma direção: a Coroa portuguesa.

O segundo fator diz respeito à morte do Rei João V, res-

ponsável pelo enfraquecimento da autoridade real,37

e a ascen-

são de José I, em 1750. Portugal passa a viver um novo momen-

to com o conde de Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Mello,

e depois Marquês de Pombal já no comando do governo que,

levado a cabo com mão de ferro, inaugura um período mercanti-

lista e ilustrado de profunda centralização administrativa e reor-

ganização do Império, que podemos denominar de organização

tardia. Até 1750 as terras coloniais portuguesas na América

vivam em regime de autonomia vigiada.

Pensamos estes dois conceitos da seguinte forma: o

primeiro diz respeito às medidas centralizadoras de Pombal;

enquanto que o conceito de autonomia vigiada encerra o que

até agora vimos, caracterizado por um desenvolvimento das

municipalidades que cresce segundo o direcionamento dos

poderes locais. Deve ficar claro o fato de que as determina-

ções metropolitanas, nem sempre faziam surtir os efeitos que

se propunham. O próprio Governo-geral, tentativa com certo

grau de centralização, justaposta ao regime de Capitanias

hereditárias, não produziu os efeitos desejados como articu-

–––––––––– 37SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Portugal e o Brasil: a reorganização do Império. In:

BETHELL, Leslie (Org.). Op. cit., p. 488.

Page 31: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

31

lador entre as regiões da América Portuguesa. A Coroa estava

sempre contemporizando conflitos diversos de autoridade,

especialmente em Pernambuco, por exemplo, onde o gover-

nador-geral Tomé de Souza estava proibido pela Coroa de ir.

Ademais, a maioria dos historiadores concorda, e, por isso,

não nos alongaremos tanto, que a autoridade do governador-

geral estava de fato restrita à Bahia, até 1763, quando a sede

é transferida para o Rio de Janeiro.

Então, na verdade, ele se equiparava, na prática, aos

demais governadores de capitania, o que reforça nossa hipótese

de que até o governo pombalino a colônia portuguesa na Améri-

ca vivia uma condição de autonomia, vigiada, pois sempre a

metrópole esforçou-se por saber o que se passava, afinal, era ela

que se beneficiava com a empreitada na América. A interação

entre o público e o privado, que existia e persistia fortemente

alicerçado pelo costume, nos ajuda a pensar nesta questão, cujos

poderes locais desenvolviam-se autonomamente. Evidente que

tentativas exacerbadas de autodirecionamento provocaram rea-

ções intempestivas por parte da metrópole. O curioso é que na

sua grande maioria, as tentativas de independência política sur-

giam depois de 1750 e não antes. Seria esta necessidade de

emancipação uma reação à centralização administrativa que

seguia e feria o costumeiro e cristalizado na colônia portuguesa?

O reordenamento pombalino era, portanto, uma tentativa centra-

lizadora que abafava os poderes locais e buscava tornar hege-

mônica a presença da coroa em seus domínios.

O terceiro fator que anuncia novos tempos surge nesta

mesma década de 1750 com o auge e, também, o declínio da

produção aurífera brasileira. Situação que demorou a ser

digerida pela metrópole que a custa de devassas foi dando-se

conta de seu esgotamento. Seja como for, este fato não dimi-

nuiu o interesse da Coroa pelo centro-sul da colônia. Em

meados do XVIII o Brasil se transformava em peça mestra no

tabuleiro dos domínios de Portugal. A condição mercantil do

Rio de Janeiro, sua proximidade e situação privilegiada de

Page 32: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

32

credora da região das minas, foram fatores que promoveram

o desenvolvimento da cidade no cenário colonial. Com a cri-

se do colonialismo luso, a metrópole assume uma nova postu-

ra, exacerbando um desejo preservacionista. Assim, estabele-

ce-se a substituição daquele modo de ser da autonomia vigia-

da, para uma organização tardia. A denominação “tardia”

evidencia a condição temporal de um curto período propria-

mente colonial, uma vez que em 1808 inicia-se, sem dúvida

alguma, o processo de independência formalizado em 1822.

Sem mais delongas, passamos às medidas centralizadoras

pombalinas evidenciando este desejo preservacionista e cen-

tralizador da Coroa que buscava enfraquecer a elite local

carioca e, a um só tempo, hierarquiza-la acomodando-a ao

projeto hegemônico metropolitano. Tal fenômeno contribuirá

ainda mais no prestígio da Câmara Municipal da cidade.

A posição do Rio de Janeiro, como o centro mais im-

portante da América Portuguesa, se deve ao fato de por lá cir-

cular grande fluxo econômico ligado à extração aurífera nas

Minas Gerais e também como principal porto das Américas.

A “média anual [em fins do século XVIII] era de 30 navios

entre Rio de Janeiro e Lisboa e de 20 entre o Rio de Janeiro e

a África”;38

já nos oitocentos, este movimento subiu para

“765 navios portugueses e 90 estrangeiros”,39

em 1808, com

a abertura dos portos. Foi, no entanto, com Pombal que este

processo ascendera de maneira predominante na política

imperial portuguesa, integrando seus domínios de forma a

tornar-se central já na segunda metade dos setecentos. Se de

alguma forma, portanto, a Coroa se via dependente do centro

sul colonial outra postura não seria compreensível senão

aquela que buscasse meios de centralizar e ordenar a colônia

segundo os interesses metropolitanos.

–––––––––– 38CERVO, Amado; MAGALHÃES, José Calvet de. Depois das Caravelas: as relações

entre Portugal e Brasil (1808–2000). Brasília: Universidade de Brasília, 2000, p. 14. 39SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Negro na Rua: A nova face da escravidão. São Pau-

lo: Editora Hucitec. 1988, p. 45.

Page 33: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

33

Neste sentido diversas medidas foram tomadas a fim de se restabelecer a autoridade do Estado. Dentre elas não faltou o uso da força e coerção. Apenas para citar algumas, vale lembrar que indivíduos ou instituições que eram acusados de criticar o poder do Estado eram eliminados, mesmo que caís-se sobre estes mera suspeita. Assim, famílias aristocratas acu-sadas de tramar contra o rei sofreram tortura e muitas foram condenadas à prisão perpétua como, por exemplo, o julga-mento dos Távoras e do Duque de Aveiro em 1759. Da mes-ma forma, nobres, padres, altos funcionários e magistrados, acusados de conspiração, críticas ou mesmo má administra-ção eram presos e exilados.

40 Para a formação de um poder

central forte vinculado aos interesses da Coroa, se faz neces-sário a eliminação daqueles possíveis entraves ao projeto de centralização. Qualquer um que representasse uma possibili-dade de frustrar tal idealização devia ser descartado e silen-ciado. Esta busca de fragmentação das elites locais encontra sua razão de ser no desejo hegemônico de dominação, na qual a Coroa promove meios de sobrepor-se aos poderes locais. O primeiro passo deste projeto foi a repressão das contradições. O segundo passo em direção às elites locais será de outra ordem, agora buscando o favorecimento destes homens bons.

O que deve evidenciar-se neste momento é a certeza

do desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro e sua

crescente importância no contexto de um Império já de-

pendente, cujo ordenamento tornou-se vital para o governo

metropolitano. As próprias titulações evidenciam sua im-

portância. Em 6 de julho de 1647, D. João IV concedeu-lhe

o título de Leal, ampliando as prerrogativas da câmara,

dentre as quais o direito de fazer às vezes, na ausência do

Governador e do Alcaide-Mor, de Capitão-Mor e ter as

chaves da cidade.41

Essa maior autonomia será posterior-

–––––––––– 40SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Op. cit., p. 488. 41BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras municipais no Império Português: o exemplo

do Rio de Janeiro. Rev. Bras. Hist., vol. 18, no. 36. 1998, p. 251-580. ISSN 0102-0188.

Page 34: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

34

mente diminuída com a presença do Juiz de Fora no século

XVIII. Aos 2 de março de 1689, o monarca ampliou os

poderes dos governadores do Rio, podendo estes prover

postos oficiais da milícia e das Ordenanças. Desta forma,

ficaram os governadores do Rio independentes do Gover-

no-geral da Bahia.

Durante o período de produção aurífera os mesmos

receberam da coroa ampla jurisdição nos assuntos relativos

às minas. Uma carta régia de 27 de dezembro de 1697

ampliou-lhes as atribuições, submetendo-os apenas às deli-

berações da metrópole. Aos governadores do Rio de Janei-

ro foram submetidas à capitania de São Paulo e a Colônia

do Sacramento respectivamente em 1698 e 1699. Em 1751,

como vimos, foi estabelecida ali uma segunda Relação.

Tornou-se sede do governo central da colônia e posterior-

mente da Corte Portuguesa.

Em 1815 o Brasil é elevado à condição de Reino

Unido a Portugal e ao Algarve. Foi no Rio de Janeiro

que D. João foi aclamado Rei e vários títulos foram

conferidos à câmara da cidade desde então, como, Se-

nado da Câmara em 14 de março de 1757 e o tratamento

de Senhoria em 06 de fevereiro de 1818; em 21 de julho

de 1821, foi outorgado aos representantes da cidade o

acesso à sala do dossel e, quando incorporados, pode-

riam comparecer com todas as honrarias ao paço; e,

finalmente, em 9 de janeiro de 1823, o tratamento de

Ilustríssima ao Senado, “em atenção aos bons serviços

prestados à cidade”.42

Demonstrada a importância da

cidade do Rio de Janeiro no cenário colonial passamos

a nos ocupar com as câmaras municipais e, de modo

especial, com o Senado Carioca.

–––––––––– 42GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Redes de poder na América Portuguesa: O caso dos

homens bons do Rio de Janeiro, ca. 1790-1822. Rev. Bras. Hist., vol. 18, nota 19.

Page 35: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

35

1.2 As Câmaras Municipais e o Senado Carioca

A Câmara Municipal carioca possuía um extenso

patrimônio e finanças próprias, por isso, não dependia do

Real Erário.43

Dois terços de toda a renda municipal pertencia

à Câmara, o restante era revertido ao Real Erário da Capita-

nia.44

A “linha” que separava a cidade e o campo era muito

tênue. A urbe era um braço do poder rural, de forma que

grande parte daqueles homens bons eram proprietários de ter-

ras e escravos, o que ocasionará em fins do século XVIII e

virada para o XIX diversas contendas com os comerciantes

da praça carioca, mais abastados e financiadores da realeza.

Com o tempo hierarquizá-los será uma obrigação. Cabia ain-

da à Câmara editar posturas, nomear juízes (Almotacé e de

vintena, cuja funcionalidade e lugar nos quadros administra-

tivos veremos mais adiante) e demais funcionários, inclusive

taxar tributos, atribuição que partilhava com a figura do rei.

As câmaras municipais no período colonial possuíam

uma força colossal.45

A nobreza da terra, os magnatas locas,

congregava parentes, amigos ou vizinhos sob seu amparo e

buscavam algo mais que bens, existência social. Esta elite

local detinha as regalias, os direitos e as funções munici-

pais.46

Enquanto tal hierarquia promovia a uns, outros, no

–––––––––– 43Erário, relativo à palavra latina aeraria, refere-se a uma mina de cobre, ou seja, um lugar

que acumula determinada riqueza ou importância. Aerarium, por sua vez, se aplica ao

tesouro público, no sentido próprio da palavra aqui empregada, donde aerarius nos lembra o cidadão sem direito de votar e que pagava, apenas, uma taxa fixada pelos censores.

Logo, erário refere-se ao tesouro público (FARIA, Ernesto (Org.), Dicionário Escolar

Latino-Português, 2a ed. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Departamento Nacional de Educação, 1956, p. 43).

Vale reforçar a lembrança: “cidadão” é um termo inadequado a quem não tem o direito

de voto na sociedade colonial portuguesa dos oitocentos. As prerrogativas de elegibilidade e a capacidade de tornar-se votante cabiam apenas a pessoas com determinado poder eco-

nômico. O voto era censitário e funcionava como princípio hierarquizante na sociedade de

corte, classificando assim os cidadãos daqueles despossuídos e indignos. 44PRADO Jr., Caio. Op. cit., p. 316. 45VIANA, Oliveira. Op. cit., p. 897-1188. 46Ibidem, p. 1041.

Page 36: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

36

entanto, como mercadores, artífices, pequenos lavradores,

foreiros, colonos, agregados, mestiços e trabalhadores de

qualquer ordem, viam-se totalmente à margem de tudo, inclu-

sive da cidadania. Daí o espírito gregário e o sentimento de

solidariedade que promovia os mais simples pela pertença a

um determinado grupo de poder. Tal sentimento movia mui-

tos homens a assumirem, por exemplo, ofícios de segundo

escalão na Câmara. De algum modo estes cargos possibilita-

vam a proximidade do centro do poder e, quem sabe, pode-

riam gerar algum favorecimento pessoal nestas redes solidá-

rias. Alguns privilégios estes não-cidadãos almejavam, caso

não fossem favorecidos pela aquisição de algum capital sim-

bólico, ao menos uma distinção interpares, capital social, por-

tanto. Ser um mero fiscal, agente portuário ou demarcador, se

comparado à massa de desocupados era, sem dúvida, uma

distinção. Afinal, estão todos a serviço de Sua Majestade e

seu comportamento deveria corresponder à nobreza esperada.

No entanto não faltavam acusações contra tais homens

que se favorecendo do poder a eles investido, promoviam

seus interesses pessoais àqueles do bem comum. Crises e

irregularidades no abastecimento da cidade ou mesmo a

diversidade de preços dos produtos (carne, farinha, peixe…)

faziam parte das reclamações, isso sem falar nos tributos.

Outro fator interessante diz respeito às acusações de mecani-

cismo, ou seja, camarários que exerciam algum tipo de ofício

manual (comerciante, taberneiro, sapateiro…) considerado

incompatível com o ethos nobiliárquico.

Era impensável um homem bom trabalhar com suas

mãos. Repreensões diversas foram encaminhadas aos suspei-

tos e enquanto alguns negavam outros realçavam sua neces-

sidade de autossustento, fato que aprofundaremos a seu tem-

po demonstrando a distinção entre aquela nobreza da terra,

descendente dos primeiros colonos, aristocracia com muitos

empobrecidos que, por vezes, viam-se vendendo seu último

negro para manter a roupa apropriada para sua função admi-

Page 37: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

37

nistrativa; e uma nova elite, denominada nobreza de toga, que

ascenderá ao poder não pela pureza de sangue, mas pelo capi-

tal econômico que sustenta. Assim, comerciantes diversos

ligados à atividade mercantil ascenderam aos cargos na

Câmara graças aos seus favores pecuniários feitos ao rei.

Evidente que uma vez lá sua função primeira dará lugar a um

título, como veremos ao aprofundar as características dos

homens bons, e a mudança no perfil desta elite que ganhará

novos protagonistas após o processo de centralização.

A Coroa se apoiava nas municipalidades, que funciona-

vam estrategicamente como os braços do rei no projeto colo-

nizador, parte da estrutura administrativa do Império Portu-

guês. É possível encontrarmos semelhanças tanto nas

câmaras do Brasil, como nas de Goa ou mesmo nas de

Macau. Eram, sem dúvida alguma, agentes disciplinadoras da

vida coletiva e símbolo da presença real. Embora tudo isso

seja verdadeiro, estando empossadas do poder régio para

deliberar em nome de sua Majestade, tais instituições passam,

na prática, a atuar em proveito próprio, equilibrando-se entre

o esperado pela coroa e o querido pelos poderes locais. É

conhecido por demais o fato de as câmaras deliberarem a favor

de interesses dos seus quadros e reordenar os ditames do poder

central segundo os próprios desejos. Equilibravam interesses

próprios e representação dos interesses centrais instaurando,

assim, um paradoxo. Funcionavam como “elementos de uni-

dade e de continuidade entre o Reino e seus domínios, pilares

da sociedade colonial portuguesa nos quatro cantos do mundo”

e além de ter sua razão de ser nos interesses da Coroa eram as

câmaras ultramarinas “órgãos fundamentais de representação

dos interesses e das demandas dos colonos”.47

Esta dupla serventia fazia da Câmara o elo entre dois

mundos, funcionando como o ponto de equilíbrio da balança.

–––––––––– 47BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras municipais no Império Português: o exemplo

do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 251-580.

Page 38: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

38

Evidente que os pratos nunca estiveram perfeitamente alinha-

dos, seria ingênuo estimar um equilíbrio de forças que, em

diversos momentos, se contrastavam. Não havia igualdade de

condições, de forma que a balança inclinava-se sempre para o

lado que oferecesse maior peso e força. A própria razão de ser

da colônia não permitia igualdade de condições. As câmaras

estavam afinadas com a estratégia da colonização que fazia

“cumprir, nessas localidades, suas determinações, sobretudo

no que dizia respeito à área fiscal”.48

O que não quer dizer

que estivessem sempre vinculando os interesses metropolita-

nos. Já vimos em outros momentos que este fato ocorre de

maneira a posteriori, de forma que nesta queda de braço as

municipalidades faziam valer na maioria das vezes os interes-

ses locais.

As câmaras não foram uma novidade. A “administração

portuguesa estendeu ao Brasil sua organização e seu siste-

ma”,49

embora não tivesse havido simples transposição legis-

lativa. Graças aos problemas específicos de cada região a

Coroa se viu forçada a regulamentar usos e costumes locais,50

o que de modo algum comprometeu sua condição de institui-

ção fundamental na construção e manutenção do Império ul-

tramarino, constituindo-se pilares das sociedades coloniais

portuguesas, mesclando uniformidade administrativa, o que

dava aquele caráter harmonioso entre as diversas municipali-

dades do Império, e, a um só tempo, as marcas singulares

produzidas pelas diversas características regionais.51

Neste

estudo, estamos pontuando estas características comuns, dan-

do um enfoque singular à Câmara do Rio de Janeiro.

–––––––––– 48SOUZA, Avanete Pereira. Op. cit., p. 321-322. 49PRADO Jr., Caio. Op. cit., p. 301. 50BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras municipais no Império Português: o exemplo

do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 251-580. 51Idem. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João; BICA-

LHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). Op. cit., p. 191-193.

Page 39: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

39

Seria impróprio, como vimos na primeira parte deste

estudo, atribuir uma organicidade central efetivamente fun-

cional. A Coroa e mesmo o governo-geral da América Portu-

guesa estavam longe de conseguir coordenar toda colônia

segundo ordenamentos gerais. “A administração colonial era,

sobretudo, um feixe de relações entre o governo metropolita-

no e as administrações centrais e regionais”.52

Pouco pode-

mos verificar no período colonial de uma administração cen-

tralizada e organizada segundo os interesses da coroa. Muita

coisa fugia daquela intenção originária metropolitana. Um

exemplo é bem esclarecedor. A administração local, ou seja,

as câmaras municipais deveriam ser instaladas pelo poder

régio segundo seu interesse, no entanto, temos dois casos de

autoconstituição das municipalidades, o primeiro ocorreu em

Parati, em 1660, e o segundo em Campos, em 1673. Poste-

riormente, ambas foram confirmadas pelo rei.53

Estes exem-

plos apenas confirmam o que já foi dito: o governo central

exerceu, em grande parte da história colonial, uma jurisdição

de caráter apenas nominal.

Neste sentido, o uso do termo absolutismo é impróprio

quando aplicado ao Estado monárquico moderno justamente

pelo fato das monarquias ocidentais não terem exercido poder

absoluto sobre seus súditos, sem nem ao menos ordenar uma

administração central eficaz, de forma que grande parte dos

colonos recorria mesmo ao poder local,54

que era mais que

um órgão de primeira instância, era o poder de fato, pelo

menos no que se refere à percepção dos citadinos, que pouco

ou quase nada percebiam de outro poder que não fosse o que

emanava das câmaras. Portugal não representou uma exceção

neste quadro político fragmentado. Os micropoderes não fo-

ram absorvidos plenamente pela centralização portuguesa,

–––––––––– 52WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. M. Op. cit., p. 315. 53Ibidem, 314. 54SOUZA, Avanete Pereira, Op. cit., 312.

Page 40: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

40

então, bastante frágil. Existia, contudo, mais que fragilidade,

havia uma “descerebração da administração central”.55

A Coroa se beneficiava com a atuação de particulares, no

entanto, estes que vieram colonizar em nome d‟El-rei, seriam

aqueles que exerceriam autoridade real e era em nome destes, e

em sua memória, que seus descendentes exigiriam da Coroa

posturas contra pessoas simplesmente enobrecidas, mas que não

possuíam a antiguidade que consagrava os nobres da terra, aris-

tocracia descendente dos primeiros colonizadores,56

católicos e

senhores de terras e almas. Se por um lado, portanto, benefi-

ciou-se a metrópole com o investimento particular (benefício

duvidoso, uma vez que as primeiras investidas não deram os

resultados esperados, como, por exemplo, as Capitanias Heredi-

tárias); por outro, seu poder vê-se reduzido à pura nominalidade,

exercendo os poderes locais a autoridade de fato. Este poder

exacerbado que fora conferido aos primeiros colonizadores trans-

formou-se, sem dúvida alguma, em um limite ao poder real.

Muitos fatores contribuíram para o fortalecimento dos

poderes locais e, consequentemente, para a limitação do po-

der real. De modo geral, estava o rei sujeito a um conjunto de

normas governamentais, obrigado à observância da lei divina,

da moral e da justiça. Isso se deve à própria concepção de

realidade herdada do Antigo Regime.57

A Época Moderna

absorve a sociologia cósmica medieval, no qual o ordena-

mento social está imbuído de uma cosmologia que abrange

homens e coisas, fazendo com que os hábitos e a constituição

social encontrem sua razão de ser na metafísica.

Qualquer ruptura da ordem estabelecida feriria aquela

harmonia querida por Deus, que ordenou as criaturas segundo

–––––––––– 55GOUVEA, Maria de Fátima Silva. Redes de poder na América Portuguesa: O caso dos

homens bons do Rio de Janeiro, ca. 1790-1822. Op. cit., p. 297-330. 56FREYRE, Gilberto. Op. cit., p. 1041 e 1043. 57HESPANHA, António Manuel. As estruturas políticas em Portugal na Época Moderna.

In: TENGARRINHA, José (org.). História de Portugal, 2a ed., Rev. e Ampl. Bauru, SP:

EDUSC; São Paulo, SP: UNESP; Portugal, PT: Instituto Camões, 2001, p. 117-181.

Page 41: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

41

sua vontade, de forma que “era da natureza das coisas que os

súditos seguissem os ditames dos governantes, que estes

tivessem que governar em vista do bem comum, que a mulher

obedecesse ao marido (…) que os poderosos protegessem os

mais fracos…”,58

e assim por diante. Neste sentido, não era a

vontade do governante que deveria prevalecer. Não era ele

que detinha o poder de distinção entre o justo ou o injusto,

entre o lícito ou o ilícito. Tudo estava inscrito num conjunto

moral preestabelecido em um plano superior ao nosso, na

qual nossa vontade só seria justa se, de alguma forma, cor-

respondesse àquela vontade anterior e aquém às vontades

individuais.

Os indivíduos, governantes e governados, não estavam

na origem da constituição política ou da organização social,

que lhes é anterior e emana, não das decisões e relações de

poder, mas de um suposto demiurgo, usando a terminologia

platônica, que criou tudo o que existe conferindo materialida-

de ao existente no mundo das ideias A natureza das coisas e

dos homens, portanto, teria sua gênese no pensamento de

Deus que tudo ordenou segundo seu beneplácito. Uma insti-

tuição que muito exercia influência nesta forma de pensa-

mento era a Igreja Católica, mas não apenas ela, também os

tribunais e a própria exigência do “governar para o bem co-

mum”, que identificava o governante com um grande pai,

obrigava-o a uma moralidade esperada. Como podemos ana-

lisar, o poder régio estava limitado por diversas entidades que

controlavam o rei. Ao contrário do que acontece hoje, o poder político

estava muito repartido nas sociedades modernas. Com o poder da coroa coexistiam o poder da Igreja, o dos Conse-lhos ou comunas, o dos senhores, o de instituições como as universidades ou as corporações de artífices, o das famílias. Embora o rei dispusesse de prerrogativas polí-ticas de que outros poderes normalmente não dispunham –

–––––––––– 58HESPANHA, António Manuel. Op. cit., p 118.

Page 42: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

42

os chamados direitos reais, como a cunhagem de moeda, a decisão sobre a guerra e a paz, a justiça em última instância –, o certo é que os restantes poderes também tinham atri-buições de que o rei não dispunha. A Igreja, por exemplo, tinha uma larga esfera de competências exclusivas – como, julgar e punir os clérigos. Isso também acontecia com o poder do pai, no âmbito da família; era impensável que a coroa se intrometesse, por exemplo, na disciplina doméstica ou na educação dos filhos. E por aí em diante (…) As câmaras [por sua vez] editavam normas (posturas) relativas à vida comunitária.

Também o direito do rei (a lei) não era o único direi-to. Ao lado dela, vigorava o direito da Igreja (direito ca-nônico); o direito dos Conselhos (usos e costumes locais, posturas das câmaras); ou os usos da vida, longamente estabelecidos e sobre que houvesse consenso, que os juristas consideravam como de obediência obrigatória, tanto ou mais do que a lei do rei (…) a lei do rei tam-pouco era aplicada de forma inexorável e sistemática.

59

Assim, o rei estava preso às normas morais, que exi-

giam obediência e zelo em torno do bem comum, comportan-

do-se como um pai. O desempenho desta paternidade era

necessário ao bom andamento da ordem social. A Igreja, por

sua vez, era uma instituição que exercia muito poder sobre a

figura do rei. Basta lembrarmos que a excomunhão era um

forte instrumento coercitivo. Um governante excomungado

tinha de imediato o desligamento da obrigatoriedade de obe-

diência devida por parte dos súditos. Outra instituição que

desempenhava pressão aos poderes régios eram os tribunais,

que poderiam suspender as decisões do rei, anulando sua

competência. Como podemos perceber, é impróprio pensar-

mos em um Estado absolutista, baseado na vontade

suprema do rei. Mas não apenas no campo político e do direi-

to o rei se encontrava limitado. Financeira e administrativa-

mente, o poder real, de maneira semelhante, estava bastante

fragilizado. Isso pode ser percebido na falta de recursos fi-

–––––––––– 59HESPANHA, António Manuel. Op. cit., p 128.

Page 43: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

43

nanceiros; na falta de conhecimento do próprio território, sem

representações cartográficas detalhadas, nem, ao menos, con-

tagens demográficas precisas até o princípio dos oitocentos; e

na deficitária rede de comunicações, com estradas ruins e

inexpressivo serviço de correio.60

Nesta estrutura política e

administrativa fragmentada, inadequado seria pensar numa

centralização em torno da metrópole, cujo governante via sua

autoridade alicerçada num contexto cujas forças periféricas

ganhavam espaço no vácuo de poder deixado pela coroa.

As municipalidades, portanto, em um processo de auto-

nomia contínua viabilizavam seus interesses enquanto a coroa

buscava se encontrar em meio à falta de recursos, “descere-

bração administrativa”, fragilidade política e lutas externas.

Não por acaso o processo de centralização efetiva encontra

aplicação real após a consolidação da dinastia de Bragança,

com D. Pedro II (1668-1706) e D. João V (1706-1750). Este

quadro, até aqui descrito, que favoreceu a autonomia das mu-

nicipalidades, declinará com o reformismo ilustrado do go-

verno pombalino impondo forte rigor sobre órgãos e agentes

da administração colonial, reafirmando a primazia do poder

real. Neste momento, contudo, aprofundaremos a condição de

autonomia das câmaras municipais, sua rede tributária e de-

mais características singulares, evidenciando, por fim, o Se-

nado da Câmara da cidade do Rio de Janeiro.

Com um perfil tão fragmentado, a realeza ver suas

municipalidades exercerem um poder maior que aquele pre-

tendido com sua implantação. Era ela a gestora dos súditos da

Coroa que por sua vez recorriam àquela representante do rei,

encarregada da administração local, detentora de amplos

poderes, que sustentava, em nome d‟El-rei, mas em proveito

próprio. Estas câmaras municipais, que Portugal chama de

Conselhos, concentram a vida política das suas respectivas

cidades, de forma que todos os aspectos da vida municipal

–––––––––– 60HESPANHA, António Manuel. Op. cit., p. 127.

Page 44: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

44

estavam sob seu controle. Seu poder era tamanho que “em

Salvador (1610), Rio de Janeiro (1640), São Paulo (1640) e

Belém (1662), as câmaras comandaram a resistência à políti-

ca real e lideraram movimentos que resultaram na prisão ou

expulsão de governadores ou de jesuítas”,61

por ocasião da

promulgação de leis antiescravistas a favor dos índios. Embo-

ra seus interesses estivessem atrelados à elite local, as câma-

ras deveriam zelar pelo bem comum, uma extensão do po-

der régio. Eram verdadeiros pilares da vida social, que

disciplinava a coletividade. Para isso dispunha de diversas

“funções fiscalizadoras, disciplinadoras, reguladoras, ori-

entadoras e, em certos casos, coercitivas e penalizadoras,

outorgadas aos seus ocupantes”.62

Outra extensão do poder real atribuído às câmaras é a

taxação de tributos, que recaíam sobre as entradas dos açou-

gues, balanças, mercados, aferições de pesos e medidas, mul-

tas atribuídas a quem cometesse alguma infração às diversas

posturas municipais, aluguel de imóveis públicos… Contro-

lando não apenas tributos, mas também o comércio. Ambos,

“se constituíram em dois dos principais elementos sobre os

quais se formaram os Estados Modernos, dando vida à ex-

pansão ultramarina, serão eles também as grandes chaves

explicativas da relação entre colônias e metrópoles”.63

Taxas

extras fixadas pelas câmaras na América eram comuns em

tempos de perigo imediato ou necessidade urgente. Isso ocor-

reu, por exemplo, por ocasião da invasão holandesa, quando

os vereadores do Rio de Janeiro, juntamente com seu gover-

nador, então, Salvador Correa de Sá, e mais pessoas princi-

–––––––––– 61SCHUARTZ, Stuart B. O Brasil Colonial, c. 1580-1750: As Grandes Lavouras e as Peri-

ferias. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina: América Latina

Colonial, vol. II. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Funda-

ção Alexandre de Gusmão, 1999, p. 405. 62SOUZA, Avanete Pereira. Op. cit., p. 318. 63BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras municipais no Império Português: o exemplo

do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 251-580.

Page 45: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

45

pais, deliberaram uma contribuição destinada a reparar e

municiar as fortalezas do nordeste para a resistência. O mes-

mo ocorreu em 1648, onde os moradores foram conclamados

a contribuir com donativos com fim de organizar expedição

destinada à reconquista de Angola aos holandeses. Assim,

70% do financiamento da expedição foi proveniente da coleta

junto aos negreiros e senhores rurais do Rio de Janeiro. Logo,

as câmaras municipais não apenas administravam os tributos

reais, mas criavam seus próprios impostos.64

Não somente dos tributos encerrava-se a renda das mu-

nicipalidades, que também aforavam seus bens. Com patrimô-

nio e finanças próprias, independente do Real Erário, as câma-

ras deles se dispunham como bem entendessem. Parte do

patrimônio formava-se daquele conjunto de terras que no ato

da criação da vila era concedida. Era o rossio, “destinado para

edificações e logradouros e para a formação de pastos públi-

cos. A Câmara podia ceder parte destas terras aos particulares

ou afora-las. Constituíam ainda o patrimônio municipal as

ruas, praças, caminhos, pontes, chafarizes etc.”65

Boa parte de

seu orçamento era formada, portanto, do arrendamento de pas-

tos, aluguel de prédios, impostos diversos sobre o consumo e

multas devidas por infrações a posturas. Este “autogerencia-

mento” é entendido pelo fato da Coroa apresentar dificuldade

de financiar as despesas militares e custos de defesa no Brasil

dos setecentos em diante, graças às guerras de restauração na

Europa. Neste sentido, foram os poderes locais que assumiram

a manutenção do Império na América, arrecadando impostos,

fixando taxas, arrendando bens etc.66

Fator que muito contri-

buiu no processo de autonomia das municipalidades.

–––––––––– 64BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras municipais no Império Português: o exemplo

do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 251-580. 65PRADO JR. Caio. Op. cit., p. 316. 66BICALHO, Maria Fernanda Baptista. As câmaras ultramarinas e o governo do Império.

Op. cit., p. 199.

Page 46: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

46

As funções das câmaras eram diversas, além da res-

ponsabilidade de administrar os bens, tributar impostos e

fiscalizar, a elas cabia a regulamentação das feiras e mer-

cados; obras em estradas, postes e calçadas; limpeza e

conservação das ruas; construção de edifícios; regulamen-

tação dos ofícios e comércio; abastecimento dos gêneros e

cultura da terra.67

Detendo, assim, o monopólio de bens e

serviços a Câmara constituía-se na maior força local, tan-

to política, com autoridade por vezes superior ao pró-

prio governador; como econômica. Para cuidar de todos

estes assuntos, os oficiais camarários reuniam-se duas

vezes por semana em “vereação” ou “vereança”, de modo

geral, nas quartas e sábados.

As câmaras se compunham de um Presidente, que po-

deria ser eleito pelo povo,68

denominado Juiz Ordinário ou

alguém com nomeação régia, chamado Juiz-de-Fora. Este era

o principal agente no processo de centralização. Juntamente

com ele haviam outras autoridades do poder central que não

participavam dos Conselhos, como os Corregedores e os

Provedores. Dentre os demais oficiais que compunham as

câmaras temos os Vereadores e o Procurador.69

Claro que o

número de ocupantes destas funções variou no tempo e no

espaço. Havia outros funcionários que serviam nas municipa-

lidades e estavam à disposição dos oficiais camarários, como

os Escrivães, Almotacés, Alcaides, Juiz de Órfãos,70

Fiscais,

Avaliadores e outros mais. As atribuições destes oficiais ca-

marários e régios serão discutidos mais adiante. No momen-

–––––––––– 67SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Conquista e Colonização da América Portuguesa: o

Brasil Colônia – 1500/1750. In: LINHARES Maria Yedda (Org.). História Geral do Bra-

sil. 9a ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990, p. 63. 68Povo, compreendido em sua acepção restrita, sinonimizando com a concepção de cidadão

na sociedade colonial de voto censitário, ou seja, denomina aquele indivíduo com determi-nado número de bens outorgantes do direito de participação política.

69PRADO JR. Caio. Op. cit., p. 314. 70 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Op. cit., p. 61.

Page 47: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

47

to, o que nos importa é fechar este quadro que denominamos

de autônomo por parte das câmaras e identificar uma em par-

ticular: o Senado da Câmara da cidade do Rio de Janeiro. Por

fim, encerraremos este item com a reação centralizadora

movida por Pombal e uma breve descrição das atribuições

dos funcionários régios acima citados.

A denominação Senado não se constitui em um corpo

superior de pessoas ou órgão distinto na Câmara. É um título

honorífico não concedido, mas arrogado abusivamente em

alguns casos. Foi atribuído à Câmara carioca como uma exal-

tação àquela cidade que, como vimos, crescia em importância

nos quadros imperiais, de forma que correspondia ao capital

simbólico que a cidade vinha adquirindo em meio às demais

municipalidades. Durante o século XVII, gozou de uma auto-

nomia incrível, a ponto de poder, segundo provisão régia de 26

de setembro de 1644, nomear o governador, contando apenas

com aprovação do, então, governo central da Bahia. E assim o

fez no ano seguinte elegendo Duarte Correa Vasqueanes no

lugar do falecido governador Luis Barbalho Bezerra.

Por decreto de 6 de julho de 1647, Dom João IV amplia

suas prerrogativas, de forma que poderia a cidade fazer as

vezes de Capitão-Mor na ausência do governador e do Alcai-

de-Mor.71

Seus respectivos cidadãos passam a gozar dos

mesmos privilégios e prerrogativas de fidalguia daquela carta

régia concedida aos cidadãos do Porto em 1o de junho de

1490. Segundo esta, não poderiam ser “metidos a tormentos

por nenhuns malefícios que tenham feito”; não poderiam “ser

presos por nenhum crimes, somente sobre suas homenagens

(…) e que possam trazer e tragam quais e quantas armas

lhes prouver de noite e de dia”; também não deveriam ser

“constrangidos para haverem de servir em guerras, nem

outras idas por mar, nem por terra (…) nem lhes tomem

–––––––––– 71 BICALHO, Maria Fernanda Baptista. As câmaras ultramarinas e o governo do Impé-

rio. Op. cit., p. 198.

Page 48: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

48

suas casas de moradas, adegas, nem cavalariças, nem suas

bestas de sela nem de albarda, nem outra nenhuma cousa

do seu contra suas vontades”.72

A partir dos setecentos a Praça do Rio de Janeiro come-

çou a transformar-se no principal centro comercial da Améri-

ca Portuguesa e também de outras partes do ultramar. Crescia

a importância de seu porto e abastecia largamente de merca-

dorias a região das minas, o que promoveu o crescimento na

arrecadação de impostos, de forma que em meados do século

XVIII, a Câmara Municipal carioca passa a administrar “par-

te significativa dos impostos ultramarinos, o que reforçaria o

papel da cidade como principal praça mercantil no Ultra-

mar”.73

O próprio título de Ilustríssima, concedido por D.

Pedro I, deveu-se ao apoio da mesma no desfecho do proces-

so de independência.74

A este crescente processo valorativo acompanha o inte-

resse por parte da Coroa. Na medida em que a cidade crescia

em importância, avolumava-se o desejo daquela por aumentar

sua força decisional sobre as elites locais. Os poderes locais

caminhavam de maneira autônoma, porém, não se autogover-

navam. A coroa estava fragilizada, como vimos, pela frag-

mentação política e administrativa, além de ocupar-se demo-

radamente com o processo de restauração e consolidação da

dinastia dos Bragança (1640-1750).75

Evidente, não faltaram tentativas centralizadoras em

meio a este quadro de precedência das elites locais. Nos últi-

mos anos dos setecentos a Coroa aumentou gradativamente o

poder do Governador do Rio de Janeiro. Aos 2 de março de

–––––––––– 72AHU, Rio de Janeiro, Documentos Catalogados por Castro e Almeida, N. 334. In: Ibidem,

nota 18. 73FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 78. 74GOUVEA, Maria de Fátima Silva. Op. cit., p. 297-330. 75MONTEIRO, Nuno Gonçalo Freitas. A Consolidação da Dinastia de Bragança e o Apo-

geu do Portugal Barroco: centros de poder e trajetórias sociais. In: TENGARRINHA,

José (Org.). Op. cit., p. 205-226.

Page 49: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

49

1689 os governadores do Rio de Janeiro poderiam, indepen-

dentemente do governo central da Bahia, prover os postos de

oficiais da Milícia e das Ordenanças. Em 1693, o Governador

Antônio Pais de Sande recebeu ampla jurisdição sobre os

assuntos relativos às minas do sul e Artur Correa de Sá (1697-

1702) recebeu, anos depois, a investidura de Capitão-General,

o que aumentou seu poder sobre os negócios da capitania.

Ainda em seu governo, mais especificamente em 9 de novem-

bro de 1699, o respectivo governador do Rio de Janeiro e seus

sucessores ganhavam jurisdição sobre a Colônia do Sacra-

mento. Após 1711, com a invasão francesa, as despesas

com a defesa da cidade passaram a ser custeadas pelos

cofres régios, assim como a construção de obras públicas

(quartéis, fontes, aquedutos, armazéns…) o que acarretou

no enfraquecimento administrativo, e consequentemente

político, do Senado do Rio.76

O coroamento deste processo de resistência e assimila-

ção dá-se com o apogeu do despotismo esclarecido em Por-

tugal, na qual o governo de Dom José I, levado a cabo por

Pombal, assume uma postura reativa diante da enfraquecida

autoridade régia. Em 1770, Pombal revoga a prerrogativa do

Senado da Câmara carioca de administrar os negócios públi-

cos na ausência do vice-rei e do Governador. Para tanto,

optou por um governo temporário, formado por três mem-

bros, a saber: o bispo ou decano, o Chanceler da Relação e o

oficial de posto mais alto do exército.77

A fim de cercear os

poderes conselhios, a Coroa cria o cargo de Juiz de Fora,

atribuindo-lhe a presidência da Câmara, este cargo seria o

braço forte da Coroa sobre as elites locais. Oficial letrado

aplicaria o direito veiculado ao poder central. O cargo tem

sua criação no Rio de Janeiro em 1703 e correspondia, por-

–––––––––– 76BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras municipais no Império Português: o exemplo

do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 251-580. 77SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Op. cit., p. 490.

Page 50: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

50

tanto, à necessidade da coroa intervir na administração e nas

finanças,78

entregues, até então, plenamente à elite da terra.

Constituía-se, portanto, no principal agente de controle

das municipalidades. Sabemos que “os Juízes de fora, ainda

que fossem esses instrumentos do poder real de que tanto se

fala, só existiam, até finais do século XVIII, em cerca de 20%

dos Conselhos”.79

Isso se deve ao fato do apego das munici-

palidades às suas respectivas autonomias jurisdicionais,

podendo, até mesmo, “impedir a entrada dos magistrados

régios a cargo de quem estava inspecionar o governo local”.80

Cabia-lhes “julgar e dar sentenças, isto é, resolver litígios

entre partes desavindas, ele é um agente da administração e

um executor de suas providências”.81

Com relação ao Senado

do Rio de Janeiro, a ele caberia promover o reordenamento

político-administrativo em torno da realeza lusa. No entanto,

o Juiz de Fora não era o único funcionário régio e agente do

poder central com esta incumbência. Outras duas funções

concorriam a este fim: o Corregedor e o Provedor.

O Corregedor e o Provedor poderiam escolher oficiais e

fiscalizar a contabilidade da Câmara.82

A funcionalidade recebia

sua razão de ser na intervenção direta da Coroa sobre a autono-

mia das municipalidades, garantindo seus interesses. Ao Prove-

dor cabia a cobrança de outros tributos régios. Por meio das

audiências de correição, instrumento de acompanhamento das

câmaras, que deveria ser feito anualmente, o Corregedor ouvia

os oficiais camarários e os inquiria sobre as atividades do Sena-

do. Os assuntos mais comuns relacionavam-se a posturas, pesos

e medidas, fiscalização do comércio, frequências dos Vereado-

res às sessões da Câmara, eleição de Almotacés e, enfim, sobre

–––––––––– 78BICALHO, Maria Fernanda Baptista. As câmaras Ultramarinas e o Governo do Impé-

rio. Op. cit., p. 200. 79HESPANHA, António Manuel. Op. cit., p. 123. 80Ibidem, p. 123-124. 81PRADO Jr., Caio. Op. cit., p. 319. 82SOUZA, Avanete Pereira. Op. cit., p. 314-317.

Page 51: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

51

as rendas, item de exigência crescente e minuciosa durante o

período pombalino. Na prática, contudo, o poder do Provedor

não parece ter efetivado aquela intervenção necessária à racio-

nalização dos reditos camarários. Sua presença não parece con-

dizer com sua responsabilidade. Devendo cuidar das terças e

receitas municipais diversas, oriundas de impostos e aforamen-

tos, pouco se percebe a presença deste agente real no processo

arrecadatório. O que talvez fosse uma dificuldade na realização

de seus deveres foi o fato de que estes magistrados deveriam

atender a toda Comarca executando diversas tarefas e socorren-

do colegas de outras comarcas em matéria de justiça.

Embora a Coroa buscasse maior ordenamento e organi-

zação administrativa, nota-se, ainda no período pombalino, a

característica confusão de atribuições, de forma que estes

agentes do poder central, em momentos diversos se viam

envolvidos com assuntos de natureza variada. O Provedor,

por exemplo, com relação ao Rio de Janeiro, era também o

dirigente máximo da Santa Casa de Misericórdia, o que lhe

garantia uma posição prestigiosa83

e, decerto, dividia seu

tempo como agente régio responsável pelos impostos e fisca-

lização das contas municipais. Em meio ao processo que objetivava a centralização

administrativa por parte da Coroa, seria impróprio afirmar-mos que a eficácia de tais ações foi conforme a vontade do poder régio. Embora o perfil desta elite local tenha inclusive se alterado com a mão forte da Coroa sobre ela, não devemos nos esquecer que, apesar de tudo, eram as municipalidades portadoras de uma tradição fortemente alicerçada nas bases de uma autonomia que lhe permitiu, inclusive pela distância da metrópole, a formação de um ethos camarário colonial, entendido como um modo de ser regrado no falar, nas mesu-ras, etiquetas e privilégios próprios da vida na colônia. Assim, esta herança de mediação do poder real, mas, com ali-

–––––––––– 83GOUVEA, Maria de Fátima Silva. Redes de poder na América Portuguesa: o caso dos

homens bons do Rio de Janeiro, ca. 1790-1822. Op. cit., p. 297-330.

Page 52: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

52

cerces no poder local não desapareceram do imaginário popu-lar, nem dos anseios da aristocracia. Não por acaso a popula-ção sentia o poder local como uma influência decisiva em suas vidas. Situação fácil de compreender uma vez que as câmaras regulavam e ordenavam toda a vida social, econômi-ca e política de suas localidades.

O período centralizador, no entanto, demonstrou-se in-

capaz de abafar inteiramente o poder local, fortemente pre-

sente, por exemplo, no processo de independência. Foi com o

apoio das municipalidades que D. Pedro I na década de 1820

estabeleceu a autonomia política do Brasil, sem dúvida algu-

ma, uma vitória do poder local, que se legitima o novo sobe-

rano, fortalece sua autoridade tradicional por meio de um

novo contrato social de base constitucional;84

notando-se a

influência daquela municipalidade carioca, cuja proximidade

com o monarca e importância colaborou na efetivação do

processo de independência e autonomia política. Visto isso,

cabe-nos agora discutir quem eram estes oficiais que ocupa-

vam os cargos junto ao Senado da Câmara.

1.3. Um perfil dos homens bons

A elite camarária, fundada inicialmente no grande pro-

prietário rural, estende à urbe seus domínios e acumula o que

há de comum em todas as aristocracias: riqueza, poder e auto-

ridade.85

Tem por características essenciais o orgulho e a tra-

dição familiar e religiosa. Para exercer os ofícios de gover-

nança disponíveis nas respectivas municipalidades, os indiví-

duos, desejosos de participação política, deveriam se mostrar

aptos ao seu exercício. Esta aptidão estava vinculada ao pre-

dicado da cidadania. Mas quem era cidadão na sociedade

carioca dos oitocentos em seu primeiro quartel?

–––––––––– 84Cf. SOUZA, Iara Lis Carvalho. A adesão das câmaras e a figura do Imperador. Rev.

Bras. Hist. 1998, vol. 18, no. 36, p. 367-394. ISSN 0102-0188. 85PRADO Jr., Caio. Op. cit., p. 289.

Page 53: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

53

Cidadãos eram aqueles que, por participarem do gover-

no local, nas câmaras municipais, recebiam privilégios,

honras, mercês do rei de Portugal. Tratava-se de uma socie-

dade organizada nos moldes do Antigo Regime, hierarqui-

zada e excludente e, sobretudo, escravista. 86

“Esperava-se que esses homens bons fossem donos de

propriedades, residentes na cidade, incontaminados por ori-

gens artesãs ou por impureza religiosa ou ética”.87

Só era

considerado cidadão aquele possuidor de determinada quan-

tidade de bens. Constituía, portanto, um grupo seleto de indi-

víduos, famílias tradicionais, cuja riqueza identificava hierar-

quicamente e nobilizava grupos familiares referendados ao

mundo da ordem,88

opostos a todo aquele conjunto de des-

classificados, indivíduos livres e pobres, compostos por for-

ros, índios assimilados, brancos pobres e mestiços; que eram

os não-enquadrados no mundo da ordem vigente. Estes

“homens livres e pobres encontravam-se desvinculados de

modo direto das atividades que conferiam sentido à ocupação

na ordem legada pela Colônia”.89

–––––––––– 86BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O que significa ser cidadão nos tempos coloniais.

In: ABREE, Marilia; SOIHET, Rachel. Ensino de História: conceitos, temáticas e metodo-logia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, FAPERJ, 2001, p. 139.

87SCHUWARTZ, Stuart T. O Brasil Colonial, c. 1580-1750: As Grandes Lavouras e as

Periferias. Op. cit., p. 405. 88Neste trabalho, pensamos a noção de “ordem” como aquela que norteia o mundo do governo

e do trabalho, sem querer negar a clássica conceituação de Ilmar Rohlof de Mattos, em O tempo Saquarema. Entendemos que o mundo da ordem engloba o mundo do trabalho, dá-lhe sentido, significado e ordenamento social. Ele está, portanto, organizado segundo uma deter-minada representatividade, pensada por aqueles que governam e dão significado, também, à desordem, mundo avesso ao concebido como ordenado. A desordem é formada pelos não-en-quadrados, ou seja, todos aqueles que não possuem lugar específico na ordem social estrutu-rada. Neste sentido, não estamos negando a classificação feita por Ilmar, mas identificando estes dois mundos, que se contrapõem àquele modo de ser deslocado da realidade concebida. Ordem e desordem constituem duas forças contrárias em constante conflito, ambas com o mesmo significante, pois, a desordem ganha significado a partir de alguma concepção estrutu-rada de ordem. No entanto, como veremos mais adiante, a desordem de alguma forma legi-tima a ordem dada, uma vez que alimenta desejos nos dominados, próprios daqueles que ordenaram a estrutura social vigente. Confira o exposto na visão de Ilmar: MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 2004, p. 122-144.

89Ibidem, p. 135.

Page 54: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

54

Para eles, “a mais vil canalha”,90

não havia trabalho dis-

ponível, uma vez que eram os negros cativos que trabalhavam.

Por não terem dinheiro, fecha-se o círculo vicioso e degradante

do mundo da desordem. O mundo da ordem, por sua vez, era

composto pelos proprietários de terra e seus cativos.91

“Na

primeira metade do século XIX, o trabalho escravo predomi-

nava francamente no Rio de Janeiro, não só no meio rural como

no urbano”.92

Tudo aquilo que parecia desprezível ao homem

branco era função dos escravos. Reside aqui a identificação do

trabalho com a escravidão, fruto perverso de três séculos de uti-

lização da mão de obra cativa, que gerou uma ideologia alta-

mente excludente. De forma que possuir um escravo, além de

fomentar um meio de renda, já que ele trabalhava pelo seu se-

nhor, também se adquiria certo capital simbólico. Entre os anos de 1790 e 1830 no Rio de Janeiro quase

todos os homens livres detentores de bens a legar possuíam ao menos um escravo. “Nunca menos de 2/3 dos mais pobres inventariados do agro e da urbe carioca detinham escravos”.

93

Isso se deve ao fato da mão de obra escrava ser utilizada em todos os setores da vida urbana. “A esmagadora maioria dos habitantes possuía pelo menos um escravo, ou uma escrava, encarregada dos afazeres domésticos. Os que escapam a esses serviços são enviados à rua pela manhã, para trabalharem por sua própria conta e obterem o máximo de rendimento possí-vel”.

94 Este testemunho de James Hardy Vaux, escritor inglês

que por estas bandas esteve em 1807, indica mais que apenas

–––––––––– 90SCHUWARTZ, Stuart T. O Brasil Colonial, c. 1580-1750: As Grandes Lavouras e as

Periferias. Op. cit., p. 134. 91PRADO Jr., Caio. Op. cit., p. 281-283. 92MARTINHO, Lenira Menezes, GORENSTEIN, Riva. Negociantes e Caixeiros na Socie-

dade da Independência. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e

Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Edito-ração, 1993, p. 91.

93 FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 124. 94VAUX, James Hardy. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Op. cit., p. 305.

Page 55: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

55

o valor econômico que o escravo poderia gerar, mas o status que adquiriam seus proprietários. “Pode-se argumentar que os mais pobres (…) possuam escravos menos em função de seu baixo preço do que pela força simbólica do „ser senhor de escravos‟”.

95 Não possuí-los significava estar fora daquilo

que se concebia por boa sociedade, correndo o risco de tor-nar-se, portanto, indivíduo de segunda categoria. Quem não tivesse um escravo era porque, simplesmente, não podia pagar por ele, logo, era considerado desclassificado.

A marcante dependência da escravidão reitera, portanto, uma hierarquia que se norteia à sombra do trabalho compulsó-rio, de forma que a ociosidade ganha ares de fidalguia e funcio-na como instrumento de inclusão subordinada da massa cativa e, sobretudo, exclusão daqueles homens livres pobres, marginali-zados como indivíduos de segunda categoria. Pierre Sonnerat nos dá boas indicações deste sinal de dignidade, que era o ócio.

A ociosidade, a propósito, passa, entre eles, por sinal de dignidade (…) Todos querem ser nobres e gostam de mos-trar desprezo pelas atividades produtivas, como se o traba-lho honesto tornasse o homem menor. Eles levam tal com-portamento tão longe que coisas simples como dar ordens aos escravos e fiscalizar o seu trabalho parecem-lhes con-trárias à grandeza e à opulência que ostentam.

96

Não era incomum vislumbrar um escravo carregador,

levando apenas um lápis de cera para seu contratante97

ou mesmo encontrar homens brancos ostentando unhas compri-das para mostrarem que não exerciam nenhum tipo de traba-lho manual.

98 Também as mulheres, que nunca saíam sozi-

nhas, eram incapazes de carregar seu próprio lenço, tarefa que confiavam às suas acompanhantes.

99 A identificação do

trabalho com o escravo é, portanto, resultado do abuso da

–––––––––– 95FRAGOSO, João, FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 124. 96SONNERAT, Pierre. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Op. cit., p. 211. 97 DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo. Círculo do

Livro, s.d., p. 196. 98FRAGOSO, João, FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 124. 99DEBRET, Jean Baptiste. Op. cit., p. 196.

Page 56: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

56

mão de obra cativa e do valor ideológico que atribui à pro-priedade de terras e “almas” uma posição de destaque social. Uma vez adquirido um escravo, o afortunado cidadão “em-prega filosoficamente o resto da vida na monotonia dos pas-satempos habituais”,

100 da qual exclui o trabalho e vive a

bonança. Não podemos perder de vista que “nas sociedades pré-industriais, a riqueza mais respeitada era aquela que não havia sido conquistada pelo esforço, aquela pela qual não era preciso trabalhar”.

101

Entendemos, a partir da identificação ócio/dignidade, a

exclusão imposta pelas câmaras aos artesãos e comerciantes de

modo geral. Todo aquele que não ostentasse a desocupação

voluntária por estilo de vida era povo, ou seja, constituinte

daquela “massa da nação sem direitos pessoais”.102

Estava

negado a eles o direito à cidadania. Todos “os mercadores, os

artífices, os pequenos lavradores, os trabalhadores de qualquer

ordem, os foreiros, os colonos, os agregados, bem como toda

essa patuleia de mestiços, formigante nas bases da população

colonial, nas cidades e no campo”,103

contrapostos à nobreza

da terra, os “magnatas” locais. Acusações a oficiais da Câmara

de exercer algum trabalho manual era considerado ofensivo à

dignidade da municipalidade. Na Câmara Municipal de São

Paulo em 1637, o procurador Manuel Fernandes Gigante, foi

suspeito de mecanicismo.104

Prontamente declarou-se inocente

do “delito”. No ano anterior, o Alcaide Domingos Machado,

mesmo exercendo o ofício camarário, permanecia a vender pão

e vinho. Por isso foi repreendido e ordenado que “usasse da

nobreza que Sua Majestade lhe dava”.105

–––––––––– 100DEBRET, Jean Baptiste. Op. cit., p. 179. 101ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da

aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 91. 102ABREU, Capistrano de. Op. cit., p. 57. 103VIANA, Oliveira. Op. cit., p. 1041. 104Ser suspeito de mecanicismo significa incorrer em algum tipo de função que exija esforço

físico, trabalho com as próprias mãos. 105FREYRE, Gilberto. Op. cit., p. 1040.

Page 57: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

57

Os artesãos possuíam uma representatividade bastante

fraca. Havia uma pequena quantidade concentrada na cidade,

estando em maior número no campo. Já o comerciante, de-

pendendo do movimento do caixa, fazia luzir alguma espe-

rança nobiliária. Surge então a distinção entre os “homens de

negócio”, comerciantes de exportação e importação; e os

“mercadores de loja”, comerciantes varejistas ou lojistas. Sua

proximidade com os artesãos e sua constituição étnica, em

sua origem pelo menos, descendente de cristãos novos, ju-

deus,106

portanto, era suficiente para efetivar a não ascensão

social deste grupo bem identificado, mas, que no século XIX

financiará sua nobreza. Exigência rigorosa que se fazia primaz na concepção de

cidadania e, decerto, numa possível adesão a algum cargo na Câmara Municipal era a noção de pureza étnica. Os cidadãos, homens aptos para receberem a honra de servir em algum car-go disponível na municipalidade, haviam de ostentar o status de descendência daqueles colonizadores da terra e estarem incontaminados de “sangue infecto”.

107 A Coroa estabelecia

critérios de inclusão e exclusão baseados nas relações matri-moniais. Havia uma total incapacidade de um mulato desposar uma branca nas altas rodas da sociedade. “O mais opulento mulato é inferior ao branco, ele o sabe, e lhe será lembra-do”.

108 A eles era imposta uma série de restrições: não podiam

ser eleitos, nem candidatar-se aos cargos de eleição popular. Estava restrito a eles o acesso à posição de jurado e com mais rigor os cargos de deputado, senador, juiz, delegado, subdele-gado, magistrado… e, até mesmo, a certos cargos eclesiásticos, como o bispado.

109 Esta questão, que era levada a cabo na

–––––––––– 106SCHUWARTZ, Stuart T. O Brasil Colonial, c. 1580-1750: As Grandes Lavouras e as

Periferias. Op. cit., p. 407-408. 107GOUVEA, Maria de Fátima Silva. Redes de poder na América Portuguesa: O caso dos

homens bons do Rio de Janeiro, ca. 1790-1822. Op. cit., p. 297-330. 108COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia, 4a ed. – São Paulo: Fundação Editora da

UNESP, 1998, p. 334. 109Ibidem.

Page 58: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

58

cidade do Rio de Janeiro devido sua importância econômica e política como lócus principal da colônia e, posteriormente do império, não era tão rigorosa nas regiões mais periféricas.

A mestiçagem era comum nas camadas menos afortu-

nadas, cujos brancos, não resistindo à “indigna” e sedutora

cor, contribuíam com o aumento do número de mulatos que

crescia a cada dia na colônia. A região mineradora padecia

com a falta de mulheres brancas. Este fator somado à libido

lusitana contribuíra com e crescimento de mulatos que naque-

la região assumiam os cargos públicos e andavam armados,

condição própria e exclusiva dos cidadãos, que estava for-

malmente negada aos negros e mulatos.110

“O fato de a maio-

ria dos homens brancos ter filhos mulatos, legítimos ou não,

constituiu-se um problema social e administrativo para gera-

ções em sucessão. Pela lei, sangue de negro era um obstáculo

para ocupar qualquer cargo”.111

Não faltou legislação que

proibisse o costume, que se tornou inútil diante da força do

hábito.112

Decerto, na cidade do Rio de Janeiro, não faltavam

homens de titular bondade que se acostavam a suas cativas.

No entanto, os filhos naturais pardos já estavam impedidos

por lei, nem sempre levada à risca, como vimos, de herdarem

a posição de seu progenitor. “A legitimação dos filhos natu-

rais dos nobres era muito mais complexa na legislação portu-

guesa então em vigor, em grande parte devido à variedade de

bens em questão: bens da Coroa, bens vinculados, bens li-

vres, honras e mercês por serviços prestados etc.”113

Sem dú-

–––––––––– 110BOXER, Charles R. Op. cit., p. 191-196. 111Ibidem, p. 192. 112Sobre casamento, adultério e família ver: LIMA, Lana Lage da Gama (Org.). Mulheres, Adul-

teros e Padres. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1987. TORRES-LONDOÑO, Fernando. A Outra

Família: concubinato, Igreja e escândalo na Colônia. São Paulo: Loyola, 1999. SERBIN, Kenneth. Padres, Celibato e Conflito Social. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

113SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida Privada e Quotidiana no Brasil na Época de

D. Maria I e D João VI. Lisboa: Editorial Estampa, 1993, p. 196.

Page 59: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

59

vida alguma, controlar o acesso de negros e mulatos aos car-

gos de governança significa restringir o acesso à representati-

vidade. Como um Estado de caráter escravista poderia deixar-

se representar por aqueles que condenava ao trabalho com-

pulsório? Vale lembrar que nesta categoria de “sangue infec-

to” incluíam-se os judeus e também os mouros.

Outra camada populacional foi excluída de exercer ofí-

cios na Câmara Municipal, pelo menos na carioca: os reinóis.

Por serem as câmaras o lócus do poder local, espaço privile-

giado da nobreza da terra brazilis, honrosa e ostentadora de

seu passado, cor e catolicidade, pouco espaço sobrava àque-

les fora deste grupo tradicional. “Cabeças do povo”, esta elite

privilegiada, não poderia permitir que portugueses engrossas-

sem suas fileiras, com medo de maior interferência de ideias

metropolitanas centralizadoras que ameaçassem a autonomia

dos poderes locais. Este grupo, formado pelas principais

famílias aristocráticas e dirigentes apoiava-se ainda mais no

sentimento antilusitano de uma população que se sentia mar-

ginalizada pelos reinóis que preferiam empregar patrícios

recém-chegados, ou de lá trazidos com esta finalidade, do que

conceder o lugar aos homens brancos pobres destas paragens.

Quanto à forma de eleição dos membros que compõem

as câmaras, o Registro de Lei, de 1o de outubro de 1828, é

bastante esclarecedor. Tomaremos por base este decreto de

Dom Pedro I, tendo em vista que o modo de se proceder com

a dita eleição ocorreu ao longo de nossa história de maneira

variada, mesmo que não tenha sido exacerbada, mas, de for-

ma distinta no tempo e no espaço. Neste sentido, este registro

de lei é bastante útil uma vez que se propõe a todo território

brasileiro, corresponde a nosso corte temporal e nos dá uma

boa visão de conjunto sobre a eleição dos concelhios em seu

procedimento e formação.

Deviam-se as câmaras das cidades oitocentistas se

comporem de nove membros e um secretário. A eleição era

feita a cada quatro anos, no dia sete de setembro em todas as

Page 60: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

60

paróquias. Podiam eleger-se Vereadores todos os que podiam

votar dentro dos critérios que exaustivamente já nos detive-

mos. No domingo que precedia pelo menos em quinze dias à

eleição, o Juiz de Paz114

da paróquia publicava e afixava nas

portas da Igreja Matriz e das respectivas capelas a lista de

todas as pessoas que tinham o direito de votar. Reunidos os

cidadãos no dia e no lugar orientados, cada votante entregava

ao Presidente uma cédula que continha o número de nomes

de pessoas elegíveis, devendo estar assinada no verso. Os que

não podiam ir pessoalmente, por impedimento grave, deviam

mandar as cédulas. Todo o cidadão com direito de votar que

não cumprisse sua obrigação seria multado em dez mil réis,

dinheiro que deveria ser destinado às obras públicas.

A apuração ocorria de “portas abertas” e uma vez con-

tados os votos, os eleitos pela maioria dos distritos ocupa-

vam os cargos de Vereadores. Estes deveriam receber a Ata

de sua eleição, ocupando-se no dia primeiro de dezembro de

enviar à Câmara os seus títulos para serem conferidos em

sua legalidade e inteireza. Só então poderiam tomar posse e

servir por quatro anos, podendo ser reeleitos com o único

impedimento de não poderem servir na função conjunta-

mente no mesmo ano, e na mesma cidade parentes próxi-

mos, como pai e filho; irmãos, ou cunhados, neste caso, “em

quanto durar o cunhadio”. Situação na qual se empossava o

que tivesse maior número de votos. A partir de então a câ-

mara nomeava os empregados: Secretário, Escrivães, Procu-

rador, Porteiro, ajudantes, se houver necessidade, e fiscais

de diversas coisas.115

–––––––––– 114O Juiz de Paz, posto criado em 1827, é “um magistrado sem formação específica e sem salá-

rio, eleito pela população para exercer nas paróquias a função de juiz em casos menores, visando, sobretudo, a conciliar os litigantes. Causando grande polêmica desde sua instituição,

os juízes de paz eram, segundo Thomaz Flory, símbolos do próprio liberalismo brasileiro do

Primeiro Reinado, cioso do fortalecimento do poder local e da maior autonomia de distritos e províncias, sendo por isso combatidos pelos conservadores”. (VAINFAS, Ronaldo (org.).

Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 452). 115Arquivo Histórico da Cidade de Florianópolis, Caixa 11, livro 54, folhas 1-4v.; 13v-14.

Page 61: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

61

Havia, no entanto, outras funções a cargo da Câmara,

como Capitão do Mato, Demarcador, Alferes de Ordenanças,

Tabelião, Inspetor de quarteirão, Promotor Público, Agente

de Portuário, Administrador das obras públicas, Professor pú-

blico,116

Avaliadores117

de diversas mercadorias. De modo ge-

ral, os Vereadores revezavam-se nas diversas funções e ha-

via apenas dois cargos fixos, a saber: o Presidente da Câ-

mara e o Escrivão. Quando a função parecia muito indigna,

como capitão do mato por exemplo, era nomeado outro indi-

víduo, um funcionário e não um Oficial da Câmara.

Estes homens bons dedicavam-se ao abastecimento de

gêneros, água, definição de preços, fiscalização do comércio,

da higiene pública, organização de festas e divulgação das

mesmas. Para estes eventos festivos não faltavam roupas dis-

tintivas, incluindo capa e vara. No final do século XVIII e

início do XIX esta nobreza da terra estava ornada de diversos

títulos, militares e religiosos, predominando as conexões

familiares. Quanto à sua ocupação primária, temos negocian-

tes e senhores de engenho ocupando a maioria dos cargos,

conforme análise de Gouvêa. Na pauta eleitoral de 1800, por-

tanto, temos um total de 63 indicações, destes, 26 eram nego-

ciantes – 15 de grosso trato – totalizando 41,5% do total.

Apenas 17,5%, ou seja, 11 indivíduos eram senhores de

engenho e 1,6% de advogados. Em 1806, o número de

negociantes aumentou para 52% de um total de 27 pessoas

listadas e em 1815 54 % de 66 pessoas indicadas. Temos,

portanto, a mudança de um perfil nos Conselhos, cuja predo-

minância de senhores de terra e engenhos é substituída pelos

negociantes, aqueles que, neste momento histórico, detinham

capital econômico e souberam angariar outros capitais com o

–––––––––– 116AHCF, cx. 11, lv. 33, f. 65v, 66, 67, 83v., 84, 84v., 85, 85v., 68v., 69, 69v., 92v.-94v. e cx.

11, lv. 44, f. 64v., 65, 66v., 83, 128v,164v. 117Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, códices 6-1-10; 6-1-11; 6-1-12; 40-1-27.

AHCF, cx. 11, lv. 33, f. 41v., 42v., 50, 51, 53, 116v., 117, 117v., 118v., 119.

Page 62: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

62

bom uso das finanças a serviço d‟El-rei. Após 1822 quase não

se observa mais a indicação referente à primeira ocupação,

sendo substituída pelas titularidades.

A mudança de perfil da Câmara Municipal carioca se

deve, em grande parte, ao processo de centralização desen-

volvido após 1750 e à “homogeneidade ideológica” promovi-

da pela coroa,118

conformando, assim, a nova nobreza, não

mais da terra, substituída em grande parte pela de toga, ao

projeto centralizador metropolitano. Aqueles nobres não con-

formados, como vimos anteriormente, foram perseguidos.

Com a exigência de participação política dos comerciantes e

negociantes, intensificada nos oitocentos, a metrópole encon-

trava nova perspectiva de fortalecimento da política de cen-

tralização. Promovendo uma outra classe à cidadania, a

Coroa poderia formar uma elite mais conforme seus interes-

ses. E, de fato, isso foi feito por meio de uma socialização

que promovesse ocupação e carreira, ou seja, hierarquização.

Esta socialização viabilizou-se por meio da educação da nova

elite, que, de modo geral, era formada em Coimbra, princi-

palmente nos cursos de direito.

A educação era parte essencial neste projeto de homo-

geneização ideológica, cujo treinamento iniciado em terras

lusas, mantinha uma formação essencialmente arcaica e in-

comunicável com o mundo científico. Permanecendo conser-

vadora, tal educação dava o tom da nova melodia a ser toca-

da e dançada nos trópicos. Neste sentido, as funções pú-

blicas desta nova elite sofriam, desde a academia, um treina-

mento específico segundo a carreira que se seguiria. A educa-

ção, como instrumento de socialização e treinamento para

uma carreira conforme a nova política centralizadora foi

essencial na formação desta nova elite política brasileira no

início do século XIX. No entanto, não houve uma integração

absoluta entre Estado e nobres de toga, que se dividia muito

–––––––––– 118Cf. CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., p. 11-142.

Page 63: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

63

“entre a representação dos interesses do Estado e a represen-

tação dos interesses de classes”.119

Esta política correspondia

ao esforço do poder central em reordenar a administração no

ultramar, segundo seus interesses e promover a repactuação

entre o centro e a periferia.120

Uma organização tardia de um

habitus, fundado na autonomia, mais que consolidado. Não

por acaso serão as câmaras que apoiarão Dom Pedro I no

processo de independência política. Algo como uma contrar-

reforma centralizadora, uma retomada dos poderes locais, ou

pelo menos um anseio saudosista daquela autonomia nunca

mais revivida na sua integralidade.

Cremos ter sido possível demonstrar o quanto a cidade

do Rio de Janeiro cresceu em importância no desenrolar de

sua história a ponto de ocupar lugar de primazia no cenário

imperial. Evidenciou-se neste quadro o caráter autônomo da

Câmara e como o poder local se constituía, incluía e excluía

segundo uma série de capitais distintivos. Por fim, a mudança

no perfil da elite camarária se deve ao reordenamento forçado

promovido pelo processo de centralização desenvolvido pela

Coroa após 1750. Passamos agora, então, a abordar o poder

local em suas especificidades, de modo a precisar as diversas

funções e suas respectivas atribuições.

–––––––––– 119CARVALHO, José Murilo de. Op. cit., p. 140. 120ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Op. cit., p. 302-307.

Page 64: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

64

2

PODER LOCAL E REPRESENTAÇÃO

2.1. Câmara Municipal

e construção da realidade

O mundo colonial estava regulado segundo os interes-

ses hegemônicos de uma determinada elite que, em três sécu-

los de escravidão, produziram uma sociedade hierarquizada e

naturalmente desigual. A desigualdade racial e social fazia

parte daquela verdade legitimada. Tal representação da reali-

dade era a visão corrente na América Portuguesa. Até ex-

escravos, quando podiam compravam mais que sapatos, ad-

quiriam escravos. Entre 1743 e 1811, em Minas Gerais, cerca

de 14% dos proprietários de escravos eram forros.121

Isso

porque “a realidade não é um antes do conceito, é um concei-

to”, 122

e o mundo perde sentido fora da representação que

sustentamos da “realidade”.123

–––––––––– 121SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial

(1550-1835). São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 370. 122ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado.

Ensaios de teoria da história. Bauru, SP: Edusc, 2007, p. 60. 123SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro:

Contraponto, 2004, p. 9.

Page 65: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

65

Tudo está em função do pensamento, inclusive a reali-

dade social, construída segundo determinados interesses. Ao

criar-se determinada visão de mundo, define-se a percepção

de um dado conjunto de indivíduos, que, por sua vez, perce-

bem a realidade segundo aquele conjunto de critérios estabe-

lecidos como verdade. “Tudo o que o mundo encerra ou pode

encerrar está nesta dependência necessária perante o sujeito

(…) O mundo é, portanto, representação”.124

Sua função é a

de atualizar nas consciências uma determinada realidade pro-

duzida, formando-se, assim, a ligação entre as mentes e o que

deve ser pensado como real.125

Ela estabelece, portanto, a

ponte entre a visão e a interpretação da visão, de forma que o

que é visto é pensado a partir das lentes da representativida-

de. Daí se entende porque os brasileiros, de então, e portu-

gueses aqui radicados aceitavam “o sistema escravista como

um direito indiscutível e a mão de obra escrava como uma

necessidade para a manutenção da integridade econômica,

social e política do Brasil”.126

O desdobramento da representação é o desejo. Se o

mundo é o resultado de representações ele só o é mediante a

vontade que move o desejo para tal. O mundo é a concretude

de vontades hegemônicas que influenciaram a outros de for-

ma a condicionar a percepção de realidade. É o desejo que

move comportamentos e condiciona nossa visão de mundo.

Neste sentido, a vontade é o primeiro motor da representação.

O mundo como resultado de representações, ou seja, vonta-

des particulares de indivíduos ou grupos que foram legitima-

das por outros indivíduos e promovidas ao status de verdade

é, portanto, um constructo firmado em duas metades essen-

ciais, necessárias e inseparáveis: o sujeito pensante (indiví-

–––––––––– 124SCHOPENHAUER, Arthur. Op. cit., p. 9. 125JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia, 3a ed. Ver. e

ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 235. 126MARTINHO, Lenira Menezes; GORENSTEIN, Riva. Op. cit., p. 180.

Page 66: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

66

duo ou grupo) e o objeto social à qual se destina a estrutura

ideológica, ou seja, a sociedade entendida como aquele con-

junto de indivíduos que devem endossar determinada cosmo-

visão. Basta lembrarmos o desejo pelo título de senhor de

escravos. O que representa ser senhor de escravos na socie-

dade de corte carioca dos oitocentos? Status? Poder? Distin-

ção social? Tudo correspondia a uma determinada visão de

mundo construída sobre o trabalho compulsório.

O uso da mão de obra cativa, por sua vez, produziu

uma cultura que privilegiava a ociosidade. A identificação do

trabalho com a figura do negro enraizou-se e tornou-se parâ-

metro de estratificação social. Poucos eram os homens que

não possuíam escravos e quem não os detinha era considera-

do um indivíduo de segunda classe, isento da própria prerro-

gativa de cidadania. A força simbólica de ser reconhecido

como “senhor de escravos” mobilizava a sociedade carioca

do primeiro quarto do século XIX, onde não menos de 2/3

dos mais pobres detinham escravos,127

viviam dos braços

negros e dos louros de seu senhorio. A realidade, portanto,

existe também como vontade. Quem não era senhor de escra-

vos, desejava sê-lo. Este mundo pensado, norteado pelo dese-

jo, que é um condicionador de comportamento e que não está,

ainda, em conformidade com o real, pode atualizar-se na

medida em que concretiza a vontade. No entanto, indepen-

dente da concretização da vontade, esta é a priori uma forma

de legitimação da estrutura já existente.

Essa necessidade recíproca da legitimação produz com-

portamento e conduz a realidade, determinando os indivíduos

no tempo e no espaço. Por mais que a estrutura fomentada

por aquela elite local fosse arcaica e excludente, de alguma

forma ela promovia os indivíduos, hierarquizando-os entre

seus pares, que excluídos de um contexto mais amplo, distin-

guiam-se entre si. Podemos perceber esta questão nos dois

–––––––––– 127FRAGOSO, João, FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 124.

Page 67: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

67

mundos antagônicos e engranzados, como o são livres e es-

cravos. Muitas das associações religiosas de escravos funcio-

navam como uma forma de distinção social, enfocando suas

vidas sociais, principalmente daqueles escravos urbanos, com

maior grau de “liberdade”. Muitas vezes ocorria certa rivali-

dade entre as diversas associações, umas ligadas as religiões

africanas, os filhos de zambi, e outras ao catolicismo, filhos

do Deus cristão.128

As religiões que fortaleciam a vida cativa,

também os distinguia entre si.

A hierarquização que havia no interior das associações

religiosas cumpria a dupla função de salvaguardar e promover.

“Os negros dividiam-se nas irmandades segundo maior ou

menor enriquecimento. Rivalizavam-se crioulos e africanos,

abismos étnicos, sociais, econômicos separavam esses escra-

vos na cidade”.129

Seu papel é ambíguo, pois se fornecia aos

negros uma identidade étnica, possibilitando o próprio acesso à

liberdade e conhecimento de seus direitos, também hierarqui-

zava e distinguia.130

A própria forma de se tatuar existia como

distinção interpares e posicionamento étnico.131

Mesmo o rela-

cionamento dentro das senzalas, baseado no sexo e nas rela-

ções matrimoniais,132

no que se refere à divisão dos espaços ou

da legitimação de uma determinada liderança levavam em

condições alguns capitais simbólicos distintivos.

Quanto ao mundo livre, temos as diversas lutas por hie-

rarquização junto aos cargos de governança. Mesmo que um

indivíduo não pertencesse àquelas famílias aristocráticas e,

portanto, distinguir-se pela cidadania, ele poderia adquirir

algum capital social e simbólico assumindo cargos menores

–––––––––– 128KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo:

Companhia das Letras, 2000, p. 341-396. 129SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Op. cit., p. 101. 130Ibidem, p. 99-100. 131DEBRET, Jean Baptiste. Op. cit., p. 282. 132SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da

família escrava, Brasil, Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

Page 68: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

68

junto à Câmara. O próprio Avaliador de Escravos harmoniza

sua primeira ocupação com um cargo na municipalidade, o

que lhe garante alguns benefícios, que veremos a seu tempo

detalhadamente.

O processo de hierarquização só existe tendo em vista a

relação. Na medida em que os homens passam a se relacionar

entre si eles se verticalizam, incluem-se e excluem-se me-

diante o acúmulo de capitais convencionados por legítimos.

Neste sentido, a arte de governar é, decerto, e nada tem de

artístico nisso, a capacidade que determinado grupo tem de se

fazer representante dos demais indivíduos constituídos so-

cialmente e, portanto, legitimante de determinado ordena-

mento social. O real é concebido como aquilo que foi consen-

sual, por esta razão não se entende um homem branco na

sociedade de corte carioca exercendo atividades manuais.

Isso seria ilógico, incompreensível e leso à dignidade. Por

isso, todo cidadão deveria ter um escravo à sua disposição

para trabalhar de portas “a dentro” ou “a fora”.

Um determinado conjunto de juízos, que tendem a or-

denar a realidade, forma um sistema de verdades. A Câmara

Municipal a isso se propunha. A elite camarária, nobreza da

terra e senhores de escravos, possuíam uma determinada

mundo-visão que se aplicava à realidade colonial, construin-

do-a e garantindo sua reiteração temporal. Se for justo que

“todo conceito existe e tem valor apenas enquanto está em

relação (…) com uma representação”,133

as câmaras bem

souberam promover seu poder nas respectivas localidades. A

começar pelo desejo de muitos em obter o status de sua fun-

ção, o que promovia a legitimação do poder local, que versa-

va sobre tudo e ordenava a vida de todos segundo seus dita-

mes, disciplinando a vida coletiva.

Na colônia, o poder se personificava, fazendo com que

os indivíduos se tornassem possuidores e fontes emanadoras

–––––––––– 133 SCHOPENHAUER, Arthur. Op. cit., p. 74.

Page 69: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

69

de poder, detendo não apenas o poder político, mas também

um poder baseado na fortuna e na cultura. Basta lembrarmos

que esta elite política detinha os latifúndios – nobreza da terra

– ou mesmo o capital mercantil – nobreza de toga – estes,

com justa medida, donos de fortuna que viriam nos oitocen-

tos a ascender com títulos honoríficos. A Metrópole por vezes

contemporizava as duas facções,134

a primeira detentora do

capital simbólico e da tradição conquistadora, a segunda pos-

suidora de capital econômico. Quanto ao poder cultural, outra

questão já discutida por nós, a entendemos no contexto geral

da unificação desta mesma elite, que, principalmente após o

período de centralização administrativa encontra na educação

uma forma de manutenção do poder.

Cabia, portanto, às municipalidades através do discur-

so e manutenção do poder que lhes era atribuído em nome

d‟El-rei, criar a nova realidade daquela “selvagem terra”. Ao

idealizar o mundo colonial deveria a Câmara, enquanto poder

constituído, fomentar a vida e ordena-la de modo civilizado.

Ao editar posturas o que desejava a Câmara era, tão-somente,

regular o convívio, harmonizá-lo segundo seus critérios civi-

lizatórios. A própria introdução ao texto referente às Posturas

Municipais nos dá uma ideia deste discurso em prol do “bem

comum”, expressão quase sinonimizando à civilidade.

Ao dizer: “A Câmara Municipal (…) desejando promo-

ver (…) o bem público, promovendo e mantendo a tranquili-

dade, segurança e comodidade dos seos concidadãos…”135

não se refere a todos, apenas aos seus concidadãos. Ao editar

posturas, deseja preservar o bem-estar de seus pares, e orde-

nar o mundo do caos, daquela “gente miúda” que ameaça a

ordem estabelecida, ou seja, aquele constructo social que

incluiu alguns e excluiu muitos outros. O excluído era o

branco pobre. Ele não fazia parte deste ideal bem estruturado.

–––––––––– 134PRADO Jr., Caio. Op. cit., p. 296, 315. 135AGCRJ, 6-1-28: Projeto de postura (Escravos) em aditamento às de 11 de setembro de 1838.

Page 70: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

70

O mundo do governo e o mundo do trabalho, por sua vez,

constituem um único mundo: o da ordem.

Pensamos que os escravos, em seu mundo de trabalho,

também pertenciam, como vimos, ao mundo da ordem. Eles

estavam incluídos, mesmo que de maneira violenta e não

consentida, ao mundo considerado civilizado. O que era o

ladino senão um negro “civilizado”? Por isso valia mais. O

que o tornava mais valioso aos olhos do seu possível com-

prador era a própria civilidade que partilhava: falava o portu-

guês, possuía uma profissão e por vezes exercia atividades de

precisão. O mundo da ordem e da civilização incluía e

dependia do braço negro. A própria identificação do trabalho

com a escravaria fazia parte daquele discurso formador da

realidade colonial, parte integrante do conjunto de juízos

formadores da verdade sobre o mundo do trabalho e do

governo, ou seja, daquela ordem ou estrutura estruturan-

te.136

Esta ordena e identifica os indivíduos no campo social,

hierarquizando-os. Para que este ideário estruturado se torne

hegemônico e reitere-se temporalmente é necessário que seja

consentido.

Se pensarmos na realidade do Rio de Janeiro do sécu-

lo XIX veremos que este ordenamento racional estava mais

que consentido. É, portanto, uma estrutura estruturante,

pois passa a ordenar os indivíduos localizando-os social-

mente, incluindo e excluindo segundo seus critérios de

mais-valia. Que homem branco dos oitocentos não deseja-

ria um escravo? Quem não buscava ser reconhecido por

“senhor de escravos”? Quem não desejava a ociosidade?

Os próprios ex-escravos, quando podiam, adquiriam escra-

–––––––––– 136“Princípios geradores e organizadores de práticas e representações que podem ser objeti-

vamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a visada consciente de fins e o controle

expresso das operações necessárias para atingi-los, objetivamente “reguladas” e “regula-

res”, sem ser em nada o produto da obediência a regras, e sendo tudo isso, coletivamente orquestradas sem ser o produto da ação organizada de um maestro.” (BOURDIEU, Pierre.

Le sens pratique. Paris: Lês Éditions de Minuit, 1980, p. 88-89. In BONNEWITZ, Patrice.

Primeiras lições sobre a sociologia de P. Bourdieu. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003, p. 76-77).

Page 71: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

71

vos e sapatos, sinal mais que evidente de consentimento da

estrutura arcaizante. Excluídos, portanto, estavam os po-

bres desejosos de um status distante, mas, pulsante.

A lusofobia que atingirá a muitos nos oitocentos surge

desta inquietação, na qual lhes cabia apenas a indignidade do

trabalho manual, tremendamente disputado com os negros de

ganho ou mesmo sendo preteridos por patrícios de comer-

ciantes lusos que empregavam os recém-chegados ou de lá

trazidos já com esta finalidade. O que os homens de bem

temiam era este conjunto de desocupados, justamente pela

sua imprecisão nos quadros ideológicos estruturados. Se por

um lado eles eram influenciados pela verdade produzida e a

legitimavam, por outro, eles representavam uma ameaça a

esta mesma verdade que legitimavam.

Civilização137

é, portanto, um conceito que varia de

acordo com aquele conjunto de juízos estruturados e legitima-

dos. A verdade sobre o que vem a ser civilizado reside no con-

sentimento, de forma que a aparente harmonia social só é pos-

sível mediante a acedência dos indivíduos. Civilização e cultu-

ra estão interligadas e formam um todo estrutural. Isso porque

ser civilizado significa corresponder a uma determinada forma

de portar-se, falar, obedecer a regras de convivência, a posturas

sociais e a todo conjunto de regras fomentadoras do bom con-

vívio. Ser civilizado é corresponder a um modo de ser social

assumindo determinadas posturas como naturais, de forma que

agir diferente significa não ser civilizado. Há uma estética no

modo de ser civilizado, que obriga as pessoas a portarem-se

em sociedade. Esta atitude tende a distinguir socialmente,

promover o desejo e o consentimento. A observância dos

comportamentos airosos diferencia socialmente e estratifica.

Observar as posturas baixadas pela Câmara era, de alguma

forma, participar, mesmo que de maneira forçada quando não

–––––––––– 137ELIAS, Norbert. O processo civilizador, vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

1994, p. 23-29.

Page 72: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

72

livremente consentida, deste mundo civilizado. O mundo da

desordem era composto pelos “não-civilizados” ou não-en-

quadrados neste sistema de representatividades.

A lei, ou o ordenamento, intui as relações entre os

homens e os liga entre si.138

A identificação pejorativa de uns

em relação a outros reside na própria não adesão àquilo que

os uni: a norma. A lei ou as diversas posturas existem, ape-

nas, como parte do processo civilizatório. Elas estabelecem

as fronteiras entre o digno e o indigno, entre o bom e o mau.

É neste sentido que os indivíduos são classificados. “Nisso é

decisivo que a lei (…) produz o espaço da coisa política e

contém o violento-brutal, próprio de todo produzir”. 139

Ela

está em função de dado projeto civilizador e tende a fazer

com que os indivíduos se movam, no espaço social, conforme

a postura exigida. Só existe lei dentro de um acurado espaço

definido temporalmente. “O que está fora desse espaço, está

sem lei e, falando com exatidão, sem mundo (…) Está na

essência das ameaças…”.140

Eis a condição daquela gente

“incivilizada” e desordenada, “ralé de todas as cores”141

.

“Em si mesmas as regras são vazias, violentas, não fina-

lizadas; elas são feitas para servir a isto ou àquilo”.142

Burlá-

las faz parte das relações de poder, o que não ocorre sem a

devida punição prevista. Se a lei determina o convívio, ela

também prevê a punição ao não cumprimento da mesma. A

distinção entre civilizado e incivilizado está na observância de

uma instância de poder: a lei. O sistema punitivo existe em

função do não civilizado, ou seja, daquele indivíduo que não

consente com a verdade estruturada. A lei, quando não obser-

vada por simples consentimento, deve sê-la pela sua capacida-

–––––––––– 138ARENDT, Hannah. O que é política?. 5a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 113. 139Ibidem, p. 114. 140Ibidem., p. 123. 141MATTOS, Ilmar Rohloff. Op. cit., p. 135. 142FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 18a ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003, p. 25.

Page 73: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

73

de de coagir e isolar. A vigilância hierárquica143

no exercício

da disciplina deve promover a ordem em substituição ao caos,

adestrando os indivíduos para garantir a reiteração temporal do

constructo e, decerto, daquele determinado grupo de poder.

Promover um determinado comportamento esperado é

o que se ambiciona ao promulgar-se uma postura. “A disci-

plina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos

no espaço”,144

hierarquizando-os segundo a correspondência

que cada um apresenta à verdade estruturada. A punição sur-

ge como uma forma de controle social. Desde 1823, por

exemplo, havia uma postura proibindo a aglomeração de

negros capoeiras. “Dessa forma o papel do feitor cabia ao

Estado, que procurava manter a ordem disciplinando-lhe a

circulação e punindo com o chicote e com a prisão (…) os

infratores”.145

Mesmo o mundo da ordem estava obrigado à

observância, pois, a ordem que aí está pode ser subvertida

ou mesmo substituída por outra forma de ordenamento social.

Por isso a proibição ao mecanicismo junto aos oficiais cama-

rários.146

É preciso manter o corpo social coeso, com pena de

que o discurso se enfraqueça e perca legitimidade.

No que se refere aos oficiais da Câmara a questão se

torna imprescindível. O que é a municipalidade senão uma

sociedade de discurso, que deve conservar e produzir verda-

des segundo normas estritas?147

Se não houver zelo à realida-

de construída aquele grupo hegemônico corre o risco de per-

der sua posição, obrigando-se a proteger, defender e conser-

var a estrutura ideal. É por isso que cabia às câmaras proces-

sar e julgar os diversos crimes e infrações de suas posturas.

–––––––––– 143FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 2004, p. 143. 144Ibidem, p. 121. 145SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Op. cit., p. 102. 146FREIRE, Gilberto. Op. cit., p. 1040-1041. 147FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso, 11ª ed. São Paulo: Edições Loyola,

2004, p. 39-40.

Page 74: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

74

A própria capacidade de tributar é uma forma de poder

sobre os indivíduos. Por mais que oficialmente o discurso

apresente a tributação como uma forma de cuidar da comuni-

dade, zelando pela res publica, sabemos que a coisa pública

está ordenada segundo um conjunto hierárquico de valores

medidos conforme o ordenamento da verdade concebida e sua

preservação. Tanto é fato o exposto que uma das consequên-

cias ao não pagamento do imposto é a multa e posteriormente

o confisco de bens. Neste campo cabia à Câmara “administrar

(…) o pagamento de impostos perenes e temporários lançados

pela metrópole em ocasiões especiais, impor taxas ocasionais,

arrendar contatos, arrecadar „contribuições voluntárias‟ etc.”148

A ela também cabia zelar pela vida urbana, licenciando ou

promovendo festejos, fazendo obras públicas, regulamentando

feiras, conservando as ruas e muito mais.

O que nos importa aqui é perceber como as municipali-

dades ocupavam-se com a regulamentação da vida cotidiana,

promovendo o modo de ser considerado civilizado e vigiando

sua validade. Ao Conselho cabia acautelar-se do corpo social

em seu processo de hierarquização, extremamente restrito e

controlar as diversas atividades dos indivíduos em sociedade.

A realidade é sem dúvida alguma apresentada e constante-

mente representada pela instituição que detém o discurso,

reforçando e reconduzindo a verdade mediante práticas con-

troladas, promovendo alguns indivíduos e distribuindo fun-

ções de forma a garantir a reiteração temporal do constructo.

Assim, o poder promove determinados indivíduos atribuindo-

lhes funções representativas e ao mesmo tempo reforçando

sua hegemonia no campo social.

Parece-nos, contudo, que estes homens bons não cuida-

vam tão bem da vida urbana quanto previa a lei. Os testemu-

nhos dos viajantes concordam com a questão da insalubrida-

–––––––––– 148GOUVEA, Maria de Fátima Silva. Redes de poder na América Portuguesa: O caso dos

homens bons do Rio de Janeiro, ca. 1790-1822. Op. cit., p. 297-330.

Page 75: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

75

de da cidade. “Até 1854 [por exemplo,] o Rio de Janeiro não

possuía calçamento de paralelepípedo”,149

e nos “tempos do

Sr. D. João ainda guardava a fisionomia aflita e asselvajada.

(…) Ainda é o mesmo chão úmido e feio (…), com logradou-

ros públicos cobertos de tiririca e de sapé, crianças nuas, pre-

tos resmungões e animais a solta”.150

Carl Seidler, alemão

que passou dez anos no Brasil, apresenta a maior parte das

ruas do Rio como “compridas, tortas e estreitas”.151

No entanto, o que mais nos chama a atenção neste tes-

temunho refere-se a um fato que muito contribuiu para a pés-

sima impressão que este estrangeiro formou da cidade, ao

qual denominou de “asqueroso costume”, onde segundo ele,

“… não é nada extraordinário que os negros encarregados de

transportar das casas para a praia toda sorte de lixo, por sua

vez se revelem demasiado comodistas para levarem o vaso

transbordante em longa caminhada até o mar, e na primeira

esquina despejam toda a porcaria e se vão embora”.152

Seme-

lhante testemunho nos apresenta Tuckey, primeiro-tenente da

marinha britânica e explorador, que permaneceu vinte dias no

Rio de Janeiro, mais precisamente entre 29 de junho e 19 de

julho de 1803, com relação aos próprios habitantes, cujos

“hábitos imundos (…) colaboram para piorar ainda mais a

situação (…) Por aqui, as janelas são escapes noturnos para

todas as coisas que a casa acumulou durante o dia”.153

A

municipalidade carioca estava indiferente ao crescimento

urbano, mais preocupada com a economia privada de seus

membros e com a importação de escravos. Governar em

benefício próprio não nos parece uma matéria que careça de

maiores aprofundamentos, como se estivesse distante da vida

–––––––––– 149SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Op. cit., p. 40. 150EDMUNDO, Luiz. A Corte de D. João no Rio de Janeiro. In: Ibidem, p. 42. 151SEIDLER, Carl. Dez anos no Brasil. Brasília. Martins – MEC. 1976. p. 39. 152Ibidem, p. 41. 153TUCKEY, (apud): FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Op. cit., p. 270.

Page 76: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

76

pública hoje. Seja como for, interesses particulares permu-

tavam-se nas pautas concelhias.

Aqueles indivíduos a quem coube o ordenamento civi-

lizador, eram portadores de signos, marcas, traços distintivos

que os tornam aquém dos demais indivíduos. Em sociedades

arcaicas,154

como a carioca do século XIX, a nomeação

adquiriu um caráter quase mágico, que ordena o mundo

social mediante o acúmulo de símbolos de reconhecimento da

legitimidade155

e personificação do poder. Nada mais eviden-

te numa sociedade cujo poder é pessoal. A nomeação oficial

impõe sobre os indivíduos “a força do coletivo, do consenso,

do senso comum, porque ela é operada por um mandatário do

Estado, detentor do monopólio da violência simbólica legíti-

ma (…) dando acerca dos agentes sociais a perspectiva auto-

rizada, reconhecida de todos, universal”.156

Soma-se a isso o

fato de que esta sociedade reproduzia a vontade divina e que,

portanto, de alguma forma, seu representante operava segun-

do desígnios eternos. Questionar as normas é, antes de tudo,

questionar um poder pessoal.

Para fecharmos este quadro, podemos identificar o

espaço social como profundamente marcado por desigualda-

des e por uma sutil contradição na qual aquela sociedade de

discurso – a Câmara Municipal – deveria ordenar o mundo

reproduzindo a realidade celeste. No entanto, o constructo,

elaborado para tanto, previa, desde sempre, a manutenção da

desordem. Ordem e caos coexistiam como as duas faces da

moeda, como o dia e a noite. Ao mesmo tempo em que a boa

sociedade temia o mundo da desordem, também dependia

dela para manter-se hegemônica, pois, era a sociedade como

–––––––––– 154Cf. FRAGOSO, João; FORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlân-

tico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia – Rio de Janei-

ro c. 1790-c.1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 155BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico, 7a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,

2004, p. 142,144-145. 156Ibidem, p. 146-147.

Page 77: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

77

um todo que legitimava a estrutura arcaica existente. É na

medida em que se administra o caos, que a ordem estabeleci-

da e o mundo idealizado se mantêm.

Toda civilidade produzida pela Câmara estava alicerça-

da em bases exclusivistas, na manutenção de títulos, na dis-

tinção social, na marginalização de outros tantos e, princi-

palmente, na manutenção do desejo. Vale lembrar que o

mundo idealizado existe como representação de um regime

de verdades e, também, como vontade. De um lado, o mundo

da ordem, titulares da bondade e representantes da estrutura

estruturante e, de outro, todos aqueles legitimadores da estru-

tura, que consentindo com a verdade produzida se viam ani-

mados pelo desejo de possuir o que não tinham, volição legi-

timadora da “verdade” que excluía, mas que, de alguma for-

ma, correspondia ao desejo mais profundo do ser humano: ser

mais que aquilo que se é.

2.2. Funções e atribuições

Do grego “cratos” (força, potência) e “arch” (autori-

) surgiram os nomes das formas de governo como aris-

tocracia, democracia, monarquia, oligarquia e, também, pa-

lavras que indicam formas de poder: fisiocracia, burocra-

cia, partidocracia…157

Sem nos adentrarmos por demais

nesta questão, embora um estudo aprofundado sobre estas

formas de poder seja interessante, o que nos importa é per-

ceber como o desejo de poder promove nos indivíduos

relações singulares de associações segundo interesses afins.

Enredados em suas malhas, o exercemos em algum sen-

tido ou direção, ao mesmo tempo em que, contrariamen-

te, também sentimos seu peso. Todos respiramos o mes-

mo ar que sustenta verdades elaboradas e promovidas. A

–––––––––– 157BOBBIO, Norberto. Estado, Gobierno y Sociedad: por una teoría general de la políti-

ca. México, D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1997, p. 102.

Page 78: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

78

pura e simples associação a um determinado grupo, pode

promover o indivíduo e excluí-lo da luta de todos contra

todos por prestígio, hierarquização e poder. Se, realmen-

te, o poder se exerce em muitos sentidos e em direções

diversas, isso significa, enquanto possibilidade, que um

determinado indivíduo possa, apenas pelo consentimento

e reprodução, tornar-se portador e representante de de-

terminada verdade, o que o distingue socialmente, pro-

move e propicia, entre seus pares, algum prestígio e sta-

tus. Evidentemente, o exercício do poder, seja ele qual

for, restrito, parcial ou simplesmente aparente, ainda as-

sim, é uma forma de exercê-lo.

O poder se difunde pela adesão e satisfação ou manu-

tenção do desejo. Isso faz com que exista não apenas nas

camadas superiores e dominantes da sociedade, mas também

entre os mais simples e subordinados. É a partir do desejo de

poder que entendemos a procura às funções administrativas

das diversas municipalidades. Não apenas os membros das

famílias tradicionais, descendentes dos primeiros colonizado-

res e nobres desta terra, adentravam as câmaras. Outras pes-

soas portadoras de algum capital, principalmente o econômi-

co – nobres de toga – poderiam exercer determinado ofício na

municipalidade. Evidente que havia uma hierarquia de fun-

ções e atribuições onde a força do prestígio posicionava os

indivíduos segundo o acúmulo de capitais.

As hierarquizações no campo institucional decorriam

dos valores exigidos para determinada função. Como “nada é

mais físico, mais corporal que o exercício do poder…”,158

nada mais interessava que possuí-lo numa sociedade de rela-

ções pessoais. Os indivíduos, mesmo em funções menores

sob a administração da Câmara sentiam-se valorizados, pois,

de alguma forma exerciam uma função de mando, poder

sobre alguém, o que condicionava comportamentos e desejos,

–––––––––– 158FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Op. cit., p. 147.

Page 79: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

79

promovia o status quo da classe dominante e hierarquizava os

indivíduos entre seus pares. O que torna o poder tão forte,

portanto, não é sua capacidade de censura, exclusão e repres-

são, mas sua faculdade de produzir efeitos positivos ao nível

do desejo e do saber.159

Decerto, sua aptidão de provocar o

desejo, incluir e hierarquizar, faz com que o poder se tornasse

esta malha que a todos envolve.

A administração camarária, além das funções eletivas,

possuía diversas outras de importância variada. Neste estudo

estamos distinguindo os oficiais dos funcionários da Câmara.

Os primeiros eram eleitos, como Vereador, Procurador e Juiz

Ordinário, acrescido posteriormente do Juiz de Fora, nomeado

pela Coroa. Os demais eram, em geral, indicados e nomeados.

Objetivamos mapear, na medida do possível, a funcionalidade

concelhia. Sem nos propor mais que simplesmente elencar as

funções e suas respectivas atribuições, esperamos construir

uma visão de conjunto bastante uniforme do corpo operacional

da Câmara Municipal, tomando como exemplo a cidade do

Rio de Janeiro por ocasião da chegada da família real.

Neste momento de mudanças para a cidade, ocasião

de singular desenvolvimento, nada mais apropriado que

perceber o corpus administrativo daquela que ordenava a

vida social, política e administrativa da localidade. Quais

funções existiam por ocasião da chegada da família real?

Quais suas atribuições? Quando foram criadas e por quais

mudanças passaram? Como as pessoas acessavam estas

ocupações? Estas, e outras questões, buscaremos responder

nesta última divisão sobre a municipalidade para, então,

aprofundarmos outra função entregue à Câmara Municipal:

o Avaliador de escravos. Este, no entanto, receberá maior

atenção e será discutido posteriormente.

O que se segue é o resultado de um estudo feito na

década de 1980 e que avançou até 1998 no Arquivo Geral da

–––––––––– 159FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Op. cit, p. 148.

Page 80: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

80

Cidade do Rio de Janeiro, denominado História Adminis-

trativa da Cidade do Rio de Janeiro (1565-1945).160

A pes-

quisa aqui apresentada se refere a este trabalho que foi por nós

ordenado segundo o interesse e acrescido de informações novas.

Nele, encontramos as diversas funções da municipalidade cario-

ca desde sua origem até a chegada da família real. No entanto,

não nos interessa trazer à baila uma discussão que aprofunde os

diversos ofícios e suas atribuições devido a grande quantidade

de informações. Isso demandaria um esforço que nos distancia-

ria do objeto principal, que é a localização político-social do

Avaliador de escravos. Nossa proposta é, tão-somente neste

momento, mapear a Câmara Municipal do Rio de Janeiro a par-

tir de nosso corte temporal. Desta forma, esperamos localizar a

rede político-administrativa que se inseria nosso objeto.

2.2.1. Oficiais Camarários

Juízes Ordinários

Estabelecido em 1532, tem por legislação as Orde-

nações de 11.3.1521 e 11.1.1603. Nos primeiros tempos eram

eleitos a cada três anos, servindo anualmente, juntamente

com os Vereadores, eleitos pelos homens bons do termo

(município). A própria linguagem das ordenações nos aponta

sua funcionalidade temporal, uma vez que era chamado de

“magistrado anual”. Ordinário designa aquilo que se faz por

costume e uso. Como presidente da Câmara devia zelar pelo

costumeiro e usual, observar as regras e fazê-las cumprir.

Usava uma vara vermelha, era a insígnia do Juiz. A mesma

expressão é ainda hoje utilizada para designar um tipo de

jurisdição, como vara civil ou vara criminal.161

Segundo o

–––––––––– 160Nosso agradecimento à museóloga Júnia Guimarães e Silva, do Arquivo Geral da

Cidade do Rio de Janeiro, que nos apresentou este estudo interno e que foi por nós adaptado e acrescido de algumas informações novas.

161Ordenação Manuelina, do livro 1o, título 44, § 55 (Disponível on-line in: http: // www . ci

. uc.pt/ihti/proj/manuelinas/ni.htm). Código Filipino, p. 134, 2a col. Nota 2 (Disponível on-line in http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm).

Page 81: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

81

art. 12 da lei de primeiro de outubro de 1828, contudo, o Juiz

Ordinário seria eleito por quatro anos, em número de um,

apenas, sendo aquele, dentre os votados que obtivesse maior

número de indicações. Suas atribuições eram as seguintes:

De 1530 a 1548162

Proceder contra os que cometerem crimes no termo de

sua jurisdição.

Participar das sessões da Câmara.

Exercer as funções de Juiz dos Órfãos163

onde não

houver este ofício de justiça.

Dar audiências nos Conselhos, vilas e lugares de sua

jurisdição.

Ordenar aos Alcaides que tragam os presos às audiên-

cias e passar mandato de prisão ou de soltura, de acordo

com seu julgamento.

Ter alçada nos bens móveis sem apelação nem agravo,

nos lugares com mais de 200 habitantes, até a quantia

de mil réis, dando execução da sentença; com número

igual ou menor de habitantes, até o valor de 600 réis,

dando execução da sentença.

Ter alçada nos bens de raiz sem apelação e agravo, até a

quantas de 400 réis, dando execução da sentença. Aci-

ma deste valor, dar apelação e agravo.

Impedir que as autoridades eclesiásticas desrespeitas-

sem a jurisdição da Coroa.

–––––––––– 162Primeiro livro das Ordenações Filipinas, título 65 (atribuições no 1 a 17). ALMEIDA,

Cândido Mendes de. Código filipino ou Ordenações e leis do Reino de Portugal reco-

piladas por mandado d’El-rei dom Felipe I. 14a ed., 3 vol. Rio de Janeiro: Instituto

Filomático, 1870, p. 134-144. 163“Os juízes de órfãos surgiram no Brasil em fins do século XVII, nomeados pelo rei para vilas com

pelo menos 400 habitantes. Tinham por atribuição a realização do cadastro dos órfãos, assim como

as questões legais que envolvessem seus bens e imóveis, constituindo-se assim o juízo dos órfãos.”

(VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Op. cit., p. 338).

Page 82: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

82

Fiscalizar os serviços de estalagem e fixar seus preços.

Fiscalizar a atuação dos Almotacés.

Despachar por si só os feitos provenientes dos Almota-

cés até a quantia de 600 réis. Acima deste valor e até

600 mil réis, despachar com os Vereadores da Câmara,

sem dar apelação.

Conhecer dos feitos crimes cometidos por escravos,

cristãos até a quantia de 400 réis, despachando, sem

apelação e agravo, com os Vereadores.

Conhecer dos feitos das injúrias verbais e despacha-los aos

Vereadores na primeira reunião da Câmara. Nas sentenças

até mil-réis, dar execução sem apelação e agravo.

Conhecer dos feitos das injúrias verbais feitas a pessoas

de qualidade, suas mulheres e oficiais de Justiça, despa-

chado por si só e dando apelação e agravo às partes.

Tirar, por si só, devassas (particulares) sobre mortes,

violência de mulheres, incêndios, fugas de presos, des-

truição de moeda falsa, resistência, ofensa de justiça,

cárcere privado.

Tirar inquisições e devassas (gerais) dos juízes, assim

como as de todos os oficiais de Justiça, Vereadores.

Participar da escolha do Juiz de Vintena.

Conhecer de ações novas no seu termo, dando apelação ao

Ouvidor da Capitania, nas quantias estipuladas nas ordens.

De 1548 a 1580164

Mesmas atribuições do período 1530-1548, acrescida:

Eleger com os Vereadores, os Oficiais das ordenanças

do termo (município).

–––––––––– 164Regimento dos Capitães-mores, de 10.12.1570 e das Ordenanças, de 10.5.1574 (atribuição

no 1). In: Sistema ou Coleção dos regimentos reais: contém os regimentos pertencentes à

administração da Fazenda Real…, vol. 5. Lisboa: 1718-1791, p. 183-184 e 195-202.

Page 83: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

83

De 1580 a 1808165

Manteve as mesmas atribuições do período 1548-1580,

acrescidas das seguintes:

Executar das penas pecuniárias aplicadas pelo Sargen-

to-mor da Comarca aos Oficiais da ordenança que falta-

rem com suas obrigações de posto.

Tomar conhecimento das descobertas das minas em seu

distrito, que serão registradas em livro pelo Escrivão da

Câmara, passando certidão a ser apresentada, após 20

dias, ao Provedor das Minas.

Dar apelação dos feitos que julgar nas vilas e povoa-

ções para o Ouvidor-Geral das Capitanias do Sul.

Dar apelação e agravo para o Ouvidor-Geral do Estado

do Maranhão.

Juiz de Fora

Esse cargo foi criado no Brasil, na área da Justiça,

em 1696, suas atribuições constam, inicialmente, em

um órgão específico, a Junta Territorial de Mineração, a

ser instalada nos municípios onde houvesse minas. Ori-

ginando-se de esforços centralizadores da coroa, objeti-

va maior controle sobre as municipalidades. Nomeado

pelo Rei, era, como o próprio nome indica, um Juiz de

–––––––––– 165Regimento dos Sargentos-mores das comarcas, de 28.11.1598 (atribuição no 1). In: Sis-

tema ou Coleção dos regimentos reais: contém os regimentos pertencentes à adminis-

tração da Fazenda Real…, vol. 5, p. 219.

Regimento das minas de São Paulo e São Vicente, de 8.8.1618, (atribuição no 2). In:

SILVA José Justino de Andrade e. Coleção cronológica da legislação portuguesa,

compilada e anotada desde 1603 [1603-1700]. Lisboa: Impressão de J. J. A. Silva, 1854-

1859, vol. 2, p. 330-332.

Regimento do Ouvidor-Geral das Capitanias do Rio de Janeiro, Espírito Santo e

São Vicente, de 5.6.1619 e 21.3.1630 (atribuição no 3), em C.C.L.P., vol. 2, p. 382-384, e

vol. 4, p. 166-167.

Alvarás de regimento do Ouvidor-Geral do Maranhão, de 7.11.1619 e 21.3.1624 (atribuição no 4). In: Coleção cronológica da legislação portuguesa, compilada e ano-

tada desde 1603 [1603-1700]. Lisboa: Impressão de J. J. A. Silva, 1854-1859, vol. 2,

p. 387-389 e vol. 3, p. 116.

Page 84: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

84

fora, não pertencente ao lugar de seu exercício funcio-

nal e, portanto, estranho à terra e às redes locais de

poder, que deveria por força de seu exercício limitar.

Onde se instalavam faziam cessar a jurisdição do Juiz

Ordinário, inclusive quanto à presidência da Câmara.

Esse magistrado usava uma vara branca e acumulava

esferas judiciárias e administrativas. Foi extinto pela

disposição Provisória de 1832, art. 18 e pelo Código

Criminal do Império art. 8o. A ele competia:

De 1696 a 1750166

Proceder contra os que cometerem crimes no termo de

sua jurisdição.

Ter alçada até a quantia de 4 mil réis nos bens de raiz e

de 5 mil nos móveis.

Ter alçada nas penas que puserem até mil réis, sem ape-

lação nem agravo.

Fiscalizar a atuação do Alcaide-mor e Alcaides

pequenos.

Ter alçada nos bens de raiz até 12 mil-réis, nos móveis

até 16 mil e nas penas pecuniárias até 4 mil.

De 1750 a 1808167

Servir de Intendente dos diamantes nas Capitanias do

Brasil onde não houver Ministros encarregados dos

diamantes nem Ouvidores de Comarcas, sob imediata

inspeção da Junta Administrativa de Mineração.

–––––––––– 166Primeiro livro das Ordenações, título 65. In: Código Filipino, p. 134-144.

Alvará de regimento dos salários dos ministros e oficiais de Justiça da Améri-ca, na beira-mar e sertão, exceto Minas, de 10.10.1754 . In: SILVA, Antônio Del-

gado da. Coleção da legislação portuguesa desde a última compilação. [1750-

1820]. Lisboa: Maigrense, 1826-1847, p. 315-327. 167Alvará regulando as minas de ouro e diamantes na América com diversas providências

e novos estabelecimentos, de 13.5.1803, In: Coleção da legislação portuguesa desde a

última compilação. [1750-1820]. Lisboa: Maigrense, 1826-1847, p. 202-222.

Page 85: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

85

Dividir e demarcar as terras diamantinas que possuam

ouro (cuja exploração, até agora vedada, este alvará

derroga), ouvindo as determinações da Junta Adminis-

trativa de Mineração no tocante à quantidade de terras e

sítios que devem ser repartidos.

Vereador

As câmaras das Cidades eram formadas por nove mem-

bros, conforme o registro da lei do 1o de Outubro de 1828

168.

Poderiam ser Vereadores todos os que podiam votar nas assem-

bleias paroquiais, com no mínimo dois anos de domicílio dentro

do termo. Cada cidadão escolhia três nomes elegíveis e os entre-

gava ao Presidente, “que seria o ouvidor, e na sua falta, o juiz

mais velho em exercício”169

que conferia a lista. Feita a apuração

os que obtivessem maior número de votos seriam os Vereado-

res.170

Sua criação para a colônia nos remete a 1532, e apresenta

sua funcionalidade mediante as Ordenações de 11 de março de

1521 e 11 de janeiro de 1603. Inicialmente, no entanto, eram elei-

tos trienalmente, para um mandato de um ano. Promoviam-se as

eleições e obtendo-se três listas com três nomes cada. Para cada

ano de mandato serviria uma determinada lista escolhida. Já no

século XIX carioca, como vimos, ampliou-se sua temporalidade

para quatro anos e o número de vereadores aumentou para nove

membros sem a rotatividade dos primeiros tempos. Nas vilas seu

número era de sete membros. Suas atribuições eram as seguintes:

De 1530 a 1580171

Zelar por todo o regimento das obras do Conselho e da terra, bem como por tudo que puder beneficiá-la e aos seus moradores.

–––––––––– 168AHCF, cx. 11, lv. 54, f. 1-16. 169PRADO Jr. Op. cit., p. 315. 170AHCF, cx. 11, lv. 54, f. 1v-2. 171Primeiro livro das Ordenações, título 66. In: Código Filipino, p. 144-153.

Page 86: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

86

Fiscalizar a atuação dos Juízes no cumprimento da Justiça.

Avaliar o estado dos bens da municipalidade, tomando as devidas providências.

Fiscalizar as contas do Procurador e do Tesoureiro do Conselho.

Designar, com os Juízes, o Carcereiro da munici-palidade.

Taxar os ordenados dos oficiais da municipalidade e determinar os preços de certos produtos.

Zelar pelo cumprimento das tarefas atribuídas aos ofi-ciais da municipalidade.

Pôr em pregão todas as rendas do Conselho e contratar com os Rendeiros, recebendo fianças.

Administrar os bens do Conselho.

Lançar fintas, consultando o Corregedor da Comarca (Ouvidor).

Taxar os ordenados dos oficiais mecânicos, jornaleiros, moças e moças de soldada e determinar os preços de louças, calçados e outras mercadorias.

Eleger a cada ano, juntamente com os Juízes e o Procu-rador, os Recebedores das sizas.

Despachar na Câmara, com os Juízes, os feitos prove-nientes dos Almotacés, de quantias entre seiscentos e seis mil réis, sem apelação e agravo.

Participar da escolha do Juiz de Vintena.

De 1580 a 1640172

Manteve as mesmas atribuições da fase anterior, acres-

centando-se:

–––––––––– 172Alvarás de regimento do ouvidor-geral do Maranhão. In: Coleção cronológica da legis-

lação portuguesa, compilada e anotada desde 1603 [1603-1700]. Lisboa: Impressão de J. J. A. Silva, 1854-1859, vol. 2, p. 387-389, e vol. 3, p. 116.

Page 87: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

87

Servir de adjunto ao Ouvidor-geral, nos seguintes ca-sos: quando este passar cartas de seguro e o parecer do Governador for contrário; nas causas em que interpuse-rem suspeição ao sobredito Ouvidor

De 1640 a 1808173

Manteve as atribuições da fase 1530-1580, acres-centando-se:

Auxiliar o Governador-geral na resolução dos casos não previstos no regimento de 14 de abril de 1655. Dar parecer nos casos em que o Governador-geral man-dar tirar devassa sobre o Provedor da Fazenda.

Procurador

Estabelecido em 1532, foi cunhado pelas Ordenações de 11.3.1521 e 11.1.1603. Eram, inicialmente, eleitos trienalmente junto com os vereadores. Com o art. 80 da lei de primeiro de outubro de 1828 esta função passa a ser nomeada para um exer-cício nunca superior a quatro anos. A Câmara nomeava apenas um Procurador, que seria afiançado por ela mesma debaixo de sua responsabilidade ou por fiador idôneo. A ele competia:

De 1530 a 1580174

Demandar, para o Conselho, as penas ou coimas não

requeridas pelo rendeiro no devido tempo.

Cuidar dos reparos e consertos referentes a casas, fon-

tes, pontes, chafarizes, poços, calçadas, caminhos e

todos os outros bens do Conselho.

Requerer aos Vereadores e Oficiais responsáveis, atra-

vés do Escrivão da Câmara, o reparo dos bens não con-

sertados a contento.

–––––––––– 173Regimento de André Vidal de Negreiros, de 14.4.1655. In: MENDONÇA, Marcos Car-

neiro de. Raízes da Formação Administrativa do Brasil, vol. 2, p. 699-714. 174Ordenações Filipinas, Título LXIX, f. 378-379.

Regimento de Gaspar de Sousa, de 6.10.1612 (atribuição no 1). In: Raízes da For-

mação Administrativa do Brasil, vol. 2, vol. 1, p. 413-436.

Page 88: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

88

Fazer, ao fim de seu ofício, um levantamento do estado

dos bens do Conselho sob sua responsabilidade, en-

viando-o aos Vereadores.

Requerer e arrecadar a quantia estimada dos danos pro-

vocados por incêndios.

Servir de Tesoureiro do Conselho onde não houver este

ofício, guardando o seu requerimento.

OBS: Também teve o nome de síndico.

De 1580 a 1808175

Manteve as mesmas atribuições da fase 1530-1580,

acrescidas da seguinte: Estar presente à posse e entrega do governo ao Chance-

ler e ao Provedor-mor que, por procuração do Gover-nador, assumirem provisoriamente tal cargo.

2.2.2. Funções Camarárias

O art. 55 da lei de primeiro de outubro de 1828, deixa

claro ser de responsabilidade dos oficiais da Câmara nomear

funcionários segundo a necessidade da municipalidade. Cada

local possuía necessidades específicas e temos, portanto, um

número variado de funções entregues às câmaras. Estaremos,

no entanto, definindo aquelas ocupações presentes no Conse-

lho carioca em princípios dos oitocentos.

Juiz de Vintena

Estabelecido em 1532, tem por legislação as Ordena-

ções de 11.3.1521 e 11.1.1603. Tinha acesso ao cargo o

morador das localidades afastadas da sede do município, com

população de 20 a 50 habitantes. Era escolhido por eleição,

entre os homens bons da Aldeia, da qual participavam mem-

–––––––––– 175Regimento de Gaspar de Sousa, de 6.10.1612 (atribuição número 1). In: Raízes da For-

mação Administrativa do Brasil, vol. 2, vol. 1, p. 413-436.

Page 89: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

89

bros da Câmara sob cuja jurisdição estava o povoado. Assim,

apesar de não atuar diretamente na Câmara, o Juiz de Vintena

pode ser visto como um agente judicial do Conselho para as

pequenas povoações. Eleito anualmente pelos Juízes da vila

ou cidade, pelos Vereadores e pelo Procurador, ao qual darão

juramento em câmara. Suas atribuições eram as seguintes:

De 1530 a 1808176

Conhecer e decidir verbalmente, das contendas entre os mo-

radores de sua jurisdição, até a quantia de no máximo

quatrocentos réis, sem apelação e agravo, nem abrir processo.

Não conhecer dos feitos sobre os bens de raiz.

Não conhecer dos feitos crimes.

Prender e entregar aos juízes ordinários do termo os

criminosos que praticarem delitos em sua jurisdição.

Determinar verbalmente as contendas que houver entre

os moradores da dita Aldeia, até a quantia de 100 réis. Se

a aldeia tiver entre 50 e 150 vizinhos, a quantia será de

até 300 réis. Se for de 100 vizinhos para cima, até 400

réis. Todas as quantias sem apelação nem agravo e ver-

balmente, sem sobre isso fazer processo.

Conhecerão as posturas dos Conselhos, das coimas e

danos e darão execução, com efeito, as ditas sentenças.

Não conhecerão de contenda alguma sobre bens de raiz.

Não conhecerão sobre crime algum. Poderão, entretanto,

prender os malfeitores que forem achados cometendo

crimes na Aldeia e seu limite, sendo-lhes mostrado man-

dado ou querelas. Os que forem presos deverão ser entre-

gues aos Juízes Ordinários de cujo termo for a dita Aldeia.

–––––––––– 176Primeiro livro das Ordenações, título 65. In: Código Filipino, p. 144.

Carta de poderes para o Capitão-mor criar tabeliães e mais oficiais de justiça de

20.11.1530. In: AVELLAR, Helio de Alcântara. História Administrativa do Brasil.

Brasília: FUNCEP / Ed. Universidade de Brasília, 1983, vol. 2, p. 177-178.

Page 90: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

90

Juiz Almotacé177

Regido pelas ordenações Filipinas e pela Provisão de 23 de março de 1568, atuava nas áreas da administração, jus-tiça, policial e fazenda. O cargo foi abolido pelo Decreto de 26 de agosto de 1830. A ele competia:

Executar as posturas e vereações.

Fiscalizar a aferição dos pesos e medidas e o preço dos comestíveis (mensalmente).

Executar as medidas fiscais do Conselho.

Tratar da limpeza da cidade ou vila.

Encarregar-se da polícia das povoações (fiscalização de preços).

Fixar o abastecimento de gêneros, fiscalizando o seu abastecimento para a localidade, incluindo a repartição da carne entre os moradores.

Processar as penas pecuniárias impostas pela Câmara.

Fiscalizar o abastecimento dos gêneros alimentícios, os preços de alguns deles, os salários dos oficiais ou pesos e medidas.

Evitar que os vendeiros fizessem avença com as partes – por almotaçaria – no pescado chegado à praça; per-correr a cidade ou vila, zelando pela sua limpeza.

Observação:

Constituíam a polícia do comércio interno dos Conselhos.

Dar apelação e agravo para os juízes de qualquer feito.

Cuidar para que os profissionais de ofício guardem as determinações do Conselho.

Julgar as coimas do Conselho.

Impor penas com recursos para os juízes.

Julgar infrações de posturas.

Julgar causas de direito real relativa a obras e constru-ções (fiscalizavam obras).

Observação: Estavam sujeitos a jurisdição dos juízes ordinários, corregedores e

–––––––––– 177Ordenações Afonsinas (livro I, título XXVII).

Page 91: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

91

provedores, sem apelação para o governador (assento de abril de

1751), o que significava subordinação destes funcionários fiscais

municipais às autoridades régias.

Almotacé

Criado em 1532, teve seu corpo legislativo segundo as

ordenações de 11.3.1521 e 11.1.1603. Eleitos mensalmente

pela Câmara, em número de dois. Foi extinto pelo art. 18 da

Disposição Transitória de 1832. A ele competia:

De 1530 a 1808178

Fiscalizar o abastecimento de víveres para a localidade, fazendo cumprir as determinações do Conselho.

Processar as penas pecuniárias impostas pela Câmara aos moradores.

Despachar rapidamente os feitos, sem grandes proces-sos nem escrituras.

Dar apelação e agravo para os juízes de qualquer feito que despachar.

Repartir as carnes dos açougues entre os moradores do lugar.

Aferir mensalmente, com o Escrivão da Almotaçaria os pesos e medidas.

Cuidar para que os profissionais de ofício guardem as

determinações do Conselho.

Zelar pela limpeza da vila ou cidade.

Fiscalizar as obras.

Dar cartas de privilégios.

Limpar e refazer caminhos, calçadas e pontes.

–––––––––– 178Primeiro livro das Ordenações, título 68. In: Código Filipino, p. 157-162.

Extinto pelo art. 18 da Disposição Transitória de 1832, como já se tornara inócuo em face

do art. 24 da Lei de 27.10.1827. Regimento das câmaras municipais do Império p. 131.

Page 92: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

92

Escrivão da Almotaçaria

A função foi criada em 1532 e tem sua legislação segundo as Ordenações de 11.3.1521 e 11.1.1603. Era desig-nado pela Câmara e competia-lhe:

De 1530 a 1808179

Escrever todas as achadas de gados e bestas, além de todos os assentos de carniceiros, padeiros, regateiras etc., que caírem em coima.

Escrever o nome de todas as pessoas que transgredirem as posturas do Conselho.

Escrever todas as penas em que incorrerem os Almota-cés não cumpridores de seu regimento, bem como apre-sentá-los aos juízes no final de cada mês.

Escrivão da Câmara

Estabelecido em 1532, tem por legislação as Ordena-ções de 11.3.1521 e 11.1.1603. Função designada pela Câma-ra. Competia-lhe:

De 1530 a 1548180

Fazer anualmente um livro em que conste toda a receita e despesa do Conselho.

Escrever em livro próprio os acordos dos Vereadores e oficiais do Conselho sobre despesas deste.

Escrever nos feitos das injúrias verbais despachados na Câmara por Juízes e Vereadores.

Escrever as cartas testemunháveis passadas pelos

Vereadores.

–––––––––– 179Primeiro livro das Ordenações, título 72. In: Código Filipino, p. 165-166. 180Primeiro livro das Ordenações, título 71 (atribuições números 1-10). In: Código Filipi-

no, p. 164-165. Carta de doação da Capitania de Pernambuco a Duarte Coelho, de 10.3.1534 (atri-

buição número 11). In: TAPAJÓS, Vicente. História Administrativa do Brasil, 2a ed.

DASP, 1965-1974, vol. 2, p. 193-202.

Page 93: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

93

Escrever nas eleições dos Vereadores e oficiais da Câmara.

Ter uma das chaves da arca da Câmara, onde se guar-dam as escrituras deste.

Ler e publicar, na primeira sessão mensal da Câmara, os regimentos dos oficiais e Almotacés do Conselho.

Escrever em livro próprio, os assentos de contas e descargas de gado.

Escrever nas causas em que o Tabelião das Notas for suspeito.

Auxiliar o ouvidor ou Juízes Ordinários nas funções de Justiça.

De 1548 a 1580181

Manteve as mesmas atribuições da fase 1530-1548, acrescidas das seguintes:

Fazer assento do juramento do Capitão-mor em livro assinado e numerado pelo Corregedor (Ouvidor) ou pelo Provedor da Comarca.

Fazer assento em livro dos habitantes do termo engaja-dos nas ordenanças.

Fazer assento, no livro da Câmara, dos vigias indicados pelo Capitão-mor e eleitos pela Câmara.

De 1580 a 1808182

Manteve as mesmas atribuições da fase 1548-1580,

acrescidas das seguintes:

–––––––––– 181Regimento dos capitães-mores de 10.12.1570 (atribuições números 1 a 3). In: Sistema ou

Coleção dos regimentos reais: contém os regimentos pertencentes à administração da

Fazenda Real…, vol. 5. Lisboa: 1718-1791, vol. 5, p. 184-192. 182Regimento de Francisco Giraldes, de 8.3.1588 (atribuição no 1). In: Raízes da Forma-

ção Administrativa do Brasil, vol. 1, p. 259-277.

Regimento dos Provedores, Tesoureiros e Oficiais das Fazendas dos Defuntos e Ausentes, de 10.12.1613 (atribuição no 2). In: Raízes da Formação Administrativa do Brasil, vol. 2,

p. 481-492, e Sistema ou Coleção dos regimentos reais: contém os regimentos pertencentes à

administração da Fazenda Real…, vol. 5. Lisboa: 1718-1791, vol. 3, p. 142-160.

Page 94: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

94

Assentar, em livro próprio, a posse e entrega do gover-no, com declaração do estado em que se encontram as fortalezas, povoações, navios, artilharia, armas e muni-ções existentes, com a assinatura de todos os presentes.

Fazer as execuções, penhoras e demais diligências ne-

cessárias à arrecadação da Fazenda dos Defuntos, caso o

Provedor dos Defuntos e Ausentes assim o determine.

Tesoureiro do Conselho

Estabelecido em 1532, tem por legislação as Ordena-

ções de 11.3.1521 e 11.1.1603, era eleito trienalmente e com-

petiam-lhe as seguintes atribuições:

De 1530 a 1548183

Receber, perante o Escrivão, as rendas da Câmara.

Arrecadar, de maneira a não se perder os Rendimentos

do Conselho não arrendados.

Arrecadar a terça pertencente ao rei, como a do Conselho.

De 1548 a 1808184

Manteve as mesmas atribuições da fase 1530-1548

acrescidas da seguinte:

Pagar, por mandado do Capitão-mor das Ordenanças, as

despesas com os exercícios militares e que lhe serão

levadas em conta.

Tabeliães das Notas

Criado em 20 de novembro de 1530, recebe legislação

das Ordenações de 11.3.1521 e 11.1.1603. Exercido por ofí-

cio, competia-lhe:

–––––––––– 183Primeiro livro das Ordenações, título 70. In: Código Filipino, p. 163-164. 184Regimento dos Capitães-mores, de 10.12.1570. In: Sistema ou Coleção dos regimentos

reais: contém os regimentos pertencentes à administração da Fazenda Real…, vol. 5.

Lisboa: 1718-1791, vol. 5, p. 190.

Page 95: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

95

De 1530 a 1808185

Guardar os livros das notas até a sua morte. Escrever, em livro próprio, todas as notas dos contratos

firmados.

Fazer todos os testamentos.

Fazer todos os inventários determinados por herdeiros e testamenteiros dos defuntos, com exceção dos referen-tes a órfãos, pródigos, ausentes e mortos sem herdeiros.

Fazer todos os instrumentos de posse das terras conce-didas ou tomadas em virtude das escrituras das vendas, escambos, aforamentos e outros contratos.

Escrever as receitas e despesas dos bens dos defuntos.

Fazer quaisquer cartas de compras, vendas, escam-bos, aforamentos ou soldadas referentes que decor-ridos três anos.

Alcaide Pequeno

Oficial de Justiça encarregado de defender a autoridade

judicial local, a função foi criada em 1532 e tem sua legisla-

ção segundo as Ordenações de 11.3.1521 e 11.1.1603. Aces-

savam ao cargo aqueles cidadãos escolhidos pela Câmara de

lista tríplice apresentada pelo Alcaide-mor.

De 1530 a 1548186

Policiar dia e noite as cidades e vilas que lhe coube vigiar, acompanhado por um tabelião indicado pelo Conselho.

Prender por mandado dos Juízes ou em flagrante delito. Trazer os presos às audiências perante os Juízes. Fiscalizar a atuação dos Almotacés com relação a car-

nes e pescados.

–––––––––– 185Primeiro livro das Ordenações, título 78. In: Código Filipino, p. 179-185. 186Primeiro livro das Ordenações, título 75. In: Código Filipino, p. 172-176.

Page 96: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

96

De 1548 a 1750187

Manteve as mesmas atribuições de fase 1530-1548,

acrescidas da seguinte: Fazer as execuções, penhoras e demais diligências

necessárias à arrecadação da fazenda dos defuntos, caso assim o determine o Provedor dos Defuntos e Ausentes.

De 1750 a 1808188

Manteve as mesmas atribuições da fase 1548-1750,

acrescidas da seguinte: Executar as diligências ordenadas pelos Intendentes do

ouro.

Porteiros

Estabelecido em 1532, tem por legislação as Orde-

nações de 11.3.1521 e 11.1.1603. Função nomeada, con-

forme a lei de primeiro de outubro de 1828, podendo ter

um ou mais ajudantes, também nomeados conforme a

necessidade, e encarregados das execuções de suas ordens

com gratificação paga pelas rendas do Conselho. Suas

atribuições eram as seguintes:

De 1530 a 1580189

Fazer penhoras onde residirem e nos lugares próximos.

Apregoar as deliberações da Câmara.

–––––––––– 187Regimentos dos Provedores, Tesoureiros e Oficiais das Fazendas dos Defuntos e Ausentes,

de 10.12.1613 (atribuição no 1). In: Raízes da Formação Administrativa do Brasil, vol. 2, p. 481-492; e Sistema ou Coleção dos Regimentos Reais: contém os regimentos perten-

centes à administração da Fazenda Real…, vol. 5. Lisboa, 1718-1791, vol. 3, p. 142-160. 188Regimento das intendências e casas de fundição, de 4.3.1751. In: Sistema ou Coleção

dos regimentos reais: contém os regimentos pertencentes à administração da Fazen-

da Real…, vol. 4, p. 503-516. 189Primeiro livro das Ordenações, título 87. In: Código Filipino, p. 205-206.

Page 97: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

97

De 1580 a 1808190

Manteve as mesmas atribuições da fase 1530-1580,

acrescidas da seguinte:

Fazer as execuções, penhoras e demais diligências ne-

cessárias à arrecadação da Fazenda dos Defuntos, caso o

Provedor dos Defuntos e Ausentes assim o determine.

Provedor dos Registros

Criado pelo Regimento das Intendências e casa de fundi-

ção, de 4.3.1751. No regimento anterior de 3.12.1750. Até à sua

criação existia o Contratador das Entradas/Administrador dos

Contratos, suas atribuições, contudo, não são claras, assim, não

nos foi possível determinar se ambos são funções distintas ou

apenas nomenclaturas diferentes. Seja como for, ao cargo de

Provedor dos Registros cabia o seguinte:

De 1750 a 1808191

Remeter, mensalmente ao Intendente, lista dos comboiei-ros e comerciantes que entrarem e saírem de suas respec-tivas comarcas, declarando seus nomes, de onde vêm, número de negros, cavalos, gados e cargas que carregam.

Carcereiros

Designado pelos Vereadores e Juízes Ordinários da

Câmara. Suas atribuições eram as seguintes:

–––––––––– 190Regimento dos Provedores, Tesoureiros e Oficiais das Fazendas dos Defuntos e Ausen-

tes, de 10.12.1613 (atribuição número 1), em R. F. A., vol. 2, p. 481-492; e Sistema ou

Coleção dos regimentos reais: contém os regimentos pertencentes à administração da

Fazenda Real…, vol. 5. Lisboa: 1718-1791, vol. 3, p. 142-160. 191Regimento das Intendências e casa de fundição, de 4.3.1751. In: Sistema ou Coleção

dos regimentos reais: contém os regimentos pertencentes à administração da Fazen-

da Real…, vol. 4, p. 503-516.

Regimento para a nova forma de cobrança do direito senhorial dos quintos dos mora-dores das Minas Gerais, abolida a da capitação, que de antes se praticava, de 3.12.1750. In

Sistema ou Coleção dos regimentos reais: contém os regimentos pertencentes à adminis-

tração da Fazenda Real.., vol. 6, p. 316-324.

Page 98: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

98

De 1530 a 1808192

Levar os presos às audiências com os juízes e soltá-los

quando estes o determinarem.

Impedir qualquer pessoa, que lhe for entregue presa, de

andar em liberdade.

Impedir que qualquer preso fosse solto sem mandado

da Justiça.

Evidente, que outras funções existiam, variando no tem-

po e no espaço, como Demarcador, Cobrador, Inspetor de

Quarteirão, Fiscal, Agente de Portuário, Fiscal Suplente,193

Meirinho,194

Alealdador,195

Alferes,196

Escrivão dos Órfãos,197

Juiz dos Órfãos,198

Perito,199

e outros que neste estudo não nos

cabe aprofundar, uma vez que a Câmara Municipal não consti-

tui nosso objeto principal, mas, tão-somente, o ambiente em

que este se insere. As ocupações concelhias aqui exploradas

existiam por ocasião da chegada da família real ou foram pos-

teriormente criadas e, por isso, compõem aquela estrutura

administrativa do poder local, limitada pela centralização pós

1750. Cabe-nos agora a tarefa de precisar nosso objeto central

neste trabalho: o Avaliador de escravos.

–––––––––– 192Primeiro livro das Ordenações, título 77. In: Código Filipino, p. 178-179. 193Arquivo Histórico da Cidade de Florianópolis, Caixa 11, livros 33 e 44. 194Carta de doação da Capitania de Pernambuco a Duarte Coelho, de 10.3.1534. In História

Administrativa do Brasil, vol. 2, p. 193-202. 195Regimento de Antônio Cardoso de Barros, Provedor-mor da Fazenda, de 17.12.1548. 196Regimento dos Capitães-mores, de 10.12.1570. In: Sistema ou Coleção dos regimentos

reais: contém os regimentos pertencentes à administração da Fazenda Real…, vol. 5,

p. 183-194. 197Primeiro livro das Ordenações, título 89. In: Código Filipino, p. 220-222. 198Primeiro livros das Ordenações, título 88. In: Código Filipino, p. 206-220. 199Alvará regulando as minas de ouro e diamantes na América com diversas providências

e novos estabelecimentos, de 13.5.1803. In: Coleção cronológica da legislação portu-

guesa, compilada e anotada desde 1603 (1802-1810), p. 202-222.

Page 99: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

99

Page 100: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

100

Page 101: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

101

3

O AVALIADOR DE ESCRAVOS:

UM TIPO ESPECÍFICO DE PODER

3.1. A construção da realidade

A sociedade é um produto do ser humano que pensa,

relaciona-se, trabalha e dá significado. De forma que realida-

de é o reconhecido pelo entendimento e verdade o legitimado

por aqueles que devem, a todo o momento, estar ressignifi-

cando o real. O mundo, portanto, ganha sentido na represen-

tação que dele fazemos e é somente na relação entre o sujeito

pensante e o objeto pensado que se pode estabelecer a reali-

dade. Tudo o que existe está em função do pensamento ou

das representações que fazemos do mundo objetivo.

Mas o mundo não existe apenas como representação.

Para que determinada representatividade se efetive pela legi-

timação ela precisa habitar antes na vontade das individuali-

dades. Existe um mundo pensado, que, não necessariamente,

está em conformidade com o “real”, mas que existe enquanto

vontade e desejo.

O homem, portanto, vive intermediando as representa-

ções que faz do mundo e as vontades que alimenta. Como a

sociedade é anterior aos indivíduos, estes absorvem constru-

ções já cristalizadas e consentidas, o que não quer dizer que

Page 102: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

102

estes mesmos indivíduos não possam ressignificar a realida-

de, alterar ou mesmo substituir a representação social vigen-

te. A representação que temos da realidade, portanto, é fruto

de uma construção, resultado de uma vontade anterior, ou

vontades, cujos indivíduos nas suas relações sociais legitima-

ram, consentiram e estabeleceram um determinado regime de

verdades que norteia a vida social.

O século XIX carioca, em cerca de seu primeiro quar-

tel, possuía uma dada percepção da realidade, de forma que

todos os indivíduos aceitavam aquela estrutura que dava sig-

nificado ao mundo social, legitimando-o e tendo-o como

natural e espontâneo. Chamaremos de habitus200

esta incor-

poração das representações produzidas. Ele é a mediação do

indivíduo com a sociedade, o elo de coerência que envolve a

todos e garante a socialização através da incorporação das

diversas normas, crenças e valores produzidos pela socieda-

de, estruturando-se segundo aquele regime de verdades pro-

duzido, que passa agora a ser natural e espontâneo, habitual.

Neste sentido, o habitus herdado influencia diretamente na

maneira de pensar dos indivíduos, na estrutura da personali-

dade e na economia psíquica,201

de forma que cada sociedade,

e (ou) grupos que a compõe, possui formas diversas de rela-

cionar-se e dar significado à realidade.

Na primeira metade do século XIX, a sociedade da cor-

te luso-brasileira possuía um habitus baseado na ostentação, a

um só tempo, diferenciado e excludente. Na capital do Impé-

rio, não havia outro projeto político-social, que não o de con-

–––––––––– 200Habitus, corresponde à antiga noção aristotélica de hexis, convertida pela escolástica em

habitus. Segundo Pierre Bourdieu, “é um conhecimento adquirido e também um haver,

um capital (de um sujeito transcendental na tradição idealista) o habitus, a hexis, indica a

disposição incorporada, quase postural.” (BOURDIEU, Pierre. Op. cit., p. 61). “O habitus é um conceito central da sociologia bourdieusiana. Ele garante a coerência entre

a concepção da sociedade e a ação do agente social individual; fornece a articulação, a mediação entre o indivíduo e o coletivo (…) Esse conceito está na base da reprodução da ordem social. Por isso, como princípio de conservação, ele também pode tornar-se um mecanismo de inven-ção e, consequentemente, de mudança.” (BONNEWITZ, Patrice. Op. cit., p. 75).

201Cf. ELIAS, Norbert. O processo civilizador, vol .1. Op. cit., p. 21.

Page 103: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

103

servação das forças características da sociedade estamental,

visando à conservação do trabalho escravo, e, portanto, do

status quo dominante, que em torno de si garantia o funcio-

namento político, social e econômico do Brasil.

No jornal Aurora Fluminense, aos 18 de janeiro de

1828202

a notícia da abolição do tráfico de escravos causava

alvoroço, uma vez que no ano anterior o império Brasileiro e

a Grã-Bretanha haviam assinado um tratado comercial visan-

do sua extinção. O curioso é perceber a perplexidade de

todos, preocupados com “o choque que este acontecimento

[iria] produzir”, pois, temiam que a “repentina penúria de

braços”, abalasse a sociedade brasileira de tal forma que difi-

cilmente se levantasse sem o trabalhador cativo.

Na lógica daquela sociedade era “natural” que o negro

trabalhasse. O espaço social constituído no século XIX na

cidade do Rio de Janeiro não previa dignidade no trabalho

braçal, coisa de escravo e de gente de segunda estirpe. A uti-

lização da mão de obra cativa estava em todos os setores da

sociedade, de forma que, possuí-los significava status, resul-

tado de um constructo que identificava o trabalho com a

escravidão. Neste sentido, valorizava-se o ócio. Unhas com-

pridas e desfiles de fim de tarde acompanhado de um cordel

de escravos demonstravam o orgulho da ostentação senhorial.

Era comum vislumbrar um escravo carregador, levando ape-

nas um lápis de cera para seu contratante203

ou mesmo mu-

lheres, que incapazes de carregar seu próprio lenço, confia-

vam-no às suas acompanhantes.204

O habitus, da primeira metade dos oitocentos, previa

que o homem de corte vivesse pelos privilégios e do trabalho

de seus escravos. De forma que o cativo, não era o grande

excluído no sistema compulsório, ele pertencia ao centro des-

–––––––––– 202Biblioteca Nacional, PS-SOR 36 (1). 203DEBRET, Jean Baptiste. Op. cit., p. 196. 204Ibidem.

Page 104: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

104

te sistema e ao mundo da ordem. O escravo era a razão de

ser, o coração do espaço social constituído, a marca distintiva

e hierarquizante. O branco pobre e livre era o grande excluí-

do. Não tinha onde trabalhar e nem dinheiro para comprar um

escravo, então, vivia na marginalidade. Cidadão de segunda

categoria representava a desordem. Os negros faziam de tudo,

trabalhando em diversos setores da economia, enquanto o

branco pobre se via à margem da sociedade. Eis a razão de

ser da lusofobia, sentida por muitos brasileiros.

No entanto, aqueles indivíduos pertencentes ao mundo

da desordem desejavam inserir-se no mundo da ordem. Eles

legitimavam pela vontade a estrutura excludente. Quem não

possuía escravos, desejava-os e quem os possuía gozava de

seu senhorio. João Fragoso e Manolo Florentino, como vimos

anteriormente, ao analisarem inventários post-mortem entre

os anos de 1790 a 1830 no Rio de Janeiro, apresentam um

fato marcante relativo ao uso da mão de obra escrava. “Quase

todos os homens livres detentores de bens a legar possuíam

ao menos um escravo (…) Nunca menos de 2/3 dos mais

pobres inventariados do agro e da urbe carioca detinham

escravos”.205

A esmagadora maioria dos habitantes possuía pelo

menos um escravo, ou uma escrava, encarregada dos afaze-

res domésticos. Os que escapam a esses serviços são envia-

dos à rua pela manhã, para trabalharem por sua própria con-

ta e obterem o máximo de rendimento possível.206

Este testemunho de James Hardy Vaux, escritor inglês

que por estas bandas esteve em 1807, indica mais que apenas

o valor econômico que o escravo poderia gerar, mas o status

que adquiriam seus proprietários. “Pode-se argumentar que

os mais pobres (…) possuam escravos, menos em função de

seu baixo preço do que pela força simbólica do „ser senhor de

–––––––––– 205FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 124. 206VAUX, James Hardy. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Op. cit., p. 305.

Page 105: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

105

escravos‟”.207

Não possuí-los significava estar fora daquilo

que se concebia por boa sociedade, correndo o risco de tor-

nar-se, portanto, indivíduo de segunda categoria.

A marcante dependência da escravidão reiterava, por-

tanto, uma hierarquia que se norteava à sombra do trabalho

compulsório, de forma que a ociosidade ganhava ares de

fidalguia e funcionava como instrumento de inclusão subor-

dinada da massa cativa, e, sobretudo, exclusão daqueles

homens livres pobres marginalizados.

Tudo isso, para dizer que o habitus, como sistema de

disposição duradouro, na sociedade de corte carioca, passava

pelo valor distintivo da hierarquização baseada na posse do

trabalhador cativo. No século XIX, não havia homem ou

mulher que pensasse a vida social sem o trabalhador escravo.

Todos buscavam os benefícios que a posse de escravos poderia

proporcionar, não apenas com fins pecuniários, mas, também,

simbólicos. Por isso, até os mais pobres os desejavam e mes-

mo o negro liberto, se o pudesse, adquiriria um cativo para si.

Esse modo de perceber a realidade, identificando o tra-

balho como coisa de escravo, levou muitos homens a lucra-

rem divisas e prestígio na lida com os cativos. O próprio

Estado beneficiava-se com o mercado de almas, daí o fim, de

fato, do tráfico atlântico apenas em 1850 e a existência de

alguém experimentado e nomeado oficialmente, para precisar

o valor dos escravos, engordar os cofres públicos e reintegrar

braços ao mundo do trabalho. Deve-se a isso, o fato de o

habitus constituir-se como estrutura estruturada e estrutu-

rante, por isso, seus valores tendem a perpetuar-se. Assim, a

ostentação ociosa do homem oitocentista, como estrutura es-

truturada, tende a condicionar o comportamento nos novos

membros estruturando-os segundo a construção legitimada

pelo consenso. As formas de percepção da realidade, seus

modos de ver, sentir e interagir no grupo social, devido ao

–––––––––– 207FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Op. cit., p. 124.

Page 106: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

106

processo de socialização que torna natural o constructo, reite-

ra-se num sistema de disposições duradouras, que são interio-

rizadas, consentidas, reformuladas, ou não, e transmitidas.

Neste sentido, fica fácil compreender a indignação sen-

tida pela sociedade carioca depois do tratado versando sobre

o fim do tráfico de africanos, firmado entre Brasil e Inglaterra

em 23 de novembro de 1826 e ratificado aos 13 de março de

1827,208

que decerto, em 18 de janeiro de 1828, data de

publicação da notícia, alguma agitação já ocorria. Havia sim,

muita discussão sobre a validade de tal acordo. Muitos depu-

tados acreditavam em intromissão da política externa inglesa.

O General Cunha Mattos “considerava o ato como derrogató-

rio da honra do País, de seus interesses, dignidade, indepen-

dência e soberania”.209

O acordo estipulava um prazo de três

anos para que o tráfico se tornasse ilegal. A medida elevou as

importações de africanos de 28.750 cabeças em 1827, para

45.670, em 1828 e 47.630, em 1829.210

Na prática, não houve

muito abalo real, pois, em 7 de novembro de 1831, data do

decreto brasileiro definindo de uma vez por todas sua ilegali-

dade, os números retornaram à média normal das importações

antes do acordo com a Inglaterra, somando uma média de

28.500 africanos. No entanto, o medo de perder a mão de

obra escrava era constante.

Fazia parte do habitus, na primeira metade dos oitocen-

tos, a escravidão africana. Era “natural”, visto como legítimo

e consentido pelo acolhimento da estrutura construída, o apri-

sionamento do negro. Não faltavam, inclusive, hipóteses

científicas que justificassem o fenômeno. Decerto, muito

mais uma crença e por isso, parte integrante do habitus, de

–––––––––– 208CALÓGERAS, J. Pandiá. A Política Exterior do Império, vol. II – O Primeiro Reinado.

Brasília: Senado Federal, 1998, p. 500. 209Ibidem, p. 501-502. 210FORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico Atlântico

de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (Séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro:

Arquivo Nacional, 1995, p. 59.

Page 107: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

107

então, era o fato de não se considerar o negro humano e o

mulato, como podemos ver no testemunho de Carl Seidler: Apenas obra de remendo da natureza, por isso são

peritos remendões (…) No Brasil o negro verdadeira-

mente não é melhor que um irracional e não se deve tra-

tá-lo como homem, por mais que semelhante afirmação

pareça inumana.211

Em Debret, vemos semelhante afirmação: “os sábios na-

turalistas concordam em que o negro é uma espécie à parte da

raça humana e destinada, pela sua apatia, à escravidão, mesmo

em sua pátria”.212

O habitus, portanto, enquanto sistema de dis-

posições estruturantes e duradouras, tende a promover um modo

de ser próprio, na qual os indivíduos adquirem esquemas de

percepção e de ação. As práticas são geradas pelo habitus, que

está na base da identidade coletiva, condicionando o comporta-

mento dos indivíduos, uma vez que a visão de mundo decorre

da formação do habitus transmitido. Pode haver mudança, no

entanto, o habitus é um forte fator de reprodução social, ten-

dendo a promoção reiterada do costumeiro, o que concorda

com o projeto arcaizante da aristocracia oitocentista, muito

preocupada com a preservação da sociedade estamental.

Traço marcante deste habitus arcaizante é o próprio

modo de ser hierárquico, baseado na posse de bens, pecuniá-

rios e “almas”. A estrutura vigente possuía um lócus de poder

emanador, a Câmara Municipal. A elite camarária, fundada

inicialmente no grande proprietário rural, estende à urbe seus

domínios e acumula o que há de comum em todas as aristo-

cracias: riqueza, poder e autoridade.213

Tem por característi-

cas essenciais o orgulho, a tradição familiar214

e religiosa.

Para exercer os ofícios de governança disponíveis nas respec-

–––––––––– 211SEIDLER, Carl. Op. cit., p. 47, 52. 212DEBRET, Jean Baptiste. Op. cit., p. 530. 213PRADO Jr., Caio. Op. cit., p. 289. 214FREIRE, Gilberto. Op. cit., p. 1043.

Page 108: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

108

tivas municipalidades, os indivíduos, desejosos de participa-

ção política, deveriam se mostrar aptos ao seu exercício. Esta

aptidão estava vinculada ao predicado da cidadania.

Como vimos anteriormente, “esperava-se que esses

homens bons fossem donos de propriedades, residentes na ci-

dade, incontaminados por origens artesãs ou por impureza

religiosa ou ética”.215

O indivíduo, considerado cidadão, de-

via ostentar um determinado modo de ser que tende a perpe-

tuar aquele constructo, ou regime de verdade, que lhe promo-

veu. A manutenção da ordem vigente é a garantia do bem-

-estar social de determinados sujeitos que se beneficiavam

com sua manutenção e preveem também a conservação da

desordem. Os considerados desqualificados deviam legitimar

a estrutura construída a fim de que eles pudessem perpetuar-

se temporalmente. Existem muitas formas de promoção, a

mais comum é a nomeação.

Mesmo que um determinado indivíduo não ocupasse

cargo de prestígio, dependendo de sua posição no espaço

social, a simples participação, mesmo que modesta, em de-

terminado grupo de poder, já seria o suficiente para promover

o consentimento do regime de verdade. O título é uma marca

distintiva “que recebe o seu valor da posição que ocupa num

sistema de títulos organizados hierarquicamente”.216

O título

contribui, portanto, para a percepção social pessoal e sua

localização hierárquica no grupo de poder nomeador e entre

seus pares.

A pura e simples associação a um determinado grupo, é

capaz promover ou excluir determinadas pessoas da luta de

todos contra todos. Se o poder se exerce em muitos sentidos e

em direções diversas, isso significa, enquanto possibilidade,

que um determinado agente, apenas pelo consentimento e

–––––––––– 215SCHWARTZ, Stuart B. O Brasil Colonial, c. 1580-1750: As Grandes Lavouras e as

Periferias. Op. cit., p. 405. 216BOURDIEU, Pierre. Op. cit., p. 148.

Page 109: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

109

reprodução, torna-se portador e representante de determinada

verdade, o que o distingue socialmente, promove e propicia,

entre seus pares, algum prestígio e status. Evidentemente, o

exercício do poder, seja ele qual for, restrito, parcial ou sim-

plesmente aparente, ainda assim, é uma forma de exercê-lo

em determinado sentido. O desejo estimula o interesse e pro-

move o consentimento, contribuindo, portanto, com a reitera-

ção do “regime de verdade” hegemônico. O poder se difunde

pela adesão e satisfação do desejo. Isso faz com que ele exista

não apenas nas camadas superiores e dominantes da sociedade,

mas também entre os mais simples e subordinados.

O discurso promove o desejo, envolve e condiciona

comportamento. Por isso, está fortemente alicerçado pelo po-

der e, também, pelo desejo. Ao mesmo tempo em que promo-

ve a uns, exclui a outros. Ele separa, seleciona e rejeita. Nas

sociedades “a produção do discurso é ao mesmo tempo con-

trolada, selecionada, organizada e redistribuída por certo nú-

mero de procedimentos que tem por função conjurar seus

poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório (…)

e temível materialidade”217

. No discurso encontram-se proce-

dimentos de exclusão e de promoção, que se materializam na

concretude individual cotidiana a partir de seu atingimento. O

discurso, portanto, não é algo aleatório, mas intencional, com

objetivos norteados pelo desejo de poder.

O desejo de poder promove verdades, como a um regi-

me, e por isso, traz à baila seu oposto. Caso contrário, como

poderia haver exclusão? Ao estabelecer verdades, o procedi-

mento de exclusão inerente ao discurso promove à categoria

de falso tudo aquilo que se oponha à “verdade” e impuro,

tudo o que se opõe ao “puro”. Um discurso legitimado ganha

ares de verdade. A partir daí estabelece o falso como aquele

não-adequado à verdade legitimada. Temos assim, especifi-

cado a dupla significação do discurso. O estabelecimento de

–––––––––– 217FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Op. cit., p. 8-9.

Page 110: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

110

uma verdade, ou de um regime de verdades, estigmatiza a di-

ferença, e com ela o diferente, exercendo pressão coercitiva.

Daí resulta a adesão de uns pela legitimação induzida através

da força do discurso ou mesmo forçada pela hipótese de ex-

clusão e medo de suas consequências. Evidente, que o discur-

so promove, de fato, exclusão àqueles obstinados no conside-

rado “falso” e “errôneo”. A vontade de verdade, portanto, é

uma “prodigiosa máquina destinada a excluir todos aqueles

que, ponto por ponto, em nossa história, procuram contornar

essa vontade de verdade”218

.

Assim, os membros daquela dita boa sociedade deve-

riam endossar o discurso que regulava o regime de verdades

ou a estrutura estruturada que representavam. Representar, é

tornar presente aquilo que o move e, também, apossar-se do

prestígio do discurso legitimado. Neste sentido, indivíduos

oficialmente e socialmente reconhecidos como portadores de

um determinado discurso, são ostentadores de signos distinti-

vos exclusivos aos considerados mais qualificados.

Na cidade do Rio de Janeiro, os qualificados aos cargos

do poder local oitocentista deveriam ostentar a distinção, a

diferença e a desigualdade. De modo geral, identificamos o

conceito de pureza como pré-requisito básico deste modo de

ser, acompanhado, evidentemente, do capital econômico. Ser

livre de impureza religiosa ou ética seria uma forma de

garantir a perpetuação da estrutura arcaica baseada no traba-

lho compulsório. Evidente que este ideal de pureza faz parte

daquele conjunto de regimes de verdade, da estrutura ideal

elaborada por determinada representação da realidade.

Só existe o puro se algo for considerado impuro. Puro

e impuro são conceitos aplicáveis conforme a representação

de realidade ostentada, notoriamente ligada à noção de or-

dem, colocando cada coisa no seu “justo lugar”. “O oposto

da „pureza‟ – o sujo, o imundo, os „agentes poluidores‟ – são

–––––––––– 218FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Op. cit., p. 20.

Page 111: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

111

coisas „fora do lugar‟”.219

Neste sentido, o branco pobre, o

negro forro ou o mestiço não poderiam jamais ocupar um

cargo junto à Câmara Municipal. Eles, como “corporificações

da sujeira” são um obstáculo à manutenção da ordem e à

organização do ambiente social. O mundo da desordem desa-

fia o mundo da ordem, mas seu sustento é essencial à sobre-

vivência do regime de verdade. Enquanto a estrutura é legi-

timada, o status quo de determinada elite se mantém na or-

dem das coisas verdadeiras.

O Avaliador de escravos é um caso típico de agente legi-

timador da estrutura e do regime de verdade. A gênese desta

funcionalidade pode estar ligada ao crescimento da importância

da cidade que entre os anos de 1790 e 1840 constituiu-se no

centro econômico e político do sudeste brasileiro.220

Dois fato-

res ocorridos nos setecentos contribuíram para a integração da

capitania no mercado atlântico: a descoberta do ouro na região

das minas e o açúcar fluminense. Em meados do século, 1/3 dos

escravos importados na colônia permaneciam no Rio de Janeiro.

Seu porto crescia em importância, conhecendo maior desenvol-

vimento após a chegada da família real em 1808.

A marcante dependência da mão de obra cativa, portan-

to, pode explicar-se, na própria razão de ser da colonização e,

mesmo, na condição social que tal domínio proporcionava.

Promover a manutenção da ordem, com o ingresso de novos

braços ao mundo do trabalho era necessário à conservação de

uma sociedade agrária e da elite dominante, cujo projeto

arcaizante, incluía estratégias de manutenção. Enquanto o

mercado Atlântico animava a sociedade com “novos braços”,

o Avaliador reintroduzia “braços já gastos”, mas ainda úteis.

Leilões de Ladinos (negros aculturados e, por vezes, conhe-

cedores de algum ofício), vendas informais, anúncios em jor-

–––––––––– 219BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

Ed., 1998, p. 14. 220FRAGOSO, João Luís. Op. cit., p. 305.

Page 112: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

112

nais, aluguéis… animavam as praças da cidade. Mas onde

estava o Avaliador dos escravos?

O Avaliador de Escravos surge neste contexto de cres-

cimento econômico e maior utilização da mão de obra cativa.

Não estava a serviço de particulares, mas do próprio Estado.

Era a legalidade que tomava as ruas. O oficial da função,

licenciado por um ano gerava divisas aos cofres públicos, ao

apreçar o escravo para ser leiloado e, assim, mediava o rein-

gresso dos escravos ao mundo do trabalho, da mesma forma

que, reiterava em nome do Estado a hierarquia escravista e

seu status quo.

O primeiro sinal indicativo de sua presença estava nos

anúncios de jornal. O Diário do Rio de Janeiro, em maio de

1822, trouxe dois anúncios de arrematações. O primeiro ocor-

reria na Praça do Juízo da Conservatória dos Moedeiros, no

dia 9 daquele ano, onde se arrematou dois escravos. Nada

incomum, se não fosse as avaliações disponíveis no Cartório

da rua da Alfândega N. 252.221

O mesmo ocorreu com uma

arrematação de um sítio na Penha, feita no mês de maio do

mesmo ano. Leiloado de porteira fechada com diversos bens,

inclusive nove escravos. Tudo estava avaliado e disponível

em inventário na casa do Escrivão de Órfãos.222

A criação da função na cidade do Rio de Janeiro é, no

entanto, bem anterior ao anúncio das avaliações. Remonta à

lei de 20 de Junho e 25 de Agosto de 1774… … por q. Sua Mag

e há por bem de promulgar em benefício

dos seos vaçalos para que os bens penhorados aos executa-

dos se não rematem em praça pública sem que primeiro

sejão avaliados por pessoas peritas e inteligentes que os

saibão avaliar, nomeados pelas câmaras dos seos respecti-

vos Districtos…223

–––––––––– 221BN: PR-SPR 5 (1): Diário do Rio de Janeiro, dia 7 de maio de 1822, no. 6, p. 22. 222BN. PR-SPR 5 (1): Diário do Rio de Janeiro, dia 7 de maio de 1822, no. 6, p. 23. 223AGCRJ, 6-1-10, f. 16.

Page 113: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

113

Sabemos, contudo, que a gênese da função é da década

de trinta daquele século. Em julho de 1808, o Procurador da

Câmara pediu a Antônio Martins Pinto de Britto, Escrivão do

Senado, que lhe certificasse o teor da Provisão Régia de 22

de setembro de 1733 para certificar-se da instância nomeado-

ra da função. O resultado foi o seguinte: Certifico que Revendo o Livro de Registros de Ordens

Reaes que no Senado da Camara servio, nelle a folhas trinta

e sette verso se acha o Registro da Provizam do theor, e

forma seguinte:

Registro de Provizam de Sua Magestade em que há por

bem que os oficiaes digo que os oficios, e provimentos dos

oficiaes da Ventesia, Capitam do Mato, e avaliadores, per-

tencem a câmara [grifo nosso], e não aos governadores.

Dom João por Graça de Deos, Reÿ de Portugal, e dos

Algarves da quem, e dalem mar em África Senhor de Guiné

&. 224

Consideramos, no entanto, que a efetivação do ofício na

cidade do Rio de Janeiro, apenas em 1774, tendo por primeiro

avaliador de escravos Jerônimo Pereira Guimarães, que atuou

entre os anos de 1775 e 1777,225

surgiu da necessidade de orga-

nizar a crescente utilização da mão de obra cativa e de promover

a manutenção do mundo da ordem. Não podemos perder de vis-

ta que a gênese do ofício, até aqui descrito, está fortemente

imbricada com comércio de escravos, que, no século XVIII, foi

atividade importante para o sudeste, tanto na extração de metais

preciosos como no cultivo da agricultura. Com a descoberta de

ouro na região das minas cresceu o número de importações com

vista na ocupação e exploração das datas. Entre 1715 e 1727, do Rio de Janeiro para Minas

saíam anualmente cerca de 2.300 cativos. Pode-se pensar

que, nessa época, devido ao débil desenvolvimento da

agricultura fluminense e à espantosa alta dos preços dos

–––––––––– 224AGCRJ, 6-1-11, f. 45v. 225AGCRJ, 6-1-10, f. 2.

Page 114: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

114

escravos ocasionada pela descoberta do ouro, a capitania do

Rio de Janeiro consumisse apenas 1.000 africanos por ano.

Importando, pois, 3.300 escravos/ano, o porto carioca reti-

nha cerca de um entre cada cinco escravos dos 15.000

anualmente recebidos pela colônia entre 1721 e 1730.226

Na década de 1730 a colônia importou cerca de 16.600

africanos/ano. Sendo que deste total 1/3 passou a permanecer

no Rio de Janeiro. Do porto de Luanda – maior exportador de

africanos ao sul do Equador – entre 1723 e 1771, 203.904

escravos deram saída, metade deles destinava-se ao Rio de

Janeiro. “Diante destes números, não seria de todo absurdo

pensar que o porto carioca tenha absorvido no mínimo 50%

do total de exportações de africanos para o Brasil durante o

século XVIII, ou seja, mais ou menos 850.000 africanos”227

Com a crise do ouro, ocorre “a reanimação da agricultu-

ra brasileira provocada pelas reformas pombalinas (…) [acom-

panhada pela] demanda por escravos na década de 1760 – pela

primeira vez desde o colapso do tráfico para Minas Gerais”228

A preocupação com a agricultura fomentou, principalmente a

partir das décadas de 1780 e 90, a busca por escravos na África

Central Ocidental por comerciantes do Rio de Janeiro.229

A cidade do Rio de Janeiro, portanto, concentrou de

maneira intensa e crescente uma população escrava que sem-

pre esteve sujeita as diversas negociações no mercado de

ladinos. A importação de escravos era constante e embora

suas motivações oscilassem no tempo é inegável o fato de

que já no século XVIII a população escrava no Rio de Janeiro

era maior que a livre. Conforme o Almanaque do Rio de

Janeiro, de 1779, mais da metade da população da cidade era

–––––––––– 226FLORENTINO, Manolo Garcia. Op. cit., p. 45. 227Ibidem, p. 46. 228PANTOJA, Selma; SARAIVA, José Flávio Sombra. Angola e Brasil nas rotas do Atlân-

tico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 35. 229Ibidem, p. 45.

Page 115: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

115

escrava.230

As ruas do Rio “eram habitadas por soldados do

Regimento dos pretos forros, os capoeiras, negros escra-

vos, padres, mendigos e comerciantes a varejo. As ruelas

do Rio mostravam-se repletas de negros”.231

A presença do

negro nas diversas atividades da cidade é um fato marcante

para os viajantes estrangeiros, que muito se surpreendiam

com o “… número inacreditável de negros e mulatos”.232

Pierre Sonnerat, navegador francês, que escreveu este

comentário de 1748, nos fala de um “número inacreditá-

vel” e acrescenta: “o Rio de Janeiro é um verdadeiro for-

migueiro de negros”233

.

Embora não exista precisão em sua fala, ela nos apre-

senta um forte vestígio da mão de obra cativa e urbana, cuja

presença não lhe passou despercebida. Esse fato fica evidente

no momento do seu desembarque, onde, segundo ele, “uma

prodigiosa multidão de mulatos e negros investiram contra

nós. Teríamos passado maus bocados se não estivéssemos

com um condutor, o qual, usando de sua autoridade, afastou a

população curiosa e nos livrou do incômodo”.234

O número de escravos nas freguesias urbanas crescia e

superava as freguesias rurais. O censo de 1821 nos mostra

claramente que nas freguesias urbanas (Candelária, S. José,

Santa Rita, Sacramento e Santana) o total de escravos era de

36.182, enquanto nas rurais (Engenho Velho, S. João da

Lagoa, Irajá, Jacarepaguá, Inhaúma, Guaratiba, Campo Gran-

de, Ilha do Governador, e Paquetá) a população escrava esta-

va reduzida a pouco mais da metade da população cativa nas

áreas comerciais: 18.908. 235

–––––––––– 230Almanaque do Rio de Janeiro (1779) In: PANTOJA, Selma; SARAIVA, José Flávio

Sombra. Op. cit., p. 103. 231Ibidem, p. 104. 232SONNERAT, Pierre. In: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Op. cit., p. 211. 233Ibidem, p. 212. 234Ibidem., p. 192. 235SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Op. cit. p. 48.

Page 116: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

116

Marquês do Lavradio, em 1774, tratando do assunto

das enfermidades dos negros novos e do mercado do Valongo

confirma o grande número de escravos na cidade: [Dos] imensos negros novos que vêm dos postos de

Guiné e Costa da África (…) se acham sempre cheias a

maior parte das ruas, e casas dos comerciantes, que os cos-

tumam vender, sem jamais se extinguirem os mesmos e

numerosos lotes (…) com a introdução de novo com os que

estão chegando daqueles mesmos portos e costa.236

“Podemos quantificar 37.114 escravos referentes aos

anos de 1731 a 1735; 281.323 escravos para o período de

1759 a 1792; e 28.385 escravos para os anos de 1799,1800 e

1801.”237

Esta gama de escravos, como propriedade de al-

guém, poderiam ser alienados como bem entendesse seu

proprietário. Um agitado comércio, com diversas formas de

alienação da “mercadoria” foi-se lapidando. De muitas for-

mas se poderia adquirir um escravo, seja no Valongo, mer-

cado de negros novos ou no de ladinos através de casas de

leilão, consignação e varejo; em anúncios de jornais, conta-

tos pessoais…

O uso de tão desejada mão de obra promoveu junto às

autoridades, que dela também se beneficiavam, algumas ini-

ciativas visando ordenar as diversas negociações e as relações

provenientes de tal comercialização. Identificamos, assim,

duas iniciativas que contribuíram para o ordenamento do

mercado de escravos. Uma delas é a mudança dos armazéns

de negros novos da Rua Direita e do Paço Imperial para o

Valongo em 1779. A partir de então, por determinação do

Marquês do Lavradio, vice-rei do Brasil, os escravos desem-

barcados na alfândega deveriam ser conduzidos, em botes, ao

–––––––––– 236AN, Códice 70, vol. 7, p. 231. 237CAVALCANTI, Nireu Oliveira. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In:

FLORENTINO, Manolo (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos

XVII-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 53.

Page 117: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

117

lugar denominado Valongo, pois pareciam – segundo ele

– “animais selvagens, nus, cheios de moléstias (…) [ademais]

as pessoas honestas não se atreviam a chegar às janelas, e os

inocentes, vendo-os, aprendiam o que ignoravam”238

.

Outra é a efetivação do ofício de Avaliador de escravos,

objetivando precisar o valor daqueles à disposição do Estado,

que os leiloava em praça pública e revertia esta importância

em benefício próprio. Desta forma, gerava divisas aos cofres

públicos, e garantia a legitimidade do ideário escravocrata, do

processo de hierarquização baseado na posse do trabalhador

cativo e o status quo da elite detentora de bens e “almas”.

Constituía-se, o trabalhador compulsório, em bem de

grande circularidade que com o tempo passou a ser penhora-

do juntamente com outros bens por dívidas contraídas, de

forma que era preciso que, assim como outras propriedades

que ficavam a cargo do Estado, fossem os escravos, da mes-

ma forma, avaliados antes de serem leiloados. Sabemos que

todos os aspectos da vida municipal estavam sob o controle

das câmaras municipais. A promoção de leilões dos bens con-

fiscados mediante o não resgate de hipotecas era comum.

Pessoas que não conseguiam resgatá-las, tinham seus bens

confiscados e arrematados em leilões públicos pelo porteiro

da Câmara.239

Hipotecava-se tudo, inclusive escravos. Podemos ver

isso em diversas escrituras de dívida, cuja garantia endereça-

va-se a pessoas, como foi o caso de João Baptista dos Santos,

que hipotecou seus escravos por dívida contraída a José Pe-

dro Pereira de Lima, em junho de 1846.240

O mesmo se fazia

–––––––––– 238GERSON, Brasil. História das Ruas do Rio. Rio de Janeiro. Lacerda Editores. 2000, p. 150. 239Primeiro livro das Ordenações, título 87. In: Código Filipino, p. 205-206.

Regimento dos Provedores, Tesoureiros e Oficiais das Fazendas dos Defuntos e

Ausentes, de 10.12.1613 (atribuição número 1). In: Raízes da Formação Administrativa

do Brasil, vol. 2, p. 481-492; e Sistema ou Coleção dos regimentos reais: contém os

regimentos pertencentes à administração da Fazenda Real…, vol. 3, p. 142-160.

240 AN: 10-13-79 – Microfilme. Livro de Escrituras no 199, 3o Ofício de Notas, f. 8v.

Page 118: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

118

com relação aos cofres públicos. Isso ocorreu no mesmo ano

com D. Cândida Gomes, que hipotecou seus bens ao Cofre de

Órfãos da Corte.241

O que importa aqui é perceber que os

bens apreendidos eram avaliados antes de irem a leilão públi-

co. Note-se que nos dois exemplos de arrematações, do Diá-

rio do Rio de Janeiro, havia avaliações em inventários. Estas,

por sua vez, não eram feitas de maneira descriteriosa. O

Senado da Câmara possuía à sua disposição diversos avalia-

dores, que apreçavam os bens penhorados. Desde avaliadores

de gêneros alimentícios242

e prédios urbanos243

a avaliadores

de bens móveis244

e escravos245

, conforme a lei de 20 de

junho e 25 de agosto de 1774, na qual “os Officiaes das

câmaras são obrigados a nomear annoalme Avaliadores de

deversos Officios, e de differentes coizas para avaliarem os

bens penhorados pr execuçoens”.

246

Quando vencia uma hipoteca, o Senado da Câmara

apreendia os bens penhorados e os avaliava mediante homens

encarregados deste ofício. Portanto, é a partir da documenta-

ção referente à Câmara que encontramos diversas pessoas

que concorriam a este ofício. Para ser Avaliador de escravos,

a pessoa deveria encaminhar ao Senado da Câmara uma peti-

ção e, se aprovado, receberia provisão de um ano para exer-

cer a função em nome de Sua Majestade Imperial. Aqueles

que se dedicavam a avaliar escravos não avaliavam outras

coisas, mas tão-somente escravos. Alguém que não fosse

“digno” do ofício de modo algum poderia exercê-lo.

O espaço social, caracterizado pelo conflito, produz, no

próprio relacionar-se a hierarquização decorrente do acúmulo

–––––––––– 241 AN:10-13-79 – Microfilme. Livro de Escrituras no 195, 3o Ofício de Notas, f. 20. 242 AGCRJ: 40-1-27, f. 2. 243AHCF: Cx. 11, lv. 33, f. 119–120. 244 AHCF: Cx. 11, lv. 33, f. 41v., 50 – 51. 245AGCRJ: códices 6-1-10, 6-1-11 e 6-1-12, 40-1-27. 246AGCRJ: 6-1-11, f. 41.

Page 119: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

119

de capitais. O Avaliador, por sua vez, não se subtraía a este

processo. A obtenção da licença anual incluía uma rígida

seleção para o preenchimento de apenas duas vagas.247

Para

isso, o candidato deveria ser detentor de uma série de capitais

que o elevassem a tal posição. Vale lembrar, que para preen-

cher os quadros do Senado da Câmara o candidato já deveria

ser, a priori, portador de alguns signos que lhe garantissem o

predicado da “bondade”. A dignidade, aqui, passa pelo crivo

étnico. Assim, era a “boa sociedade” que endossava seu acei-

te ao ofício. Era importante certificar-se, caso não de sua for-

tuna, de sua idoneidade.

O espaço denominado Senado da Câmara estruturava-

se a partir de uma série de critérios para o preenchimento das

funções menores, que não são escolhidas por voto, mas por

meio de processos internos que selecionavam para os diver-

sos ofícios, a saber: Avaliador (de escravos, bens da Câmara,

prédios rurais, prédios urbanos e fazendas), Arruador, Capitão

do Mato, Demarcador, Cobrador, Alferes de ordenanças,

Tabelião, Solicitador, Capitão de ordenanças, Inspetor de

quarteirão, Fiscal, Agente Portuário, Administrador das obras

públicas, Fiscal suplente, Escrivão do juízo, Professor públi-

co.248

O preenchimento destes ofícios passava pela compro-

vação da posse de capitais exigidos.

3.2. Saber e poder

Os Avaliadores de escravos, de modo geral, possuíam

uma função primeira que lhes garantia certo capital econômi-

co, como a grande maioria daqueles que preenchiam os qua-

dros do Senado da Câmara. Na cidade do Rio de Janeiro, a

função estava, em grande parte, entregue àqueles que tinham

negócios com escravos. Em fevereiro de 1808, uma disputa foi

–––––––––– 247AGCRJ: 6-1-11, f. 47. 248AHCF: Cx. 11, lv. 33 e 44.

Page 120: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

120

decidida em favor daquele que “negocea em escravos e sabe

pr esta razão o justo valor q‟ cada hum delles pode ter segun-

do as suas ides e configurações, rebustes, ou invalides”249

.

A razão de ser explícita é, sem dúvida, o conhecimento

da função, evidente que isso interessava. No entanto, esta não

parece a causa determinante. No exemplo citado, o candidato

perdedor, segundo os autos, “não tem negocio de escravos,

nem outra algúa ocupação”250

(grifo nosso). Esta é uma

afirmação indiciante. Não ter ocupação porque sua posição

lhe proporciona que outros produzam é sinônimo de status.

Ocupo-me em nada fazer, pois há quem faça por mim, sob

meu comando e para proveito próprio. No entanto, estar sim-

plesmente desocupado e padecendo necessidade implica ou-

tra coisa. Era o capital econômico que determinava o lugar da

pessoa. Seria inadmissível alguém sem posses enfileirar-se

junto aos membros do Senado. Não ter ocupação, pois sua

posição lhe permite eximir-se do trabalho braçal, é sinal de

distinção. Ao contrário, estar simplesmente desempregado é

localizar-se ao lado da “desordem”. O vencedor da disputa,

Joaquim José Pereira do Amaral, por sua vez, tinha negócio

com escravos, setor que rendia a maior porcentagem de lu-

cros na primeira metade do século XIX. Não chega a ser um

nobre, pelo menos na antiga concepção de nobreza ligada a

terra, mas, era portador de algum capital distintivo.

Se fizermos uma rápida comparação do ofício na capi-

tal do Império e no município do Desterro (atual Florianópo-

lis) perceberemos que as funções primeiras dos requisitantes

são distintas, mas todas elas referem-se a certa posse de capi-

tal econômico. No registro de Patentes e nomeações da

Câmara Municipal de Desterro, entre os anos de 1811 e 1829,

encontramos apenas seis nomeações ao cargo de Avaliador.251

–––––––––– 249AGCRJ: 6-1-11, f. 7. 250AGCRJ: 6-1-11, f. 7. 251AHCF: Cx. 11, lv. 33, f. 41v., 42, 42v, 51, 51v., 53, 116v., 117.

Page 121: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

121

Destes, dois são militares (tenentes) e um, denominado sim-

plesmente “Capitão”, se não militar, por nomeação honrosa,

dono de terras e “almas”.

Evidente que tais homens não se identificavam com a

nobreza, cuja ociosidade, como vimos, dava o tom do prestí-

gio, sem dúvida alguma, um dos símbolos de poder na socie-

dade de corte oitocentista. Trabalho era coisa de negro, ou de

necessitado. A estrutura que identificava trabalho manual

com indignidade (fruto do uso e abuso do braço escravo)

adquiriu legitimidade junto aos dominados. É bastante

conhecida a busca de escravos pelos mais pobres, em tempos

de farta oferta ou mesmo por ex-escravos. Embora, o fator

econômico influenciasse na qualidade do escravo adquirido,

secundarizava-se essa questão diante da força simbólica de

ser reconhecido como “senhor de escravos”. Fica claro, por-

tanto, a legitimação da dominação. No entanto, o acolhimento

desta se dá de modo diversificado, dependendo do lugar

social dos indivíduos.

Se os mais pobres almejavam os títulos e as honrarias

da nobreza, mesmo que apenas aparentemente, o mesmo

ocorria com aqueles que possuíam capital econômico, mas

não simbólico. Não eram duques, condes, senhores da cor-

te… Mas seus hábitos procuravam assemelhar-se àqueles,

cujo modo de ser e ver o mundo se impunha pela dominação

simbólica, mas também econômica. É impossível separar o

capital econômico da produção simbólica. Pessoas que con-

seguiram acumular algum capital pecuniário aplicavam-no

em outros capitais que lhe trouxessem maior prestígio e legi-

timidade, veja os pobres desejosos do “senhorio”, por mais

que continuassem pobres. Também, aqueles negociantes da

praça carioca, que já possuíam escravos e bens invejavam as

honrarias e um lugar no centro do poder local.

Caminho singular de aproximação do poder fornecia

alguns cargos menores do Senado da Câmara. Quem os pos-

suía não era detentor de vastos capitais, mas necessitava de

Page 122: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

122

alguma legitimidade, em geral garantida pelo econômico,

pelo menos no caso do Avaliador. É importante perceber no

processo de hierarquização sua dimensão vertical e hori-

zontal, que se dá na relação interpares e destes com outros.

Membros do mesmo grupo social, vistos de maneira seme-

lhante por outros grupos em escalas sociais mais elevadas,

verticalizam-se entre seus pares. Assim, nas ocupações meno-

res da Câmara ocorria a valorização de uns e a depreciação de

outros na luta simbólica por legitimação. Vale lembrar, que na

sociedade de corte, quanto menos esforço físico, mais nobre a

função. Não há como comparar, segundo a luta simbólica que

se estabelecia um Capitão do Mato ou um Arruador, com um

Fiscal, Escrivão ou, mesmo, um Avaliador.

O poder de nomeação promove mais facilmente o aco-

lhimento. Para a elite dominante, era interessante a manuten-

ção de um projeto que visasse à conservação da ordem esta-

mental em seu arcaísmo. É aqui que entra o poder de nomea-

ção. A ordem só consegue se manter na medida em que seja

consentida e legitimada. O acolhimento do corpo social, em

seus diversos níveis na sociedade patriarcal, era garantido

pela adesão voluntária daqueles cujo capital econômico ga-

rantia a dominação paternalista sobre determinada região e

pessoas. Ser portador de certa quantidade de bens materiais e

pecuniários era garantia de participação, mesmo que indireta,

no processo de dominação, amalgamando-se em sua estrutura

de maneira funcional. Neste sentido, a busca ao cargo de Ava-

liador, ganha sentido pelo valor simbólico que adquire o

nomeado. Estando junto ao Senado da Câmara, aproxima-se

do centro de decisões e ao mesmo tempo torna-se mediador

de tão procurada mercadoria: o escravo. Outra forma de beneficiamento financeiro poderia con-

trair o Avaliador na formação de grupos que, supostamente, se beneficiariam com os leilões públicos. A facilitação no direcionamento da “mercadoria” poderia favorecer compra-dores poderosos, beneficiando com algum capital econômico e um estreitar-se de laços com homens de poder. Numa so-

Page 123: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

123

ciedade de relações pessoais nada mais apropriado que a ma-nutenção de bons relacionamentos. Ser Avaliador de escra-vos era de alguma forma identificar-se com o poder. É esta a razão de ser da procura que se estabelecia em torno de uma função extremamente restrita, com apenas duas vagas

252 para

a capital do Império. Status, na sociedade de corte, contudo, se adquiria não apenas por razões econômicas. Outros tipos de capitais faziam-se igualmente importantes.

O Avaliador de Escravos deveria ser detentor de um

capital cultural, que não era sistematizado, mas acumulado

e cultivado no cotidiano. Incorporado pela práxis da labuta

no negócio que lhe confere conhecimento sobre os demais

membros da sociedade, de forma que, o reconhecimento pelo

acúmulo deste capital socialmente sancionado, provém das

pessoas, compradores, negociantes… Mas também do Esta-

do, que lhe outorga um título.

Neste sentido, o Avaliador, por ser portador de um

conhecimento específico, é capaz de promover o devido valor

da “mercadoria humana”, hierarquizando-a mediante padrões,

culturalmente estabelecidos, que objetivavam sua qualidade.

Era comum avaliar, antes de comprar, parte corriqueira no

processo de comercialização. Nas aquisições particulares, era

costume levar um cirurgião “a fim de fazer passar o escra-

vo pelas provas e exames necessários”.253

Estas avaliações

tinham um objetivo bem específico: verificar a integridade

física do escravo. Era necessário certificar-se da saudável cor

da tez, a consistência das gengivas, a idade e a origem; “em

seguida fazem-nos saltar, gritar, levantar pesos, a fim de

apreciar o valor de suas forças e sua habilidade. As negras

são avaliadas de acordo com a idade e os encantos”.254

O

Avaliador, a serviço do Estado, fazia a vez dos cirurgiões a

serviço dos particulares.

–––––––––– 252AGCRJ: 6-1-11, f. 47. 253DEBRET, Jean Baptiste. Op. cit., p. 229. 254Ibidem, p. 225.

Page 124: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

124

No entanto, não eram apenas as qualidades físicas que

estavam em jogo. Era preciso verificar o conhecimento que

aquele cativo possuía. Evidente que os negros novos, recém-

-chegados, eram avaliados pela aparência e pela força. Havia,

contudo, serviços que exigiam conhecimento e para isso o

negro ladino, conhecedor da língua e de um ofício valia mais.

Os escravos eram utilizados em todos os setores da vida

urbana: sapateiros, cirurgiões, mecânicos, balconistas… To-

das funções que exigiam inteligência e habilidade. Um cativo

que fosse oficial, sem dúvida, valia mais que o “boçal”. Tes-

temunha do primeiro quarto do século XIX, Eschewege, rela-

tava que por um escravo comum no ganho, se pagava 300

réis de diária “aos piores aprendizes 600 réis, aos mestres

1200 réis”.255

Sem entrarmos nos méritos dos valores, parece

correto afirmar que um bom escravo oficial fornecia a seu

senhor uma boa renda e seu valor para venda superava o

escravo novo ou o ladino sem habilidades.

Ao falarmos, portanto, de um capital cultural, da qual o

Avaliador é detentor, pensamos em todos estes fatores na qual

o encarregado da avaliação deve estar atento. Conhecer es-

cravos, não significava apenas averiguar sua força física, mas

sua adequação ao mundo da ordem. Ao deter um capital cul-

tural, o Avaliador devia promover a hierarquização do negro

no campo da escravaria. A exatidão que a posse de tal capital

lhe conferia, fazia dele alguém experimentado para julgar e

precisar o lugar específico da mercadoria humana, atribuin-

do-lhe valor. Por isso, como vimos, era importante que o Ava-

liador fosse também negociante de escravos, pois, “sabe pr

esta razão o justo valor q‟ cada hum delles pode ter segundo

as suas ides

e configurações, rebustes, ou invalides”.256

Em

pedido encaminhado ao Senado da Câmara, pelo Capitão

Daniel Luiz Vianna, em 18 de outubro de 1824, por exemplo,

–––––––––– 255SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Op. cit., p. 61. 256AGCRJ: 6-1-11, f. 7.

Page 125: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

125

havia um anexo comprovando seu conhecimento da função,

pois negociava escravos por vinte anos.257

Sua experiência no

trato com escravos garantiu-lhe acesso à Câmara. O poder

não apenas produz um determinado saber, mas exige que

outros o legitimem. A relação saber/poder produzia a reitera-

ção daquele modo de ser e hierarquizava os indivíduos

mediante a adequação ao esperado.

A importância que tinha o escravo para a economia e a

sociedade luso-brasileira, pode ser facilmente percebida pela

exigência conferida àquele que deveria ocupar o cargo de

Avaliador. Era necessário que ele fosse portador não apenas

de capital econômico. Para preencher os quadros do Senado

da Câmara, fazia-se necessário que, para seu justo exercício,

o candidato fosse portador de um conhecimento específico,

daquele conjunto de qualificações intelectuais exigidas para o

exercício do ofício. Qualificações estas que já as possui um

negociante de escravos.

Os dois capitais, econômico e cultural, “fornecem os

critérios de diferenciação mais pertinentes para construir o

espaço social”258

, verticalizando os membros da sociedade e

promovendo a distinção entre os detentores do mesmo capi-

tal, respectivamente. Na primeira metade do século XIX, por-

tanto, ser Avaliador, licenciado pelo Senado da Câmara e

negociante de escravos, no maior “mercado de almas” das

Américas, sem dúvida alguma, representava, além de divisas,

status e poder.

Na indissociável relação entre os capitais econômico e

cultural, temos outros dois, que tornam a percepção social do

objeto em questão, ainda mais preciso. Licenciado para atuar

em conformidade com a legalidade, em benefício do próprio

Estado sobre a escravaria, o Avaliador passaria a gozar de um

conjunto de relações sociais, junto ao Senado e fora dele, que

–––––––––– 257AGCRJ: 6-1-12, f. 44. 258BONNEWITZ, Patrice. Op. cit., p.54.

Page 126: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

126

garantiriam o endosso e a legitimação necessária à perma-

nência na função. Bourdieu denomina a instauração e a

manutenção das relações de capital social. Como parte deste

jogo de relações, existe o ritual: um conjunto de boas manei-

ras relacionado à honra e ao reconhecimento. O capital sim-

bólico, portanto, efetiva os demais capitais na própria relação

social, tendo por fim a legitimação pelo reconhecimento da

distinção.

As relações sociais derivam do acúmulo de diversos

capitais e, portanto, do lugar que o indivíduo ocupa. Preten-

der o cargo de Avaliador significava certificar-se desta ques-

tão. Sabemos que os membros do Senado zelavam pela com-

provação da honra de seus pares. Ninguém reconhecidamente

“bom”, conceito que implicava seu lugar social, poderia ocu-

par um posto no centro instituído do poder local. Neste senti-

do, uma das partes do processo de seleção ao ofício, consistia

em averiguar sua conduta. Para isso, consultavam-se os ve-

readores e demais nomes da praça carioca. Evidente, que o

sucesso, ou o fracasso, de tal acareação dependia bastante do

capital social do nome em questão.

Joaquim José Pereira do Amaral, em 4 de julho de

1807, apresentou anexa à petição, uma carta referendando-o

ao cargo. O autor, José da S. Loureiro Borges, foi Juiz de

Fora, ex-presidente do Senado e Auditor das Tropas de Mar e

Terra.259

Não resta a menor dúvida que a sociedade é um

espaço relacional, cujas posições estabelecem-se nas próprias

relações. Pereira do Amaral permaneceu por mais de vinte

anos no ofício de Avaliador. Sua primeira petição foi feita em

1805,260

encerrando furtivamente sua carreira, aos 18 de

outubro de 1827,261

onde embarcou para Portugal deixando

quatro filhos. Sua longa permanência em uma função que

–––––––––– 259AGCRJ: 6-1-11, f. 16. 260AGCRJ: 6-1-10, f. 8. 261AGCRJ: 6-1-12, f. 47.

Page 127: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

127

pedia apenas dois membros e estimulava o desejo de tantos

outros, pela sua representatividade, devia-se não apenas à

sua competência, mas também à malha relacional que cons-

truiu e preservava.

Deliberar sobre mão de obra tão desejada, que movi-

mentava não apenas recursos, mas prestígio era desejo de

muitos indivíduos. A busca pela proximidade do poder criava

a interação entre partes afins, de forma que, a aquisição de

determinado lugar neste campo, e sua permanência, dependia,

em grande parte, da disposição relacional do indivíduo e de

sua capacidade de nomeação. O que levaria um ex-presidente

do Senado a indicar um nome ao cargo de Avaliador? Seria

apenas expressão de bondade e reconhecimento de um valor?

Aparentemente, Pereira do Amaral tinha mais a ganhar do

que o, então, Auditor das Tropas de Mar e Terra da Corte.

Mas o que poderia este auferir com a indicação?

Se há um local em que podemos situar como o lócus

privilegiado do poder no século XIX, em especial na sua pri-

meira metade, é a Câmara Municipal. A vida política centra-

va-se ali. Todos os aspectos da vida municipal eram cogitados

em suas dependências: saúde pública, impostos municipais,

contratos, organização de expedições de recaptura de escra-

vos… Tudo passava pela Câmara. Preencher seus quadros é

cercar-se do poder instituído, distinguir-se e dominar. O Ava-

liador de escravos, de modo especial, vivia esta relação no

cotidiano de sua práxis, pois, atuando nas praças,262

era a mão

do Estado, que em nome de Sua Majestade, a quem jurava

bem servir,263

versava sobre a escravaria. Seu reconhecimen-

to social, decerto, motivava outros à troca de favores recípro-

cos. Em dado momento, o Auditor das Tropas lhe presta um

favor, decerto, esperando o mesmo em tempos futuros, ou

agrados diversos, no que tange a ocupação do Avaliador.

–––––––––– 262AGCRJ: 6-1-11, f. 17. 263AGCRJ: 6-1-12, f. 5-5v.

Page 128: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

128

Capital social era algo que realmente aparece nos autos de

Joaquim José Pereira do Amaral. Em 1817, ele recebe indica-

ção para permanecer na função do próprio D. João.264

Esta malha relacional, na qual os indivíduos interagem

num determinado campo específico, é vital no processo de

conservação-alteração das respectivas posições. O trabalho de

sociabilidade predispõe o grupo à influência mútua, cujas van-

tagens sociais são garantidas pela manutenção das mesmas

relações, que atuam segundo o aparato de capital, conferindo

ao agente crédito e autoridade, assim como reconhecimento e

posse. O Avaliador, em questão, jamais permaneceria tanto

tempo na função, se não pelo capital social que detinha.

Decerto, a nomeação concedia uma série de vantagens sociais,

cuja consequência imediata é o acumulo de capital simbólico.

Do ponto de vista da legitimidade, o porta-voz do Esta-

do está cercado de uma atmosfera, simbolismo, cuja oficiali-

dade garante o modo de ser do agente e seu trato pelos de-

mais. A nomeação tem a capacidade de “subtrair os seus

detentores à luta simbólica de todos contra todos, dando acer-

ca dos agentes sociais a perspectiva autorizada, reconhecida

de todos, universal”.265

Sobre o capital simbólico passamos a

tratar agora.

O Avaliador de escravos era portador de um capital

simbólico profundamente arraigado na cultura da socieda-

de oitocentista luso-brasileira. Entendemos cultura em seu

sentido amplo, um conjunto de normas, valores e práticas

que se adquiri e partilha no campo social. Neste sentido,

podemos pensar que a produção cultural do século XIX

engendrou uma lógica de distinção baseada no trabalho

compulsório, que predominava francamente no Rio de Ja-

neiro. Tudo aquilo que parecia desprezível ao homem

branco era função dos escravos.

–––––––––– 264AGCRJ: 6-1-10, f. 60. 265BOURDIEU, Pierre. Op. cit., p. 147.

Page 129: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

129

A vida rentista que levavam aqueles que podiam adqui-

rir um escravo, muito surpreendia os viajantes estrangeiros.

“A ociosidade, a propósito – comenta Pierre Sonnerat, nave-

gador Francês que permaneceu no Rio de Janeiro por quase

dez meses (22 de abril – 10 de maio de 1748) – passa, entre

eles, por sinal de dignidade (…) Todos querem ser nobres

e (…) coisas simples como dar ordens aos escravos e fiscali-

zar o seu trabalho parecem-lhes contrárias à grandeza e à

opulência que ostentam.”266

Mas, não eram apenas os pobres

que desejavam o modus vivendi da elite dominante. Muitos

dos negros forros, como vimos, assim que podiam compra-

vam sapatos e escravos. Estas categorias de visão de mundo,

são próprias da legitimação da violência simbólica. Os axio-

mas são aceitos e vividos como óbvios. Em três séculos de

escravidão, nada mais óbvio que a acomodação das represen-

tações dominantes, cujo processo de condicionamento já

estava mais que legitimado no século XIX.

A institucionalização, muito contribui para a difusão de

valores e crenças. Ao instituir a realidade, materializando-a

num órgão específico, cria-se uma instância de socialização.

Socializar, nada mais é que incorporação de habitus, produzi-

dos, interiorizados e transmitidos, promovendo assim a inte-

ração do indivíduo com a sociedade. A concessão de crédito

às instâncias de poder, processo natural de acomodação e

legitimação promove ainda mais o uso da autoridade como

normalizador do real. Por que crer algo como natural? Parece

natural pelo consenso, que delega valor a determinada visão

da realidade. Assim, o Senado da Câmara, como centro de

irradiação do poder político, determinava e precisava a reali-

dade nas múltiplas instâncias da vida social. Isso, contudo, se

deve à capacidade de nomeação.

Atribuir títulos e rótulos oficiais é instituir a realidade.

A promoção de indivíduos tem em vista a distinção no campo

–––––––––– 266SONNERAT, Pierre. In: FRANÇA, Op. cit., p. 211.

Page 130: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

130

social, a fim de garantir a representatividade da realidade ins-

tituída. Essa eficácia simbólica, na qual o agente sente-se

representante da instituição, só funciona devido o funciona-

mento do espaço social. O capital simbólico alcança sua ra-

zão de ser no crédito, naquilo que é visto como justo, digno e

que é consentido e percebido assim pelos demais membros da

sociedade. Existir socialmente é ser percebido e reconhecido.

De modo geral, o processo de representatividade passa por

este viés. A reputação e o prestígio de determinada institui-

ção, atravessa seu agente representante, de forma que este

passa a fazer às vezes da instituição apropriando-se de um

capital, da qual ele participa pelo simples fato de representar.

O nomeado oficialmente é reconhecido pelas demais pessoas

nas quais se relaciona. É a instituição que dá prestígio ao

indivíduo. Ocupar um determinado lugar e compartilhar de

seus direitos e reputação é antes de tudo adquirir um capital

distintivo. Assim, onde está o agente representante está, tam-

bém, a instituição que o nomeou.

Esta é a relação do Avaliador de escravos com o Senado

da Câmara. Funções representativas do poder político nos

oitocentos eram garantia de status e posição social, que esta-

belecia inevitáveis ligações na malha relacional do indivíduo

nomeado a outros indivíduos e grupos diversos. Principal-

mente, no que tange o “mercado de almas”, havia muito inte-

resse de pessoas variadas, empresas mercantis e casas comer-

ciais, que se acotovelavam neste campo. A empresa escravis-

ta, ao mesmo tempo em que garantia a reestruturação da mão

de obra pelo comércio transatlântico, com o tráfico de africa-

nos, promovia o reingresso de braços já cansados recomercia-

lizando-os em um mercado altamente diversificado.

Vendas informais e leilões estavam disponíveis nos jor-

nais, em placas pelas ruas e na boca das pessoas. Escravos de

diversos ofícios eram comercializados em distintas valoriza-

ções. O comércio da mão de obra escrava movia a economia

e a sociedade, implicando no processo de hierarquização,

Page 131: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

131

donde as diferenciações sociais podem ser facilmente obser-

vadas nas transações comerciais de escravos novos e ladinos.

Enquanto o branco não abastado possuía um ou dois escra-

vos, colocados no ganho ou na sua pequena propriedade, os

mais enriquecidos regalavam-se em nada fazer, pois tinham

diversos cativos à disposição, servindo de portas à dentro e à

fora. É neste ambiente que se insere o Avaliador, versando

sobre os escravos hipotecados ao Estado.

O prestígio que gozava a função, sem dúvida alguma,

promovia a distinção social267

do agente nomeado para, em

nome de sua Majestade, promover o reingresso dos “bens

semoventes” apreendidos pelo não resgate da hipoteca. As

vendas ocorriam “sempre em leilão público, e a quem mais

der”,268

ritual que tem no centro negociável o Avaliador, re-

presentante da legalidade, a quem cabia o valor. O crédito

conferido à sua autoridade e a crença natural da realidade

dada promovia aquele que se identificava com este constructo

um capital, cujo simbolismo fomentava a dominação e a hie-

rarquização de pessoas e bens, mesmo que estes se confun-

dissem num bem pessoal: o escravo.

O simbolismo, inerente ao cargo, portanto, promovia a

personificação do poder. Numa sociedade de relações pes-

soais, onde o prestígio era fator de hierarquização, aquele no-

meado para exercer um determinado cargo de mando, vi-

venciava uma realidade na qual o reconhecimento adquiriu

fator fundamental. Neste sentido, era preciso, para não perder

o prestígio e, também, a legitimação, correspondendo ao con-

junto de rituais que o capital simbólico impunha, relativo a

boas maneiras, conduta e relação interpessoal. A efetivação

deste capital dependia da capacidade relacional do nomeado.

Este capital, na verdade, poderia ser considerado um bem,

–––––––––– 267Cf. ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e

da aristocracia de corte. Op. cit., p. 35 e 116. 268AHCF: Cx. 11, lv. 54, f. 7.

Page 132: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

132

pois adquirir tal simbolismo, na sociedade de corte, significa-

va promover, há seu tempo, as três outras formas de capital.

3.3. O Caminho da Provisão

Para que alguém pudesse preencher uma das duas vagas

disponíveis à função de Avaliador de escravos, na cidade do

Rio de Janeiro, em primeiro lugar deveria fazer uma carta de

petição destinada ao Senado da Câmara. Assim o fez Joaquim

José Pereira do Amaral, aos 21 de agosto de 1805: Diz Joaquim José Per

a do Amaral, negociante de es-

cravos, q se acha próximo de acabar hum dos avaliadores

de escravos do Conselho, q servem homens de deferentes

ocupaçoens, e por q no Supe convem todas as sirconstancias

precisas recorre a V. Mces

queirão provir ao Supe (…) o

emprego q suplica, o q justificará sendo necessário.269

Sem dúvida era preciso justificar sua adequação ao ofí-

cio. Os candidatos, de modo geral, dependendo do capital

social que ostentavam, apressavam-se em comprovar sua ade-

quação aos princípios de idoneidade e conhecimento requerido

para acomodação na função, levando consigo carta comproba-

tória. Um bom exemplo por nós já citado é da carta de José da

S. Borges, auditor das Tropas de Mar e Terra do Brasil, que

endossava o acesso ao cargo de Joaquim José Pereira do Ama-

ral, como podemos ver em sua carta que se segue: José da S. loureiro Borges, Juiz de fora, Crime Provedor

exprezidente do Senado, Auditor das Tropas de Mar Terra

deste Estado do Brazil pr S.A.R.

Atesto que Joaquim José Pereira do Amal servindo de

Avaliador de Escravos se portou de tal maneira que nunca

me constou Cometer crime que o mal conceituasse e por

esta me ser pedida lhe mandei passar que assignei.

Rio de Janro, 4 de Agosto de 1807.

José Loureiro Borges270

–––––––––– 269AGCRJ: 6-1-10, f. 45J. 270AGCRJ: 6-1-11, f. 16.

Page 133: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

133

O mesmo podemos ver com relação ao Capitão Daniel

Luiz Vianna: Nós abaixo assignados attestamos e juramos, sendo

necessário em como o Capitão Daniel Luiz Vianna, tem

todo o conhecimento do negocio de Escros

pela grande prá-

tica que tem tido, e tem de os vender a mais de 20 annos, e

por nos ser esta pedida a mandam os passar & só a assig-

namos.

Rio de Janeiro 18 de Outbro 1824

Joze Alex Ferre Brandão

João Francisco Pera de Affon

cas

Lourenço Anto de Rege…

Thomé Ribeiro

João Alz‟de Sza Guim

es

Joaquim Antonio Ferra 271

No entanto, a própria Câmara se encarregava de averiguar

a idoneidade do pretendente. Após abrir o processo com pedido

formal ao Senado, um segundo momento consistia em fazer

Correr Folha. Era uma acareação pública nas quais os escrivães

atestavam, após consulta junto aos cidadãos, a idoneidade do

pretendente, ou seja, sua adequação ao regime de verdade,

necessário à manutenção e reiteração temporal do constructo e

do status quo dominante. Acarear a idoneidade nada mais é que

perceber seu lugar no campo social. Estamos falando, então, de

prestígio. Participar da Câmara, ser considerado cidadão era

uma honra devida a alguém reconhecido por seus pares. Afinal,

honradez neste caso significa existir socialmente, estar confor-

me a ordem e por ela constituído singularmente.

Esta parte do processo objetivava perceber o lugar

social do pretendente. Fazia-se preciso reconhecer sua distin-

ção e honradez, ou seja, sua diferenciação em relação à

desordem. Era comum tanto para o primeiro pedido de provi-

são, quanto para sua renovação, como podemos ver no exem-

plo a seguir:

–––––––––– 271AGCRJ: 6-1-12, f. 44.

Page 134: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

134

Diz Joaquim Je Pereira do Amaral Avaliador dos Escravos

desta corte que se lhe faz preciso correr folha pos

Escrivains

que costumão responder as mesmas. Facão o Supte.

P. a V.As Seja Servido mandar paçar Alvara de folha

Corrida.272

O Dr Ant

o Corr

a Picanço, Fidalgo, Proffesso na Ordem

de Christo, Dezor

da Caza da Suppam

e nella Corregor

da

Côrte, e Caza, &

Mando aos Escrivaens criminaes, q‟ nesta dicta Côrte

custumão responder as folhas dos culpados, respondão a do

Suppe com culpa ou sem-Na. Rio 10 de Dezbr

o de 1821.

273

Vale notar a importância das titulações. Adequado per-

feitamente ao mundo da ordem, segundo o regime de verda-

des em vigor no século XIX luso-brasileiro. A resposta ao

Dr Antonio Correa Picanço não tardou, de modo geral não

demorava mais que uma semana: Rio 15 de dezembro de 1821

Manoel Xavier de Barroz guarda Menor do Tribunal da

Caza da Supp. desta Corte &

Certifico que esta folha vai respondida por todos os

escrivaens criminaes que nesta dita corte custumão a res-

ponder em fé do que passeÿ a presente e assigneÿ.

Rio, 15 de Dezembro de 1821

Manoel Xavier de Barroz274

Como o desenrolar destes processos nem sempre se dava

com tranquilidade, era prudente fazer procuração a algum

Vereador a fim de garantir os fins desejados. Apenas duas va-

gas não eram suficientes para a satisfação do desejo daquela

gama de pretendentes, de forma que agravos e acordos diver-

sos faziam parte da rotina destes processos. Veremos isso deta-

lhadamente no próximo capítulo. Agora, nos basta perceber

–––––––––– 272AGCRJ: 6-1-12, f. 2. 273AGCRJ: 6-1-12, f. 2v. 274AGCRJ: 6-1-12, f. 3.

Page 135: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

135

que era prudente cercar-se de precauções. Muitos candidatos,

então, concediam plenos poderes a um Procurador que deveria,

com a devida procuração lavrada em cartório fazer valer os

direitos do Suplicante, como fez Pereira do Amaral. Aos seis de Fevereiro de mil oito centos e Oito annos,

nesta Cidade do Rio de Janeiro, em O meu escritório o…

[sic] Joaquim José da Rocha digo do Amaral e por elle me

foi dito que para esta cauza de agravo faria seus procura-

dores aos Senadores Jose de Oliveira Fagundes e Barilis

[sic] Ferreira Duarte e aos solicitadores Maximiliano

Alves de Araújo, e Antonio de Pires e Silva, aos quais

todos juntos, e a cada hum (…) dava todos os poderes que

em Dirto

sejão concedidos de opitarem, agravarem, em-

bargarem e jurarem em Sua alma todo e qual quer licito

juramto

e de calunia, e que So para Sy rezervava toda…

[sis] citação; e para Constar fiz este termo em que Me

assinou em Antonio Martins Pinto de Britto. Escrivão.

Joaqm Joze Per

a do Am

al 275

Uma vez admitido no ofício, o candidato recebia provi-

são para exercício de um ano na função, devendo jurar diante

do presidente do Senado bem servir ao emprego que recebia

em nome de sua Majestade Imperial, para o bem público,

atuando conforme as posturas do poder local, conforme

podemos conferir no exemplo descrito: O Senado da Câmara desta Corte do Brazil &.

Fazemos saber aos que a presente Provizão virem que

Joaquim Jozé Pereira do Amaral nos requereo Provimento

para continuar a servir o emprego de Avaliador de Escravos

nesta Corte e Constando-nos que bem tem servido: em

attenção ao referido. Achamos por bem prover (como

por esta fazemos) ao dito Joaquim Jozé Pereira do Amaral

no emprego de Avaliador de Escravos desta Corte por tem-

po do futuro anno de 1823. Se tanto nos parecer conserval-

lo, ou S. Magestade Imperial não Mandar-o contrário: e

com a dita serventia ficará sugeito a alteração que houver, e

haverá os seus endumentos [sic] na forma do seu Regimen-

–––––––––– 275AGCRJ: 6-1-11, f. 6.

Page 136: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

136

to. E por firmeza de tudo jurará perante o Dezembargor

Juiz

Presidente de que se fará termo nesta que vai por nós assig-

nada e com o sello do Senado. Dada em Vereação de 13 de

Novembro de 1822. Eu, Joze Martins Rocha, Subscrevi.

Jose Paulo Sigueira Nabuco Araújo

João Suares de Bulhoens

Domos

Vma G

el do Amaral

Jozé Anto dos Santos Xavier

Provizão pela qual V.S. há por bem prover a Joaquim

José Pereira do Amaral no emprego de Avaliador de Escra-

vos desta Corte por hum anno na forma acima.

Para V.S. ver 276

Jurou perante o Dezembargador Juiz Presidente do Sena-

do de servir bem o Emprego de Avaliador na forma da Provi-

zão retro, guardando em tudo o serviço de Sua Magestade

Imperial, bens públicos e as Posturas do Senado. Rio aos 13

de Novembro de 1822. Eu José Martins Rocha a escrevo.277

Vale a nota na qual havia certa insegurança no exercício

do ofício. Era um direito de sua Majestade e/ou dos membros

da Câmara poder retirar o concedido. No mais, restava ao

recém-avaliador, após provisão, receber licença para exercer

o ofício junto à praça. 18 de Dez

bro de 1824.

Diz Joze Antonio de Abreu Guimaraens, que para bem

de sua justiça se lhe faz preciso que o Escrivão do mmo

Senado lhe passe pr Certidão. Seo Sup

te jurou o projecto da

Constituição deste Império.

Pa V.V. SS. se dignem mandar-lhe passar a ditta Certi-

dão na forma requerida.278

Estes eram, portanto, os principais passos previstos

pela burocracia em sua legalidade operacional. Na prática as

coisas não eram tão simples ou mesmo tranquilas. Uma rede

relacional privilegiava poucos homens bem localizados no

–––––––––– 276AGCRJ: 6-1-12, f. 5. 277AGCRJ: 6-1-12, f. 5v. 278AGCRJ: 6-1-12, f. 16.

Page 137: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

137

campo social, portadores de uma série de capitais que Va-

lendo-se do poder que exerciam junto à Câmara Municipal

beneficiavam-se mutuamente com um sistema de apadri-

nhamento e troca de favores que, inclusive, dificultava o

provimento de muitos pretendentes ao ofício. Passemos,

então, ao estudo de casos específicos e a precisão desta

malha relacional hierarquizante.

Page 138: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

138

Page 139: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

139

4

PODER E HIERARQUIZAÇÃO

4.1. Status e Representatividade

Em 1775 toma posse o primeiro Avaliador de escravos

da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Jerônimo

Pereira Guimarães,279

é um caso bastante distinto daqueles

que veremos mais adiante. Estabelecida a primeira eleição

por Ordem Régia, recebeu o eleito sua provisão aos 22 de

março do citado ano. Curioso é que em primeiro de abril de

1778 o mesmo Jerônimo faz procuração a Francisco Xavier e

José Alberto Monteiro.280

Concedia-lhes amplos poderes para

apelar, agravar, embargar e jurar em seu nome, não para

assegurar-se de sua continuidade, mas, contrariando as inten-

cionalidades comuns de reiteração, preocupava-se em desli-

gar-se da ocupação. Tal questão podemos ver em seu agravo

exigindo sua saída da função: Diz Jerônimo Pereira Guimaraenz, q estabelecendo por

Ordem Régia nesta cidade a elleição de Avaliadores pello

Senado da Câmara, foi o Supte nomeado p

a Avaliador dos

Escravos no primeiro anno deste estabelecimento que foi o

de 1775, enq‟ serviu como… [sic] da sua Provizam inclusa e

não tendo… [sic] mais do q‟ dois annos… [sic] hé agora o

–––––––––– 279AGCRJ: 6-1-10, f. 2-8. 280AGCRJ: 6-1-10, f. 4.

Page 140: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

140

Supe nomeado outra vez para o mesmo emprego, no pres

e

ano de 1778 e pedindo vista da elleição para mostrar que ella

não podia ter lugar na forma da Ley do Reino; pois os luga-

res, e empregos do Conselho dados pela Câmara, não se

devem dar a mesma pessoa sem terem passados três annos…

[sic] o Juiz pela Ley, que recorresse a Va Exc

a como consta

do seu despacho também incluso; mas porq tendo o supe ser-

vido este emprego sem ter ainda passados três annos depôs q

… [sic], e desobrigando-o a Ley em circunstancias taes de

servir; espera o Supe embaraçado para não poder cumprir

com este onuz, porq não só tem o Seu negócio q‟ acudir, mas

também encarregado das dependências da casa de seu irmão

o Alferes José Pereira Guimaraens, que passou a Lisboa a

estabelecer a correspondência de seu negócio e finalme tem a

Cidade muitas pessoas que estão desembaraçadas pa poder

servir o do emprego para o qual o Sup

e não foi nomeado,

mais do que pa satisfazer os empenhos de pessoas que quize-

rão livrar-se deste emprego: portanto.

Pa V. Exca se digne mandar q o Sup

e seja escuso do d

o

onuz, visto q a Ley escuza e q os officiais da Câmara pro-

sedão a nova elleição conforme a Ley e a Justiça de q‟ V.

Exa hé o mais fiel Observador.

281

A função era temporária. Sua provisão possuía validade

de um ano, podendo a mesma pessoa assumir semelhante função somente após três anos, conforme legislação cita-da pelo agravante. Segundo seus autos, Jerônimo reclama por estar sendo eleito para um terceiro mandato no ano de 1778. Estranho notar que se costumava eleger pessoas inte-ressadas. Estas deveriam encaminhar petição, a Câmara ave-riguava idoneidade junto à praça etc. Ou seja, havia toda uma ritualização que vedava ou permitia o acesso à ocupação pre-tendida. Parece-nos que isso não ocorreu nos primeiros tem-pos em que a função tornou-se efetiva na cidade.

Reclamando de sua nomeação, Jerônimo apela à Lei

do Reino e justifica-se alegando não poder conciliar a fun-

ção com sua ocupação primeira. Possuindo um negócio pró-

–––––––––– 281AGCRJ: 6-1-10, f. 5.

Page 141: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

141

prio e tendo de cuidar da casa de seu irmão, então em Lis-

boa, procurou esquivar-se de sua responsabilidade junto à

Câmara no que se refere às avaliações dos escravos. Como a

maioria dos Avaliadores não possuem inventários post mor-

tem ou qualquer outra fonte de pesquisa alheia à documen-

tação relativa à função, pouco podemos concluir de sua tra-

jetória extraoficial. As razões explícitas foram aqui elenca-

das, no entanto, não há como confirmar estas informações,

nem acrescentar algo novo, pois não há fontes disponíveis

para tanto. Fato é que o primeiro Avaliador não parecia mui-

to a vontade na função. Existe uma lacuna na documentação

e não há evidências de outro Avaliador no mesmo período,

nem se Jerônimo permaneceu no cargo. Apenas em 1797

encontramos nova petição.

José Roberto Pereira Lacerda282

, fazendo pedido à

Câmara candidatou-se à função de Avaliador de escravos e

foi provido aos 25 de janeiro de 1797. No entanto, diferente

de nosso primeiro Avaliador, alguns obstáculos se apresenta-

ram. José Antônio Teixeira de Carvalho283

, aos 14 de dezem-

bro daquele ano entra com um agravo à sua continuidade. Se-

gundo ele, José Roberto estaria “impossibilitado por mo-

léstias”284

e, por isso, não poderia manter-se numa função iti-

nerante que deveria atender às diversas praças da cidade.

Como de costume, a Câmara passou a certificar-se da

conduta de seu, ainda, Avaliador e da procedência das novas

informações trazidas pelo agravante. Aos 16 de dezembro, o

Guarda Menor Manuel de Sá atesta estar o agravado sem cul-

pa e aos 23 de dezembro José Roberto consegue sua renova-

ção e permanência na função. Temos, então, a primeira dispu-

ta em torno da ocupação. Tal interesse aguça nossa curiosida-

de, pois, como veremos, nos diversos casos, as disputas eram

–––––––––– 282AGCRJ: 6-1-10, f. 9-25. 283AGCRJ: 6-1-10, f. 12, 22-24. 284AGCRJ: 6-1-10, f. 12.

Page 142: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

142

constantes e poucos permaneciam por muito tempo. Questão

evidente, pois, para manter determinado sistema de poder é

preciso despersonalizá-lo. Desvincular o poder de um sujeito,

mas enquadrar os sujeitos à instituição nomeadora, garantin-

do assim a reiteração do sistema. O poder político, portanto,

domina os saberes, submetendo os seus possuidores e garan-

tindo, assim, a durabilidade das práticas.285

Ao promover a rotatividade da função, o poder nomea-

dor pretende garantir a manutenção do status quo reafirman-

do seu poder através do custeamento da vontade e da repre-

sentatividade. Ou seja, mais interessante que manter uma de-

terminada ordem fixa – que com o tempo pode se desgastar e

caducar; ou mesmo organizar-se de forma a promover uma

subversão da ordem estabelecida – é promover o desejo dos

não-representantes, assegurando-lhes a possibilidades de uma

possível representação do sistema de verdade; certificando-

se, em contrapartida, do irrestrito condicionamento e respeito

às regras dos oficiais empossados, com pena de exclusão de-

corrente da não adequação, e, possível substituição. Mantêm-

se, desta forma, um campo conflituoso, mas, extremamente

útil à manutenção do regime, constantemente legitimado.

Validando o discurso, tanto seus representantes, quanto

seus desejosos por representatividade e distinção, contribuem

à reiteração temporal do constructo. A única condição requerida é o reconhecimento

das mesmas verdades e a aceitação de certa regra –

mais ou menos flexível – de conformidade com os

discursos validados (…) A doutrina liga os indiví-

duos a certos tipos de enunciação e lhes proíbe, con-

sequentemente, todos os outros; mas ela se serve, em

contrapartida, de certos tipos de enunciação para li -

gar indivíduos entre si e diferenciá-los, por isso mes-

mo, de todos os outros.286

–––––––––– 285PEREIRA, Antônio. A analítica do poder. In: Michel Foucault. Belo Horizonte:

Autêntica; FUMEC, 2003, p. 92. 286FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Op. cit., p. 42-43.

Page 143: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

143

Desta forma, a rotatividade na função, que a partir de

agora perceberemos como uma constante no decorrer de nos-

sa descrição a cerca das relações de poder tanto do acesso

quanto da permanência na ocupação de Avaliador de escra-

vos, corresponde à manutenção do poder e à estratégia de rei-

teração que inclui e exclui por meio de “sistemas de restri-

ção”287

que agrupam os indivíduos em torno de interesses

afins e, no entanto, sustenta suas diferenças e conflitos a fim

de garantir a manutenção da sociedade de discurso. Se o po-

der, de fato, não é algo nos quais os indivíduos possam arvo-

rar-se proprietários, ele é, sem dúvida alguma, uma necessi-

dade que dá existência social e distinção hierárquica. A todos

atinge, verticaliza, separa e promove num constante movi-

mento, pois, todos, em algum sentido ou direção o exercem e

sentem seus efeitos diversos, uns mais e outros menos, mas

todos conforme sua localização no campo social.

Em 1800, surge um novo Avaliador: Isidoro Pinto de

Vasconcellos.288

Este enfrentou em 1804 duradoura disputa

com Alexandre Pereira da Silva Xavier, que fez pedido à câ-

mara antes que findasse a provisão dos Avaliadores em exer-

cício. Estavam na função Isidoro e Manoel Correia Vasquez.

Este último foi mantido na função enquanto o primeiro foi

preterido a Alexandre. Este fato se repetirá. Não era inco-

mum que pretendentes fizessem pedido de provisão antes

mesmo de findar uma das duas vagas disponíveis na cidade.

Não nos parece algo impróprio, uma vez que as leis,

de 20 de junho e 25 de agosto de 1774, pedem provisões

anuais,289

não podendo dentro de um intervalo de três anos

reincidir na função.290

O comum não era o cumprimento da

norma, mas a reiteração de determinados indivíduos.

–––––––––– 287FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Op. cit.,, p. 38. 288AGCRJ: 6-1-10, f. 28. 289AGCRJ: 6-1-11, f. 41. 290AGCRJ: 6-1-10, f. 2.

Page 144: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

144

Mesmo apelando para a legislação e tendo feito o pedi-

do em tempo hábil, Alexandre Pereira da Silva Xavier não

recebeu provimento, efetivando-se o antigo Avaliador com os

seguintes argumentos retirados do agravo: O agravante q bem tem servido aquelle emprego vem a ser

aquelle mesmo q o público interesse chama para a continuação

e serviço daquella ocupação; pois ao público não interessa

experimentar homens e sim servir-se daquelle já experimenta-

do nas circunstâncias em q está o mesmo agravante.

Se vê atacado com notável injúria vendosse com anteci-

pação ou antes de findar o seu tpo provido outro em seu

lugar, outro, torno a repetir, q havendo servido aquella ocu-

pação foi excluído della como elle mesmo confessa o que

não aconteceria se o seu comportamento fosse exemplar.

3 de julho de 1804291

Satisfação pública, experiência e idoneidade parecem

resumir o exposto na decisão em favor de Izidoro Vasconcel-

los. Embora uma antiga e mal sucedida participação na fun-

ção maculasse a imagem de Alexandre Xavier, este não desis-

tiu. Com novo agravo aparece novamente disputando a fun-

ção durante o ano de 1805. Vale notar que numa sociedade de

relações pessoais, por mais que a legislação regulasse deter-

minada conduta, a satisfação pessoal vigorava. Permanecen-

do desde 1800 na função, Izidoro deveria de alguma forma a

alguém favorecer e ser, reciprocamente, beneficiado por ocu-

par o lugar que destemidamente defendia.

Em 30 de junho de 1804 fez procuração a Francisco

Nunes Pereira e Manuel Antônio da Rocha Sampaio, a fim

de cuidarem de seu caso. A insistência de Alexandre arrasta

o processo por um ano, deixando vacante um dos cargos. A

falta de deferimento promoveu o acesso de outra pessoa na

disputa: Joaquim José Pereira do Amaral. A ele mandou-se

passar provisão292

em agosto de 1805, muito a contragosto

–––––––––– 291AGCRJ: 6-1-10, f. 39. 292AGCRJ: 6-1-10, f. 45c.

Page 145: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

145

de Izidoro que em seu agravo procura ferir a imagem do

novo oponente: … O mesmo suplicante não cometeu erro, tem servido

com geral satisfação do público, não devendo ser prete-

rido pelo Sup. q he Sigano, he casado com sigana, vive

com elles nos mesmos…[sic] e negócios, como o Sup faz

ver pela att… [sic] inclusa e se procura o suplicado en-

trar para o dito emprego he para promover os seos e de

seos parentes illustres negócios de compras e vendas de

escravos, acompanhadas das subtilezas ordinárias daquella

qualidade de gente.293

Essa “qualidade de gente”, de origem bastante incerta,

mas, tradicionalmente excluída e segregada, não poderia pre-encher os quadros da Câmara Municipal. O olhar hostil este-reotipado há muito os qualifica como “sujos”, “trapaceiros” e “ladrões”. Os dados históricos sobre os ciganos são compro-vadamente poucos, assim como as provas de sua conduta amoral. Ao que parece, sua história no Brasil tem início em 1574, quando João Torres, sua mulher e filhos foram de-gredados para o Brasil.

294

A presença de ciganos no Rio de Janeiro é certa, desde pelo menos o início do século XVIII. Primeiramente ocupa-ram uns brejos, que pela dificuldade de edificar e pela insa-lubridade, eram terrenos desvalorizados. Esta área viria a ser o Campo de Sant'Ana, conhecido também por Campo dos Ciganos. Posteriormente, a partir de 1821, viria a ser o Largo do Rossio (atual Praça Tiradentes).

Sobre os ciganos residentes no Rio de Janeiro, no início do século XIX, sabemos que quatrocentos ciga-nos formavam uma comunidade na periferia sul da cidade e outro grupo vivia dentro da cidade em torno da Rua dos Ciganos, Campo de Sant-'Anna e o mercado de escravos da cidade.

295

–––––––––– 293AGCRJ: 6-1-10, f. 45c. 294COELHO, F. A. Os ciganos de Portugal: com um estudo sobre o calão. Lisboa: Dom

Quixote, 1995 (Original: 1892). p. 199-200. 295TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. História dos Ciganos no Brasil. Recife: Núcleo de Estudos

Ciganos, 2000. Livro Digital. Disponível na página: www . dhnet . org . br / direitos / sos /

ciganos/ciganos02html / acessado em: 14/02/2007.

Page 146: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

146

Aliás, a atividade econômica que recebeu maior aten-

ção dos cronistas com relação aos ciganos foi àquela ligada

ao comércio de escravos. No Rio de Janeiro, era grande o

número de ciganos que se dedicaram a esta ocupação. Entre o final do século XVIII e o início do XIX, muitos

ciganos interessaram-se pelo comércio de escravos. Embora

não tenham deixado de negociar suas mercadorias tradicio-

nais (tecidos, roupas, jóias, quinquilharias, bestas, ca-

valos…), o comércio de cativos transformou, sensivelmen-

te, o papel dos ciganos na sociedade e na economia, sobre-

tudo nas primeiras décadas dos oitocentos.

Entre os comerciantes de escravos, quem mais desta-

cou-se foi José Rabelo, que acumulou grande fortuna, sen-

do, na época da Independência, um dos homens mais ricos

da cidade. Entre os ciganos que moravam na Rua dos Ciga-

nos, nenhum foi mais rico que José Rabelo, grande trafican-

te de escravos no Valongo no começo do Oitocentismo.

Mas era operando no mercado de escravos de segunda

mão que eles estiveram reconhecidamente mais presentes.

Nesse negócio a necessidade de capital era bem menor do

que no comércio de venda por atacado.

No início do século XIX, diversos viajantes estrangeiros

testemunharam a importância que os ciganos tinham no

comércio interprovincial de escravos, sobretudo na re-

gião centro-sul do país. O francês Gendrin, que morou no Rio de Janeiro de

1816 a 1821, se refere a ciganas “vendedoras ambulantes de escravos africanos, as quais percorriam as ruas da cidade, tendo para vender quarenta e cinquenta negros, negras e crianças de oito a quinze anos”. Seu companheiro Gabert (1818) acrescenta que ricos traficantes vendiam “carrega-ções inteiras de negros a ciganos revendedores que nego-ciam os cativos com particulares”.

296

Pois bem, se rezava a lei que para o preenchimento dos

ofícios camarários seus membros deveriam estar reconheci-

damente conforme a tradição fundadora e ancestral branco-

-católica vemos mais uma subversão às regras anunciada.

–––––––––– 296TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. Op. cit.

Page 147: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

147

Lembremos que nos oitocentos uma nova elite se forma, ago-

ra não mais conforme a nobreza ligada a terra, que por vezes

carecia de capital econômico, predicado este de muitos novos

nobres que ascenderam nestes tempos às funções camarárias.

Assim, uma vez que muitos ciganos enriqueceram não seria

de surpreender que esta “qualidade de gente”, como referiu-

se Izidoro Pinto de Vasconcellos agravando-se de Joaquim

José Pereira do Amaral, viesse assumir funções na Câmara.

“O fato é que houve época em que quase todos os oficiais de

justiça do foro do Rio de Janeiro eram ciganos”.297

De fato, a acusação de pouco valeu. Ninguém perma-

neceu mais tempo na função que este cigano cuja última pro-

visão, que temos registro, foi transmitida em 11 de janeiro de

1826.298

No entanto, há indícios que também no ano de 1827

Pereira do Amaral estava entregue à função até partir para

Portugal no dia 18 de outubro daquele ano.299

Parece-nos que

na sociedade carioca dos oitocentos, como ainda hoje, as

regras eram facilmente “burladas” se isto beneficiasse a

alguém que bem localizado pudesse valer-se da autoridade

para efetivar sua vontade. Esta foi uma das reclamações feita

por Izidoro Pinto de Vasconcellos: … Se faz ver q a mesma câmara se qr fazer independente

sobre o objeto de q se trata, chamando de sua regalia promo-

ver este ou aquelle nos cargos, como se a Lei lhe conferiu

authoridade para o fazer arbitrariamente, independente das

regras da justiça e do fim da pública utilidade…300

Tantas reclamações não impediram que a Câmara no-

measse Joaquim José Pereira do Amaral, Avaliador. Este ne-

gociante de escravos301

morava no campo da Lampadosa em

–––––––––– 297Cf. DORNAS FILHO, J., Os ciganos em Minas Gerais. In: Revista do Instituto Histó-

rico e Geográfico de Minas Gerais, ano III, vol. III. Belo Horizonte: 1948, p. 166. 298AGCRJ: 6-1-12, f. 39. 299AGCRJ: 6-1-12, f. 42, 43 e 47. 300AGCRJ: 6-1-10, f. 45k e 45l. 301AGCRJ: 6-1-11, f. 3.

Page 148: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

148

1805, ano de seu primeiro provimento. No final de sua carrei-

ra, quando partiu para Portugal, em 1827, residia no Valon-

go.302

Esta trajetória é bastante significativa, pois, Cam-po da

Lampadosa foi o nome empregado a partir de 1747 ao antigo

Campo do Róssio, depois chamado Campo dos Ciganos até

que em 1890 foi denominada Praça Tiradentes. Uma região

de brejos, como vimos anteriormente, bastante desvalorizada.

Mudar-se para o Valongo, por sua vez, parece indicar certa

prosperidade. Era uma enseada espremida entre duas elevações cobertas

de verdura: o outeiro da Saúde de um lado e de outro o morro

do Livramento – eis como o descreve Luís Edmundo em O

Rio de Janeiro dos vice-reis. Lembra Robert Conrad: Os

armazéns normalmente ocupavam os andares inferiores dos

edifícios e frequentemente eram amplos o bastante para

acomodar 300 ou 400 escravos cada um (…) Era a maior fei-

ra de escravos de todo o Brasil.303

“Visitando o Rio em 1792, Lord Macartney calculava

em 5.000 os que eram vendidos anualmente, e só no Valongo,

ao preço médio de 28 esterlinos por cabeça”.304

Era uma rua

comprida e sinuosa que ia da beira-mar até o nordeste da

cidade. Quase todas as casas eram depósitos de escravos.305

Muitos que ali negociavam também moravam, como bem nos

lembra Debret, descrevendo um daqueles armazéns: “a porta

aberta dá para um pequeno pátio que separa o armazém da

moradia, onde se encontram a dona da casa, a cozinha e os

escravos domésticos”.306

Não era a região do Valongo o lócus

prioritário da elite carioca oitocentista. Longe disso. Antes,

–––––––––– 302AGCRJ: 6-1-12, f. 50. 303SCISÍNIO, Alaôr Eduardo. Dicionário da Escravidão. Rio de Janeiro: Léo Christiano

Editorial, 1997, p. 323. 304GERSON, Brasil. Op. cit., p. 150. 305Cf. WALSH, Robert. Notícias do Brasil (1828-1829). Belo Horizonte – Itatiaia, São Pau-

lo: EDUSP, 1985. Vol. 2, p. 152. 306DEBRET, Jean Baptiste. Op. cit., p. 231.

Page 149: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

149

estava marcado pela sua razão de ser principal: comércio de

escravos. Quem ali morava não pertencia às camadas mais

enriquecidas da população, no entanto, não se contava entre

as mais pobres. O espaço urbano era então como hoje profundamente

marcado pelas diferenças sociais. Enquanto a aristocracia se

espraiava pelos novos subúrbios do Rio de Janeiro (Catete,

Botafogo, Lagoa Rodrigo de Freitas, estrada de S. Cristó-

vão), os comerciantes e os artesãos, tal como os empregados

públicos, concentravam-se no centro da cidade, e a gente

mais miserável morava na margem norte, para os lados do

Saco dos Alferes, Catumbi e Mataporcos, onde as casas não

passavam de choças aglomeradas entre os morros e o mar.307

Assim, pensamos que sua mudança do campo da Lam-

padosa para o Valongo, não deixa de indicar certa ascensão

econômico-social. Lembremos que na Lampadosa ou no Ve-

lho Rossio, como ficou depois conhecido, as “casas de mora-

dia eram pouquíssimas e de lamentável aspecto. Diante delas,

no largo propriamente dito, tudo não passava de charcos e

moitas de capim (…) onde estacionavam carruagens e des-

cansavam os animais que as puxavam”.308

Diferentemente do

Valongo, que mesmo na periferia da cidade, acomodava co-

merciantes, compradores, negócios e, quem sabe, alguma pe-

quena fortuna. Giro de capital havia, não resta a menor dúvi-

da. Pereira do Amaral ali morou até deixar o Brasil.

Duas indicações ao ofício podem nos ajudar a dimen-

sionar o prestígio que Pereira do Amaral gozava. A primeira é

uma indicação anexa ao pedido de renovação da provisão

assinada por um Juiz de Fora, ex-presidente do Senado e,

então, auditor das tropas de mar e terra do Estado do Brasil: José da S. Loureiro Borges, Juiz de Fora, Crime Prove-

dor, expresidente do Senado, Auditor das Tropas de Mar e

Terra deste Estado do Brazil p. S.A.R.

–––––––––– 307SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Op. cit., p. 213. 308GERSON, Brasil. Op. cit., p. 113.

Page 150: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

150

Atesto que Joaquim José Pereira do Amaral servindo de

Avaliador de Escravos se portou de tal maneira que nunca

cometeu crime que o mal conceituasse e por esta me ser

pedida mandei passar que assignei.

Rio de Janeiro, 4 de Agosto de 1807.

José Loureiro Borges309

A segunda indicação foi feita pelo próprio D. João, em

1819, mantendo Pereira do Amaral no ofício de Avaliador de escravos.

Dom João por graça de Deos rey do Reino Unido de

Portugal e do Brasil e Algarves, d‟aquem e d‟além mar em

África, sendo senhor de Guiné e da conquista navegação e

comércio da Ethiopia, Arábia, Pérsia e da Índia &. Faço

saber a vós Juiz de Fora, Vereadores e mais Oficiais do

Senado da câmara desta Cidade: Que sendo-Me presente

em consulta da mesa do Meu desembargo do Paço o reque-

rimento de Joaquim José Pereira do Amaral actual Avalia-

dor dos Escravos, em que me pedia providência para ser

conservado na serventia do mesmo officio, na foma das

Minhas Leis enquanto não commetter culpa, passando-se-

lhe por este Senado as Provisões do estilo sem se admitirem

requerimentos de outro para a exclusão do Supplicante,

afim de evitar os inconvenientes das contínuas oposições

suscitadas a esse respeito pelos seos emolumentos e em

attenção também á honra, promptidão e limpeza de mãos,

com que elle expunha haver sempre servido o dito Officio e

ao pleno conhecimento que tem do valor dos escravos, por

ser nestes em que gira o seu negócio: E tendo consideração

ao referido a informação que mandou tirar pelo Ouvidor

desta Comarca com audiência vossa, e aos mais que se Me

expôs na mencionada Consulta em que fui ouvido o

Desembargador Pronunciador de Minha Coroa e Fazenda, e

com o parecer da qual houve por bem conformar-me com

Minha Immediata Presolução de quatro do corrente mez e

anno: sou servido determinar-vos que conserveis ao Suppli-

cante na Serventia do referido Officio d‟ Avaliador de

Escravos sem que della possa ser removido e privado na

forma das Minhas Leis sem culpa formada; bem atendido

–––––––––– 309AGCRJ: 6-1-11, f. 16.

Page 151: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

151

porém será o Supplicante obrigado a tirar em cada hum

anno nova Provisão por este Senado, o qual a não poderá

reformar em cada hum delles sem novamnete se informar

do procedimento que o Supplicante houver tido no tempo

da antecedente Provisão: Como expressamente se determi-

na no Paragrapho um décimo da Lei de 20 de Junho de Mil

setecentos e setenta e quatro. Cumpri-o assim.

El Rey Nosso Senhor mandou por Seo especial man-

dado pelos Ministros abaixo assignados de Seo Conselho e

Seos Desembargadores do Paço… [sic] que Anastácio de

Novaes a fez no Rio de Janeiro, sete de março de mil oito-

centos e dezenove. Bernardo José de Moura a fez escrever.

João Severino Marcielda Costa. Anto Felipe Soares.

310

Segundo a carta, Pereira do Amaral solicitou a inter-

venção de D. João. Era intensa a concorrência e uma lacuna

de dois anos na documentação nos impediu de identificar

quem disputava com Amaral. Seja como for, D. João assim se

referiu ao suplicante: … E em atenção também a honra, promptidão e limpeza de

mãos com que elle expunha haver sempre servido o dito

offício e ao pleno conhecimento que tem do valor dos

escravos, por ser nestes em que gira o seu negócio (…) sou

servido determinar-vos que conserveis ao Supplicante na

Serventia do referido offício d‟Avaliador de Escravos sem

que della possa ser removido e privado na forma das Mi-

nhas Leis sem culpa formada.311

Uma intervenção nos assuntos camarários permitiu a

continuidade de Amaral. Parece-nos que, de alguma forma,

D. João conhecia o, então, Avaliador. Seria, apenas, por meio

de uma audiência relativa à questão exposta ou, em algum

momento, Pereira do Amaral prestou ao rei algum tipo de ser-

viço relativo à sua ocupação? Seria isso possível? Pensamos

que sim. Havendo apenas dois Avaliadores de escravos para a

–––––––––– 310AGCRJ: 6-1-10, f. 60. 311Idem.

Page 152: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

152

cidade do Rio de Janeiro, então, capital do Império, não seria

absurdo entrever alguma proximidade, mesmo que indireta. Desde sua primeira provisão, contamos quatorze anos

que Pereira do Amaral exercia este ofício juntamente com sua ocupação de negociante de escravos. Em algum momento, mudou-se para o Valongo, ou seja, comercializava escravos novos e avaliava os cativos em posse da câmara Municipal da capital do Império. Em todo este tempo Pereira do Amaral nunca prestou serviço ou fez algum agrado a D. João? Por que motivos D. João interviria em favor de um negociante e Avaliador de escravos? São questões difíceis de serem res-pondidas, mas perfeitamente possíveis de alguma legitimida-de. Pereira do Amaral parecia gozar de algum prestígio junto à coroa e alguns oficiais da Câmara. Sua continuidade moti-vava tanto o ex-presidente da Câmara, José da S. Loureiro Borges, quanto àquele que jurava bem servir.

Vimos, anteriormente, a questão da descontinuidade e da exclusão como formas de manutenção do poder. “O poder, quanto mais exclui, mais se afirma”.

312 No entanto, a conti-

nuidade é, também, uma outra forma de manutenção, desde que bem situada a noção de disciplina e de penalidade.

313

Uma vez certificada a adequação do indivíduo representante com a sociedade de discurso nomeadora, não existe o porquê da exclusão. Este é aplicável apenas àqueles não-adequados ou não-conformados. O agente nomeado, reproduzindo o dis-curso, legitima sua permanência. Daí podemos entender a exacerbada preocupação com a idoneidade dos Avaliadores. Ser idôneo, mais que possuir um determinado comportamen-to esperado é, de fato, comprometer-se em representar, ou se-ja, tornar presente, com sua presença, a sociedade de discurso e seu regime de verdades.

Não ter “culpa formada”,314

nem “crime algum”,315

são expressões que fazem parte dos autos dos Avaliadores e

–––––––––– 312PEREIRA, Antônio. Op. cit., p. 14. 313Ibidem, p. 15. 314AGCRJ: 6-1-10, f. 60. 315AGCRJ: 6-1-11, f. 3.

Page 153: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

153

que são aplicáveis à não contradição do esperado. E o que

se espera do agente representante? “Aparentemente, a úni-

ca condição requerida é o reconhecimento das mesmas ver-

dades e a aceitação de certa regra de conformidade com os

discursos validados”.316

Desta forma, as instituições criam

condições para a permanência de seus representantes ofi-

ciais impondo-lhes certo número de regras,317

com pena de

exclusão daqueles que não correspondam ao esperado. Neste

sentido, a expressão “crime” referenda o ato de ferir a

regra estabelecida e a “culpa” alude-se àquele que praticou

o crime, ou seja, o culpado, pois agiu no exercício de sua

vontade contra o esperado.

Ao se nomear, portanto, existe uma cláusula condicio-

nal intrínseca à adequação do indivíduo à sociedade de dis-

curso. Esta, dando significado ao processo de hierarquização

tem em suas mãos o controle dos indivíduos, alicerçando a

vontade individual em favor do sentido da representação. Por

isso, nas cartas de provisão se lê após a nomeação: “…se tan-

to nos parecer conservá-lo, ou S. Majestade Imperial não

mandar o contrário”.318

Poder e disciplina caminham juntos,

estando a última comprometida com a primeira.

Pereira do Amaral parecia um homem comprometido

com a sociedade de discurso que lhe concedia existência

social ou, pelo menos, com alguns indivíduos bem localiza-

dos no campo político aos quais interessava sua permanência

na função. Se não fosse assim, seria difícil entender uma

estabilidade tão duradoura num ofício de tamanha rotativida-

de. Após a carta de D. João, Amaral não teve mais problemas

com disputas até que em 1827 partiu aos 18 de outubro no

bergantim Jordão com destino a Portugal.319

–––––––––– 316FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Op. cit., p. 42. 317Ibidem, p. 36. 318AGCRJ: 6-1-12, f. 5. 319AGCRJ: 6-1-12, f. 47.

Page 154: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

154

Em 1808, enquanto não se decidia uma questão envol-vendo Pereira do Amaral e Tibúrcio Pamplona, que se arras-tou por vários meses, foi provido na função Manoel Correa Vasques.

320 Evidente, que seu aceite não se deu sem a devida

acareação: Diz o Procur

or do Senado da Camr

a desta Cidade, e Cor-

te do Brasil, que elle preciza que o Escrivam do mmo

Senado lhe certifique ou atteste se antes de se nomear a

Manoel Corrêa Vasques para servir interinamente de Ava-

liador de Escravos, houve, ou não Requerimtos

de Partes que

pedissem Avaliadores que fizessem varias avaliaçoesns, vis-

to que o Senado não tinha ainda provido um avaliador.

P. a V.M. seja servido mandar-lhe passar emforma que

passa fé. 321

Ao que parece, a Câmara não desejava entrar em novas

disputas que pudessem arrastar-se pela burocracia. Exigia-se

a certeza da não intencionalidade de outro suposto pretenden-

te. Ele, contudo existia. Clemente Jozé Ribeiro, não era o

único, embora, uma leitura mais atenta à documentação nos

permita algumas conclusões. Vejamos o resultado da pesquisa

assinada por Antônio Martins Pinto de Britto, secretário da

Câmara e Cavalheiro da Ordem de Cristo: Antonio Martins Pinto de Britto, Cavalheiro da Ordem

de Christo Cidadão desta Corte do Brazil, e nella Secreta-

rio, e Escrivão proprietario do Senado da Camara por Sua

Alteza Real que Deos guarde &

Atesto e Artifico, que axandoce só provido pello Senado da

Camara hum dos Avaliadores de Escravos por pender Agravo

sobre nomeação do outro, e sendo certo que hum só não pode

fazer as funçoens do seu ofício por que estas dependem dos

Votos unânimes de ambos, a este Senado se deregirão por par-

tes diversas Requerimentos para se nomiar quem devesse fazer

avaliaçoens com o pretesto de que estavão as suas cauzas imó-

veis por esta falta, entre os quaes tão bem Requerem Clemente

Jozé Ribeiro, e a esta Petição acompanhava outra em que

Requerem ao Ilustríssimo Dezembargador Conselheiro Chan-

–––––––––– 320AGCRJ: 6-1-11, f. 31. 321AGCRJ: 6-1-11, f. 47.

Page 155: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

155

celler a nomeação deste oficial com o despacho do mesmo que

dizia Requerece ao Senado das Camara ; cuja petição, bem

como as outras entreguei aos Suplicantes; O referido hé verda-

de, e… [sic] aprezente em observacia do despacho… [sic] do

Dezembargador Juiz Prezidente, a qual vaÿ por mim assinada

aos vinte e nove de Julho de mil oito centos e oito annos. 322

Detalhe importante era a necessidade de dois avaliado-

res que deveriam concordar as respectivas avaliações. O que

nos importa agora é perceber que o documento aponta para

três ou mais pretendentes, no entanto, o único explícito é

Clemente Jozé Ribeiro. Junto a ele havia outro requerimento

equivocadamente, ou não, encaminhado ao Desembargador

Chanceler, enquanto deveria ser encaminhado ao Senado da

câmara; por fim o documento fala de “outras” petições. O

silêncio que a documentação impõe aos outros candidatos

parece apontar algo. Não eram dignos de citação? Talvez. No

entanto, o único aludido foi o empossado.

Veremos mais adiante ao tratar da vontade e da exclu-

são que muitos desejavam as funções camarárias, mas, não

eram descendentes da nobreza da terra e, tão pouco, pode-

riam, através do capital econômico, introduzir-se no espaço

político. Pardos, ciganos e demais pessoas consideradas indig-

nas ao habitus oitocentista, poderiam burlar normas exclu-

dentes pelo simples fato de possuírem capital econômico.

Vimos o exemplo de Joaquim José Pereira do Amaral. Ser

cigano, comprovadamente casado com cigana e morando em

lugar reconhecido como habitado normalmente por ciga-

nos,323

não o impediu de ocupar uma função nomeada pela

Câmara e nela permanecer por mais de vinte anos. O mesmo

não ocorreu com Jozé Soares Pinho, que aos 4 de novem-

–––––––––– 322AGCRJ: 6-1-11, f. 47v. 323“… negociante de escravos hera, como dice o agr. Ser no seu requerimento f.9, p. q. se o

indagassem o acharão sigano, ou casado com sigana, vivendo entre essa qualidade de gen-

te, com mesmo tráfico, como se faz certo da atestação f.3 q. podia ser assinada p. inume-

ráveis pessoas se ouvesse tempo p. isso.” (AGCRJ: 6-1-12, f. 45L).

Page 156: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

156

bro de 1826 fez pedido para ocupar a função e não foi acei-

to.324

Era tão cigano quanto Pereira do Amaral, contudo, “se

achava reduzido ao estado de indigência”. Seu e outros casos

veremos a seu tempo.

Aos 23 de janeiro de 1813, o Capitão Bento José de

Magalhães, então Avaliador de escravos do Senado da Câmara,

achava-se de partida para Minas Gerais325

por “estar ele com

moléstias, [e por isso] precisando se retirar para o lugar de seu

domicílio, para „gozar de ares livres‟”.326

Atestou-se o fato pelo

médico indicado para avaliar o caso dias antes de sua partida: Joaquim José Carvalho cirurgião-mor aprovado em

Cirurgia, Medicina e Anatomia conforme as Ordens do

Príncipe Regente Nosso Senhor, atesta que o dito Capitão

Bento José Mages

tem sido atacado nesta Corte, de “obstru-

ções de baixo-ventre”, e que seu tratamento não tem obtido

resultados devido o clima da cidade. O médico recomenda

ao paciente mudança de “ares”.

20/12/1812.327

Estranho alguém ter domicílio em Minas e exercer fun-

ção no Rio de Janeiro. Embora não seja de todo improvável.

Os limites entre o campo e a cidade pareciam bastantes tê-

nues do ponto de vista político-social. Ademais, como para

determinadas funções uma boa indicação parecia resolver

bem os problemas, não podemos duvidar que, de alguma

forma, José de Magalhães deveria conhecer boas peças do

tabuleiro político. Afinal, o título que precede seu nome nos

indica algum prestígio.

Sucedeu-lhe Capitão Monoel José Per. da Silva, como

podemos conferir de seus autos: Capitão José Per. Da Silva pede o cargo de Avaliador que

até então pertencia a Bento José de Mag. – 23/1/1813 328

–––––––––– 324AGCRJ: 6-1-12, f. 32. 325AGCRJ: 6-1-10, f. 48. 326AGCRJ: 6-1-10, f. 49. 327AGCRJ: 6-1-10, f. 50.

Page 157: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

157

Diz o Capitão Monoel José Per. Da Silva, q. tendo regd. a este Senado Provizão de Avaliador de Escravos em lugar do Capitão Bento José de Mag., que se acha de parti-da p. Minas, forão V.SS. Servidos mandar p. seu respeitável despacho (…) perante o Escrivão, cujo desp. se acha cum-prido com a dita dezistência no respectivo cartório. – 3/2/1813

329

A partir de 1823 encontramos um nome que se repete

nos seguintes anos: Jozé Antonio de Abreu Guimaraens.

Antes de entrarmos propriamente neste caso, vale a nota refe-

rente aos processos que não estão completos e possuem lap-

sos de tempo consideráveis. Isso não nos permite nomear am-

bos Avaliadores que em conjunto apreçavam os escravos para

os leilões da Câmara. Vale ressaltar, contudo, que não es-

tamos, ao analisarmos os Autos de Abreu Guimaraens, cuja

da-ta inicial é de 1823, saltando uma década de outros pro-

cessos. Lembremos que um Avaliador, já visto, tinha “cadeira

cativa”: Joaquim José Pereira do Amaral. Este, de 1805 a

1827, ocupou uma das duas vagas disponíveis aos cargos de

Avaliador de escravos. Sendo assim, nosso quadro não está

tão defasado, pois, os casos que estamos vendo desde que

Amaral assumiu a função, dizem respeito a uma das duas Va-

gas, uma vez que a outra está reiterando-se no tempo.

O mesmo ocorre agora com Abreu Guimaraens. Da

mesma forma que Amaral, este novo Avaliador conseguiu

permanecer alguns anos no ofício. Como pudemos observar,

conservou-se até o último ano que temos registro: 1830. Con-

jecturamos, no entanto, que para o ano seguinte também

ocorreram avaliações, pois, o mesmo Avaliador em questão

pede em 17 de outubro de 1830 provisão para o ano seguin-

te.330

Dos seus autos, a primeira documentação refere-se à sua

provisão, datada de oito de fevereiro de 1823:

––––––––––––––– 328AGCRJ: 6-1-10, f. 49. 329AGCRJ: 6-1-10, f. 48. 330AGCRJ: 40-1-27.

Page 158: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

158

O Senado da câmara da muito Leal e Heróica Cidade do

Rio de Janro e Corte do Império do Brasil &

Fazemos saber aos q a presente nossa Provizão virem

que José Antonio de Abreu Guimaraens nos requereo queria

continuar a servir o Emprego de Avaliador de Escravos des-

ta Corte; e constando-nos q bem tem servido: em atenção

ao referido. Havemos por bem prover como por esta faze-

mos ao dito Jose Antonio de Abreo Guimaraens no Empre-

go de Avaliador de Escravos desta Corte por tempo do cor-

rente anno, se tanto nos parecer conservallo, ou Sua Mages-

tade Imperial não mandar o contrário, ficando sugeito as

alteraçoens que houver; e com a dita serventia haverá os

emolumentos na forma do seu Regimento. E por firmeza de

tudo Jurará perante o Dezembargador Juiz Prezidente de q

se fará termo nesta q assignamos, e leva… [sic] e Senado.

Data em câmara de 8 de Fevereiro de 1823. Eu Antonio

Martins Pinto de Britto a escrevi. 331

Sendo sua provisão de fevereiro de 1823, destinada ao

exercício daquele ano e, como deixa claro, “queria continuar

a servir o Emprego de Avaliador de Escravos”, pois, “bem

tem servido”, significa que já o exercia no ano anterior. Foi,

então, provido para o dito ano, com a condição de continuar

bem servir o emprego se tanto parecer ao Conselho conservá-

lo ou “sua Majestade Imperial não mandar o contrário,

ficando sujeito as alterações que houver”.332

Não estamos

certos de que tipo de proveito financeiro tirava o Avaliador de

sua ocupação. Este é notório, existia, conforme a documenta-

ção nos aponta. A forma como isso se dava não é clara. Pare-

ce-nos certo afirmar que “emolumento” não sinonimiza com

salário, sendo uma espécie de gratificação ou retribuição,

algo como um lucro eventual. O Avaliador de Escravos apreçava os cativos apreendi-

dos pela municipalidade pelo não resgate de dívidas ativas. Uma vez estes escravos indo a leilão público a quem mais des-

–––––––––– 331AGCRJ: 6-1-12, f. 9. 332Idem.

Page 159: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

159

se, tarefa exercida pelo porteiro da Câmara, uma espécie de porcentual era destinado aos seus envolvidos. Deveria o Ava-liador receber algo referente ao preço final do leilão. Ele preci-sava seu valor médio, segundo aparência e habilidades, atri-buindo a este o valor mínimo da “mercadoria”. Do valor da venda, uma porcentagem deveria ser destinada àquele que o avaliou. Daí o termo emolumento, ou seja, lucro eventual decorrente de um serviço prestado. Lembramos que a maioria dos serviços disponíveis nas municipalidades não eram remu-nerados e que o Avaliador de escravos não era um cargo, mas, uma função licenciada pela Câmara que regula suas atribui-ções e desempenho dos oficiais. Neste sentido, também o Ava-liador de escravos não gozava de um salário fixo, mas de um emolumento, uma gratificação eventual com valor proporcio-nal, certamente precisado, conforme o preço final do leilão.

Jozé Antonio de Abreu Guimaraens em novembro

daquele ano recebe nova provisão para 1824: Ill

mos Snr

es do M

to respeitável Sem

do da câmara

22 de 9bro de 1823

Diz Jozé Antonio de Abreu Guimaraens, Actual Avalia-

dor dos Escravos desta muito Leal e Heroica Cidade e Cor-

te do Rio de Janeiro; que estando a findar o tempo da Pro-

vizão juncta com que o Supte serve o referido officio como

se vê da mesma; e dezeja continuar naquele emprego, sendo

do gosto de VVSS e mustrando-se mismo pela incluza folha

Corrida; livre de qual quer culpa.

P. a VV Ilmas

; sejão servidos mandar passar sua ditta

nova provizão pr o ano de 1824.

333

O mesmo ocorreu para os anos de 1825,334

1826,335

1827,336

1828,337

1829,338

1830339

e 1831.340

Todos estes

–––––––––– 333AGCRJ: 6-1-12, f. 8. 334AGCRJ: 6-1-12, f. 12-13v. 335AGCRJ: 6-1-12, f. 28-31. 336AGCRJ: 6-1-12, f. 34-37. 337AGCRJ: 6-1-12, f. 51-54. 338AGCRJ: 6-1-12, f. 58-60.

Page 160: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

160

encaminhamentos ocorreram sem transtorno. Pereira do Ama-

ral e Guimarães são os Avaliadores de maior permanência na

função, pelo menos no que se refere à comprovação empírica

de sua continuidade. Conforme podemos perceber, outros não

tiveram a mesma sorte.

Pereira do Amaral, ao que parece, embora estivesse

com provisão regular para o ano de 1826, tudo indica que ele

já não exercia suas funções como deveria. Um pedido de pro-

visão encaminhado por Jozé Soares de Pinho, aos 4 de no-

vembro daquele ano, nos ajuda a entender o que possivel-

mente ocorria. Segundo ele, o oficial em questão estava

“impossibilitado de moléstias”.341

Situação não comprovada,

mas possível de ocorrer, não resta a menor dúvida. O que

causa estranheza é o suplicante possuir tal informação e a

Câmara não. Ao exposto insere-se a seguinte anotação res-

pondida dois dias depois de seu pedido: “O lugar que o Sup.

requer não consta estar vago, pr isso parece não dever ser

deferido”.342

Decerto, a Câmara não conhecia todos os passos de

seus Avaliadores uma vez que estes não permaneciam dia-

riamente dentro da instituição. Aliais, nem os vereadores

possuíam este costumeiro. Como função itinerante, mais

provável era desconhecimento de seu paradeiro. Somando-

se a isso, caso no período não houvesse previsões de venci-

mento de hipoteca de escravos, acarretando falta de leilões

previsíveis, como poderia a Câmara saber de seus avaliado-

res? Estariam entregues às suas ocupações primeiras decer-

to. Possivelmente, havia algum sistema de contato, que não

é claro na documentação. Um determinado controle por par-

te dos Avaliadores das hipotecas por vencer também deveria

––––––––––––––– 339AGCRJ: 6-1-12, f. 65-67. 340AGCRJ: 40-1-27. 341AGCRJ, 6-1-12, f. 32. 342Idem.

Page 161: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

161

ocorrer. Assim, estariam atentos aos prazos e execuções de

seus serviços.

Para o lugar de Pereira do Amaral apresentaram-se três

pessoas. A primeira era a mesma que no ano anterior requereu

o lugar que agora estava disponível. Jozé Soares de Pinho,

era casado, maior de 50 anos de idade e que declara em seus

autos estar reduzido ao “estado de indigência (…) pela falta

de bens”.343

Em novembro de 1826 havia feito o pedido para

seu filho. Este foi negado por três motivos: era menor de 25

anos, cigano e estava reduzido ao estado de indigência.344

O

segundo, Capitão Daniel Luiz Viana, traficante de escravos a

mais de vinte anos, por sua vez, alegava estar “onerado de

grande família”.345

O último candidato ao ofício era tio

daquele que partiu. Antonio Jozé Pereira do Amaral alegava

ter que cuidar dos filhos que seu sobrinho deixou ao viajar

para Portugal. Vejamos parte de seus autos: 2 de 8br

o de 1827

Antonio Jozé Pereira do Amaral, tio de Joaquim J. P. do

Amaral, pede o cargo do sobrinho que viajou e deixou seus

filhos menores com Antonio.

V.Sas

fazem ao Suppte p

a amparar seis filhos inocentes

com a espera da bondade de V.Sas

portanto

Diz Antonio José Pereira do Amaral q elle Suppte he tio

de Joaquim José Pereira do Amaral, morador q era no

Valongo e avaliador de Escravos q era o qual se foi pa Por-

tugal e como deixou seus filhos menores qr o Supp

te empa-

rallos como pede a V. Sas

hajão de admetir ao Suppte, tio do

ditto na ocupação q elle servia q he huma grande esmolla q

V. Sas

fazem ao Suppte p

a emparar seus filhos innocentes,

como espera da bondade de V. Sa por tanto.

P. a V.Sas hajão de atender a Suplica do Suppte aten-

dendo ser hum Pobre Vellao de secenta e tantos Annos, e

querer emperar quatro inocentes como assim espera.346

–––––––––– 343AGCRJ: 6-1-12, f. 42. 344AGCRJ: 6-1-12, f. 32. 345AGCRJ: 6-1-12, f. 43. 346AGCRJ: 6-1-12, f. 50.

Page 162: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

162

Pois bem, o tio de Joaquim José Pereira do Amaral não

parecia gozar dos mesmos predicados de seu sobrinho. Com

sessenta e tantos anos, idade bastante avançada para o trabalho

que desejava exercer, e claramente expondo suas misérias ficava

difícil convencer os vereadores de sua serventia. Não apresenta-

va nenhuma indicação, apenas os gastos extras com a família e

os filhos daquele que abandonou a função pretendida. O mesmo

podemos dizer de Jozé Soares de Pinho, com mais de cinqüenta

anos e declaradamente indigente. O caso particular destes dois

será analisado mais adiante. O Capitão Daniel Luiz Viana não

está de todo distante de seus companheiros na disputa, afinal,

ele mesmo afirma estar onerado de família. No entanto, ao que

parece, existe algo de distintivo: um título. Daniel Luiz Viana,

era “capitão”. Ademais, traficava escravos há vinte anos con-

forme consta de seu pedido de provisão e de carta indicativa: Nós abaixo assignados attestamos e juramos, sendo ne-

cessário em como o Capitão Daniel Luiz Vianna, tem todo o

conhecimento do negocio de Escros

pela grande prática que

tem tido, e tem de os vender a mais de 20 annos, e por nos

ser esta pedida a mandam os passar & só a assignamos.

Rio de Janeiro 18 de Outbro 1824

Joze Alex Ferre Brandão

João Francisco Pera de Affon

cas

Lourenço Anto de Rege…

Thomé Ribeiro

João Alz‟de Sza Guim

es

Joaquim Antonio Ferra 347

De todos, parecia aquele que melhor pudesse corres-

ponder ao esperado. Daniel Luiz Viana aparece em 1828

pedindo nova provisão para permanecer na função.348

Em

outubro do ano seguinte novamente o vemos fazendo pedido

de renovação da função para o exercício de 1830.349

–––––––––– 347AGCRJ: 6-1-12, f. 44. 348AGCRJ: 6-1-12, f. 55. 349AGCRJ: 6-1-12, f. 62.

Page 163: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

163

Diante das relações político-sociais apresentadas perce-

bemos que na Câmara Municipal carioca, no primeiro quartel

dos oitocentos, é forte o sistema de restrição da vontade indi-

vidual em favor do constructo elaborado, ou seja, aquele sis-

tema de verdades na qual o Avaliador de escravos devia legi-

timar com sua atuação no campo social. É por isso que no

juramento exigido diante do Desembargador atestavam guar-

dar “em tudo o serviço de Sua Majestade Imperial, Bem

público e as Posturas do mesmo Senado”.350

Todo sistema de restrição implica uma ritualização,

que, ao mesmo tempo em que qualifica o nomeado e confere-

lhe status e hierarquização, também, restringe seu comporta-

mento.351

O portador oficial de uma verdade é, por isso, obje-

to de uma série de cerceamentos. A reiteração temporal vin-

cula-se, portanto, à sua conformidade a esta mesma verdade

que lhe outorgou existência social e distinção, mas, que tam-

bém possui em si mesma a necessidade de reiterar-se. É o que

podemos chamar de sistematização da descontinuidade.

A conformidade dos indivíduos ao sistema de verdade é

uma exigência à permanência dos nomeados, com pena de

exclusão daqueles mais resistentes. A ideia de exclusão está

ligada à de reclusão.352

Esta, compreendida não como alicer-

çamento físico, mas, da vontade. O que importa é a legitima-

ção do sistema, os agentes nomeados existem para isso, sua

atuação deve ser de tal forma útil que possam conformar

outros indivíduos ao mesmo sistema, de forma que, represen-

tatividade e vontade possam contribuir com um único objeti-

vo: legitimar o sistema de verdade e sua sociedade de discur-

so reiterando-a temporalmente. Guardar o bem público, as

posturas e o serviço de sua Majestade é uma ritualização do

objetivo agora exposto.

–––––––––– 350AGCRJ: 6-1-12, f. 13v. 351FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Op. cit., p. 38-39. 352PERERIRA, Antônio. Op. cit., p. 25.

Page 164: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

164

Como sistema de verdade estruturado, é a sociedade produtora deste mesmo discurso que determina os critérios de bondade. As posturas buscam a manutenção da ordem, ou seja, daquilo que estaria bom e conforme o esperado e ordiná-rio, enquanto sua Majestade, como grande pai, era o símbolo do cuidado e da harmonização de seus súditos. Afinal, “uma disciplina se define por um domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verda-deiras…”

353 que tornam legítima, inclusive, a exclusão em

nome da ordem. A manutenção da ordem é a manutenção do próprio poder que a criou. Visto isso, passaremos a analisar alguns casos de exclusão. Quem são os rejeitados? Os sem vez? Aqueles que tiveram o acesso negado. Por quê? Em nome de que ou de quem? Representação e vontade, portanto, se conformizam e legitimam o mesmo regime de verdade, que prevê, para a manutenção do poder, um rigoroso aparelho de restrição e a sistematização da descontinuidade.

4.2. Vontade e Exclusão

A “atribuição de valores está ligada à estrutura parti-cular [das] sociedades, e, sobretudo à sua grande diferen-ciação e individualização.”

354 Sendo a consciência humana

caracteristicamente social, nada mais comum perceber que os indivíduos de uma mesma época e de um mesmo lugar tendem a demonstrar habitus semelhantes. Legitima-se, portanto, determinada estrutura própria de cada época e, junto com ela, seus sistemas de valorização e hierarquiza-ção. O que parece identificar os indivíduos, de todos os tempos, é o fato de “estimamos aquilo que pode ser reco-nhecido de fato como diferenciador, como singular e úni-co”.

355 O desejo de poder e distinção transpassa as gera-

–––––––––– 353FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Op. cit., p. 30. 354ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da

aristocracia de corte. Op. cit., p. 35. 355Ibidem, p. 35 e 36.

Page 165: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

165

ções. Cada sociedade, no entanto, tem sua forma específica de distinguir. A carioca do primeiro quartel dos oitocentos possuía um mecanismo de diferenciação baseado na ocio-sidade e na posse do trabalhador cativo.

Claro, que as coisas não eram tão simples. Não bastava

possuir um escravo, era preciso ser reconhecido pelos demais

no campo social. “A opinião social (…) funda a existência” e

cria uma “rede de interdependências humanas”.356

Participar

de determinados grupos de prestígio e poder, como a Câmara

Municipal, por exemplo, exigia um bom capital simbólico e

social. Não bastava “ter vontade de…” era preciso estar certo

de que o poder pode encontrar algum tipo de representativi-

dade em quem se candidatava à representante. Cícero357

muito tempo já refletia sobre as paixões humanas: “Cuidam

todos que as perturbações provêm do juízo e da imagina-

ção”.358

Ele não estava certo? “Todo sofrimento resulta de

uma desproporção entre aquilo que desejamos ou esperamos

e o que podemos obter.”359

Decerto, “quanto mais poderosa é

a vontade, mais estrepitosa é a manifestação da sua luta con-

sigo mesma, e, por consequência, maior é a dor”.360

Note-

se que aqueles que não entraram para a função de Avaliador

de escravos, de alguma forma, não tinham o que oferecer a

não ser mão de obra. Só isso não bastava. Era preciso mais,

como vimos anteriormente, uma série de capitais, em seu

conjunto se faziam importantes para que a vontade de alguém

pudesse torná-lo representante do regime de verdade e sua

representação da realidade.

–––––––––– 356ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da

aristocracia de corte. Op. cit., p. 161-162. 357“Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.) foi um dos grandes responsáveis pela difusão da filo-

sofia grega no mundo latino (…) Pode ser considerado um filósofo político por suas obras

De Legibus e De republica.” (JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário

Básico de Filosofia, 3a ed. Ver. e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996, p. 42). 358Cícero, Tusculanarum disputation, livro IV, 6. 359SCHOPENHAUER, Arthur. Op. cit., p. 97. 360Ibidem, p. 414.

Page 166: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

166

Acompanhamos, conforme os autos disponíveis, quinze

nomes que pretendiam ocupar-se com as avaliações dos es-

cravos em posse do poder público. Destes, dez ocuparam-se

na função, sendo que apenas dois deles tiveram permanência

significativa: Joaquim José Pereira do Amaral e José Antônio

de Abreu Guimarães. Cinco daquele total tiveram seu desejo

terminantemente frustrado. Apenas dois processos correram

sem agravos. Todos os outros sofreram disputas com um

ou mais de um pretendente. Assim, apenas a transição entre

Cap. Manoel José Pereira da Silva e Cap. Bento José Maga-

lhães (onde o segundo simplesmente substitui o primeiro que

voluntariamente, por motivo de doença, se afasta da função) e

José Antônio de Abreu Guimarães (que muito permaneceu na

função não havendo registros de contendas) encontram-se

sem agravos. Curiosamente, este avaliador possui o sobreno-

me de uma das famílias envolvidas com o tráfico de escravos

no século XIX. No entanto, não podemos afirmar que ele

pertencesse aos Pinheiro Guimarães.

Pois bem, passamos a tratar agora daqueles que deseja-

ram, mas, não conseguiram seu intento. A busca pelo ofício

de Avaliador de escravos deixou candidatos frustrados, pois

não possuíam as qualificações “necessárias” para ocupar a

função. O primeiro daqueles cinco preteridos, Jozé Antônio

Teixeira de Carvalho, segundo seus autos de 1797,361

aparece

agravando-se daquele que a Câmara havia escolhido para a

função. Pouco podemos falar das causas de sua não aceitação

pelos escassos dados disponíveis. O segundo, contudo já nos

traz algumas informações. Alexandre Pereira da Silva Xavier,

foi afastado em período anterior por não ter comportamento

exemplar.362

Esta razão impossibilitou-o de regressar em

1804. Estava marcado, estigmatizado. Quais as razões do

estigma não sabemos, fato é que, de alguma forma, ele não

–––––––––– 361AGCRJ: 6-1-10, f. 22-24. 362AGCRJ: 6-1-10, f. 39.

Page 167: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

167

correspondeu ao esperado para alguém que ocupava tal ofí-

cio. Como vimos anteriormente, a não adequação ao regime

de verdade pode engendrar exclusão, mesmo de alguém já

empossado. O constructo necessita de legitimação por parte

de seus representantes que, caso não correspondam põem em

risco a própria representatividade que ostentam.

Schopenhauer diria que “todo conceito existe e tem seu

valor apenas enquanto está em relação”.363

No campo social

ocorre o mesmo. Caso esta reciprocidade se rompa, necessa-

riamente o processo de representatividade também se rompe,

legitimando a exclusão. Não pode haver relação sustentável

na ausência de reciprocidade. O poder exige, de seus nomea-

dos, adequação ao regime de verdade. O emprego livre da

vontade implica num posterior alicerçamento, da mesma von-

tade, em favor do regime que o hierarquiza. Ademais, nem a

própria vontade pode ser concebida como um ato perfeita-

mente livre. Estamos longe dos pelagianos que submetiam a

vontade à servidão do mal. Pensamos que toda vontade é

expressão de um tempo, estando a ele submetida. Só deseja-

mos aquilo que em nossa sociedade é valorizado e tem a for-

ça de distinguir socialmente seus portadores. Portanto, a von-

tade, de alguma forma, também é um produto do regime de

verdade e é por isso que pelo simples fato de se desejar legi-

tima-se o constructo.

Vontade e representação se complementam e colaboram

com o mesmo fim: reiterar temporalmente uma determinada

construção social. Assim, todos os indivíduos cooperam para

a sobrevivência do regime de verdade. Enquanto alguns têm

seu desejo de poder satisfeito e tornam-se representantes,

outros veem sua vontade restringida, no entanto, pelo simples

fato de desejarem, legitimam o regime que os excluiu. Inclu-

são e exclusão são as duas faces da mesma moeda cunhada

pelo poder em suas representações.

–––––––––– 363SCHOPENHAUER, Arthur. Op. cit., p. 74.

Page 168: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

168

Diógenes Tibúrcio Pamplona é um caso interessante.

Disputando a função com Joaquim Pereira do Amaral em

1808, arrastou o processo por sete meses. No entanto, apenas

vontade não bastava a quem não tinha negócios com escravos

e, por isso, ignorava seus valores; não tinha nenhum tipo de

ocupação, batendo à porta da Câmara como quem buscasse

simplesmente um emprego e; por fim, padecendo de sur-

dez.364

Diferente de Pereira do Amaral que negociava escra-

vos, Tibúrcio Pamplona foi considerado pela Câmara “hum

individuo totalmte inhabil, pela sua imperícia, e pela sua sur-

des, de bem exercer o Offo de avaliador dos Escr

os”.

365 Não

havia, portanto reciprocidade entre o desejo de poder e o

esperado para a representatividade.

Jozé Soares Pinho é outro caso típico de não adequa-

ção ao mundo da ordem. Em 4 de novembro de 1826 tentou

indicar seu filho na função de Avaliador de escravos. O

jovem, no entanto, não preenchia as exigências da Câmara.

Era menor de 25 anos, até aí nada de mais, porém, cigano.

Este fato dependeria dos demais capitais que o jovem fosse

capaz de ostentar. Contudo, “se achava reduzido ao estado

de indigência”.366

Ter menos de 25 anos pode resolver-se

com o tempo. Não conhecemos casos de alguém com esta

idade nas funções camarárias, mas, cremos que este é dos

males o menor. O mesmo podemos falar de ser cigano.

Vimos, anteriormente, que este fato não era decisivo para a

exclusão dos indivíduos. Gerava algum preconceito, mas,

plenamente vencível com o acúmulo de algum capital eco-

nômico. Estar, contudo, indigente, era demais. Esta infor-

mação vetou o acesso ao cargo de nosso jovem pretendente.

É adequação exacerbada ao concebido por desordem. Não

entrando o filho, tentou o pai.

–––––––––– 364AGCRJ: 6-1-11, f. 7. 365AGCRJ: 6-1-11, f. 15. 366AGCRJ: 6-1-12, f. 32.

Page 169: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

169

24 de 8bro de 1827

Illmo

Senado Diz José Soares Pinho homem branco Cidadão Brazilei-

ro maior de 50 annos cazado, e onerado de 4 fos

sem meios para os manter pelo actual estado de indigência a que se acha reduzido pela falta de bens, que a sua noticia chega, q hum dos Avaliadores dos Escr

os do Conselho Joaq

m José

Pera do Amaral se auzentara fugitivam

te deste cid

e para fora

do Imperio deixando em abandono o exercicio do do

empredo o qal não pode sufrer pelo prejuízo q resulta as par-

tes hum s[o momento de vagança sem haver quem o supra, ao menos interinam

te em q

to se verifica a sua vagatura; e

como o Sppe se persuade concorrer nele os precizos conhe-

cimtos

para bem poder servir pela muita pratica q tem tido no giro do negócio de vender Esc

os em que se tem empre-

gado por mtos

annos, recorre pois a VVSSas

hajão de nomea-rem para servir o d

o Emprego ao menos na auzencia do

Supde

até que se realize a vagança do mmo

por não sofrer o publico impate nos seos negócios.

P. a VVSSas

lhes facão a graça q suplica atento ao exposto

Jozé Soares de Pinho [Ass.]367

Homem branco e maior de cinquenta anos podem até

dizer algo que possa promover. No que se refere ao ofício pretendido, atestar experiência em negociar escravos mais ainda. O grande problema de Soares Pinho, de seu filho e de todos aqueles que não assumiram a função é a falta de capi-tal econômico. Pereira do Amaral, por exemplo, era com-provadamente cigano. O preconceito em torno da etnia cedeu lugar ao acúmulo de capital econômico. No caso em questão, é a falta deste capital que posiciona mal socialmen-te e não lhe dá acesso à função. Sabemos que “os negocian-tes, em seu intuito de ascender na sociedade de Corte, gas-tavam boa parte de suas fortunas a fim de obterem (…) pres-tígio social”.

368 Diversos negociantes procuravam ocupar

–––––––––– 367AGCRJ: 6-1-12, f. 42. 368GORENSTEIN, Riva . Comércio e Política: o enraizamento de interesses mercantis por-

tugueses no Rio de Janeiro (1808-1830). In: MARTINHO, Lenira Menezes; GORENS-

Page 170: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

170

funções que pudessem trazer algum reconhecimento social.369

Fica fácil entender, então, porque os negociantes de escravos buscavam ocupar-se como avaliadores. O caminho inverso, no entanto, não era tolerado. Um negociante arrasado finan-ceiramente não poderia ascender aos ofícios municipais. Aliais, todos aqueles que afirmaram ser negociante de escra-vos e demonstraram localização no campo social receberam provimento na função.

José Soares Pinho, por sua vez, não era portador de mui-tos capitais. Em inventário aberto após a morte de sua mulher D. Thereza Maria de Jesus, em 1833,

370 o Juiz dizia não entender

por que tanta briga por uma escrava apenas.371

Nos pareceu, segundo o inventário, que seu genro Bento estava obcecado no único bem da família, sobre o qual pediu, inclusive, uma avalia-ção.

372 Definitivamente, Soares Pinho, não parecia ostentar

cabedal suficiente, segundo o esperado pelos homens bons do termo, para assumir a função de Avaliador de escravos.

Antônio José Pereira do Amaral estava tentando a vaga de seu sobrinho Joaquim José Pereira do Amaral. Este, como vimos, foi para Portugal e deixou filhos pequenos. Este pre-tendente, tio-avô das crianças por elas se responsabilizou e tentou assumir as funções deixadas por seu sobrinho. Vale a pena transcrever a documentação:

2 de 8bro de 1827

Antonio Jozé Pereira do Amaral, tio de Joaquim J. P. do Amaral, pede o cargo do sobrinho que viajou e deixou seus filhos menores com Antonio.

V.Sas

fazem ao Suppte p

a amparar seis filhos inocentes

com a espera da bondade de V.Sas

portanto: Diz Antonio José Pereira do Amaral q elle Supp

te he tio

de Joaquim José Pereira do Amaral, morador q era no

––––––––––––––– TEIN, Riva. Negociantes e Caixeiros na Sociedade da Independência. Rio de Janeiro:

Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro – Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e

Esportes – Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1992, p. 191. 369Ibidem, p. 193. 370AN: Inventários post mortem da Vara Cível do RJ, no 882, cx. 301. 371Idem, f. 12v. 372Idem, f. 15.

Page 171: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

171

Valongo e avaliador de Escravos q era o qual se foi pa Por-

tugal e como deixou seus filhos menores qr o Supp

te empa-

rallos como pede a V. Sas

hajão de admetir ao Suppte, tio do

ditto na ocupação q elle servia q he huma grande esmolla q

V. Sas

fazem ao Suppte p

a qmparar seus filhos innocentes,

como espera da bondade de V. Sa por tanto.

P. a V.Sas

hajão de atender a Suplica do Suppte atenden-

do ser hum Pobre Velho de sessenta e tantos Annos, e que-

rer amparar quatro inocentes como assim espera.373

Disputando a função com o Capitão Daniel Luiz Vianna

e José Soares Pinho, poucas chances couberam-lhe. Soares

Pinho já vimos sua situação. Luiz Viana, no entanto, era

“Capitão” e traficava escravos a mais de vinte anos.374

Levou

testemunho sobre seu trato com escravos e idoneidade.375

Antônio José Pereira do Amaral, por sua vez, apresentou ape-

nas a necessidade e o parentesco com alguém que abandonou

a função sem dar explicações.376

O que identifica nossos ex-

cluídos é, sem dúvida alguma, a necessidade, o caos e a legi-

timação do regime de verdade pela vontade.

Se levarmos em consideração que na sociedade de corte

os privilégios dão sentido à existência – melhor dizendo, a

criam – os indivíduos estavam a todo instante rivalizando-se

para melhor posicionarem-se no campo social, hierarquizan-

do-se mediante o acúmulo de benefícios simbólicos, porta

aberta a outras formas de beneficiamento. A busca por privi-

légios é sempre uma busca pelo poder e “nenhum poder, por

outro lado, se exerce sem a extração, a apropriação, a distri-

buição ou a retenção”,377

intervindo diretamente na distribui-

ção espacial dos indivíduos. O desejo de poder, portanto, cria

–––––––––– 373AGCRJ: 6-1-12, f. 50. 374AGCRJ: 6-1-12, f. 43. 375AGCRJ: 6-1-12, f. 44. 376AGCRJ: 6-1-12, f. 47. 377FOUCAULT, Michel. História dos sistemas e pensamento. Almada – Portugal – Edito-

rial Centelha Viva, s. d., p. 14.

Page 172: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

172

a vontade mediante aquilo que é valorizado em cada socieda-

de singularmente. Como já vimos, a vontade está sujeita

ao habitus socialmente constituído, de forma que deseja-

mos aquilo que está previsto como bom, singular, distinti-

vo e importante. É muito pequena a probabilidade de que um indivíduo

consiga manter-se isolado, sem participar em sentido algum

da competição por oportunidades que ele sente e considera

como algo de valor para os outros, sem procurar a realiza-

ção de seus esforços de um modo que lhe assegure uma

comprovação de seus valores por parte de outras pessoas.378

É através da manutenção do desejo que o poder pode

garantir sua reiteração temporal de forma que mesmo o

excluído pode, pelo simples fato de desejar, garantir a sobre-

vivência do sistema que o excluiu.

–––––––––– 378ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da

aristocracia de corte. Op. cit., p. 94.

Page 173: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

173

nalisamos como a cidade de São Sebastião do Rio

de Janeiro, em seu desenvolvimento histórico, cres-

ceu em importância no cenário imperial e como sua

Câmara Municipal, lócus do poder político, relacionava as

questões de representatividade do poder central com a pro-

moção das urgências do poder local. Vimos o quanto a ausên-

cia do poder central, devido aos limites administrativos de

seu tempo, promoveu o fortalecimento das elites locais, que

ao longo do tempo desenvolveram uma relação de autonomia

em constante contradição com o poder que representavam,

possuindo, em muitos aspectos até mesmo atribuições pró-

prias do rei, como, por exemplo, a faculdade de tributar.

A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro utilizando

o escravo em todos os setores da sociedade e estabelecendo

uma ordem baseada na posse do trabalhador cativo, estigma-

tizava aquele que não o possuísse. A incorporação do escravo

ao mercado de trabalho marginalizava os homens livres po-

bres, imbricados num processo de hierarquização que excluía

aqueles que não pudessem adquirir um trabalhador cativo

posicionando-os fora a ordem estabelecida. Indivíduos de

segunda estirpe representavam a desordem e não havia lugar

para eles, conforme a representação social estruturada. No

Page 174: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

174

entanto, também estes, os excluídos, contribuíam para a reite-

ração do regime de verdade, pois, desejavam possuir escravos

como todos os outros.

Neste sentido, a escravidão gerou muito mais que divi-

sas, promoveu, em torno de si, um processo de estratificação

social baseada na ociosidade, que acentuava ainda mais, a

marcante dependência da mão de obra cativa. Investimento e

acumulação, status e poder, binômios profundamente encar-

nados na sociedade carioca da primeira metade do século

XIX. A dependência do trabalho compulsório, portanto, é o

resultado da estruturação político-econômica e de um enrai-

zamento sociocultural que se engendrou no Brasil desde sua

colonização e reiterou-se até fins do século XIX, atuando em

todos os setores da sociedade e consolidando culturalmente a

marcante dependência.

Tendo em vista uma melhor localização das funções

camarárias, no contexto da administração colonial, mapea-

mos seus cargos e funções dando maior ênfase ao ofício de

Avaliador, mais precisamente, àquele dedicado à escravaria.

Vimos como estava inserido numa lógica que visava ordenar

as diversas negociações e relações que versavam sobre a mão

de obra cativa. Assim, a efetivação do ofício de Avaliador,

objetivava precisar o valor dos escravos sob a guarda do

Estado, que os leiloava e revertia esta importância em benefí-

cio próprio. Desta forma, a existência desta função tinha por

fim último gerar divisas aos cofres públicos, promover a ma-

nutenção do mundo da ordem e garantir a legitimidade do

ideário escravocrata, do processo de hierarquização baseado

na posse do trabalhador cativo e o status quo da elite detento-

ra de bens e “almas”.

Acertado o valor para o início do leilão, este oficial

receberia uma porcentagem do preço final pago. Contudo,

mais que propriamente um salário ou porcentual pelo traba-

lho, os pretendentes estavam interessados nas facilitações

que o ofício poderia proporcionar-lhes. Todos, sem exce-

Page 175: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

175

ção, eram também negociantes de escravos, logo, mediar para

o Estado o reingresso do trabalhador cativo aos particulares

poderia trazer alguns benefícios pessoais. Contatos e possí-

veis “favorecimentos não contabilizáveis” deviam fazer par-

te deste mundo, ainda não completamente acessível. Regis-

tramos um caso de expulsão por má conduta. Permanências

exacerbadas foram da mesma forma indiciantes de possíveis

favorecimentos recíprocos.

Se pensarmos que o setor escravista esteve, na primeira

metade do século XIX, entre as atividades mais rentáveis da

praça carioca parece improvável que estes homens buscassem

apenas um porcentual por seus conhecimentos e serviços

sobre a escravaria. O simbolismo em torno da função poderia

ser um fator de estímulo que, posteriormente, facultaria aces-

so a outros capitais, também econômico, numa sociedade de

relações pessoais.

Licenciado para atuar em conformidade com a legali-

dade, em benefício do próprio Estado sobre a escravaria, o

Avaliador, como agente nomeado, passava a gozar de um

conjunto de relações sociais, junto ao Senado a quem jurava

bem servir em nome de sua Majestade para a satisfação pú-

blica. Mais que idoneidade, era preciso uma boa dose de

capital social. Vimos o quanto uma indicação era importante

para a permanência na função. Mais que isso, era preciso

reciprocidade com quem detinha o poder político num duplo

beneficiamento. Decerto, o Avaliador de escravos fazia mais

que apreçar, ele localizava socialmente o escravo a partir de

uma série de predicações, conformes o regime de verdade

estabelecido e segundo os quais, hierarquizava-o.

A documentação relativa ao nosso objeto poderia ter

sido um capítulo à parte. Na sua maioria, os processos estão

incompletos e as leis que regulavam sua atuação não foi por

nós encontrada. No entanto, como nunca tivemos a pretensão

de esgotar ou mesmo encerrar o tema em questão, se é que

isso é possível, damo-nos por satisfeitos, neste momento,

Page 176: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

176

com o que apresentamos. O assunto continua aberto a novas

abordagens e especulações diversas. Evidente que existe mui-

to mais a ser dito. Há um provérbio africano que diz assim: “a

sola do pé conhece toda a sujeira da estrada”.379

Este é, por-

tanto, o resultado de uma caminhada que se fez no próprio

exercício de caminhar. É um olhar sobre o caminho. Outros

olhares são bem-vindos.

–––––––––– 379Provérbio africano. Apud GONÇALVES, Ana Maria. Op. cit., p. 351.

Page 177: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

177

FONTES E BIBLIOGRAFIA

Fontes manuscritas

Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ)

Códice 6-1-10: Avaliadores de Escravos

Códice 6-1-11: Avaliadores de escravos

Códice 6-1-12: Avaliadores de escravos

Códice 6-1-28: Postura de Escravos

Códice 40 -1-27: Avaliadores

Arquivo Histórico da Cidade de Florianópolis (AHCF)

Caixa 11, livro 33 e 44: Registro de Patentes, nomeações e outros documentos da Câmara Municipal de Desterro (1811-1829).

Caixa 11, livro 54: Registro de leis Imperiais para a Câmara Municipal.

Arquivo Nacional (AN)

10-13-79. Livro de Escrituras no 195 e 199, 3o Ofício de Notas.

10-6-79. Livro de Escrituras no 171, 3o Ofício de Notas.

10-8-79. Livro de Escrituras no 176, 3o Ofício de Notas

Inventários post mortem da Vara Cível do RJ, no 882, cx. 301.

Fontes Impressas

DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, s.d.

FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial: antologia de

textos – 1582-1808. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

SEIDLER, Carl. Dez anos no Brasil. Brasília: Martins – MEC, 1976.

WALSH, Robert. Notícias do Brasil (1828-1829). Belo Horizonte – Itatiaia; São Paulo:

EDUSP, 1985. Vol. 2.

Biblioteca Nacional (BN)

PR-SPR 5 (1): Periódico Diário do Rio de Janeiro, maio de 1822.

Referências Bibliográficas

ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial, 1500-1800, 7a ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios

de teoria da história. Bauru, SP: Edusc, 2007

Page 178: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

178

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico

Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

ARENDT, Hannah. O que é política? 5a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

AVELLAR, Helio de Alcântara. História Administrativa do Brasil. Brasília: FUNCEP /

Ed. Universidade de Brasília, 1983, 2 Vol.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras municipais no Império Português: o exemplo do

Rio de Janeiro. Rev. Bras. Hist., 1998, vol. 18, no. 36, p. 251-580. ISSN 0102-0188.

–––––. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, João; BICA-LHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). Modos de Governar: ideias e

práticas políticas no império português (séculos XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2005.

–––––. O que significa ser cidadão nos tempos coloniais. In: ABREE, Marilia; SOIHET, Rachel. Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da

Palavra, FAPERJ, 2001.

BOBBIO, Norberto. Estado, Gobierno y Sociedad: por una teoría general de la política.

México, D. F.: Fondo de Cultura Económica, 1997.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico, 7a ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de P. Bourdieu. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedade

colonial, 3a ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

CALÓGERAS, J. Pandiá. A Política Exterior do Império, vol. II – O Primeiro Reinado.

Brasília: Senado Federal, 1998.

CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. A crise do colonialismo Luso na América Portugue-

sa (1750-1822). In: LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil, 9a ed.,

11a reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990.

CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial. Teatro de

sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

CAVALCANTI, Nireu Oliveira. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In:

FLORENTINO, Manolo (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos

XVII-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

CERVO, Amado; MAGALHÃES, José Calvet de. Depois das Caravelas: as relações entre

Portugal e Brasil (1808 – 2000). Brasília: Universidade de Brasília. 2000.

COELHO, F. A. Os ciganos de Portugal; com um estudo sobre o calão, Lisboa: Dom

Quixote, 1995 (Original: 1892).

COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia, 4a ed. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

DORNAS FILHO, J. Os ciganos em Minas Gerais. In: Revista do Instituto Histórico e

Geográfico de Minas Gerais, ano III, vol. III. Belo Horizonte, 1948.

ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

–––––. O processo civilizador, vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.

FAORO, Raimundo. Os donos do poder, 2a ed. Porto Alegre: Globo, 1975.

FORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico Atlântico de

escravos entre a África e o Rio de Janeiro (Séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo

Nacional, 1995.

Page 179: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

179

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, 18a ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.

–––––. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2004.

–––––. A ordem do discurso, 11a ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

–––––. História dos sistemas e pensamento. Almada – Portugal: Editorial Centelha Viva, s.d.

FRAGOSO, João Luís. Homens de Grossa Aventura: Acumulação e hierarquia na praça

mercantil do Rio de Janeiro (1790 -1839). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

–––––. FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade

agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de Janeiro, c. 1790 – c.

1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvol-

vimento urbano. In: Interpretes do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2a ed., 2002.

GERSON, Brasil. História das Ruas do Rio. Rio de Janeiro: Lacerda Editores. 2000.

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Editora Record, 2006.

GORENSTEIN, Riva . Comércio e Política: o enraizamento de interesses mercantis portu-

gueses no Rio de Janeiro (1808-1830). In: MARTINHO, Lenira Menezes; GORENSTEIN,

Riva. Negociantes e Caixeiros na Sociedade da Independência. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro / Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes / Depar-

tamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1992.

GOUVEA, Maria de Fátima Silva. Redes de poder na América Portuguesa: O caso dos

homens bons do Rio de Janeiro, ca. 1790-1822. In: Rev. Bras. Hist., vol. 18, no. 36. 1998, p. 297-330. ISSN 0102-0188.

–––––. Poder político e administração na formação do complexo atlântico português

(1645-1808). In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fáti-ma (Orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI

– XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

HESPANHA, António Manuel. As estruturas políticas em Portugal na Época Moderna. In:

TENGARRINHA, José (org.). História de Portugal, 2a ed. Rev. e Ampl. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP: UNESP; Portugal, PT: Instituto Camões, 2001.

KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo:

Companhia das Letras, 2000.

MARTINHO, Lenira Menezes, GORENSTEIN, Riva. Negociantes e Caixeiros na Sociedade

da Independência. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes,

Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1993.

MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (1800-

1850). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 2004.

MAURO, Frédéric. Portugal e o Brasil: a estrutura política e econômica do Império,

1580-1750. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina: América Latina

Colonial, vol. I. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 1999.

MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da Formação Administrativa do Brasil, 2 vol. s.d.

MONTEIRO, Nuno Gonçalo Freitas. A Consolidação da Dinastia de Bragança e o Apogeu

do Portugal Barroco: centros de poder e trajetórias sociais. In: TENGARRINHA, José

(Org.). História de Portugal, 2a ed. Rev. e Ampl. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP:

UNESP; Portugal, PT: Instituto Camões, 2001.

Page 180: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

180

PANTOJA, Selma; SARAIVA, José Flávio Sombra. Angola e Brasil nas rotas do Atlântico

Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

PEREIRA, Antônio. A analítica do poder em Michel Foucault. Belo Horizonte: Autêntica; FUMEC, 2003.

PINTO, Luciano Rocha. O Avaliador de Escravos: poder local e hierarquização (Rio de Janeiro,

1808-1831). In: Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (no 2, 2008). Edição

200 anos da Chegada da Família Real. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2008.

–––––. O Avaliador de Escravos e o mercado de almas da praça carioca. (1808-1831).

Rio de Janeiro: Edição do autor, 2005.

PRADO Jr. Caio. Formação do Brasil Contemporâneo, 23ª ed., 7a reimpressão. São Paulo:

Brasiliense.

REMOND, Réne. Por uma História Política. Rio de Janeiro: FGV, 2003.

RUSSEL-WOOD, A. J. R. O Brasil Colonial: o ciclo do ouro, c. 1690-1750. In:

BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina: América Latina Colonial, vol. II.

São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Brasília, DF: Fundação Alexandre de Gusmão, 1999.

SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá. Os Homens de Negócio do Rio de Janeiro e sua atuação

nos quadros do Império Português (1701-1750). In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica

imperial portuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial

(1550-1835). São Paulo: Companhia das Letras, 2005

–––––. O Brasil Colonial, c. 1580-1750: as grandes lavouras e as periferias . In:

BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina, vol. II (A América Latina Colo-

nial). São Paulo: EDUSP-FUNAG, 1999.

–––––. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Perspectiva, 1979.

SILVA, Andrée Mansuy-Diniz. Portugal e o Brasil: a reorganização do Império. In:

BETHELL, Leslie (org.). História da América Latina, vol. I (A América Latina Colonial). São Paulo: EDUSP-FUNAG, 1999.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Conquista e Colonização da América Portuguesa: o

Brasil colônia – 1500/1750. In: LINHARES Maria Yedda (Org.). História Geral do Brasil, 9a ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1990.

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Vida Privada e Quotidiana no Brasil na Época de

D. Maria I e D João VI. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.

SILVA, Marilene Rosa Nogueira da. Negro na Rua: A nova face da escravidão. São Paulo. Editora Hucitec. 1988.

SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da

família escrava, Brasil, Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

SOUZA, Avanete Pereira. Poder local e autonomia camarária no Antigo Regime: o Sena-

do da Câmara da Bahia (século XVIII). In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINE, Lúcia

Amaral (Orgs.). Modos de Governar: ideias e práticas políticas no império português

(séculos XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2005.

SOUZA, Iara Lis Carvalho. A adesão das câmaras e a figura do Imperador. In: Rev. Bras.

Hist., vol.18, no.36. 1998, p. 367-394. ISSN 0102-0188.

Page 181: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

181

TEIXEIRA, Rodrigo Corrêa. História dos Ciganos no Brasil. Recife: Núcleo de Estudos

Ciganos, 2000. Livro Digital. Disponível na página: www . dhnet . org . br / direitos / sos /

ciganos/ciganos02html. Acessado em : 14/02/2007.

VIANA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil. In: Intérpretes do Brasil, 2a ed. Rio

de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José C. M. Formação do Brasil Contemporâneo, 2a ed., Rio de Janeiro: Nova Fonteira, 1999.

Obras de Referência

AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário de nomes, termos e conceitos históri-

cos, 3ª ed. Ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia, 3a ed. Ver. e ampliada. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.

VAINFAS, Ronaldo (Org.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro:

Objetiva, 2001.

–––––. Dicionário do Brasil Imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

SCISÍNIO, Alaôr Eduardo. Dicionário da Escravidão. Rio de Janeiro: Léo Christiano Edi-

torial, 1997.

Page 182: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

182

Page 183: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

PODER E ESCRAVIDÃO

183

E-mail: [email protected]

Tel. 55 21 2223-2200

Av. Passos, 122 – Gr. 401 – Centro

Rio de Janeiro – RJ

Page 184: PODER E ESCRAVIDÃO ebook

Luciano R. Pinto

184