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PODER JUDICIÁRIO E POLÍTCAS PÚBLICAS: UMA ANÁLISE DA
IMPLEMENTAÇÃO JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO ATUAL
CENÁRIO DE CRISE ECONÔMICA
Jeovane da Silva Gomes1
Caren Suéli Montagner Lago2
RESUMO: O presente artigo tem por finalidade analisar a atuação do Poder Judiciário naimplementação de políticas públicas, tendo por problemática o atual cenário de criseeconômica, o qual fortalece a tese da reserva do possível. O objetivo da pesquisa éreafirmar a responsabilidade do Estado na confecção, desenvolvimento e implementaçãode políticas públicas, bem como demonstrar a possibilidade de intervenção do PoderJudiciário no caso de omissão ou ingerência do Estado em cumprir com tal mandamentoconstitucional, inclusive no momento de crise econômica. A pesquisa, documental ebibliográfica, desenvolvida a partir do método dedutivo, e conclui pela possibilidade deintervenção do Poder Judiciário no contexto de políticas públicas, visando assegurarefetivação dos direitos fundamentais, quando houver omissão ou ingerência estadual.
Palavras-chave: Políticas públicas; Poder Judiciário; crise econômica; reserva do possível.
INTRODUÇÃO
Inicialmente, cabe ressaltar que a Constituição Federal de 1988 elencou a dignidade
da pessoa humana como um de seus fundamentos, sendo que para a sua concretização
estabeleceu objetivos a serem buscados e alcançados pelo Estado, os quais dependem da
efetivação do extenso rol de direitos fundamentais proclamado no texto constitucional.
O problema a ser enfrentado é que, muito embora a Constituição Federal de 1988
tenha atribuído ao Estado a tarefa de efetivação dos direitos fundamentais, em particular os
de natureza prestacional, cuja finalidade é justamente atingir os objetivos da República, e,
por via de consequência, concretizar a dignidade da pessoa humana, o Estado, seja por
1Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2017/2018), especialista em DireitoConstitucional pela Universidade Anhanguera (2011), graduado em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grossodo Sul (2009);2Especialista em Direito na área de concentração de Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade Federal da GrandeDourados/MS (2012), graduada em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (2009).
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omissão ou ingerência, vem descumprindo o mandamento constitucional, surgindo a
necessidade de intervenção do Poder Judiciário.
Justifica-se o tema pelo fato de haver grande divergência doutrinária acerca da
possibilidade ou não de intervenção de um poder da República sobre outro, haja vista o
princípio da separação dos poderes, bem como da implementação de políticas públicas
decorrentes de ordem judicial em face do princípio da reserva do possível, o qual ganhou
força com o atual cenário de crise econômica.
Quanto aos resultados esperados, visa o aprofundamento do debate acerca da
possibilidade de intervenção judicial diante da omissão ou ingerência do Estado na
confecção, desenvolvimento e implementação de políticas públicas, bem como delinear os
argumentos contrários e favoráveis à implementação de políticas públicas por meio de
decisões judiciais no atual cenário de crise econômica, em particular pelo conflito existente
entre a teoria da reserva do possível e a teoria do mínimo existencial.
O trabalho é documental e bibliográfico, sendo que quanto aos fins é exploratória e
descritiva, na medida em que tem por finalidade proporcionar mais informações sobre o
assunto investigado, possibilitando sua definição e seu delineamento (PRODANOV e
FREITAS, 2013, p. 51-52), bem como busca descrever o fenômeno e correlaciona os fatos,
apontando quais fatores contribuem para ele. Por fim, esclarece o fenômeno e suas causas
(VERGARA, 1998).
1 A FUNÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS PRESTACIONAIS NA
PROMOÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA CONSAGRADA NA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
No decorrer de sua história o Brasil sofreu profundas mudanças no que se refere ao
regime de governo e, por consequência, no perfil constitucional adotado pelo Estado em
cada momento. Assim, nas constituições que se sucederam desde a Constituição Política do
Império do Brasil, outorgada em 1824, até a Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, é possível perceber o desenvolvimento, retrocessos, enfraquecimento e, por
fim, o fortalecimento do rol de direitos nelas assegurados.
Essa evolução no pensamento constitucional, a qual teve impactos diretos no Brasil,
se deve, principalmente, aos horrores presenciados durante a Segunda Guerra Mundial, em
particular pelas experiências nazista e stalinista, as quais levaram Hannah Arendt a
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desenvolver a concepção de dignidade humana, sendo esta, posteriormente,
constitucionalizada na Alemanha e no mundo.
Nessa linha de pensamento, Rocha (2004, p. 33) destaca que Auchwitz (campo de
concentração nazista) talvez tenha sido o ponto de partida para que a dignidade humana se
tornasse o princípio matriz do direito contemporâneo, haja vista o holocausto ter sido
produção do homem, a ele também se incumbiu à produção de anticorpos jurídicos contra
a degradação do homem por seus semelhantes detentores de poder. Assevera, ainda, que
como o poder é elemento natural da sociedade política, foi necessário erigir o homem e seu
direito fundamental à vida digna, limitando, destarte, o exercício do poder.
O Brasil, após a constituinte de 1988, passou a contar com uma Constituição
republicana voltada à proteção da dignidade humana, a qual, inclusive, foi erigida à
categoria de fundamento do Estado Democrático de Direito (CONSTITUIÇÃO
FEDERAL.1988, artigo 1º, inciso III), fato que corrobora a assertiva defendida por
Barroso (2007, p. 01) no sentido de que o constitucionalismo democrático foi a ideologia
vitoriosa do século XX, nele se condensando as promessas da modernidade, ou seja, a
limitação do poder, a dignidade da pessoa humana, a centralidade dos direitos e garantias
fundamentais, a justiça material.
Porém, cabe pontuar que "a dignidade da pessoa humana não é uma criação
constitucional, mas um dado preexistente a toda experiência especulativa [...]"
(MARTINS, 2005, p. 15), ou seja, a sua previsão no texto normativo somente visa
reafirmar o fato de que ela é atributo intrínseco, pertencente a própria essência da pessoa
humana, logo, confunde-se com a própria natureza do ser humano (SILVA, 2002, p. 146),
motivo pelo qual merece a proteção.
Pode-se afirmar, portanto, que muito mais que alicerce constitucional, a dignidade
da pessoa humana é fundamento da própria condição do ser humano, é atributo que lhe
pertence e que de forma alguma lhe pode ser retirado, é valor que não pode ser mensurado.
Visando consagrar o fundamento da dignidade da pessoa humana, o constituinte
prescreveu objetivos a serem alcançados pelo Estado, quais sejam: a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária; erradicação da pobreza e da marginalização; redução das
desigualdades sociais; e a promoção do bem de todos sem qualquer discriminação
(CONSTIUIÇÃO FEDERAL.1988, artigo 3º, incisos I, III e IV).
Por fim, com o escopo de alcançar tais objetivos, a Constituição Federal de 1988
proclamou um extenso rol de direitos fundamentais, destacando-se os artigos 5º, 6º e 7º,
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cuja observância repercute em todo o ordenamento jurídico, influindo diretamente na
missão constitucional de garantir uma vida digna a cada ser humano.
À vista disso, conforme Piovesan (2002, p. 35) “infere-se desses dispositivos quão
acentuada é a preocupação da Constituição de 1988 em assegurar a dignidade e o bem-
estar da pessoa humana, como um imperativo da justiça social”, destacando ainda que “a
busca do texto em resguardar o direito à dignidade humana é redimensionada, na medida
em que, enfaticamente, privilegia a temática dos direitos fundamentais”.
Colhe-se, desse modo, que o princípio da dignidade da pessoa humana está
umbilicalmente ligado aos direitos fundamentais, pois aquele exerce relevante papel no
plano constitucional, sendo a fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais, tanto é
assim, que “[...] faz com que a legitimidade das ordens jurídicas nacionais seja medida pelo
grau de respeito e de implementação dos respectivos sistemas protetores dos direitos
humanos, radicados essencialmente na premissa da dignidade” (CASTRO, 2005, p. 23).
Esse rol de direitos fundamentais proclamados no texto constitucional possui duas
funções básicas, a saber: (a) salvaguardar o cidadão contra as arbitrariedades e ingerências
do Estado (negativa); e (b) assegurar que o Estado formule e implante medidas que
propiciem condições, principalmente no campo econômico e social, para que o indivíduo
se desenvolva de forma digna (positiva).
Desse modo, torna-se imperiosa a efetivação dos direitos fundamentais para que se
possa alcançar os objetivos delineados pelo texto constitucional, e, por consequência,
concretizar os fundamentos da República Federativa, já que “o valor da pessoa humana
enquanto conquista histórico-axiológica encontra a sua expressão jurídica nos direitos
fundamentais do homem” (LAFER, 1998, p. 118).
Para Alves (2001, p. 131) a “[...] ideia de pessoa humana concebida pela
Constituição brasileira de 1988 revela-se de modo mais claro no conjunto de direitos
fundamentais por ela consagrado”, já que o homem foi posto no epicentro da comunidade
organizada, evidenciando que o Estado não é um fim em si mesmo, mas tem como
finalidade a garantia e satisfação das necessidades humanas.
Diante desse quadro, é possível asseverar que existem dois grupos de direitos
fundamentais, sendo o primeiro aquele que exige a inércia do Estado para a sua efetivação,
ou seja, cobra uma conduta passiva, um não agir, e o segundo é composto por aqueles
direitos que demandam uma ação do Estado para a sua satisfação, logo, estão
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condicionados a uma prestação material, sendo identificados, dentre outros nomes, como
direitos fundamentais prestacionais.
Esse segundo grupo de direitos fundamentais encontra-se inserido dentro dos
denominados direitos de segunda “geração” ou “dimensão”, compreendidos como os
direitos sociais, econômicos e culturais, sendo, pois, nas palavras de Celso Lafer (1998, p.
127) “direitos de crédito do indivíduo em relação à coletividade”, diferentemente daqueles
que compõem a primeira “geração” ou “dimensão”, que são relativos à liberdade do
indivíduo, ou seja, os direitos civis e os políticos (liberdade, igualdade, propriedade,
segurança).
Contudo, justamente por terem alcance positivo, a satisfação dos direitos
fundamentais prestacionais encontra maiores obstáculos, na medida em que tem como
sujeito passivo o Estado, o qual, vez ou outra, por um motivo ou por outro, justifica a não
efetivação de tais direitos.
Os direitos fundamentais prestacionais, para Sarlet (2006, p. 57-58), são a
densificação do princípio da justiça social, bem como tratam-se de reivindicações das
classes mais miseráveis da população, uma forma de compensação, tendo em vista a
desigualdade que existe entre as classes sociais no país, ou seja, entre os detentores de um
menor ou maior grau de poder econômico.
Isso significa que os direitos sociais prestacionais estão vinculados a necessidade de
melhoria e redistribuição dos recursos existentes na sociedade, contribuindo para o
desenvolvimento do ser humano e de sua qualidade de vida, já que para a “satisfação de
tais direitos, não bastaria a tradicional remoção de atos ditos ilegais ou inconstitucionais,
mas a criação concreta de atos promocionais, prestacionais e efetivos” (FIGUEIREDO,
2007, p. 41).
Nota-se, portanto, que os direitos fundamentais prestacionais necessitam que o
Estado oferte ao cidadão o mínimo de condições materiais para seu exercício e,
notadamente, para concretização da dignidade da pessoa humana, o que se dará mediante
prestações positivas que condicionem o cidadão ao seu pleno desenvolvimento, pois nos
dizeres de Sarlet (2009, p. 121), “[...] o princípio da dignidade da pessoa humana não
apenas impõem um dever de abstenção (respeito), mas também condutas positivas
tendentes a efetivar e proteger a dignidade dos indivíduos”.
Percebe-se que uma Constituição “munida com princípios e conceitos jurídicos
abertos e com um programa estatal a ser cumprido que zele pelos interesses dos menos
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favorecidos” (TOLEDO, 2008, p. 223) deixou de ser o desafio à concretização dos direitos
fundamentais, sendo que na modernidade os desafios, para Minhoto (2007, p. 62), parecem
resumir-se à efetividade e eficácia dos direitos fundamentais, estando, pois, a efetividade
representada pela aplicação concreta dos dispositivos e das previsões legais e a eficácia
pelo resultado, efeito prático e real que incide sobre o objeto de sua aplicação.
Nesse contexto, o Estado passou a ser “[...] figura central na realização da justiça
social, incumbido da promoção dos direitos sociais e na formulação de políticas públicas
voltadas para a paulatina eliminação das desigualdades” (DERBLI, 2007, p. 433-434), já
que, “o Estado Social é, pois, aquela espécie de Estado Dirigente em que os Poderes
Públicos não se contentam em produzir leis ou normas gerais, mas guiam efetivamente a
coletividade para o alcance de metas predeterminadas” (COMPARATO, p. 14).
É de se afirmar, do exposto, que os direitos fundamentais exercem papel vital para
que o indivíduo se torne cidadão, e, sobretudo, um cidadão pleno em sua dignidade, pois,
consoante lição de Rocha (2004, p. 11):
E dignidade da vida fez-se direito. A própria vida tornara-se conteúdo dosordenamentos jurídicos no Estado Moderno. Percebe-se que não basta oviver-existir. Há que se assegurar que a vida seja experimentada em suadimensão digna, entendida como qualidade inerente à condição dohomem em sua aventura universal.
Diante dessa relevante função dos direitos fundamentais para a promoção da
dignidade da pessoa humana consagrada na Constituição Federal de 1988, é imperioso
delinear as ferramentas ou instrumentos postos à disposição do Estado para a efetivação de
tais direitos, logo, no tópico seguinte a atenção voltar-se-á para as políticas públicas.
2 POLÍTICAS PÚBLICAS E O FENÔMENO DA JUDICIALIZAÇÃO
Como alhures mencionado, o constituinte de 1988, imbuído do espírito de mudança
que dominava o mundo, bem como em razão dos acontecimentos internos (ditadura
militar), ante a necessidade de maior proteção dos direitos dos indivíduos, assegurando-se
a dignidade da pessoa humana, inseriu um extenso rol de direitos fundamentais no texto
constitucional.
Desta forma, a normatização deixou de ser o obstáculo dos direitos fundamentais,
deslocando-se o problema para o campo da sua efetividade, em particular quanto aos já
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citados direitos fundamentais de cunho prestacional, os quais exigem uma atitude positiva
por parte do Estado.
Segundo prescreve o artigo 5º, §1º, da Constituição Federal de 1988, “as normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”
(CONSTITUÇÃO FEDERAL. 1988. Artigo 5º, §1º), logo, em tese, caberia ao Estado,
diante de tal mandamento constitucional, a efetivação dos direitos fundamentais, já que tais
normas não necessitariam de complemento, pois já seriam compactas.
Porém, conforme Sarlet (2006, p. 268), no que se refere ao texto do artigo 5º, § 1º,
da Constituição Federal, infere-se à necessidade de tal norma não ser subestimada (nem
superestimada) em seu significado e alcance, pois possui cunho principiológico, sendo,
pois, “uma espécie de mandado de otimização (ou maximização), isto é, estabelecendo aos
órgãos estatais a tarefa de reconhecerem a maior eficácia possível aos direitos
fundamentais”.
Afastada a divergência doutrinária quanto ao alcance da aplicabilidade das normas
de direitos fundamentais, é certo que acolhida uma tese ou outra, cabe ao Estado
disponibilizar meios para a efetivação de tais direitos, em particular quando estes exigirem
uma prestação positiva, é esse o entendimento de Canotilho (1998, p. 384), para quem “as
normas consagradoras de direitos sociais, econômicos e culturais [...] individualizam e
impõem políticas públicas socialmente activas”.
Nesse mesmo sentido, segundo Felipe Derbli (2007, p. 433-434), o Estado passou a
ser “[...] figura central na realização da justiça social, incumbido da promoção dos direitos
sociais e na formulação de políticas públicas voltadas para a paulatina eliminação das
desigualdades”. Percebe-se, assim, que uns dos instrumentos postos à disposição do Estado
para a efetivação dos direitos fundamentais são as políticas públicas.
Dentro dessa perspectiva, pode-se conceituar políticas públicas como sendo
“instrumentos de execução de programas políticos baseados na intervenção estatal na
sociedade”, cujo objetivo seria “assegurar igualdade de oportunidades aos cidadãos, tendo
por escopo assegurar as condições materiais de uma existência digna” (APPIO, 2009, p.
142).
Nessa mesma linha, Bucci (2002, p. 241-242) leciona que as políticas públicas são
programas de ordem governamental que tem por objetivo a coordenação dos meios postos
à disposição do Estado e as atividades privadas, cuja finalidade seria “[...] a realização de
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objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados, com o escopo de atender às
necessidades da coletividade e concretizar a dignidade da pessoa humana”.
É válido frisar, portanto, que os fundamentos e objetivos constitucionais vinculam o
Poder Público (Estado) à efetivação dos direitos fundamentais, motivo pelo qual deve “[...]
propor e realizar as políticas públicas necessárias à satisfação de tais direitos através de sua
função político/administrativa e prestacional” (MELO, 2007, p. 118).
Pode-se afirmar, desta forma, que as políticas públicas transformam um direito
potencial em direito atual, pois uma coisa é ter um direito reconhecido e protegido, outra
bastante diversa é efetivá-lo, retirá-lo da esfera do “dever ser” para transferi-lo para a
esfera do “ser”, transformando-o não apenas objeto de discussão do Estado, mas também
em objeto de decisão e concretização realizada, em caso de omissão, pela esfera judicial
(BOBBIO, 2004, p. 97).
Nesse sentido, evidente a responsabilidade do Estado na instituição de políticas
públicas voltadas a assegurar a concretização dos direitos prestacionais, pois, como
exposto, “o homem, para decidir a respeito do seu destino precisa estar postado em
situação de igualdade material com seus semelhantes, é preciso que ele tenha tido a
oportunidade de escolher entre o céu, a água e o mar” (TOLEDO, 2008, p. 220).
Desse modo, estando o Estado obrigado ao adotar medidas concretas capazes de
possibilitar a fruição de seus direitos fundamentais, em especial para os indivíduos em
situação de desvantagem, por meio de ações e políticas públicas eficazes, a sua omissão
induz à sua responsabilização.
É nesse cenário que ganhou força o fenômeno conhecido como “judicialização das
políticas públicas”, ou seja, ante a inércia, omissão ou ineficiência do Estado, nasce para o
cidadão, o titular do direito fundamental, a possibilidade de postular em juízo a
responsabilização do Estado, e cobrar pela efetivação do direito violado.
É incumbência do órgão jurisdicional, especialmente conferida aos juízes, a tarefa
de zelar e proteger os valores e premissas constitucionais, já que a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão, omissão ou ameaça a direito
(CONSTITUIÇÃO FEDERAL.1988, artigo 5º, inciso XXXV).
Logo, o fundamento para a judicialização das políticas públicas é a própria
supremacia da Constituição Federal, posto que é ela norma superior aos poderes estatais,
sendo, pois, função do Poder Judiciário a garantia de prevalência do texto constitucional,
podendo este direcionar a elaboração das políticas público-sociais com o objetivo de
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propiciar vida digna aos indivíduos, eis que o poder decisório e controlador atribuído à
autoridade do juiz modificam e direcionam, de forma imperativa, o comportamento e a
estrutura do grupo social, no local em que este desempenha sua atividade jurisdicional
(COUTINHO, 1998, p. 73).
Portanto, no momento em que o ato administrativo (política pública), seja
vinculado ou discricionário, ou a omissão em sua prática, mostra-se incompatível com os
valores insculpidos na Constituição Federal, poderá o órgão jurisdicional, após ser
acionado, emitir um juízo de valor sobre o caso concreto, uma vez que a concretização dos
direitos fundamentais deve estar em primeiro plano, em qualquer das atividades dos entes
públicos.
Por isso, quando a Administração é omissa ou, no momento em que seus atos não
condizem com as necessidades sociais, cabe ao Poder Judiciário avaliar, sempre sob a
perspectiva dos direitos fundamentais constitucionais, “[...] considerados agora sob um
aspecto substancial e primacial, posto que traduzem os valores morais e políticos da
sociedade” (CADEMARTORI, 2001. p. 148-150), a responsabilidade do Estado.
Neste contexto, o Poder Judiciário passa a solucionar não apenas interesses
subjetivos, mas também a atuar como órgão “[...] calibrador de tensões sociais,
solucionando conflitos de conteúdo social, político e jurídico, e também implementando o
conteúdo promocional do Direito [...]” (WATANABE, 1996, p. 141-165).
Verifica-se, então, que as omissões estatais que invalidam ou não incentivam a
concretização dos direitos fundamentais não podem ser tidas como simples opções do
Estado, pois ou a Constituição tem força normativa para impedir que, por exemplo, o
Poder Executivo desrespeite os direitos fundamentais e, assim, confere ao juiz o poder de
controlar a lei e as omissões do Poder Público, caso contrário a Constituição seria apenas
uma proclamação retórica e demagógica (MARINONI, 2006, p. 61).
Assim, o papel do juiz não se restringe a mero aplicador da lei, mas, ao contrário, a
tarefa natural do Poder Judiciário é de garantir a inviolabilidade dos direitos e valores
constitucionais, visando efetivar os direitos sociais, e, por essa razão, é possível o órgão
jurisdicional atuar na elaboração e efetivação de políticas públicas imprescindíveis à
promoção de dignidade. No controle de políticas públicas, o Judiciário deve ser visto e
aceito como uma das funções da soberania estatal em ação, quando atua suprindo a
omissão do legislador ou da Administração.
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Para Alexy (1997, p. 55-67), quando um juiz age em defesa de falhas, tanto do
Executivo, quanto do Legislativo, não faz de forma contrária à população, mas como
representante dela, contra aqueles que desrespeitam o texto constitucional, demonstrando
que no processo político ocorreram falhas nos aspectos “jurídico humano” e “jurídicos
fundamentais”, exigindo dos cidadãos a aprovação dos argumentos do Tribunal, quando
aceitam a argumentação “jurídico-constitucional racional”, ocasionando equilíbrio entre
Estado constitucional, Judiciário e os cidadãos.
Desta forma, não se sustenta o fundamento da violação do princípio da separação
dos poderes, conforme quer fazer crer parte da doutrina, pois não haveria uma substituição
do administrador pelo julgador, pois ao juiz caberia apenas analisar a atuação ou não da
Administração Pública em conformidade com o ordenamento jurídico, sobretudo do
prisma dos valores inseridos no texto constitucional.
É inaceitável em um Estado Democrático o argumento de que ao efetuar controle
político o Poder Judiciário estaria invadindo a esfera de competência de outra função
estatal. Ora, a tripartição dos poderes tem por fundamento assegurar um sistema de freios e
contrapesos, ou seja, visa limitar o poder em face de possíveis práticas abusivas.
Por isso, já não se pode mais falar em independência absoluta entre os poderes
Legislativo, Executivo e Judiciário, razão pela qual a função jurisdicional aparece, agora,
com maior significação para o ser humano, o qual não pode esperar, ao bel prazer da
Administração, que esta garanta e efetive seus direitos fundamentais, sendo incumbência
do Poder Judiciário, diante dessa nova perspectiva, adotar critérios, firmes e plausíveis,
com a finalidade de controlar a atividade administrativa e, também, objetivando
proporcionar prestação pública na forma condizente com os ditames constitucionais,
principalmente nas circunstâncias em que a Administração atua com ineficiência ou
permanece inerte, quando deveria agir, em relação ao atendimento das prioridades sociais,
como nas áreas de saúde e educação.
O Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida pelo Ministro Celso de Melo,
no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45, já firmou
entendimento de que não há violação ao princípio da separação dos poderes quando houver
intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas pela inércia do Estado em sua
implementação (BRASIL, 2004).
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Estando a atuação do Poder Judiciário assegurada pelo texto constitucional no caso
de inércia do Estado, cabe analisar a implementação das políticas públicas decorrentes de
decisão judicial no atual cenário de crise econômica.
3 A IMPLEMENTAÇÃO JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS NO ATUAL
CENÁRIO DE CRISE ECONÔMICA
No Brasil, um dos problemas para a efetivação dos direitos fundamentais reside no
fato de que a criação, desenvolvimento e implementação de políticas públicas estão
vinculadas às verbas orçamentárias que, além de serem insuficientes, são empregadas, não
raramente, de forma equivocada, em políticas inadequadas, ineficientes e mal elaboradas.
Pondera Figueiredo (2001 apud GOMES, 2003, p. 131) que o orçamento não é uma
“[...] peça livre para o administrador”, pois há valores que são priorizados pela
Constituição, como a dignidade humana. Assim, por vezes, o administrador não tem
qualquer discricionariedade, pois, se este pudesse não efetivar os direitos fundamentais,
seria como lhe dar a possibilidade de negar a efetivação da escala de prioridades e de
urgência previstas no texto constitucional.
Tratando-se de uma ação estadual, as políticas públicas, em regra, são propostas e,
posteriormente, executadas dentro de uma determinada margem de discricionariedade do
administrador, ou seja, a análise de sua pertinência e alcance ocorre a partir do
delineamento da prioridade, naquele instante, dentro do contexto coletivo para a prática de
determinado ato administrativo.
Para tanto o administrador deve ter como parâmetro as principais demandas
apontadas pela sociedade, observando o princípio da legalidade e os demais princípios
constitucionais, sem descartar a possibilidade de aprimorar e atualizar sua estrutura, a fim
de contribuir para o aumento do respeito aos direitos fundamentais, pois a administração
detém a função de estabelecer e/ou restabelecer o equilíbrio que permite a convivência
pacífica em sociedade.
Ocorre que, dia após dia, são veiculadas nas mídias em geral (impressa, televisiva,
virtual, etc.) dezenas ou centenas de matérias jornalísticas acerca da crise econômica que
vem assolando o país, a qual faz emergir a alegação de queda na arrecadação pelos
governos e, consequentemente, uma menor disponibilidade de recursos para investimentos
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nas áreas sociais mais sensíveis, quais sejam: saúde, educação, segurança pública, dentre
outras.
Não obstante a previsão constitucional, a qual, como visto, busca de todas as
maneiras assegurar a fruição dos direitos fundamentais com a finalidade de concretizar a
dignidade da pessoa humana, havendo cortes a serem feitos pelo Estado, por meio da
Administração Pública, as primeiras áreas a serem atingidas são justamente aquelas
voltadas à satisfação dos direitos fundamentais.
A título de exemplo, em abril do corrente ano, o Governo Federal anunciou,
sustentando haver necessidade de contingenciamento de gastos, o corte de R$ 4,3 bilhões
do repasse destinado ao Ministério da Educação, reduzindo o repasse então definido pelo
Congresso Nacional de R$ 35,74 bilhões, para R$ 31,43 bilhões, ato que impactou
diretamente no ensino público brasileiro, em especial nas universidades públicas (VEJA
O..., 2017).
O resultado desses contingenciamentos de gastos ou falta de investimento nas áreas
sensíveis (saúde, educação, segurança, etc.) é um número cada vez maior de demandas que
buscam a satisfação dos direitos fundamentais pelas vias judiciais, as quais têm por
fundamento a omissão ou ingerência do Estado no que tange as políticas públicas, ou a
ineficácia destas.
É de se destacar, todavia, que a judicialização das políticas públicas também
encontra barreira na sua efetivação, pois não basta a existência de uma ordem judicial para
a satisfação do direito, pois, como visto, os direitos fundamentais prestacionais dependem
de orçamento para a sua satisfação.
Nessa senda, explica Sarlet (2009, p. 286) que os direitos sociais prestacionais tem
caráter econômico relevante, pois as prestações do Estado estão vinculadas “à destinação,
distribuição (e redistribuição), bem como a criação de bens materiais [...]”. Essa também é
a linha de pensamento de Mendes e Coelho (2000, p. 146), os quais esclarecem que “os
direitos materiais têm a sua efetivação sujeita às condições, em cada momento, da riqueza
nacional”, sendo que, “os direitos a prestação peculiarizam-se, sem dúvida, por uma
decisiva dimensão econômica”.
É imperioso salientar, portanto, que para a efetivação dos direitos sociais
condicionados a uma prestação é necessário que seja levado em consideração o custo, o
dispêndio de recursos por parte do Estado. Destarte, deve-se ter em conta a possibilidade
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econômica do destinatário desses direitos, ou seja, se o Estado tem condições financeiras,
meios de prestar o que a norma lhe impõe (SARLET, 2009, p. 286-288).
Diz-se, então, que “[...] esses direitos estão submetidos à reserva do possível, ou
seja, pode-se afirmar, segundo a concepção de alguns estudiosos que a limitação dos
recursos do Estado, constitui, pois, o limite fático à efetivação dos direitos fundamentais
sociais a prestação (SARLET, 2009, p. 288).
Para Figueiredo (2007, p. 52), porém, “é no mínimo discutível a teoria de que, em
nome da reserva do possível, pode-se obstaculizar o reconhecimento de direitos a
prestações estatais”, para o autor, esse obstáculo não pode ser invocado de forma absoluta.
O Supremo Tribunal Federal, na paradigmática Ação de Descumprimento de
Preceito Fundamental, asseverou que:
[...] Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas,significativo relevo ao tema pertinente à “reserva do possível”(STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Rights”,1999, Norton, New York), notadamente em sede de efetivação eimplementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração(direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo PoderPúblico, impõe e exige, deste, prestações estatais positivasconcretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas. É que arealização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além decaracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização –depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeirosubordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que,comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira dapessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada alimitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado notexto da Carta Política. Não se mostrará lícito, no entanto, ao PoderPúblico, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de suaatividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculoartificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito defraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação,em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas deexistência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva dopossível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamenteaferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade deexonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais,notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puderresultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionaisimpregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. Daí a corretaponderação de ANA PAULA DE BARCELLOS (“A Eficácia Jurídicados Princípios Constitucionais”, p. 245-246, 2002, Renovar): “Emresumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não sepode ignorar. O intérprete deverá levá-la em conta ao afirmar que algumbem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, aodeterminar seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se podeesquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida,
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gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outrapolítica pública, é exatamente realizar os objetivos fundamentais daConstituição. A meta central das Constituições modernas, e da Carta de1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção dobem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar ascondições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dosdireitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Aoapurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimoexistencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritáriosdos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir,relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos sedeverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado aoestabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviverprodutivamente com a reserva do possível.” (grifei) Vê-se, pois, que oscondicionamentos impostos, pela cláusula da “reserva do possível”, aoprocesso de concretização dos direitos de segunda geração - deimplantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio quecompreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensãoindividual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) aexistência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas asprestações positivas dele reclamadas. (sem grifos no original) (BRASIL,2004).
A par desse entendimento, resta o questionamento acerca plausibilidade do
argumento da falta de recursos como impeditivo para a efetivação dos direitos sociais
prestacionais, particularmente pelo fato de que o que está em jogo são as prioridades
constitucionais.
Nesse campo de ideias, em contrapartida à teoria da reserva do possível, a qual está
ainda mais em evidência nesse cenário de crise econômica, existe a chamada teoria do
mínimo existencial ou mínimo essencial, podendo ser compreendida como o “conjunto de
situações materiais indispensáveis à existência humana digna” (MACHADO, 2008, p. 06),
sendo que, tal existência deve ser considerada não apenas do ponto de vista físico, como,
ainda, espiritual e intelectual.
O mínimo existencial “associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias é
capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível” (MACHADO, 2008, p. 06).
Desta forma, tendo em vista a dignidade humana, o Estado tem a função de assegurar um
mínimo de condições para que os indivíduos possam se desenvolver, ainda que seja
mediante determinação judicial. O mínimo existencial residiria, portanto, na obrigação do
Estado em garantir aos cidadãos pelo menos as condições mínimas para uma existência
digna.
Ocorre que, no Brasil, os mecanismos que permeiam as políticas públicas – Lei
Orçamentária e Lei de Diretrizes Orçamentárias – não são capazes de conciliar os recursos
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financeiros às necessidades básicas da coletividade, já que no momento da elaboração dos
programas destinam-se recursos para a concretização das metas no próximo ano e,
também, comprometem-se em um plano plurianual os recursos dos quatro anos seguintes
para atender determinados setores.
Verifica-se, no caso brasileiro, que nem aquelas metas propostas para serem
realizadas no ano seguinte são efetivadas e, muito menos, àquelas referentes ao plano
plurianual. Vasconcellos (2001, p. 203 apud DAL BOSCO, 2007, p. 313) ensina que isso
ocorre em razão da mudança de planos da própria administração e na ausência de vontade
política da população, em exigir o cumprimento dos serviços públicos básicos.
Portanto, se a lei tem defeitos, se o Executivo deixa de promover a dignidade de
seus tutelados, praticando atos que desatendem o interesse público e os princípios
orientadores da Administração, nada mais resta senão ao Judiciário promover a correção da
atuação administrativa, determinando a realização das ações corretas para suprir as falhas
ou omissões do Executivo.
Diante desse quadro, o Poder Judiciário, no atual cenário de crise econômica,
visando à efetivação dos direitos fundamentais, pode, por exemplo, nos autos de uma ação
civil pública, determinar a reserva ou a inclusão dos gastos referentes à concretização de
políticas públicas no orçamento do ano subsequente, sendo que tal alternativa seria “[...]
uma sofisticação do conceito de controle dos atos administrativos [...]”, pois, se a
administração tem um dever e o descumpre, é razoável requerer que junto com a
determinação judicial de fazer ou não fazer “[...] sejam viabilizados os recursos que
permitam a realização do objetivo pretendido (FIGUEIREDO, 2001, p. 108 apud GOMES,
2003, p. 131).”
Cita-se como exemplos, as decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça
nos Recursos Especiais n. 1.389.952 (BRASIL, 2016) e n. 1527283 (BRASIL, 2014) nas
quais o Tribunal reconheceu a possibilidade de determinar aos demais poderes do Estado,
visando a satisfação dos direitos fundamentais violados, a previsão da política pública na
lei orçamentária do ano seguinte, bem como a abertura de crédito suplementar pela
Administração Pública.
É certo que as regras orçamentárias existem e devem ser cumpridas. Todavia, não
podem preponderar de forma absoluta, como um entrave inamovível à efetivação dos
direitos fundamentais, considerando a interação que existe entre os diversos sistemas do
ordenamento jurídico.
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Seria muito simples para a Administração negar a concretização de um direito sob a
justificativa de insuficiência de recursos públicos, todavia, ao mesmo tempo em que limita,
por exemplo, gastos relativos à saúde ou educação, prevê no mesmo plano orçamentário
anual gastos com propagandas institucionais.
Por isso, o controle das políticas públicas exercido através da ação civil pública,
tendo em vista que as sentenças judiciais produzidas contra a omissão do Poder Público ao
atender as demandas sociais, “[...] representam importante avanço na recuperação de um
espaço político moldado pela cidadania” (APPIO, 2009, p. 69), pois, tais decisões, embora
possam destoar do esquema tradicional da separação dos poderes, sistematizado por
Montesquieu, apresentam-se necessários na realidade brasileira, na qual muitos dos direitos
fundamentais são afrontados ou desprezados pelo Poder Público.
CONCLUSÃO
O tema relacionado à efetivação dos direitos fundamentais, com vistas à
consagração da dignidade humana é sempre atual, ainda mais sob a ótica da
responsabilidade do Estado na sua promoção, e da sua omissão diante do mandamento
constitucional.
Assim, muito embora a Constituição Federal de 1988 tenha erigido a dignidade da
pessoa humana ao status de fundamento constitucional, passando o ser humano a se tornar
o centro da comunidade organizada, evidenciando que o Estado não é um fim em si
mesmo, mas tem por objetivo garantir e satisfazer as necessidades humanas, a
concretização de tal fundamental depende da efetivação dos direitos fundamentais também
previstos no texto constitucional.
Ocorre, todavia, que os direitos fundamentais, em particular os de natureza
prestacional, exigem uma conduta positiva do Estado para a sua satisfação, ou seja,
dependem da elaboração, desenvolvimento e implementação de políticas públicas para que
sejam fruídos.
O problema reside justamente na omissão ou ingerência estatal em promover as
ações necessárias para a fruição dos direitos fundamentais que cobram essa conduta ativa,
fato que leva à judicialização das políticas públicas, haja vista que o titular do direito
violado busca o Poder Judiciário para exigir o cumprimento das determinações
constitucionais.
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Contudo, esse fenômeno da judicialização da política pública faz surgir vários
questionamentos, em particular quanto à violação do princípio da separação dos poderes,
pois se alega que o Poder Judiciário estaria interferindo na esfera de competência dos
demais poderes,
Não bastasse isso, do ponto de vista prático, afirma-se que a implementação de
políticas públicas depende de recursos, ou seja, de previsão orçamentária, motivo pelo qual
na maioria das vezes a tese levantada para contestar a possibilidade de implementação de
tais ações pelo Poder Judiciário é a teoria da reserva do possível.
Porém, em contraponto a teoria da reserva do possível, levanta-se a teoria do
mínimo existencial, a qual prevê que as necessidades mais básicas do ser humano devem
ser atendidas pelo Estado, ou seja, um mínimo que lhe garanta a dignidade.
No Brasil é firme a jurisprudência autorizando a intervenção do Poder Judiciário,
na sua função de zelar pelos direitos e garantias fundamentais, no controle das políticas
públicas, fazendo com que a Administração respeite o princípio basilar da ordem jurídica,
que é o da dignidade humana, ainda que em tempo de crise.
Esta pesquisa buscou demonstrar não só a necessidade de concretização do
fundamento da dignidade humana e efetivação dos direitos fundamentais, como também a
responsabilidade do Estado em proporcionar os meios adequados para tanto, sendo que,
havendo sua omissão, pode e deve o Poder Judiciário intervir para assegurar a consagração
do citado fundamento e satisfação dos direitos previstos no texto constitucional.
Conclui-se, portanto, que mesmo diante do cenário de crise, deve o Poder
Judiciário, valendo-se dos instrumentos postos à sua disposição pela Constituição Federal,
assegurar o cumprimento dos mandamentos constitucionais no caso de omissão dos demais
poderes, inclusive intervindo, caso necessário, e de forma excepcional, nas questões de
ordem orçamentária.
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