Poderes de Antecipação, sobre Polanyi

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    Estudo sobre os Poderes de

    Antecipação,em Polanyi

    “At some point we shall find ourselves with no other  

    answer to queries than to say «because I believe so».” 

     Polanyi

    “Different vocabularies for the interpretation of things

    divide men into groups which cannot understand each

    other’s way of seeing things and of  acting upon them. For

    different idioms determine different patterns of possible

    emotions and actions.” 

     Polanyi

    “Consider that the Copernican revolution was but a

    continuation of a structuring [of reality] that had its

    origins in antiquity.” 

     Polanyi

    Trabalho realizado por:

    Luís Filipe Fernandes Mendes,

    Mestrando de Filosofia,

    área de especialização em Filosofia Geral,

     para a disciplina de:

    Questões de Filosofia do Conhecimento

    Docente:

    Professora Doutora Luísa Couto Soares

    25-06-2013

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    Resumo:Para Polanyi a ciência é uma actividade na qual a pessoa está

    envolvida como um todo. O cientista também é uma pessoa. Todas

    as pessoas precisam de crenças para viver. Não se vive sem crenças.

     Ninguém tem como tomar consciência de todas as suas crenças.

     Nunca se está em situação de poder julgar livre de preconceitos. E,

    se tal fosse possível, não se teria como sabê-lo. Seja qual for o

    sistema de crenças que se possua, não foi racionalmente adquirido.

    O processo racional é sempre posterior à crença. A crença é anterior

    e fundamento. Não se pode fundamentar as crenças fundamentais  –  

    são estas que fundamentam. Polanyi desenvolve um processocrítico incisivo, profundo, alargado, sem medos, sem

    complacências. E vai para além disso. Assume os problemas. Não

    os assumir seria manter a ilusão da mente virgem, a ilusão de que o

    acesso é neutro, a ilusão de que se pode aceder a um núcleo de

    dados virgens. O autor deste trabalho procura perceber como é que

    Polanyi pode fazer um diagnóstico do humano aparentemente tãocatastrófico e não colapsar qualquer possibilidade do homem fazer

    ciência, adquirir conhecimento, fazer caminho no mundo e, como

     pessoa, procurar consumar-se numa visão global coerente, com

    sentido e responsabilidade. Neste sentido, o autor deste trabalho

    concentra os seus esforços em mostrar a resposta de Polanyi para a

    situação constitutiva do humano no contexto dessa descriçãoaparentemente catastrófica  –   que o próprio Polanyi esboça e

    aprofunda com uma acuidade e lucidez raras sem se deixar

    amedrontar. Parece, pois, que só assumindo se pode superar.

    Palavras-chave: antecipação, ciência, compromisso, crença, descoberta, pessoa, realidade, regime de sentido, responsabilidade, sentido.

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    Índice

    Resumo: ............................................................................................................................................ ii 

    1. Introdução ..................................................................................................................................... 1

    §1. A teoria como hipótese .................................................................................................... 1

    §2. Uma crítica à crítica ........................................................................................................ 2

    §3. O mito do homem nu ....................................................................................................... 8

    2. Os poderes heurísticos e o problema da descoberta ................................................................... 10

    §1. A não indiferença do cientista........................................................................................ 10

    §2. A questão do problema: o que é um problema?  .............................................................. 11

    3. Antecipação ................................................................................................................................. 12

    §1. Um sentido adicional ..................................................................................................... 13

    §2. Verdadeiro e Real.......................................................................................................... 14

    α  –  Life, Danger and Commitment ........................................................................ 15

    β –  Crença e compromisso .................................................................................... 17

    γ –  A realidade ...................................................................................................... 18

    §3. Structuring reality… ...................................................................................................... 20

    4. Conclusão .................................................................................................................................... 25

    Bibliografia/Webgrafia: ................................................................................................................. (a) 

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    1. Introdução Neste trabalho pretendemos estudar a noção de  poder de antecipação, segundo Polanyi. Dada

    a complexidade do que aqui está em causa o nosso estudo será parcial. Antes de mais, convém

    esclarecer que não iremos discriminar os poderes de antecipação, ou as várias funções que estão em

    causa no poder de antecipação, e estudá-las independentemente. Ser-nos-ia impossível realizar tal

    tarefa. Na verdade, comprometemo-nos com um propósito bem mais limitado: estudar a primeira

    conferência de Polanyi, na Duke University, em 1964.

    A conferência em causa procura identificar os poderes antecipatórios e distingui-los do

    conteúdo explícito de uma teoria científica. Por aqui já se vê que o âmbito do nosso trabalho estará

    delimitado pelo contexto da história da ciência e por problemas de carácter epistemológico. Na

    ciência estão envolvidas as noções de verdade e realidade de uma forma que não parecem estar na

    vida do dia-a-dia do comum dos mortais que não são cientistas ou que, sendo-o, têm uma vida para

    além da investigação. Assim, começaremos por uma contextualização do problema. Nessa primeira

     parte procuraremos ganhar instrumentos para perceber o problema da antecipação em Polanyi. O

    que tentaremos mostrar é que, ao contrário do que talvez esperássemos de um homem que vem da

    Ciência fazer Filosofia, Polanyi tem um olhar bastante aguçado para os problemas filosóficos. O

    nosso objectivo é mostrar que Polanyi não ignora os problemas associados às noções de verdade e

    realidade e ao confinamento próprio do ponto de vista humano. Apresentar o tipo de respostas que

    Polanyi apresenta sem uma apresentação da  problematização  prévia ao estabelecimento dessas

    respostas poderia induzir em erro deixando parecer que Polanyi não viu  os muitos e árduos

     problemas em que se envolveu.

    Depois seguiremos o plano traçado por Polanyi na conferência citada acima. Abordaremos o

     problema da descoberta  –   o problema dos problemas procurando trazer à luz o problema da

    antecipação  na ciência. Finalmente, debruçar-nos-emos especificamente sobre a antecipação  –  

    sobre o poder de antecipação procurando mostrar que Polanyi fez mais do que pensar a ciência ou

    os problemas epistemológicos: ele tomou-os no contexto da pessoa humana na sua luta por sentido.

    §1. A teoria como hipótese

    Polanyi considera três posturas metafísicas relativamente à ciência. A de Osiander, a dos

     positivistas e a de Copérnico.

    Osiander sustentava que a ciência  (astronomia) poderia apenas propor hipóteses de acordo

    com as observações, como fundamentos para os cálculos. Estas hipóteses não precisariam de ser

    verdadeiras nem prováveis. Da mesma forma, os positivistas olhavam para a ciência como uma

    “convenient functional relation between observed data”1. Pretendiam retirar à ciência toda a

    1  D1., p. 1. Cfr. p. 3: “Osiander’s attack on the views of Copernicus coincides with the positivist view that a scientific theory is but aconvenient description of observed facts.” 

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     pretensão metafísica. Segundo Polanyi, os medievais coincidem com os positivistas neste aspecto,

    no entanto, enquanto os primeiros apenas consideram que não compete à ciência falar da realidade

    metafísica2, os segundos rejeitam qualquer  pretensão  metafísica. Quer dizer, os positivistas

     pretendem estabelecer um discurso científico indiferente à metafísica porque consideram que

    qualquer afirmação nesse âmbito é vazia  e confusa. Os medievais, pelo contrário, não rejeitam ovalor da metafísica nem a sua possibilidade, apenas consideram que não é à ciência que cabe

    estabelecer o que é a verdade. Esta função seria mais adequada à Filosofia ou à Teologia. É neste

    contexto que se compreende que Paul Duhem tenha declarado que foram o Cardeal Bellarmino e

    Osiander que perceberam o significado preciso do método experimental: não se trata de determinar

    o que é verdade, ou o que deve ser compreendido como real, mas apenas de preservar a observação

    dos fenómenos em hipóteses ou, o que é o mesmo, estabelecer teorias científicas que descrevam

    convenientemente os factos observados.Convém indicarmos aquilo a que Polanyi se refere quando fala de metafísica. Segundo ele,

    quando alguém pretende estar a dizer algo acerca da realidade e o assume verdadeiro, então tem

    uma pretensão metafísica. Neste contexto, Polanyi concorda com Copérnico e com os seus

    seguidores. Copérnico reivindicava que o seu sistema era verdadeiro e não apenas uma hipótese

    (adequada às observações, ou ao que alegava serem os factos) a partir da qual se poderiam fazer

    cálculos. Polanyi concordava com os positivistas, segundo os quais Copérnico tinha pretensões

    metafísicas, mas também concordava com os medievais que defendiam que as pretensões

    metafísicas são essenciais ao verdadeiro conhecimento. Copérnico e os seus seguidores estavam

    certos ao ter pretensões metafísicas. Segundo Polanyi, a ciência é e deve ser  um discurso racional

    que pretende proferir verdades sobre a realidade: não apenas hipóteses.

    §2. Uma críti ca à crítica Deve ser sublinhado que Polanyi está a demarcar-se de uma certa epistemologia que considera

    o progresso científico a partir da dúvida ou da procura de refutação3

    . É neste contexto que se refereexplicitamente a Popper, a Russel, a Mill e a Kant4. Polanyi está claramente a sustentar que a

    dúvida ou a refutação de um princípio ou de um axioma só podem ocorrer a partir de um

    determinado sistema de convicções5. Um sistema de convicções mantém uma coerência interna que

    lhe permite livrar-se de afirmações ou de convicções que possam ser incoerentes com o todo. A

    dúvida, neste contexto, significa apenas que já se tem um regime de sentido, isto é, um regime de

    2

      D1., p. 3.3  D1., pp. 20-21.4 Cfr. PK ., pp. 283-292. 5  PK., p. 311: “So long as the reconsideration of any single belief is undertaken against an overwhelming background ofunquestioned beliefs, the beliefs forming this background cannot simultaneously be alleged to be doubtful. Though every element ofour belief can conceivably be confronted in its turn with all the rest, it is inconceivable that all should be subject simultaneously tothis operation”. 

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    detecção  do que é duvidável ou não. Um sistema construído a partir de certos princípios

    fundamentais corresponde –  isto é –  determina um critério. É deste sistema coerente que a dúvida

    emana e é proferida sobre aquilo que não está de acordo com esse sistema (ou com o resto do

    sistema). Pode-se sujeitar à dúvida esta ou aquela crença particular  –  mas não todo o sistema. Quer

    dizer, é possível duvidar de um sistema todo se se habita outro sistema.Duvidar de uma afirmação significa que se quer refutar a crença que essa afirmação exprime –  

    a favor de outras crenças que se assumem como não dubitáveis 6. Contudo, em qualquer sistema

    dado verifica-se que “all fundamental beliefs are irrefutable as well as unprovable”7. Vendo bem,

     prossegue Polanyi, o teste da prova ou da refutação é irrelevante para aceitar ou rejeitar crenças

    fundamentais: a prova ou a refutação produzem-se nestas crenças que funcionam como critérios

     perante os quais se leva os réus  a prestar provas8. A circularidade é inevitável. As crenças 

    declaradas explicitamente pelo próprio apenas podem ser tidas por verdadeiras devido à aceitação prévia de um determinado conjunto de “deeply ingrained convictions” –   em última análise

    determinadas pelo idioma. Quer dizer, o regime de sentido é determinado por crenças mais

     profundas do que aquelas que podemos facilmente identificar e apontar. É constituído por “implicit

     believes”, sistemas de crenças inerentes ao quadro conceptual, que se reflectem na linguagem e que

    não são imediatamente notificadas pelos próprios sujeitos9. Tem-se sempre um regime de sentido 

    em funcionamento: “an articulate framework as a dwelling place”. Neste contexto, a única dúvida

    que realmente abarca o regime de sentido que se habita é a hesitação tácita: a que um poeta sente

    ao hesitar num verso, ou um crente hesitante face às palavras “ Deus existe”.

    Quando se pretende que não se acredita naquilo que não possa ser provado apenas se está a

    esconder as crenças que já se tem. Polanyi faz notar que aqueles que admitem que não podem

     provar as próprias conclusões pretendendo com isso sustentar uma imparcialidade  –   na verdade

    apenas escamoteiam que não têm provas que as suportem. Pretendem assim sustentar uma estranha 

    imparcialidade por oposição à  subjectividade daqueles que sustentam apenas as suas convicções

     pessoais, contudo, com essa pretensão apenas disfarçam a convicção pessoal para além da qual não

    têm provas.

     Na verdade, a dúvida é apenas uma forma de crença, de aceitação, de afirmação. A recusa de

    uma crença é a admissão do seu contrário: “‘I doubt  p”  significa “I believe not- p”; ou então é a

    admissão de que não se tem fundamento para escolher entre uma crença e a sua contrária : “I believe

     p is not proven”. Seja como for, a diferença entre “ p” e “not- p” é uma matéria de facto: em ambos

    6  PK ., pp. 286: “doubting of any explicit statement merely implies an attempt to deny the belief expressed by the statement, in  favour

    of other beliefs which are not doubted for the time being”.  7  PK ., p. 285.8 Cfr., p. ex.,  PK ., p. 308. A teoria da teoria da dissociação eletrolítica, proposta em 1887, desde início registou dados discrepantesnas observações cuidadosamente anotadas pelos cientistas. No entanto, só em 1919 essas discrepâncias foram interpretadas comorefutações: o próprio Polanyi se lembra de ter ficado admirado quando ouviu a ideia de que tais observações contradiziam a teoria de1887.9 Cfr., PK ., p. ex., 302-305.

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    os casos se afirma algo, ou “ p” “not- p”. Quando se suspende a crença em “ p” (afirmando que não

    está provada ou não pode ser provada), suspende-se também “not- p”, de tal modo que não há, na

    verdade, fundamento para aceitar ou rejeitar nem “ p” nem “not- p”. Quer dizer, mesmo que esta

    indecibilidade  pudesse ser provada isso apenas significaria que ambas poderiam  ser aceites e a

    decisão posterior por uma de entre ambas apenas significaria que outras razões, independentes dademonstração, teriam sido decisivas. A suspensão de uma crença é, também, uma tomada de

     posição: por “not- p” que, se de facto derivasse de uma falta de prova relativamente a “ p”, apenas

    significaria que se usara essa mesma falta de prova para admitir “not- p”  –  no limite, a generalização

    deste procedimento, permitiria aceitar qualquer proposição compatível com “not- p”10.

    Quer a refutação quer a suspensão  preservam  sub-repticiamente um conteúdo fiduciário  –  

    quer dizer, um  sistema de teses em que se confia e que estão em vigor suportando a acção (e a

    decisão). Mesmo a  suspensão agnóstica exige um regime de detecção do que é afirmável . Afirmar“I believe p is not proven”, ou “not provable” implica  –  quer dizer: só é possível na vigência de  –  

    um regime de sentido (“framework”), o qual não é ele mesmo indubitável   –  embora a pessoa em

    causa não desconfie dele  –  dentro do qual  “ p” pode ser dito “proven or not-proven, provable or not-

     provable”. Quando desconsideramos as evidências  relativamente à astrologia ou rejeitamos a

    veracidade dos horóscopos, isso acontece porque acreditamos que a visão científica poderá fornecer

    uma explicação, segundo a qual, essas evidências  astrológicas são afinal apenas acidentais. Esta

     postura pode ser considerada como imparcial –  mas o decisivo é compreender que ela é imparcial  

    apenas porque, tendo um critério, pode desconsiderar   o que não é coerente com o seu próprio

    conteúdo fiduciário. Este conteúdo fiduciário de suporte, no qual se confia, não é necessariamente

     percebido. Ora, o que Polanyi está a dizer não é  que o método da dúvida  tem sido posto em

    funcionamento ao longo da história da ciência e agora deve ser mudado. Não. Polanyi está a dizer

    que esse método nunca foi, de facto, o que pretendeu ser. Mas não é só isso. Na verdade, o método

    da dúvida, levado a sério, seria impossível de ser posto em prática11. Neste contexto, Polanyi chama

    a atenção que não é a dúvida que faz avançar a ciência. Pelo contrário, a defesa enfática do método

    da dúvida escamoteia que é sempre aquilo relativamente ao qual não se tem dúvidas que está

    envolvido no avanço da ciência. A dúvida é, afinal, apenas marginal e o progresso científico tem

    mais que ver com o relaxamento do método da dúvida, do que com a sua aplicação exaustiva.

    O mito da imparcialidade permite pensar (mantém a ilusão) que o regime de sentido cada vez

    constituído está livre de pressupostos. De cada vez que se abandona uma evidência e esta passa a

    ser vista como  superstição, na verdade já se tem outro critério de evidência que, por isso mesmo,

    desconsidera as crenças diferentes12. Polanyi dá o exemplo da luta das crenças científicas contra as

    10  PK ., pp. 287-288.11 Polanyi diz isto explicitamente em PK., p. 283: “I do not say that during the period of critical thought this method has been always,or indeed ever, rigorously practised —which I believe to be impossible […]”. 12 Cfr. ARENDT (1978), pp. 54-57: “Science in this respect is but an enormously refined prolongation of common -sense reasoning,[…]. The criterion in both cases is evidence which as such is inherent in a world of appearances. And […] every correction an d every

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    crenças sobrenaturais durante os séculos XVII e XVIII. Poderíamos ser levados a crer que esse

    movimento céptico estava, de facto, livre de preconceitos e que era totalmente razoável. Mas esta

    ilusão  dura apenas até percebermos os seus erros  –   os quais estavam fundados num conteúdo

    fiduciário, tal como aqueles que praticavam artes sobrenaturais. Polanyi diz isto explicitamente:

     permanecemos cegos para o conteúdo fiduciário do movimento céptico dos séculos XVII e XVIIIenquanto eles fazem os mesmos julgamentos que nós faríamos. E só quando notamos  que eles

    cometeram erros nos apercebemos que também eles tinham um conteúdo fiduciário13. Aquilo que é

    considerado evidência (ou não) depende do regime de sentido que se tem14. Mas nós olhamos os

    actos de cepticismo desses cientistas a partir das nossas próprios crenças, de tal modo é assim que

    apenas os consideramos pouco razoáveis quando são incompatíveis com a nossa visão científica do

    mundo.

    A identificação de um erro num determinado regime de sentido passado não nos deve criar ailusão de que nós próprios estamos desprovidos de crenças15.  Nós não estamos constituídos num

     ponto de vista neutro relativamente a qualquer conteúdo fiduciário. De tal modo não estamos livres

    de crenças que também as nossas dúvidas se poderão revelar, um dia, tão arbitrárias (“wanton”),

    intolerantes e dogmáticas quanto aquelas de que nos livrámos. E isto é um aspecto a reter da análise

    da dúvida: nela mesma está  pressuposto um conteúdo fiduciário que se pode manter e permanecer

    em funcionamento sem chamar a atenção para si, de tal modo que parece resultar de uma

    imparcialidade (uma pessoa julga-se imparcial), mas esta presunção está fundada numa miopia

    constitutiva do próprio ponto de vista. Quer dizer, a dúvida aponta para o agreiro  no olho do

    vizinho na medida em que está desprevenida (“unaware”) da trave no seu próprio olho. 

    A imparcialidade não é um mito se a entendermos como indiferença. De facto, os cientistas

    mantêm-se indiferentes a um conjunto significativo de dados e de resultados experimentais  –  

    simplesmente porque esses dados estão desenquadrados com o conjunto coerente de crenças que os

    cientistas têm em funcionamento. Desta forma, certos dados registados em observações podem ser

    completamente ignorados durante algum tempo até que a alteração dessas crenças permita a

    integração desses dados.

    dis-llusion «is the loss of one evidence only because it is the acquisition of another evidence», in the words of Merleau-Pointy. Nothing […] guarantees that the new evidence will prove to be more reliable than the discarded evidence. […] No matter how fartheir theories leave common-sense experience and common-sense reasoning behind, they must finally come back to some form of it[…]”. Quer dizer, enquanto se muda aquilo que se aceita por evidente, na verdade continua-se a não desconfiar da evidência comocritério: em cada caso aceita-se aquilo que  parece evidente sem desconfiar que seja precisamente nisso que possa residir o erro. Ou,dito de outra forma, o cientista julga corrigir o defeito do olho ao utilizar o microscópio, mas tem de usar o olho para ver através domicroscópio. Se levasse a sua desconfiança a respeito do olho a sério, então teria de admitir que não  sabe que tipo de correcção é preciso introduzir nas lentes para ver as coisas como elas são. De resto, o olho poderia enganá-lo também através do microscópio.Assim, a ideia de que se pode ver sem ser a olho nu é uma ilusão.13

     Polanyi está, provavelmente, a referir-se a homens como Kepler, Newton ou outros que, como se sabe, também defendiam, porexemplo, a astrologia ou a futurologia a partir da interpretação bíblica.14  PK ., pp. 289-90: “When the medical profession ignored such palpable facts as the painless amputation of human limbs, performed before their own eyes in hundreds of successive cases, they acted in a spirit of scepticism, convinced that they were defendingscience against imposture”. 15  PK ., p. 290: “But other doubts, which we now sustain as reasonable on the grounds of our own scientific world view, have oncemore only our beliefs in this view to warrant them”.  

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    A situação do cientista é tal que não há nenhuma regra que lhe possa indicar qual o caminho

    que será corajoso ou teimosia, não tem nenhum critério (senão as suas próprias crenças)  –   no

    momento em que decide –  que lhe permita distinguir entre a dúvida justa ou a dúvida dogmática. De

    facto, há já sempre um conhecimento prévio, tácito, que determina o que é tido por certo à partida,

    que estipula o que é relevante e o que é irrelevante, e que, desta forma, estabelece o que deverá sertido como prova. Esta circularidade fornece um regime prévio de compreensão para qualquer

    experiência possível –  e isto de tal modo que o regime é irrefutável. As condições de interpretação

     já estão dadas por uma compreensão prévia, estipulada, sedimentada no sistema de crenças. Assim,

    na verdade,  pensa-se dentro do regime que se habita16 . Qualquer novo acontecimento apenas

    confirmará o regime detido. Dentro de um regime está-se cego para a compreensão que se torna

     possível a partir de um outro regime. Polanyi exemplifica com o caso dos Azande17: “they have no

    other idiom in which to express their thoughts”. Aquilo que, para um Europeu, é uma evidênciacontra o regime de sentido Azande, será perfeitamente integrado por um conjunto de teses

    secundárias e explicativas. A contradição entre uma crença e uma experiência é simplesmente

    explicada por outra crença. A circularidade acaba por aumentar a confiança no próprio regime. Ora,

    nós tendemos a explicar imediatamente o caso Azande a partir da sua cegueira para os factos. Eles

    têm, de facto, uma confiança  ingénua no seu idioma. Mas Polanyi nota que o nosso objectivismo 

    está repleto do mesmo tipo de crenças implícitas  –  tal como os Azande. E, tal como eles, o nosso

    objectivismo pode permanecer igualmente cego para qualquer possibilidade de refutação. Polanyi

    dá o Marxismo e a Psicanálise como exemplos.

    Aquilo que está em causa aqui é um  poder de antecipação  do regime de sentido que lhe

     permite assimilar cada nova experiência (“powers of [the] framework for assimilating the next case

    which will come under its purview”). De facto, os casos possíveis da experiência estão de cada vez

    determinados18. Não se trata de nenhuma incompetência da razão. Polanyi cita Evans-Pritchard:

    “[Azande] reason excellently in the idiom of their beliefs” 19. A razão opera, pois, uma vez dados os

    termos em que a operação deve dar-se. Mas isto não significa que não ocorra uma contínua

    adaptação. O regime de sentido em funcionamento antecipa  cada evento, até certo ponto novo e

    sem precedentes, e, até certo ponto, adapta-se a ele, assimilando-o e enriquecendo-se 20. A

    16 Ver o caso relatado em  PK ., p. 306 : “The accusation appears quite natural to the soothsayer who formulates it, the prince whoorders the trial by ordeal, the crowd of bystanders and to K. himself who had been transformed into a lion, in fact to everybodyexcept the European who happens to  be present”. É verdade que “[i]t is clear to us that K. had not actually experienced turning into alion and tearing S. to pieces”. O próprio começou por recusar as acusações, contudo, “confronted with an overwhelming case againsthimself” (ele próprio não acreditava na morte acidental, mas acreditava no oráculo que o denunciava), não pôde resistir às evidências e acabou por confessar ter-se transformado num leão.17 Cfr. PK., pp. 302 ss.18

      Cfr. KANT (1988), p. 175-176 (nota à p. A204): “a palavra transcendental […] não aponta para o que ultrapassa toda aexperiência, mas para o que certamente a precede (a priori), com o único fim de tornar possível simplesmente o conhecimentoexperimental”. Os transcendentais ditam as condições da experiência.19  PK ., p. 303.20 Cfr. PK., pp. 108-109. Haverá diferentes matizes nesta integração. Seja como for, compreender  algo é incorporar , é integrá-lo notodo com sentido. O poder de antecipação é esta faculdade através da qual o caso particular novo se torna parte de um todo previamente detido.

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    circularidade permite que o sistema se expanda de tal modo que tudo cairá sobre as suas

    explicações. Neste contexto, falar de ilusão é enganador. As teorias científicas têm a mesma

     forma21. Os regimes de sentido fornecem um conjunto de interpretações possíveis, um sistema de

    ampliação de tal modo operativo que “will cover almost any conceivable eventuality, however

    embarrassing”.  Os Azande (tal como os cientistas dos séculos XVII e XVIII e, concebivelmente,nós próprios)22, negam “to any rival conception the ground in which it might take root”.  

    O regime de sentido é, portanto, internamente coerente e fornece as condições de prova, de tal

    modo que estando em funcionamento continuamente se prova a si mesmo. Qualquer novo evento

    cai sobre a regência das suas crenças: nenhuma experiência o pode contradizer –  justamente porque

    é o regime que fornece previamente as suas condições. Simultaneamente, ignora qualquer

     fundamento ou regime de sentido que pudesse dar um sentido diferente àquilo que não tem medida

    segundo o regime de sentido que se tem em vigor. Aquilo que não tem um lugar no sistema éignorado. Polanyi cita William James: “We feel neither curiosity nor wonder […],   concerning

    things so far beyond us that we have no concepts to refer them to or standards by which to measure

    them”. Desta forma, o regime de sentido compreende um mecanismo de auto-defesa preservando a

    sua estabilidade. A esta força de estabilidade Polanyi chama “measure of completeness”23.

     Nós tendemos a rejeitar a “measure of completeness”  Azande24. Substituímos as suas

     superstições  por explicações  naturalistas. Parece-nos que somos mais cépticos. Mas há aqui um

     problema que tem que ver com as nossas crenças25. Tudo aquilo que podemos apontar ao sistema de

    crenças Azande, ao Marxismo, à Psicanálise, à ciência dos séculos XVII e XVIII, pode ser apontado

    ao “system which we currently accept”. O nosso sistema nega sumariamente, ou simplesmente

    ignora todas as experiências que não cabem na sua bitola ou que, por esse mesmo motivo, não têm

    interesse científico. Dentro da ciência a estabilidade das teorias é mantida da mesma forma que os

     Azande mantêm a sua superstição  –  mas o que a ciência ignora pode ser, para uma mente não-

    científica, o mais massivo e vital . Segundo Polanyi, estas restrições da perspectiva da ciência –  isto

    é, do “objectivism”26  –  foram o tema recorrente do livro Personal Knowledge.

    21  PK., p. 307.22  Ibidem: “The behaviour of Azande […], illustrates the kind of contemptuous indifference with which we normally regard things ofwhich we have no conception”. De resto, segundo Polanyi, a ciência comporta-se com indiferença relativamente aos casos que a poderiam refutar: toma-os um por um apenas para explicar cada um deles.23  PK ., p. 308. Passa-se aqui o mesmo que com aqueles que caíam sob o poder do fruto de lótus: esquecendo tudo o que estava paraalém do fruto e esquecendo esse esquecimento, não sentiam nenhuma falta que não se satisfizesse, justamente, por aquilo que lhesestava imediatamente disponível –  i.e., o fruto de lótus.24 É o velho dilema entre  felicidade e completude. Se admitirmos que Ulisses busca apenas a felicidade em Ítaca (ou em Penélope), para quê abandonar a terra do fruto de lótus onde encontraria, justamente, a  felicidade  (sem poder dar conta da falta ou da dor doregresso)? Não terá sido a ilusão a fazer com que tenha abandonado a terra do fruto? Se quisermos dizer que a felicidade no fruto nãoseria a verdadeira  felicidade, então o que a distinguiria desta? Mais precisamente: o que distinguiria a felicidade autêntica dainautêntica para aquele que está sob o poder do fruto?25

     O regime de detecção do que (não é)  superstição que usamos ao eliminar a  superstição tem a mesma forma do regime ao qual seestá a chamar superstição. A única diferença é ao nível do conteúdo (fiduciário). Quer dizer: formalmente, não há nenhuma diferençaentre superstição e ciência. Cfr. PK ., pp. 308 ss.: “the stability of the naturalistic system which we currently accept instead rests onthe same logical structure”. 26 Com as devidas reservas, cfr. KANT (1997), B353. As aparências transcendentais (fundadas em princípios e juízos transcendentes)resultam de “regras fundamentais e máximas” relativas ao uso da “nossa razão”, de tal modo que “possuem completamente o aspec tode princípios objectivos”. Este aspecto é determinante na natureza racional da ciência. A ciência que se afirma  objectiva poderia ser,

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    Os mesmos dados podem ora ser tomados como evidências, ora ser ignorados  –  e isso não

    devido aos dados, mas ao modo como a visão científica em vigor os explica ou não explica. Não

     parece haver nada nos dados que os possa transformar  em evidências. Parece que sim, mas não.

     Nada nas coisas as prova  –  para dizer assim. Polanyi retira uma conclusão prática daqui: o cientista

    não deve permanecer indiferente perante nenhuma pretensão que surja na sua área de conhecimento.Ao ignorar uma determinada interpretação (“claim”), na verdade já se decidiu quanto ao carácter

    infundado dessa pretensão27. O decisivo é que pode acontecer que esteja apenas a ser guiado pelo

    fechamento da perspectiva em determinados conteúdos fiduciários que ainda não se desocultaram –  

    isto é, que permanecem, desapercebidamente, a determinar as suas dúvidas e a sua compreensão.

     Neste sentido, apenas quando uma pretensão cai completamente fora da investigação responsável  

    do cientista é que ele pode manter-se imparcial .

    §3. O mito do homem nu

     Não é possível  suspender   o todo  das nossas  crenças28. A dúvida  por decreto  –   “universal

    doubt” –   não funciona, antes de mais, porque o conteúdo fiduciário não é um todo articulado

    explícito. Uma dúvida universal só seria possível se se pudesse garantir que se tivesse explicitado o

    conteúdo fiduciário inarticulado. Contudo, mesmo que isso fosse possível, não o poderíamos saber.

     No limite, essa procura pelo homem nu  –  ou, como diz Polanyi –  a procura por uma mente virgem 

    esbararia, finalmente, com a facto de o  próprio acesso estar constituído de tal modo que envolveimplicações acerca das coisas que poderão estar erradas. Não é só o olho, o corpo, as determinações

    fisiológicas, mas também a educação, a idade em que nos encontramos e até as condições externas  –  

    tudo isto faz parte de um contexto, de um todo incorporado. “Its teachings are the idiom of his

    thought”29. E o conhecimento dá-se neste contexto. É o homem todo (pessoa) que conhece.   O

    acesso é, portanto, um  processo  –  ou melhor: o acesso consiste num  processamento no qual estão

    envolvidas diversas funções. E estas funções poderiam estar erradas: se estivessem, não teríamos

    critério para sabê-lo. Visto que o acesso é um processo total da pessoa total, nunca saberemos comoé  visto este  preto aqui independentemente do olho, da luz ambiente, mas também da idade que

    temos, etc. Na verdade, podemos nem nos importar com isso se nos morreu uma pessoa querida ou

    uma dor de dentes nos amaldiçoa. Quer dizer, a mais nua forma de acesso (se tal nudez se pudesse

    determinar) já implicaria um processo cujos trâmites nós desconhecemos, de tal modo que nos é

     por isso, classificada como resultado da “necessidade objectiva da determinação das coisas em si”. Aqui podemos abdicar declassificar o resultado transcendental (isto é, aquilo que determina a priori as condições da experiência) como aparência ou não pois,como Kant explicitamente indica, a razão não tem nenhuma forma de refutar tais sistemas pretensamente objectivos   –  excepto setivesse suspendido a adesão: ora, é esta  suspensão (admitida por Kant nos limites da razão pura) que Polanyi considera não ser, defacto, possível.23 Cfr. KANT (1997), BXXIII: “com respeito aos princípios de conhecimento, a razão pura 27  PK ., p. 291: “If he ignores the claim he does in fact imply that he believes it to be unfounded”.  28  PK ., pp. 311ss.29

      PK ., p. 401. 

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    impossível determinar qual é a diferença introduzida pelo processamento 30: porque para isso seria

     preciso, justamente, já ter tido acesso a um “core of indubitable virgin data”. 

    As dificuldades meramente esboçadas já permitem ver que o programa da dúvida universal  

    está votado ao colapso. Aquilo que se revela neste colapso é que toda a racionalidade está radicada

    num conteúdo fiduciário31

    .32

      Ora, é neste contexto que, na nossa perspectiva, se insere ecompreende o nosso problema. Para provar um fundamento seria preciso sempre outro fundamento

     –   sem fundamento prévio não se tem como provar o que quer que seja se se exigir uma  prova. A

     busca por este conteúdo fiduciário, procurando torná-lo explícito, é coerente apenas porque

     pressupõe as suas próprias conclusões33. Mas Polanyi não diz isto para rejeitar a circularidade: a

    circularidade não pode ser rejeitada, ela está tanto na confiança  dos Azande como na dúvida

    cartesiana. A indagação está dependente do conteúdo fiduciário  –   e deve  permanecer como tal.

    Contudo, há diferença entre habitar uma tese sem saber e estar consciente dela. Segundo Polanyi,em vez de se  pretender   alcançar (ou  pretender ter-se alcançado) uma imparcialidade que apenas

    escamoteia a nossa verdadeira situação, deve-se indagar de forma intencionalmente circular. A não

    admissão da circularidade da indagação corresponde à manutenção da mesma numa perspectiva que

     permanece cega para as teses que habita tacitamente: permanece indiferente. A indagação  tem,

     portanto, a tarefa de ensinar o próprio sujeito a agarrar a sua crença: de tornar explícito, para si

    mesmo, tanto quanto possível, o conteúdo fiduciário –  sem jamais cair na ilusão de que está livre de

     pressupostos ou num acesso virgem a um conteúdo virgem34. Isto não existe.

    O homem pode ter sido criado nu, mas não é como tal que ele se encontra a si mesmo. Aliás, a

    mente de uma “newborn child” seria incapaz de fazer o que é preciso. A tarefa de conhecer só pode

    ser posta em marcha por mentes que já não são virgens, que  já habitam um regime de sentido: a

    ideia de uma “mind which could shape its judgment on all questions without any preconceived

    opinions” é simplesmente enganadora. Polanyi acredita nas capacidades humanas mas não está cego

     para os problemas que aqui estão envolvidos. A ssume-os e parte deles.

    30 Não podemos, por motivos óbvios, desenvolver o assunto. Cfr., p. ex., Prefácio ao PK , p. 20: “We must always assume, therefore,that some trace of a hidden personal bias may systematically affect the result of a series of readings”. Não há como  escapar destas“residual indeterminacies”. 31  PK ., p. 313. Polanyi diz explicitamente: “the programme of comprehensive doubt collapses and reveals by its failure the fiducia ryrootedness of all rationality”. 32 Neste sentido, é interessante notar a proximidade com Johannes Climacus, o pseudónimo de Kierkegaard (cfr.  Johannes Climacusou De Omnibus Dubitandum est  e  Migalhas Filosóficas) que, tendo sido levado a crer  pelos discursos dos seus professores que aFilosofia se havia de começar pela dúvida, percebeu que ela pressupõe uma tradição filosófica. A análise de Climacus é insistente: éconvencido  pelos outros que o jovem cai na crença nas virtudes da dúvida. No entanto, os próprios professores parecem-lheconvencidos de que já alguém duvidou por eles, de tal modo que estão mais cheios de certezas do que ele. Como não sabe muitascoisas também não sabe como sair da dúvida se a levar a  sério. Assim, duvidando é como se desmaiasse. Curiosamente, esta dúvida(diferente da dúvida como legado da tradição que se elogia e nunca se pratica) pode ser suscitada pelas coisas mais opostas: pode-se

    discorrer sobre a dúvida e provocar a crença, pode-se discursar sobre a fé e provocar a dúvida. A crença e a dúvida são de tal modoque: se no momento em que se começa a prova, não estiver completamente decidido o que se pretende provar, então nunca se provará porque não se terá por onde começar. Mas ter por onde começar significa que já estava decidido. Não é a prova, mas a crença que pode provocar a adesão a uma tese.33  PK ., p. 315: “Any enquiry into our ultimate beliefs can be consistent only if it presupposes its own conclusions. It must beintentionally circular.” 34  PK ., p. 311.

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    2. Os poderes heurísticos e o problema da descobertaPelo que dissemos, torna-se evidentemente problemático o progresso da ciência: cada sistema

     parece estar dotado de mecanismos de fixação e estabilização. Então como é que um sistema

    evolui? Polanyi é claro: isso não pode acontecer a partir dos factos, nem a partir de uma dúvida dos

    sujeitos relativamente ao seu próprio regime de sentido (não podem pensar fora nem contra as suas

    crenças)35. E, simultaneamente, como se pode defender a pretensão metafísica de uma teoria? As

    evidências  poderiam ser igualmente abalizadas sob um sistema diferente36. Segundo Polanyi,

    Kepler e Galileu  sentiram  que o sistema de Copérnico deveria ser real , mas isso seria de esperar

    também de qualquer Azande relativamente ao seu próprio sistema. Quer dizer: como podemos saber

    que a conecção entre o  sentimento “it must be real” e um determinado sistema não é acidental?37 

    Sabemos que a linguagem dos Azande não é de confiança no que respeita aos oráculos  –  e como

    sabemos que o sistema de Copérnico é confiável relativamente ao lugar do Sol?38 Quer dizer: como

    o poderiam saber Copérnico ou Kepler? Bem, foi ao confiar que o sistema heliocêntrico era real que

    eles fizeram as suas maiores descobertas39.

    §1. A não indiferença do cienti sta

    Polanyi insiste: os seguidores de Copérnico não  fizeram descobertas por duvidarem. Pelo

    contrário, tanto Copérnico como Kepler  sentiram  que havia boas razões para que os planetas se

    movessem em torno do Sol. Copérnico  sentiu que a sua teoria era mais real,  sentiu que havia boasrazões que sustentavam as crenças centrais (explícitas) da sua teoria. Confiou que os problemas

    suscitados pela teoria heliocêntrica o encaminhavam para uma solução –  e confiou nessa solução.

    A busca não é desinteressada, nem imparcial . Sem interesse nenhuma busca ocorreria,

    nenhuma ciência se faria. O cientista sente, acredita, está comprometido, empenha-se com um

    comportamento, uma busca, uma solução (um remédio). A sua busca é focalizada  –   visa

    explicitamente uma teoria. Quer dizer, o cientista  poderia  adoptar uma atitude completamente

    diferente dessa: poderia, por exemplo,  preservar-se numa perspectiva fechada de tal modo que não

    concebesse nenhum problema ou, a concebê-lo, não aceitasse nenhuma resolução deles que

    apontasse para uma revisão do sistema40. Pode-se conhecer uma teoria  de um ponto de vista

     puramente objectivo e histórico41.

    35 Não podemos aqui analisar o confronto entre regimes de sentido diferentes, como quando dois sistemas científicos estão em vigor,ou duas culturas entram em confronto.36  D1., p. 4.37  D1., p. 4-5. Polanyi coloca explicitamente a pergunta.38

     Cfr. TK ., p. 611.39  D1., p. 4.40  D1., p. 9: “ being wedded to an explanation of the planetary system in terms of steady circular motions, he would have absolutelyrejected Kepler’s Laws and Newton’s theory based on them.” Sublinhado nosso. 41 Cfr. KANT (1997), B863-865: podem ter-se na cabeça todos os princípios de um sistema de tal modo que se é mais uma cópia degesso do que um humano vivo. O problema da assimilação acrítica  é complexo e não o podemos desenvolver aqui. Note-se, noentanto, que é preciso haver algum tipo de assimilação acrítica para que certas regras tácitas sejam apreendidas antes de se poder ser

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    O cientista acolhe os problemas colocados pela teoria porque acredita que ela representa um

     facto. Isto não indica uma suspensão. Os seguidores de Copérnico foram  guiados  pela teoria

    heliocêntrica. Tanto assim que as suas descobertas só puderam ser concebidas precisamente na

    vigência desse sistema42. E assim sucessivamente: foram as descobertas de Kepler e de Galileu que

    tornaram possíveis os problemas com que Newton lidou e as descobertas a que ele chegou. Querdizer, há aqui uma integração progressiva de novas descobertas no sistema heliocêntrico, mas o

    decisivo para o nosso estudo é que esse sistema colocava problemas que não estavam dados a ver

    no sistema ptolemaico. Talvez nem fizessem sentido nele.

    §2. A questão do problema: o que éum problema?

    O problema da antecipação  está relacionado com  o problema dos problemas43. Quando

    alguém está convencido de que sabe o decisivo não procura descobri-lo. Mas se sabe que o não

    sabe, como poderá saber quando encontrou aquilo que procurava? Ou: como se pode saber que se

    caçou uma lebre se nunca se viu uma lebre? Porque, aparentemente, não é igual caçar coelho ou

    lebre. E como saber onde ir caçar a lebre? Mas se não se sabe como é a lebre, como saber se é uma

    lebre que se quer caçar?

    O problema que Polanyi pretende colocar é bem específico. Não se trata da pergunta relativa a

    disposições de uma teoria. Nem se trata do problema que se pode resolver com as determinações

    (explícitas) de um sistema. Nesse género de problemas, de facto, um conhecimento histórico e

    objectivo bastaria, um erudito seria muito eficaz a resolvê-los. Pode-se conhecer muito bem todas asdeterminações de um sistema e –  mais do que isso –  habitá-lo e defendê-lo com empenho e estar-se

    completamente cego para o tipo de problemas de que Polanyi pretende falar: problemas que levam

    ao progresso científico, que levam à descoberta, que antecipam novas teorias.

    A antecipação não tem que ver com o conteúdo factual da teoria. Duas teorias podem estar

    dotadas de um conteúdo capaz de descrever os factos com igual precisão e de fornecer previsões

    igualmente rigorosas –  e, ainda assim, uma possuir poderes antecipatórios muito superiores à outra.

    A distinção que aqui se tenta fazer não reside na funcionalidade ou no seu conteúdo técnico(medidas, símbolos, conceitos, etc.). Da mesma forma, a solução deste tipo de problemas não pode

    ser encontrada apenas recorrendo ao conhecimento explícito que se tem de um sistema. Não tem

    que ver com o facto de um sistema dar as condições de possibilidade da experiência em geral: pelo

    contrário, trata-se da possibilidade de surgir um novo conhecimento que não estava  previsto pelas

    determinações explícitas anteriores. Na verdade, este novo conhecimento pode significar a inversão

    (de parte) das determinações explícitas anteriores. Em causa está uma  suspeita  de alguma coisa

    imaginativo. Portanto, não é possível  –  e se fosse seria inconveniente –  rejeitar desde início qualquer submissão à autoridade. Cfr., p.ex., PK ., p. 55: “A society which wants to preserve a fund of personal knowledge must submit to tradition”.  42  D1., p. 5.43 Cfr. Aristóteles, Analíticos Posteriores, 71a1-b8: Aristóteles nota que para conhecer um facto particular parece ser necessário, nãosó o conhecimento adquirido  no acto de conhecer, mas também um certo conhecimento prévio ( primeiro). Ver também Platão, Ménon.

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    escondida que se acredita acessível –  seguindo uma direcção. Um bom problema é uma suspeita: o

    cientista tem uma suspeita. Sente que as determinações explícitas do sistema têm uma deficiência

    ou que algo falta. A resolução desse problema aponta para algo que não está explícito no sistema  –  

    mas de tal modo que é neste que se encontram as  pistas que permitem ir até ao que está escondido.

    Há, portanto, um percurso que é retirar do escondimento  –  quer dizer: ἀλήθεια. Uma vez resolvidoo problema, essas pistas revelar-se-ão  parte da solução (o sistema heliocêntrico é um aspecto da

    teoria geral da gravitação). Vendo bem, as pistas são parte da solução mesmo antes de a coisa

    escondida ter sido desvelada, e é por isso mesmo que elas são pistas “pointing to a gap”44.

    O que queremos reter daqui é a suspeita. Quer dizer, falar de pistas é enganador, pode sugerir

    que as coisas apontam para o problema, o que não é o caso. É muito comum que tudo funcione

    normalmente, que nenhum problema surja se não os que podem ser resolvidos combinando

    determinações explícitas do sistema. A sólida maioria de nós não é descobridora. Um bom médiconão precisa de ser um bom investigador e não há, necessariamente, nenhum demérito em ser-se um

     bom médico. Mas um bom problema é uma suspeita evocada pela imaginação do cientista  –  

    relativamente a um conjunto de circunstâncias que  são vistas como pistas. Mas que podem

    igualmente ser ignoradas. Este é um ponto importante a reter: pode-se muito bem passear entre elas

     sem ver nada de especial . O que é relevante aqui é o cientista e a sua imaginação.

    3. AntecipaçãoA antecipação depende do significado  –  do sentido do sistema. Isto é, o sistema não é apenas

    um conjunto de símbolos, termos técnicos, medidas, cálculos, previsões  –   conjunto objectivo,

    quantificável, mensurável. Relativamente a este conteúdo dois sistemas podem ser idênticos e,

    ainda assim, um traduzir uma nova imagem do mundo –  a diferença fundamental reside no aspecto 

    do sistema. Neste sentido, o sistema heliocêntrico constituiu uma inovação conceptual

    relativamente ao sistema ptolemaico  –   mesmo se ambos podiam descrever os mesmos

    acontecimentos e serem funcionais para as mesmas previsões45. O regime de sentido como tal vai

     para além disso.  Assim, de facto, a ciência não pode ser vista como uma simples descrição

    funcional de dados observados. O aspecto  da teoria consiste numa inovação conceptual  –   é uma

    nova forma que, na verdade, pode explicar os mesmos acontecimentos e disponibilizar as mesmas

     previsões, mas que já veicula um ganho conceptual, um “surplus meaning”, um sentido adicional . É

    o mundo que é visto numa nova “framework”: como quando um sujeito coloca óculos concebidos

     para inverter a relação esquerda-direita46. Por isso mesmo, nada aqui tem que ver com dados,

    44

      DK ., p. 19.45 O que distingue o novo sistema não tem que ser nenhum aumento de plausibilidade ou capacidade predictiva. Isso não aconteceu, por exemplo, com a teoria de Copérnico face ao modelo ptolemaico.46 Polanyi faz esta comparação explicitamente. Cfr. D2., pp. 8-10. Basta que citemos as seguintes indicações: “the new kind of seeingis accompanied by a corresponding conceptual change […]”; “a conceptual reform accompanying perceptual innovations, must also be predominantly tacit”; “passing from perceptual to conceptual change, I can return to the subject of scientific discovery […]. The process in which relativity originated, was in fact analogous to the way one learns to see rightly with inverting spectacles”  

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    evidências cruas, muito menos tem que ver com mentes virgens ou humanos nus: na verdade só

     perante o regime anterior  é que se pode descrever o novo regime como uma inversão, só perante

    um modo de ver antigo é que a esquerda trocou de lugar com a direita. O novo regime pode levar

    tempo a ser assimilado, habitado pelas pessoas, mas uma vez habitado passará a ser o anterior

    regime que via as coisas ao contrário. Na nova concepção pode ser possível dizer o que eraimpossível  –   e o que se diz com os mesmos termos  significa  um acrescento de sentido. Este

    acrescento de sentido não tem que ver com um acrescento de dados ou aumento de instrumentos47.

    §1. Um sentido adicional

    O  sentido adicional   contido numa certa teoria científica é um conteúdo não explícito e

    corresponde aos seus  poderes antecipatórios. O novo aspecto  é “a new framework” que sugere

    novas questões que não poderiam ser formuladas ou compreendidas no sistema anterior. Foi este

    “general outline” do sistema heliocêntrico que apelou à imaginação e convidou a suspeitar  das suas

     possíveis implicações  –  mais amplas do que as do sistema geocêntrico. Os novos problemas, por

    sua vez, põem as mentes no encalço de descobertas futuras. Assim, reduzir a ciência ao seu

    conteúdo explícito significa esterilizar o sistema.

    Para Osiander, a ciência era um conjunto de hipóteses, uma teoria mas uma teoria apenas, não

    um regime de sentido em funcionamento, habitado, determinador da abertura  ao mundo. Era de

    uma visão global que não era científica que Osiander considerava o aparato técnico, matemático,

    funcional do modelo teórico proposto por Copérnico. Os positivistas consideram cada teoria apenasuma alegação. Cada teoria é, para eles, uma possibilidade entre outras igualmente não decisivas. E

    nesta suposta indiferença  metafísica já fazem um postulado metafísico. Mas o decisivo é que,

    segundo Polanyi, estes modo de alguém se haver com uma teoria, de tal modo que ela é qualquer

    coisa perante a qual se está  –   este modo encontra a teoria já morta48. Como já dissemos, isso não

    significa que não se seja capaz de entender as fórmulas da teoria, aplicar as suas leis, fazer

     previsões e até mesmo ensinar essa teoria que não se habita49. Todavia, quando Polanyi está a falar

    de poderes heurísticos (que guiam a procura) como poderes antecipatórios (relativamente ao queestá escondido), refere-se a um  sentido indeterminado  da teoria que não está dado a ver

    (sublinhado do autor). Segundo Polanyi, uma “conceptual innovation” ocorre, quer na solução para um problema perceptual (porexemplo, no uso de óculos que invertem a direita e a esquerda), quer quando é um problema conceptual que leva a uma nova solução(como foi o caso da teoria de Einstein)  –  seja como for, o decisivo é que uma reforma conceptual acompanha sempre as inovações perceptuais e vice-versa, de tal modo que o novo  não é apenas um novo modo de ver, nem apenas uma nova maneira decompreender, mas sim um novo sistema em que o novo modo de ver é acompanhado por uma mudança conceptual correspondente  (independentemente de qual tenha suscitado a outra).47  D1., pp.7-9. Polanyi dá o exemplo da diferença entre uma lista de localizações e um mapa: embora o mapeamento da lista nãoacrescente novos dados, o mapa transporta um entendimento bastante melhor dos mesmos dados.48

      Cfr.  PK., p. 319: “I may deny validity to some particular knowledge, or some particular facts, but then to me these are onlyallegations of knowledge or of facts, and should be denoted as ‘knowledge’ and as ‘facts’, to which I am not committed”. 49  D1., p. 9. Já nos referimos a isto antes. Teríamos de nos demorar aqui se o nosso intuito fosse analisar o conhecimento tácito. Masnão é. Portanto, basta fazermos notar que se pode saber  fórmulas e não se saber aplicá-las, e pode-se usá-las sem ver para além delas.Usar uma ferramenta, conceptual ou não, já implica um entendimento informal , mas não necessariamente ver para além dela. Polanyiespecifica que quando se refere a “explicit content of a theory” quer dizer as aplicações da teoria que, embora sejam informais eexijam um entendimento informal , são óbvias.

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    imediatamente  –   mas que só muito mais tarde (como os óculos que exigem um período de

    habituação), através de um acto criativo da imaginação pode ser dado a ver. O decisivo a reter aqui

    é que não se trata de uma diferença de acuidade (um ver mais ou menos agudamente aquilo que está

    dado à vista)  –  justamente porque se trata de um compreender , de uma habilidade para ver para

    além daquilo que está efectivamente dado à vista e que se pode revelar, justamente, contra o que

    está imediatamente dado a ver segundo o sistema em vigor 50.

    Ora, neste ponto começamos a perceber o que Polanyi quer dizer quando afirma que o sistema

    heliocêntrico era mais real do que o sistema ptolemaico: o heliocêntrico tinha mais poderes

    antecipatórios51.

    §2. Verdadeiro e Real

    Ora, Polanyi pretende mostrar que Copérnico ao expressar a sua crença de que o seu sistema

    era real –  por oposição ao ptolemaico  –  estava a afirmar a presença de poderes antecipatórios. De

    facto não nos interessa saber se Copérnico  pensava como Polanyi  –  ou se tinha um entendimento

     bastante diferente acerca da sua própria metafísica. O que nos interessa é o modo como Polanyi lida

    com as noções de verdadeiro e real . O problema é bicudo porque os poderes antecipatórios não são

    óbvios –  aliás, o que parece ser decisivo é o seu carácter não óbvio. Evidentemente, nós não somos

    todos copérnicos ou einsteins. A maioria de nós está no mundo como os Azande52. Mas, seja como

    for, nem Copérnico deveria estar já a ver que a sua teoria haveria de dar na teoria da gravidade.

    Segundo Polanyi, quando Copérnico afirmou a sua crença na realidade da sua teoria estava,na verdade, a afirmar que certos recursos do seu sistema tinham potencialidades antecipatórias  –  

    deveriam servir como  pistas para além do próprio sistema53. E isto é decisivo: o carácter real do

    sistema reside –  não só para Polanyi, mas também para Copérnico, segundo Polanyi  –  nos poderes

    antecipatórios de uma teoria. Não nos seus mecanismos de defesa, não na sua capacidade de

    envolver as pessoas e na convicção de que o mundo é assim  –   mas nas potencialidades  por

    desenvolver  que sugerem e direccionam um possível desenvolvimento numa direcção.

     Na verdade, pode-se reconhecer que Copérnico falhou aqui e ali. Mas, independentementedisso, os resultados do sistema de Copérnico manter-se-ão válidos e interessantes  –   mesmo que

    Osiander estivesse certo em reservar a metafísica à Filosofia. E, segundo Polanyi, estes resultados

    estão incontestavelmente ligados ao modo como Copérnico e os seus sucessores se comprometeram

     profundamente com a realidade do sistema heliocêntrico. Queremos ser muito claros no que

    estamos a dizer aqui. Segundo Polanyi pode até acontecer que a maioria de nós esteja entretecida no

    sistema como os Azande. O sistema pode, então, crescer   –   como uma planta cresce. Também é

    50 Neste sentido, seria interessante comparar esta capacidade de ver para além com o νοῦς, nomeadamente, em Aristóteles. 51  D1., pp. 9ss.52 Cfr. PK., p. 194.53  D1., p. 10: “What he meant by asserting that the heliocentric system was real, must have included an anticipation of the fact t hatthese features of his system, and perhaps others too, might yet serve as clues to future problems and that such problems may lead toyet unthinkable further discoveries”. 

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     possível que toda a teoria seja, afinal, uma hipótese: uma alegação de alguém acerca de alegados

    factos. Mas não é nem da descrição nem na previsão que Polanyi situa a validade da descoberta.

     Nessas formas de olhar para a descoberta científica  –   desconfiando dela ou tomando-a

    hipoteticamente –  não se conseguirá sequer perceber de onde ela vem e apenas se conseguiria, na

    melhor das hipóteses, dissecar as descobertas de outros. Seja como for, a diferença significativaentre sistemas não está em nada de explícito, óbvio ou quantificável.

    α  –  Life, Danger and CommitmentKepler empenhou a sua vida em buscas que teriam sido sem sentido (“non sensical”)54 caso o

    sistema heliocêntrico não fosse real. Mas como sabia Kepler que o sistema era real? Bem, ele não

    tinha como  prová-lo senão com o seu trabalho. Quer dizer, a situação de Kepler, como a de nós

    todos no momento de decidir, pode ser comparada ao exército em debandada de Aristóteles55. O

     problema da τροπή é complexo porque, de facto, nunca se teve a situação original (ἀρχή). O que

    temos de facto é uma situação de τροπή (um estado confuso e desorganizado) em que parece haver

    uma reconstituição (“ἑνὸς στάντος ἕτερος ἔστη, εἶθ' ἕτερος”) da qual se vem a ter o decisivo (ἀρχή)

     –   mas de tal modo que é essa reconstituição  que põe, que faz vir (ἔρχομαι) aquilo que

    aparentemente nunca se teve em primeira mão (a ἀρχή). Ora, o processo de reconstituição já é algo,

    de  per se, bastante estranho porque no momento em que um primeiro vem a parar, esse é o

     princípio da presença do todo  –   de tal modo que na percepção  (αἴσθησις)  de cada um já estáenvolvida a percepção do todo  (“καὶ  γὰρ αἰσθάνεται μὲν τὸ  καθ' ἕκαστον, ἡ  δ' αἴσθησις τοῦ 

    καθόλου ἐστίν”)  –  do todo  (“τοῦ καθόλου”) que, sendo o estado original (ἀρχή) nunca foi tido  –  

    nunca esteve presente (explicitamente) –  senão através e na própria reconstituição. Paradoxalmente,

    não se está a olhar para o estado original enquanto se processa a reconstituição: pelo contrário, é a

    reconstituição que nos põe perante o estado original. Esta estranha forma de restituição é o que está

    em causa não só no problema da formação dos conceitos, mas também no problema da descoberta

    científica e no modo como os sistemas de Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Einstein sesucedem.

    Kepler elaborou a imagem do sistema de Copérnico  –  justamente nisso que este sistema tinha

    de distintivo face ao modelo geocêntrico. Ou seja, baseou-se na crença de que essa imagem

    distintiva  representava um facto. Isto não comporta apenas aspectos explícitos. As mudanças

    conceptuais são primeiramente tácitas e, de facto, é preciso uma habituação ao sistema56 . Como já

    se viu, estas mudanças conceptuais são acompanhadas de mudanças  perceptivas, também elas

    54  D1., p. 10.55  Cfr.  Analíticos Posteriores, 100a: “οἷον ἐν μάχῃ  τροπῆς γενομένης […]”: “como numa batalha aconteceu uma retirada […]”(tradução nossa). Aristóteles refere-se explicitamente à formação do universal  –   que já sempre está presente na apresentação do particular. Esta ideia está, também, presente em Polanyi. No entanto, aqui nós pretendemos usar o poder da metáfora para mostrar oqye se passa também no problema “of scientific discovery”.  56 Cfr. D2., pp. 9-10.

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    tácitas. O que está em causa é, portanto, justamente esse lance da vida nesse regime de sentido  –  o

    qual só pode ocorrer porque de facto se está convencido de que esse sistema (que pode ter sido

    recebido de forma explícita, através do estudo da teoria de Copérnico) 57 é real. O cientista deposita

    confiança  –   esta confiança não é meramente hipotética, como quem joga, certamente porque

    acredita que pode ganhar, mas não apostaria a sua vida nisso. A forma como Polanyi fala destaconfiança, desta crença, poderia ser, em muitos aspectos, comparada à πίστις no  Novo Testamento.

    Senão vejamos: Kepler enfrentou a hostilidade e o perigo que comportava aderir a essas teses,

    arriscou o seu compromisso ao dedicar-se a perseguir um  problema solitário  levantado por essa

    visão do mundo, pondo em jogo (“hazarding”) a sua existência como cientista, mas também como

     pessoa –  e esse jogo é tremendo precisamente porque é a sua vida como pessoa e como cientista que

    está em jogo. Aqui não se trata, evidentemente, de uma teoria hipotética, ou de uma investigação

    que se persegue só porque, nesse ano, é nessa direcção que o financiamento aponta. Não. Polanyinão está a falar de um erudito, como diz Fernando Pessoa: Polanyi refere-se àquelas pessoas que

    empenharam de facto a sua vida, toda a sua pessoa num compromisso arriscado do qual poderiam

    sair perdendo tudo. A ciência envolve a pessoa na sua totalidade.

    “The belief of Copernicus in the reality of his system thus acquired an overwhelming practical

    meaning for Kepler and Galileo in the form of their conviction that the problems suggested by

    heliocentric image were good problems, pointing to important hidden truths” 58. 

    O que salta à vista é que Kepler não está a sujeitar a teoria a uma bateria de testes  para ver  se

    ela cede. Não: o montanhista pode, de facto, arruinar-se mas não sai de casa nem sobe a montanha à

     procura do desastre. Ele vai, efectivamente, à procura de alguma coisa que sente estar escondida.

    Ele move-se por alguma coisa –  não para fazer colapsar as suas crenças. Ele tenta, precisamente, ir

    mais além até isso que ele sente estar acessível . Quando Polanyi fala de imaginação podemos ser

    enganados pela palavra. Não se trata aqui de imaginar unicórnios a voar 59. Kepler foi à procura de

    algo que ele acreditava estar de facto escondido, acessível para ser des-coberto: “a hidden truth”.

    Trata-se de uma imaginação concreta60. E não se pode dar uma regra para a imaginação. Pode

    aprender com outros a fazer ciência –  mas não se pode formular uma grelha da imaginação.

    57 Cfr. PK ., p. 194: “These conditions and criteria can be discovered only by taking a purely scientific interest in the matter, whichagain can exist only in minds educated in the appreciation of scientific value. Such sensibility cannot be switched on at will for purposes alien to its inherent passion”.  Não podemos aqui estudar as condições de possibilidade disto. Seria necessário estudardemoradamente o  PK., o que cai fora do nosso âmbito. Note-se, contudo, que a aprendizagem de uma teoria não é independente daidade, nem dos conhecimentos tácitos e explícitos que já se possam ter. Esta aprendizagem também pode ser mais ou menos acrítica,

    e estar associada a uma figura que pode ser entendida como mestre. Note-se também que é preciso haver uma disposição prévia na pessoa que permita interiorizar esse sistema, diferente do que está em vigor na  sociedade, por exemplo. Além disso, a descoberta e ainovação dependem de características do próprio cientista.58  D1., p. 10-11.59 Cfr. D1.,  p. 19: “To undertake a problem is to commit oneself to the belief that you can fill in this gap and make thereby a newcontact with reality”. 60  D1., p. 17.

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    β –  Crença e compromissoA crença na realidade de Copérnico tem continuidade no compromisso heurístico de Kepler.

    Mas não é só isso. Vendo bem, o compromisso de Kepler é também a extensão da sua própria

    crença61. Quer dizer, o compromisso é a intensificação da crença –  da crença que, evidentemente,

    tem de ser entendida como confiança, embora não se deva aqui presumir que o cientista estáneutralizado para o risco e para a percepção de que está a arriscar. Na verdade, é esta percepção do

     perigo e do risco, esta noção de que se tem a vida empenhada  que é o bastante para termos a

    garantia de que o cientista está, de facto, convencido de que as suas teses e os problemas de que se

    ocupa estão fundeados na realidade. O cientista não anda a brincar  com tubos de ensaio.

    Kepler embarcou naqueles problemas a que se dedicou porque tinha expectativas em relação a

    eles: e essa expectativa não era a da ruína62. Contudo, é mais fácil entender que Kepler, na teoria de

    Copérnico, tivesse os olhos já lançados  para lá dela, do que entender que o próprio Copérnico

    tivesse isso em vista quando afirmava que o seu sistema era mais real. Quer dizer, não é óbvio que

    Copérnico quisesse dizer que a sua teoria era boa como  ponto de saída para qualquer outro lado. É

    mais compreensível que ele estivesse convencido que a sua teoria bastasse. Polanyi, contudo, estava

    convencido de que a crença de Copérnico era do mesmo tipo da de Kepler, embora menos intensa.

    A crença de Copérnico era menos dinâmica e “less pointed”63  –  numa palavra, menos antecipatória

    do que a crença de Kepler na solidez dos seus problemas. Mas Copérnico já antecipava vagamente 

    o tipo de antecipações concretas  –   i.e., problemas  –   evocados por Kepler. Os problemas são

    antecipações concretas e uma modalidade da crença.

    A crença na realidade de uma teoria envolve uma expectativa de que algumas das suas teses

    ou determinações possam vir a ser pistas para novos problemas e descobertas 64. Assim, quando

    novos problemas surgem (reificando essa expectativa) estes irão envolver ainda mais expectativas –  

    e esta expectativa levará o cientista a prosseguir numa determinada direcção em busca da verdade

    escondida65. Ele pode de facto estar errado. A única garantia que podemos esperar é a do seu

    compromisso, na medida em que ele se arrisca e é responsável. É neste compromisso em que ele

    assume os riscos e a responsabilidade pelo seu envolvimento no conhecimento que podemos esperar

    uma procura aproximativa à validade universal.  Porque ele está comprometido com isso66 .

    Sublinhe-se que Polanyi não está a dizer que uma teoria é verdadeira  porque mais tarde se revelou

    verdadeira. Esta evidenciação, como se disse, depende já do sistema: só porque já se acredita se

     pode encontrar uma evidência. Diz Polanyi que o sistema de Copérnico não antecipou  as

    descobertas de Kepler acidentalmente –  ele antecipou-as porque era verdadeiro. Mas Newton ainda

    não podia ver   que Copérnico estava certo  –   e apesar de poder estar errado, foi a sua paixão

    61  D1., p. 11.62 Polanyi parece visar Popper –  mas não nos iremos aqui ocupar disso.63  I.e., menos lançada para além dela  –  se nos for permitido dizer assim64  D1., p. 11.65 Note-se que Polanyi usa frequentemente este binómio: crença na realidade de uma teoria –  expectativa de uma verdade escondida.66 Cfr., PK ., p. 319: “Commitment is in this sense the only path for approaching the universally valid”. 

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    intelectual que o mobilizou. Quando o cientista se tem de decidir acerca da verdade de um insight  

    ainda não pode ver   os seus resultados futuros. Mas pode acreditar que ela os terá. E a única

    validação que se pode esperar é a do seu compromisso com a ciência, com o conhecimento, com a

    verdade, com a validade universal  –   é a garantia de que não está a seguir um capricho, uma

    quimera, mas se está a basear naquilo que toma como um facto. Não é o facto de hoje podermos ir ao espaço e olhar  para a configuração do sistema solar que

    está em causa na “veridical quality” de que Kepler ou Newton estavam convencidos. A marca da

    verdadeira descoberta é a intimação para os seus frutos futuros: eles acreditavam que a descoberta

    de Copérnico antecipava futuras descobertas e essa crença intimava-os  para a acção67. O homem

    hoje pode ir ao espaço confirmar  que o Sol está no centro do Sistema Solar porque, muito antes

    disso, já houve homens que estavam absolutamente convictos de que isso era assim.

    γ –  A realidadeQue uma coisa não se dissolva como um sonho significa, para Polanyi, que  se vai manifestar

    em instâncias virtualmente infinitas no futuro. Quando se acredita que um objecto é real sente-se

    que a sua existência se continuará a manifestar no futuro. Quando se diz que um objecto é real quer-

    se dizer que ele está aí, lá fora, quer se acredite quer não se acredite, existindo independentemente

    de nós, ainda que as consequências da sua existência não sejam completamente previstas ou

     previsíveis. Não se trata de uma hipótese. É assim que o nosso ponto de vista está constituído. Setemos dúvidas da continuidade de algo, ou de que algo exista independentemente de nós, então

    duvidamos que seja real. E acreditar na realidade de uma teoria significa que se tem a expectativa 

    de que essa teoria se venha a manifestar em instâncias virtualmente infinitas no futuro. Polanyi está

    mesmo a referir-se à realidade da teoria: a mesma expectativa  que se tem relativamente a um

    objecto real (a expectativa de que ele esteja lá fora e, independentemente de acreditarmos nele ou

    não, continue a manifestar-se e não desapareça como um sonho), tem-se relativamente à teoria 68.

    É neste contexto conceptual que Polanyi define o real e o verdadeiro: o que se acredita ser

    capaz de um número indeterminado de manifestações futuras, acredita-se ser real; acredita-se que

    uma afirmação sobre a natureza é verdadeira quando se acredita que ela desoculta um aspecto de

    alguma coisa capaz de um número indeterminado de manifestações futuras. Uma teoria física

    verdadeira representa um aspecto da realidade (que se pode manifestar inexaurivelmente no futuro).

    Portanto, uma teoria científica, enquanto imagem do mundo, não é uma  fotografia  dele. A mera

    apresentação de factos observáveis e a consequente descrição funcional não é uma teoria científica

    (não se trata apenas de ser uma má teoria). Com isto Polanyi afasta decididamente a ideia de que a

    teoria possa ter que ver com demonstrações.

    67 Cfr. PK., p. 156.68  D1., p. 11-12.

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    A demonstração tem que ver apenas com os factos  –   e então estes podem ser ou não

    demonstráveis. Polanyi dá o exemplo da frase que diz dela mesma que não é demonstrável. Se se

    verificasse  –   e seria necessário demonstrá-lo  –   que ela era demonstrável, então ela seria falsa.

    Depois poder-se-ia alterá-la. Mas se uma frase diz que ela mesma não é verdadeira, então, se ela for

    verdadeira, ela mesma tem de não ser verdadeira, mas então ela tem de ser verdadeira , …  –  a frasecontradiz-se a si mesma. Quer dizer, a forma demonstrativa aponta para um depósito neutro e o

    estabelecimento de uma verdade implica-se a si mesmo. A afirmação de uma verdade  já envolve a

    afirmação verdade da afirmação. Isto encerra aquilo a que Polanyi chama “unlimited

    commitment”. 

     Na verdade não está em causa a descrição de uma relação entre coisas que pode ser verdadeira

    ou falsa. Quer dizer, pode-se produzir uma qualquer proposição sobre o que pode ser ou não o caso

     –   e assim o sujeito permanece neutro relativamente à verdade. Essa afirmação poderia serigualmente verdadeira ou falsa. Então comparar-se-ia o que está a ser afirmado com o estado de

    coisas –  mas, evidentemente, quando se trata de coisas decisivas, o que está em causa é, justamente,

    o que seja o estado de coisas. Newton não poderia fazer este género de comparação. Aliás, como já

    se repetiu, esta comparação já está dependente de uma compreensão prévia. É preciso já saber o

    que é a verdade para saber se a proposição é verdadeira. Mas não é só isso. Neste tipo de teorias da

    verdade o sujeito que profere a proposição não está vinculado à mesma, nem esta àquele. O critério

     para a descoberta tem de ser outro: tem de ser justamente o vínculo da pessoa às suas convicções.

    Quando se afirma que a frase “creio em Deus” nada diz   sobre a existência de Deus, mas

    apenas sobre a crença isso desvirtua o vínculo que a crença constitui. Não se pode crer senão em

    verdades. Mesmo que se tivesse descoberto que Copérnico estava errado ele não teria acreditado em

    sonhos. Quer dizer, quando alguém acredita –  e não se limita a escrever frases que podem descrever

    ou não determinadas relações entre objectos –  essa pessoa está vinculada à realidade. Quem acredita

    não está em estado neutro relativamente à existência disso em que acredita. Alguns discursos sobre

    a crença sugerem que numa crença o que pode ser verdadeiro ou falso é o  facto da pessoa que diz

    ter essa crença a ter –  como se quem diz que crê em Deus estivesse apenas a vincular-se (se tanto)

    ao facto de crer. Isso não é assim para Polanyi. Quem diz  acreditar em algo pode estar a mentir, ou

     pode até estar enganado acerca daquilo que realmente  acredita  –   mas quem acredita está

    comprometido com isso. Neste sentido, uma crença é um compromisso, uma teoria ou um problema

    em que se acredita são compromissos  –   ou então não são verdadeiramente problemas nem

    crenças69. Este vínculo significa também que se age tendo isso como um facto  –  e não como uma

    hipótese. A Terra era de facto redonda para Colombo 70. Quer dizer: “if, and only if, we believe in

    69  D1., p. 19: “A problem which does not worry us and the prospect of which do not excite us is not a problem; it does not exist”. Cfr. PK., p. 194, nota 2: “No genuine affections can ever be produced by ulterior motives; they must discover and uphold theirsatisfaction in themselves”. 70  D1., p. 16: Polanyi insiste na “ belief in the reality of theoretical suppositions as the driven force to discovery”. Sublinhado nosso. 

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    God will we build churches; if we believe in master races we may exterminate Jews and Poles ”71.

    Dito isto, nenhuma descoberta importante pode ser feita “in science by anyone who does not believe

    that science is important –  indeed supremely important –  in itself”72.

    §3. Structuring reality… 

    A crença não pode ser provada. Mas isso não significa que não se tenham crenças. Mesmo

    que se  pretenda  suspender todas as crenças, as pessoas que o pretendam, continuarão a manter

    crenças –  e essa mesma pretensão depende de um conteúdo fiduciário explícito ou não. Ao eliminar

    as ilusões passadas o homem não se liberta da estrutura constitutiva do processo de conhecimento, a

    mesma estrutura que tanto produziu o erro como o seu esclarecimento. A busca da verdade depende

    do compromisso da pessoa que se envolve nessa tarefa  –   e o desenrolar dessa busca depende da

    imaginação daqueles que a assumem.

    As verdadeiras crenças fundamentais  são essas paixões que nos movem, que nos fazem

    erguer igrejas e escolas, mas também campos de morte e máquinas de tortura73. A própria actuação

    dos homens de ciência esteve sempre envolvida em crenças fundamentais que foram mudando ao

    longo dos tempos74. Ter-se uma ou outra paixão, este ou aquele critério não é um processo racional.

    Mas, independentemente disso, são essas crenças, essas paixões que estruturam a realidade.

    O regime de sentido é doador de sentido, é o critério em uso pela própria pessoa que se

    movimenta no mundo  –  e o mundo que lhe surge tem o sentido  –  i.e. a unidade de sentido que oregime de sentido enforma. O mundo, portanto, não é um conjunto de coisas aleatoriamente

    apresentadas. O regime de sentido é a condição de possibilidade do mundo enquanto agregado

    articulado significativamente: ninguém pensa fora do idioma que lhe permite pensar. O regime de

    sentido em que de cada vez se habita não aparece como uma possibilidade de entre outras75. Mas

    não é só isso: este poder de estruturar a realidade reside, em última análise, nos poderes de

     julgamento pessoal –  isso não significa que a pessoa possa decidir conscientemente sobre o critério

    que está a usar, pois essa decisão dependeria sempre de um critério anterior e de uma decisãoanterior. Vendo bem, a decisão final   permanecerá  sempre  tácita76. Cada teoria é um momento da

    contínua estruturação da realidade que começou nos primórdios da humanidade. Cada descoberta é

    uma instanciação da busca humana pelo sentido –  de um sentido universal simultaneamente vital .

    71  PK., p. 119.72  PK., p. 194. Cfr. D1., p. 19: “Such a commitment must be passionate”.  73 Cfr. PK., p. 247. Polanyi sublinha o poder das “great moral passions in Hitler’s programme” e do seu “strong moral appeal”. JáAristóteles nota que os princípios capazes de λόγος (como a medicina), tanto podem provocar a doença como a saúde, tanto expl icam

    uma situação como o seu contrário, embora não da mesma maneir a (“τὸ πρᾶγμα καὶ τὴν στέρησιν, πλὴν οὐχ ὡσαύτως”). Além de oλόγος e a ciência serem possibilidades, quando em exercício podem levar a situações opostas. Ver  Metafísica, 1046a 36-1047b 10.74  PK., p. 192.75  D1., p. 13: “we cannot think that it might just as well have happened differently”. Ver também PK ., p. 194: “we cannot look at ourstandards in the process of using them, […]. We atribute absoluteness to our standards, because by using them as part of ours elveswe rely on them […]”. 76  D1., pp. 14ss.

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    O cientista é uma pessoa vinculada a um sentido, a determinadas expectativas, a esperanças, a

    crenças, à vida. Polanyi tem o mérito de assumir a condição da pessoa na tarefa do conhecimento e

    na ciência em particular. Uma tarefa em que está envolvido todo o seu ser. Nesse trabalho estão

    envolvidos o seu corpo, a sua mente, a estrutura capaz de conhecer e de se iludir, a tradição, a

    educação, a cultura, o passado e a inevitável projecção no futuro. O progresso da ciência estádependente das descobertas de homens. Não é um movimento necessário, mas um fruto do

    empenhamento, da imaginação, da força de vontade de pessoas. Da habilidade para descobrir o

    sentido.

    Polanyi supera o problema do subjectivo e do objectivo. Queremos ser claros: concordamos

    com as suas análises. No fundo, Polanyi reconhece que não temos outra solução senão assumir a

    finitude humana  –   mas este reconhecimento assume também que, na finitude, o humano já está

    lançado para o infinito, na verdade, para a eternidade. Polanyi é um homem da ciência mas sublinhao  pessoal   –   a acção de conhecer . Elimina a distinção formal entre afirmações de crenças  e

    afirmações de factos. Polanyi não está cego para os problemas aqui em causa: ele agarra-os e

    assume-os na sua responsabilidade pessoal enquanto crença pessoal. Vamos então dizer que não há

    factos, mas apenas crenças? Bem, no final , se quisermos ser sérios, temos de admitir que não temos

    outro fundamento para as nossas crenças senão em crermos nelas. A ciência não é mais nada senão

    a firmação coerente, responsável e comprometida de determinadas crenças  –  o que significa tomar

    uma certa visão literalmente. Insistir em perguntar  se são mesmo factos, é insistir na ilusão.

    Colombo tinha como facto  –  literalmente  –  que a Terra é redonda. Por isso chegou à América  –  

    mesmo se ele se enganou ao colocar  lá a Índia.

    O impessoal  é uma abstracção feita por uma pessoa. Em última análise são sempre pessoas

    que investigam. Então, o que é preciso para podermos confiar  na investigação de um cientista? É

     preciso que ele esteja comprometido em ser fiel à verdade. O  pessoal   tem que ver com este

    compromisso intelectual –  isto é, com a paixão intelectual do cientista. Estas paixões não são meros

    desejos subjectivos, nem meras opiniões sem compromisso. A actividade científica é guiada pelas

     paixões individuais, mas enquanto a pessoa se submente às exigências do conhecimento ela

    reconhece-se como independente de  si mesma  em busca de algo  para além da sua subjectividade

    (dor e prazer sensíveis). Assim, a actividade científica transcende a disjunção entre subjectivo e

    objectivo77 . A distinção entre objectivo e subjectivo perde