Poesia e composição

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João Cabral de Melo Neto. Poesia e composição.

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  • RETRATO, A SUA MANEIRA (Joo Cabral de M elo Neto)

    Magro entre pedras Calcrias possvel Pergaminho para A anotao grfica

    O grafito Grave Narr poema o Fmur fraterno Radiografvel a

    Olho nu rid Como o deserto E alm Tu Irmo totem aedo

    Exato e provvel No friso do tempo Adiante Ave Camarada diamante!

    Vinicius de Moraes

    JOO CABRAL DE MELO NETO

    OBRA COMPLETA

    Edio organizada por Marly de Oliveira com assistncia do autor

    RIO DE JANEIRO, EDITORA NOVA AGUILAR S.A., 1994

  • POESIA E COMPOSIO

    Conferncia pronunciada na Biblioteca de So Paulo, 1952.

    PROSA / PO ES IA E COMPOSIO 723

    A INSPIRAO E O TRABALHO DE ARTE

    A composio, que parauns o ato de aprisionar a poesia no poema e para outros o de elaborar a poesia em poema; que para uns o momento inex-plicvel de um achado e para outros as horas enormes de uma procura, segundo uns e outros se aproximem dos extremos a que se pode levar o enunciado desta conversa, a composio , hoje em dia, assunto por de-mais complexo, e falar da composio, tarefa agora dificlima, se quem fala preza, em alguma medida, a objetividade.

    No digo isso somente por me lembrar das dificudades que podem re-sultar da falta de documentao sobre o trabalho de composio da grande maioria dos poetas. O ato do poema um ato ntimo, solitrio, que se pas-sa sem testemunhas. Nos poetas daquela famlia para quem a composio procura, existe como que o pudor de se referir aos momentos em que, diante do papel em branco, exerciam sua fora. Porque eles sabem de que feita essa fora - feita de mil fracassos, de truques que ningum deve saber, de concesses ao fcil, de solues insatisfatrias, de aceitao resig-nada do pouco que se capaz de conseguir e de renncia ao que, de parti-da, se desejou conseguir.

    No que diz respeito outra famlia de poetas, a dos que encontram a poesia, se no a humildade ou o pudor que os fazem calar, a verdade que pouco tm a dizer sobre a composio. Os poemas neles so de inicia-tiva da poesia. Brotam, caem, mais do que se compem. E o ato de escrever o poema, que neles se limita quase ao ato de registrar a voz que os sur-preende, um ato mnimo, rpido, em que o poeta se apaga para melhor ouvir a voz descida, se faz passivo para que, na captura, no se derrame de todo esse pssaro fluido.

    A dificuldade maior, porm, no est a. Est em que, dentro das condi-es da literatura de hoje, impossvel generalizar e apresentar um juzo de valor. possvel propor um tipo de composio que seja perfeitamente representativo do poema moderno e capaz de contribuir para a realiza-o daquilo que exige modernidade de um poema. A dificuldade que existe neste terreno da mesma natureza de contradio que existe, hoje em dia, na base de toda atividade crtica.

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    Na verdade, a ausncia de um conceito de literatura, de um gosto uni-versal, determinados pela necessidade - ou exigncia - dos homens para quem se faz a literatura, vieram transformar a crtica numa atividade to individualista quanto a criao propriamente. Isto , vieram transform-la no que ela hoje, antes de tudo - a atividade incompreensiva por exceln-cia. A crtica que insiste em empregar um padro de julgamento incapaz de apreciar mais do que um pequenssimo setor das obras que se publicam - aquele em que esses padres possam ter alguma validade. E a crtica que no se quer submeter a nenhum tem que renunciar a qualquer tentativa de julgamento. Tem de limitar-se ao critrio de sua sensibilidade, e a sua sen-sibilidade tambm uma pequena zona, capaz de apreender o que a atinge, mas incapaz de raciocinar claramente sobre o que foi capaz de atingi-la.

    Nas pocas de validade de padres universais de julgamento, nessas pocas felizes em que possvel circular "poticas" e "retricas", a compo-sio de um dos campos preferentes da atividade crtica. Ento, pode o cr-tico falar tambm de tcnica, pois que h uma, geral, pode dizer da legiti-midade ou no de uma palavra ou de seu plural, pois que o crtico o melhor intrprete da necessidade que determina tal obra e a funo crtica se exerce em funo de tal necessidade. A ele cabe verificar se a composi-o obedeceu a determinadas normas, no porque a poesia tenha de ser forosamente uma luta com a norma mas porque a norma foi estabelecida para assegurar a satisfao da necessidade. O que sai da norma energia perdida, porque dimimui e pode destruir a fora de comunicao da obra realizada.

    evidente que numa literatura como a de hoje, que parece haver subs-titudo a preocupao de comunicar pela preocupao de exprimir-se, anulando, do momento da composio, a contraparte do autor na relao literria, que o leitor e sua necessidade, a existncia de uma teoria da composio inconcebvel. O autor de hoje trabalha sua maneira, ma-neira que ele considera mais conveniente sua expresso pessoal.

    Do mesmo modo que ele cria sua mitologia e sua linguagem pessoal, ele cria as leis de sua composio. Do mesmo modo que ele cria seu tipo de poema, ele cria seu conceito de poema, a partir da, seu conceito de poesia, de literatura, de arte. Cada poeta tem sua potica. Ele no est obrigado a obedecer a nehuma regra, nem mesmo quelas que em determinado mo-mento ele mesmo criou, nem a sintonizar seu poema a nehuma sensibili-dade diversa sua. O que se espera dele, hoje, que no se parea a nin-gum, que contribua com uma expresso original. Por isso, ele procura realizar sua obra no com o que nele comum a todos os homens, com a vida que ele, na rua, compartilha com todos os homens, mas com o que nele mais ntimo e pessoal, privado, diverso de todos. Para empregar uma palavra bastante corrente na vida literria de agora, o que se exige de

    PROSA f POESIA E COM POSIO

    cada artista que ele transmita aquilo que em si mesmo o mais autntico, e sua autenticidade ser reconhecida na medida em que no se identifique com nenhuma expresso j conhecida. No preciso lembrar que, para atingir essa expresso pessoal, todos os direitos lhe so concedidos de boa vontade.

    Esta a razo principal que faz difcil, ou impossvel, abordar o proble-ma da composio do mesmo ponto de vista com que se abordava na po-ca da tragdia clssica, o problema das trs unidades. No vejo como se possa definir a composio moderna, isto , a composio representativa do poema moderno. _Qualquer esforo nessa direo me parece vazio de sentido. Porque ou proporia um sistema, talvez bastante conseqente, mas perfeitamente limitado, sem aplicao possvel a mais do que pe-quena famlia de poetas que por acaso coincidisse com seus postulados, ou se veria condenado ao simples trabalho de catalogao - espcie de enciclopdia - das inmeras composies antagnicas que convivem hoje, definveis apenas pelo lado do avesso - por sua impossibilidade de definio.

    A composio literria oscila permanentemente entre dois pontos ex-tremos a que possvel levar as idias de inspirao e trabalho de arte. De certa maneira, cada soluo que ocorre a um poeta lograda com a pre-ponderncia de um outro desses elementos. Mas essencialmente essas duas maneiras de fazer no se opem. Se uma soluo obtida expontneamen-te, como presente dos deuses, ou se ela obtida aps uma elaborao de-morada, como conquista dos homens, o fato mais importante permanece: so ambas conquistas de homem, de um homem tolerante ou rigoroso, de um homem rico de ressonncia ou de um homem pobre de ressonncias. Por este lado, ambas as idias se confundem, isto , ambas visam criao de uma obra com elementos da experincia de um homem. E embora elas se distingam no que diz respeito maneira como essa experincia se encarna, essa distino acidental - pois a prtica, e atravs dela o dom-nio tcnico, tende a reduzir o que na expontaneidade parece domnio do misterioso e a destruir o carter .de coisa ocasional com que surgem aos poetas certos temas ou certas associaes de palavras.

    O que observamos no trabalho de criao de cada artista individual, pode ser observado tambm na histria da literatura - ela tambm pa-rece desenvolver-se numa permanente oscilao entre a preponderncia de uma ou outra dessas idias. No quero dizer com isso que vejo na luta entre essas idias o motor da histria literria. Apenas quero dizer que a composio um domnio extremamente sensvel no qual prontamente repercutem as transformaes que ocorrem na histria literria. Isto - a predominncia de um outro desses conceitos, o fato de que se aproximem ou se afastem, suas tendncias a confundir-se ou a polarizar-se so deter-

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    minados pelo conjunto de valores que cada poca traz em seu bojo. Quan-to nossa poca, sua originalidade parece estar em que a polarizao mos-tra-se maior do que nunca e em que, no lugar da preponderncia de uma dessas idias, presenciamos a coexistncia de uma infinidade de atitudes intermedirias, organizando-se a partir das posies mais extremas a que j se chegou na histria da composio artstica.

    No estou esquecido de que neste assunto, temos de levar em conta um fator importantssimo - a psicologia pessoal de cada autor. inegvel que existem autores fceis, cujo interesse estar sempre em identificar facili-dade com inspirao, e autores difceis, pouco espontneos, para quem a preocupao formal uma condio de existncia. E inegvel tambm que a disposio psicolgica de cada autor, ou melhor, o fato de pertencer a uma ou outra dessas famlias, tem de refletir-se no s nas qualidades propriamente artsticas de sua poesia, mas, sobretudo, na sua concepo de poesia e de arte potica. No ser inexata a descrio de um autor difcil como um autor que desconfia de tudo o que lhe vem espontaneamente e para quem tudo o que lhe vem espontaneamente soa como eco da voz de algum. Por outro lado, o autor espontneo ver sempre os trabalhos de composio como alguma coisa inferior, ou mesmo sacrlega, e a me-nor mudana de palavras como alguma coisa que compromete o poema de irremedivel falsidade.

    Esses traos psicolgicos so um fator importante, no h dvida, e em nosso tempo, um fator primordial. Mas a verdade que eles tendem a confundir-se se literatura de determinada poca corresponde a uma viso esttica comum. Nesses momentos de equilbrio - entre os quais no poderemos em absoluto colocar nosso tempo - esses traos pessoais no tm fora suficiente par.a se constiturem em "teoria" da composi-o de seus autores, como se d hoje. Ela estabelecida por meio de uma dupla relao - de autor a leitor, de leitor a autor. O temperamento natural do autor, conforme a exigncia da poca, ter de ser mais ou me-nos subordinado, mais ou menos dominado. Mas ele jamais ser ponto de partida; ser sempre uma influncia incmoda contra a qual o autor tem de lutar.

    Em nosso tempo, como no existe um pensamento esttico universal, as tendncias pessoais procuram se afirmar, todo poderosas, e a polariza-o entre as idias de inspirao e trabalho de arte se acentua. Como a ex-presso pessoal est em primeiro lugar, no s tudo o que possa coibi-la deve ser combatido, como principalmente, tudo o que possa faz-la menos absolutamente pessoal. A inspirao e o trabalho de arte extremos so de-fendidos ou condenados em nome do mesmo princpio. em nome da expresso, e para logr-la, que se valoriza a escrita automtica e ainda em tiome da expresso pessoal que se defende a absoluta primazia do trabalho

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    intelectual na criao, levado a um ponto tal que o prprio fazer passa a justificar-se por si s, e torna-se mais importante do que a coisa a fazer.

    Por tudo isso, se quisermos falar das idias que prevalecem hoje em ma-tria de composio literria, temos de partir da considerao dos fatores pessoais. Podemos verificar que o conceito de composio de cada artista, da mesma maneira que seu conceito de poema, determinado pela sua maneira pessoal de trabalhar. Libertando da regra, que lhe parece, e com razo, perfeitamente sem sentido, porque nada parece justificar a regra que lhe propem as academias, o jovem autor comea a escrever instinti-vamente, como uma planta cresce. Naturalmente, ele ser ou no um ho-mem tolerante consig mesmo, e esse homem que existe nele vai determi-nar se o autor ser ou no um autor rigoroso, se pensar em termos de poesia ou em termos de arte, se se confiar sua espontaneidade ou se desconfiar de tudo o que no tenha submetido antes a uma elaborao cuidadosa.

    O espetculo da sociedade aparecer a esse jovem autor coisa mui-to confusa e ele no saber descobrir, nela, a direo do vento. Por isso, preferir recorrer ao espetculo da literatura. A partir da vida literria que est fazendo no momento, ele fundar sua poesia. O confrade lhe mais real do que o leitor. Ora, no espetculo dessa vida literria ele pode encon-trar .autores justificando todas as suas inclinaes pessoais, crticos para teonzar sobre sua preguia ou sua mincia obsessiva, grupos de artistas com que identificar-se e a partir de cujo gosto condenar todo o resto. A comea a descoberta de sua literatura pessoal. Essa descoberta curiosa de acompanhar-se. Primeiro, o jovem autor vai procurando-se entre os auto-res de seu tempo, identificando-se primeiro com uma tendncia, depois com um pequeno grupo j de orientao bem definida, depois com o que ele considera o seu autor, at o dia em que possa dar expresso ao que nele diferente tambm desse seu autor. ento neste momento, em que de-pois da volta ao mundo se redescobre com uma nova conscincia, a cons-cincia do que o distingue, do que nele autntico, conscincia formada a custa da eliminao de tudo o qu~ ele pode localizar em outros, que o jo-vem autor pensa ter desencavado aquele material especialssimo, e exclusi-vo, com que construir a sua literatura.

    J que impossvel apresentar um tipo ideal de composio, perfeita-mente vlido para o poema moderno e capaz de contribuir para a reali-zao do que exige modernidade de um poema, temos de nos limitar ao estudo do que as idias opostas de inspirao e trabalho artstico trouxe-ram poesia de hoje. Na literatura atual, a polarizao entre essas idias chegou a seus pontos mais extremos e a partir desses extremos que se organizam as idias hoje correntes sobre composio. Tambm cabe sa-lientar que essas posies extremas no esto ocupadas por um s conceito

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    de inspirao e por uma s atitude radical de trabalho de arte. A inspirao ser identificada por uns como uma presena sobrenatural- literalmente - e a inspirao pode ser localizada por debaixo das justificaes cientfi-cas para o ditado absoluto do inconsciente. Trabalho de arte pode valer a atividade material e quase de joalheria de construir com palavras pequenos objetos para adorno das inteligncias sutis e pode significar a criao abso-luta, em que as exigncias e as vicissitudes do trabalho so o nico criador da obra de arte.

    a partir desses pontos externos que tentaremos esboar as idias que prevalecem hoje a respeito da composio literria.

    No autor que aceita a preponderncia da inspirao o poema , em regra geral, a traduo de uma experincia direta. O poema o eco, muitas vezes imediato dessas experincias. a maneira que tem o poeta de reagir experincia. O poema traduz a experincia, transcreve, transmite a expe-rincia. Ele ento como um resduo e neste caso exato empregar a ex-presso "transmissor" de poesia. Por outro lado, o que tambm caracteriza essa experincia o fato de ser nica. Ela ou expressada no poema, con-

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    fessada por meio dele, ou desaparece. A experincia, nesse tipo de poetas, cria o e~tado de exaltao (ou de depresso) de que ele necessita para ser compelido a escrever. Geralmente, esses poemas no tm um tema objeti-vo, exterior. So a cristalizao de um momento, de um estado de esprito. So um corte no tempo ou um corte num assunto. Porque se em alguma circunstncia ele vier a ser provocado por um tema e se cristalizar em tor-no de um tema, podereis observar que ele jamais abarcar esse mesmo tema, completa e sistematicamente. Do assunto ou do tema, ele mostrar apenas um aspecto particular, o aspecto que naquele momento foi ilumi-nado por aquela experincia.

    Quase sempre, tais poemas so construdos. Sua estrutura no nos pa-rece orgnica. O poema ora parece cortar-se ao meio, ora parece levar em si dois poemas perfeitamente delimitados, ora trs, ora muitos poemas. A experincia vivida no elaborada artisticamente. Sua transcrio anr-quica porque parece reproduzir a experincia como ela se deu, ou quase. E uma experincia dessa jamais se organizar dentro das regras prprias da obra artstica. Em tais autores o trabalho artstico superficial. Ele se limita ao retoque posterior ao momento da criao. Quase nunca esse retoque vai alm da mudana de uma expresso ou de uma palavra, jamais atingindo o ritmo geral ou a estrutura do poema.

    comum a tendncia de querer condenar tais poetas jogando-lhes as acusaes de preguia ou incapacidade ou falta de gosto artstico. Em geral, essas crticas so injustas. Tais autores no colocam o contrrio desses de-feitos entre as qualidades de um poema. Eles jamais pretendem criar um objeto artstico, capaz de provocar no leitor um efeito previsto e perfeita-

    PROSA / P OESIA E COMPOSIO

    mente controlado pelo criador. A poesia para eles um estado subjetivo pelo qual certas pessoas podem passar e que necessrio captar, to fiel-mente quanto possvel. To fielmente, isto , tentando reproduzir a im-presso por que passaram. Para eles, o trabalho de organizar essa impres-so s poderia prejudicar sua autenticidade. Nesse texto elaborado, o poeta j no reconheceria a experincia por que passou e a partir da concluiria que o leitor tambm no poderia perceber. A existncia objetiva do poema, como obra de arte, no tem sentido para ele. O poema um depoimento e quanto mais direto, quanto mais prximo do estado que o determinou, melhor estar. A obra um simples transmissor, um pobre transmissor, o meio inferior que ele tem de dar a conhecer uma pequena parte da poesia que capaz de vir habit-lo.

    Para ele, o autor tudo. o autor que ele comunica por debaixo do ~~ texto. Quer que o leitor sirva-se para recompor a experincia, como um:f animal pr-histrico recomposto a partir de um pequeno osso. A poesia w-M deles quase sempre indireta. Ela no prope ao leitor um objeto capaz de provocar uma emoo definida. O poema desses poetas o resduo de sua experincia e exige do leitor que, a partir daquele resduo se esforce para colocar-se dentro da experincia original.

    Essa espcie de poesia, geralmente, e hoje em dia sobretudo, atinge mais facilmente o leitor. Ela escrita em linguagem corrente, no por amor linguagem corrente, mas como um resultado de sua pouca elaborao. Tambm porque pouco elaborada ela desdenha completamente os efei-tos formais e tudo o que faa apelo ao esforo e inteligncia. Por outro lado, o tom nela essencial. atravs do tom, de suas qualidades musicais, e no qualidades intelectuais ou plsticas, que ela tenta reproduzir o estado de esprito em que foi criada. Muitas vezes, mais do que pelas palavras pela entonao que o autor penetra em sua atmosfera. uma poesia que se l mais com a distrao do que coma ateno, em que o leitor mais desliza sobre as palavras do que as absorve. Vagamente, para captar das palavras, sua msica. E uma poesia para ser lida mais do que para ser relida.

    literatura contempornea essa atitude veio trazer um desprezo~onsidervel pelos aspectos propriamente artsticos da poesia. Ela completa-mente incapaz de dar obra de arte certas qualidades como proporo, objetividade. Ela desequilibrada como a experincia que diretamente transmite e tudo o que a funcionalidade do trabalho de arte, isto , todos os recursos de que a inteligncia ou a tcnica pode servir-se para intensifi-car a emoo, deixado de lado. Esse sentido do trabalho artstico incon-cebvel para ela. Toda interferncia intelectual lhe parece baixa interfern-cia humana naquilo que imagina quase divino. Outro aspecto importante a que visa o trabalho artstico, a saber, o de desligar o poema de seu cria-dor, dando-lhe uma vida objetiva independente, uma validade que para

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    ser percebida dispensa qualquer referncia posterior pessoa de seu cria-dor ou s circunstncias de sua criao, tudo isso lhe completamente ini-migo. Neles o poema no se desliga completamente de seu autor.

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    Esse trao alis pode ser facilmente observado hoje em dia. Mais do que nunca, temos o escritor que se d em espetculo juntamente com sua obra. s vezes mais diretamente do que em sua obra - por fora de sua obra. Como o valor essencial da obra a expresso de uma personalidade, como a obra ser tanto mais forte quanto mais exclusiva a personalidade nela presente, o indivduo que escreve tende a suplantar em interesse a coisa escrita. O que se procura o homem raro, lem-se homens. Est claro que nesse tipo de escritores vamos encontrar todos os adeptos da sinceridade e da autenticidade a qualquer preo, para quem essas palavras significam cinismo e deformao, vamos encontrar os mrbidos, os msti-cos, os invertidos, os irracionais e todas as formas de desespero com que um grande nmero de intelectuais de hoje fazem sua profisso de des-crena no homem.

    predominncia do conceito de inspirao podemos atribuir a res-~onsabilidade de uma atitude bastante comum na literatura de hoje, par-ticularmente na literatura brasileira. a atitude do poeta que espera que 0 poema acontea, sem jamais for-lo a "desprender-se do limbo". De cer-to modo se pode afirmar que quase toda a poesia que se escreve hoje no Brasil, ou a parte mais numerosa dela, uma poesia bissexta, e que se per-deu completamente o gosto pelo poema que no seja de circunstncia. No falo de poemas refletindo a circunstncia ambiente, mas de poe-mas determinados por uma circunstncia fortuita na vida do autor. Esse conceito de circunstncia geralmente pe em movimento as zonas mais limitadamente pessoais do poeta. A atitude deste sempre a espera de que o poema se d, de que se oferea, com seu tema e sua forma. Essa atitude pode ser encontrada at nos poetas que mais conscientemente dirigem a escrita de seu poema. Eles dirigem seu poema, a feitura do poema que a ~ircunstncia lhe dita. Jamais dirigem o motivo de seu poema, jamais se impem o poema. O que desejam, e esperam, o poema absolutamente necessrio que se prope com uma tal urgncia que impossvel fugir-lhe. Isto poderia ser uma definio do poeta bissexto, em que as reservas de experincia parecem mnimas e que jamais pode encontrar em si mes-mo o material com que construir os poemas que a necessidade do homem lhe ordene.

    Da - e esta uma conseqncia tambm da predominncia da teoria da inspirao - advm, sobretudo entre os poetas, uma certa repulsa ao sentido profissional da literatura. Esta palavra profissional no est muito bem empregada aqui. Mas a continuao pode aclarar o meu pensamen-to. Falei em que esse tipo de poeta um ser passivo que espera o poema.

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    Note-se bem - ele no espera somente um momento propcio para rea-lizar o poema. Ele espera o poema, com seu tema e sua forma. H nele um grande preconceito contra o poeta que se impe um tema, contra o poeta para quem cantar tem uma utilidade e para quem cabe a essa utilidade determinar o canto. O poema o tema do poeta bissexto. O assunto do poema o que est dito ali. raro o poema sobre tal ou qual objeto. Quando esse poema ocorre, apenas comunica, do objeto, a viso subjetiva que o poeta se formou dele. Note-se, por exemplo, a freqncia de poe-mas que se chamam - poema, ode, soneto, balada.

    Da mesma natureza deste o preconceito que alimentam contra o poe-ma chamado de encomenda. Que um poeta se imponha um tema, cristali-ze seu poema a partir de um assunto ou de uma tese, coisa comple-tamente inconcebvel para a moral do poeta bissexto de hoje. No por preconceito contra uma possvel baixeza, ou banalidade, ou por prosasmo desses temas de encomenda que os poetas se revoltam. Sua poesia geral-mente aborda assuntos sem categoria e os temas que eles costumam des-prezar como indignos so temas que ocuparam alguns dos poetas mais al-tos que j existiram - os temas da vida dos homens. O que h no fundo dessa atitude o desprezo pela atividade intelectual, essa desconfiana da razo do homem, essa idia de que o homem apenas sabe quebrar as coisas superiores que lhe so dadas e que nada pode por si mesmo.

    Pode-se dizer que hoje no h uma arte, no h a poesia, mas h ar-tes, h poesias. Cada arte se fragmentou em tantas artes quantos foram os artistas capazes de fundar um tipo de expresso original. Essa atomi-zao no podia acontecer num perodo como o do teatro clssico fran-cs. E embora caiba ao indivualismo romntico a formulao de sua justi-ficao filosfica, somente com o que se chama literatura moderna o fen-meno chegou a seu pleno desenvolvimento.

    Talvez uma rpida recapitulao das atitudes do artista diante da nor-ma artstica, no perodo que viu nascer e crescer o fenmeno, possa ser de alguma utilidade aqui. Numa poca como a do teatro clssico francs, a obedincia norma era um elemento essencial na criao. O artista era julgado na medida em que estritamente dentro da norma, realizava sua obra. A qualidade estava equiparada capacidade de desenvolver-se den-tro dos padres estabelecidos e justificava qualquer impessoalidade. No Romantismo, com o deslocamento para o autor do centro de interesse da obra, as normas continuaram a existir, - mas somente at um ponto, at o ponto em que no prejudicam a expresso pessoal. Se se olha o artista romntico com os mesmos olhos com que se olha um artista clssico, o primeiro parecer to incorreto quanto o segundo parecer impessoal. A partir do Romantismo, estilo deixou de ser obedincia s normas de estilo, mas a maneira de cada autor interpretar essas normas consagradas. Na ver-

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    dade, esse foi o golpe primeiro, e a partir da o que houve foi apenas um agravamento do fenmeno. Isto , aquele primeiro direito de interpretar a norma estabelecida sua maneira viria a se transformar, depois do comeo deste sculo, no direito de criar sua norma particular.

    Essa transformao traria consigo uma conseqncia imediata: a cria-o de normas particulares, de poticas individuais, se deu por meio de uma fragmentao do conjunto que antigamente constitua uma determi-nada arte. A criao de poticas particulares diminuiu o campo da arte. Em vez de seu enriquecimento, assistimos especializao de alguns de seus aspectos, pois, em ltima anlise, a criao de poticas particulares no passa do abandono de todo o conjunto por um aspecto particular. Esse aspecto particular passa a ser considerado pelo artista que o descobre, o valor essencial da arte, e passa a ser desenvolvido a seu ponto extremo. Para muita gente, essa especializao significa um maior aprofundamen-to, absolutamente necessrio se se quer fazer a arte avanar. Essas pessoas parecem contar com uma idade futura, em que todos esses aprofunda-mentos particulares sero aproveitados numa sntese superior. Entretan-to, creio que esse aprofundamento apenas aparente. Desde o momento em que a arte se fragmenta, desde o momento em que sua mquina des-montada, sua utilidade, a funo que aquela mquina exercia, ao traba-lhar completa, logo desaparece. Os que a desmontaram tm agora consigo peas de mquinas, pedaos de mquinas, capazes de realizar pequenos trabalhos, mas incapazes de recriar aquele servio a que a mquina inteira estava habilitada. A fragmentao da arte limita o artista forosamente ao exerccio formal. O caso da pintura moderna parece mostrar fenmeno bastante claramente. E mesmo o caso de certos poetas. O caso daqueles que se dedicaram, com intenes serssimas, explorao de certas quali-dades de ressonncia, ou mesmo semnticas, de palavras isoladas, isto , de palavrs que no devem servir, que no devem transmitir idias - me parece bastante significativo. Esses mgicos, esses metafsicos da palavra acabaram todos entregues a uma poesia puramente decorativa. Se se ca-minha um pouco mais na direo apontada por Mallarm, encontra-se o puro jogo de palavras.

    Portanto, o que verdadeiramente existe no fundo dessa fragmentao o empobrecimento tcnico. O poeta de hoje no poderia tentar todas as experincias. Sua tcnica no domnio de uma ampla cincia mas o do-mnio dos tiques particulares que constituem seu estilo. Uma vista ligeira sobre a corrente da produo literria de hoje confirma essa afirmao. A grande maioria dos livros de poesia so colees de pequenos poemas, cris-

    k talizaes de momentos especiais, em que o trabalho formal se limita ao ~fi,,. exerccio do bom gosto. Raramente se v o esforo continuado, nem o gos-

    to para os infinitos problemas que implica o poema que o poeta se impe,

    PROSA / P OESIA E COMPOSIO

    com seu tema e sua estrutura, e que outrora levou criao da poesia do teatro em verso, dos poemas de arte mayor dos espanhis.

    No se pode dizer que esse empobrecimento tcnico no exista e

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    os membros dessa segunda famlia de espritos, isto , a daqueles que a ci-tam e procuram levar s ltimas conseqncias o predomnio do trabalho de arte na composio literria. Na obra deles o empobrecimento bas-tante visvel. Porque se verdade que o individualismo coloca adepto da teoria da inspirao numa posio privilegiada para captar e dar expres-so ao mais exclusivo e pessoal de si mesmo, verdade tambm que co-loca o adepto do trabalho de arte, como elemento preponderante, numa situao sem esperana, absolutamente irrespirvel.

    De certa maneira, esta segunda atitude muito menos freqente. Na Literatura Brasileira, ento, rarssima, entre outras razes, porque se co-loca no lado oposto ao da porta por onde entram os adeptos mais nume-rosos da teoria da inspirao - os filhos da improvisao. Na origem da atitude que aceita o predomnio do trabalho de arte est muitas vezes o desgosto. contra o vago e o irreal, contra o irracional e o inefvel, con-tra qualquer passividade e qualquer misticismo, e muito de desgosto, tam-bm, contra o desgosto pelo homem e sua razo. Por outro lado, no se pode negar que essa atitude pode contribuir para uma melhor realizao artstica do poema, pode criar o poema objetivo, o poema no qual no en- j tra para nada o espetculo de seu autor e, ao mesmo tempo, pode fornecer 1 do homem que escreve uma imagem perfeitamente digna de ser que dirige sua obra e senhor de seus gestos.

    Nestes poetas j o trabalho artstico no se limita ao retoque, de bom gosto _de boa economia, ao material que o instinto fornece. O trabalho ar-tstico , aqui, a origem do prprio poema. No o olho crtico posterior ~ obra. O poema escrito pelo olho crtico, por um crtico que elabora as e.-.,; .., experincias que antes vivera, como poeta. Nestes poetas, geralmente, no o poema que se impe. Eles se impem o poema, e o fazem geralmente a \ partir de um tema, escolhido por sua vez, a partir de um motivo racional_. A escrita neles no jamais pletrica e jamais se dispara em discurso. E uma escrita lacnica, a deles, lenta, vanando no terreno milmetro a mi-lmetro. Estes poetas jamais encaram o trabalho de criao como um mal irremedivel, a ser reduzido ao mnimo, a fim de que a experincia a ser aprisionada no fuja ou se evapore. O artista intelectual sabe que o traba-lho a fonte da criao e que a uma maior quantidade de trabalho corres-ponder uma maior densidade de riquezas. Quanto experincia, ela no se traduz neles, imediatamente em poema. No h por isso o perigo de que fuja. Eles no so jamais os possessos de uma experincia. Jamais criam debaixo da experincia imediata. Eles a reservam, junto com sua experin-cia geral da realidade, para um momento qualquer em que talvez tenham

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    de empreg-la. No ser de estranhar que muitas vezes esqueam essa ex-perincia, como tal, e que ela, ao ressuscitar, venha vestida de outra ex-presso, diversa completamente.

    Tambm o trabalho nesses poetas jamais ocasional ou repousa sobre a riqueza de momentos melhores. Seu trabalho a soma de todos s seus momentos melhores e piores. Por isso, seu poema raramente um corte num objeto ou um aspecto particular de um objeto visto pela luz especial de um momento. Durante seu trabalho, o poeta vira seu objeto nos dedos, iluminando-o por todos os lados. E ainda seu trabalho que lhe vai permi-tir desligar-se ~o objeto criado. Este ser um organismo acabado, capaz de vida prpria. E um filho, com vida independente, e no um membro que se amputa, incompleto e incapaz de viver por si mesmo.

    Ora, apesar de ser primordialmente artista, este poeta , antes de tudo, de seu tempo. Ele to individualista quanto aqueles outros poetas que aceitam cegamente o ditado de seu anjo ou de seu inconsciente. Da mesma forma que aqueles, este poeta-artista ao criar seu poema cria seu gnero potico. S que nele esse gnero no definido pela originalidade do ho-mem mas pela originalidade do artista. No o tipo novo de morbidez que o caracteriza mas o tipo novo de dico que ele capaz de criar. E aqui que comea o desesperado de sua situao. Porque essas leis que ele cria para o seu poema no tomam a forma de um catecismo para uso privado, um conjunto de normas precisas que ele se compromete a obedecer. Ao escrever, ele no tem nenhum ponto material de referncia. Tem apenas sua conscincia, a conscincia das dices de outros poetas que ele quer evitar, a conscincia aguda do que nele eco e que preciso eliminar, a qualquer preo. Com a ajuda que lhe poderia vir da regra preestabelecida ele no pode contar - ele no a tem. Seu trabalho assim uma violncia dolorosa contra si mesmo, em que ele se corta mais do que se acrescenta, em nome ele no sabe muito bem de que.

    No tempo em que se reconheciam normas definidas para o verso, a si-tuao era diferente. Estas regras estavam objetivamente fixadas e sua apli-cao podia ser objetivamente verificada. A conscincia potica era o co-nhecimento delas, seu domnio e a vigilncia ao aplic-las. O artista tinha onde apoiar-se. Sabia como limitar seu trabalho. Hoje em dia impossvel ~eterminar at onde deve ir a elaborao do poema. Onde interromp-la. E possvel faz-la prolongar-se indefinidamente. Quase como Juan Ramn Jimnez, sempre a organizar de novo seus livros, sempre a elaborar mais uma vez seus poemas.

    Se esta uma primeira contradio a envenenar, pela base, a ativida-de do poeta desta famlla de espritos, uma segunda existe, tambm igual-mente grave e igualmente difcil de ser superada. Ela atinge a literatura num atributo essencial - o de ser uma atividade criadora, isto , que visa

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    a obter resultados coucretos, obras. Na verdade, a preponderncia abso-luta dada ao ato de fazer termina por erigir a elaborao em fim de si mes-ma. O trabalho se converte em exerccio, isto , numa atividade que vale por si, independentemente de seus resultados. A obra perde em importn-cia. !>assa a ser pretexto do trabalho. Todos os meios so utilizados para que este se faa mais demorado e difcil, todas as barreiras formais o artista procura se impor, a fim de ter mais e mais resistncias a vencer. Este seria o estgio final do caminho que a arte vem percorrendo at o suicdio da inti-midade absoluta. Seria a morte da comunicao, e nela esse tipo de poesia iria se encontrar com a outra incomunicao, a do balbucio, que, por ou-tros caminhos esto tambm buscando os poetas do inefvel e da escrita automtica.

    Gostaria de deixar claro que ao referir-me ao leitor como contraparte t;.4" essencial atividade de criar literatura e da, existncia de uma literatura, no estou limitando o problema a questes como as de hermetismo ou obscuridade, ausncia de rima ou de ritmos preestabelecidos, fatores em que, para muita gente, reside o motivo da indiferena e afastamento do homem de hoje pelos escritores de seu tempo. De forma nenhuma posso convencer-me de que a esses fatores caiba a responsabilidade pelo desen-tendimento. Prefiro v-los, antes, no como fatores mas como conseqn-cia do desentendimento. Na verdade, quando se escrevia para feitores, a comunicao era indispensvel e foi somente quando o autor, com despre-zo desse leitor definido, comeou a escrever para um leitor possvel, que as bases do hermetismo foram fundadas. Porque neste momento, a tendncia do autor foi a de identificar o leitor possvel consigo mesmo.

    Quando falo no leitor como contraparte indispensvel do escritor, pen-so no contrapeso, no controle que deve ser exercido para que a comunica-o seja assegurada. Esse controle j foi exercido pela crtica, nos tempos em que, sendo a literatura comunicao, cabia ao crtico um papel essen-cial, completamente diverso da criao de segunda mo a que est i;eduzi-do . hoje. Es.se controle se exercia a partir da necessidade do leitor, de sua exigncia definida pelo que esse leitor desejava encontrar na literatura de seu tempo. Essa exigncia nem sempre clara de se ver e ativa. Em nosso tempo, os poetas podem fazer ouvidos de mercador a ela, ou mesmo des-prezar at a possibilidade de vir a auscut-la. Ela nunca est formada em termos precisos e concretos. Isso cabia aos crticos, da mesma maneira que ao autor cabia sentir essa exigncia, vivendo a vida de seu leitor, identifi-cando-se com ele, integralmente.

    Evidentemente, a atitude do poeta de hoje no essa. a contrria. O poeta se isola da rua para se fechar em si mesmo ou s.e refugiar num peque-no clube de confrades. Como ele busca, ao escrever o mais exclusivo de si mesmo, ele se defende do homem e da rua dos homens, pois ele sabe que

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    na linguagem comum e na vida em comum essa pequena mitologia priva-da se dissipar. O autor de hoje, e se poeta muito mais, fala sozinho de si mesmo, de suas coisas secretas, sem saber para quem escreve. Sem saber se o que escreve vai cair na sensibilidade de algum com os mesmos segredos, capaz de perceb-los. Alis, sabendo que poucos sero capazes de entender perfeitamente sua linguagem secreta, ele conta tambm com aqueles que sero capazes de mal-entend-la. Isto , com o leitor ativo, capaz de dedu-zir uma mensagem arbitrria do cdigo que no pode decifrar.

    Esse tipo de poeta individualista, apenas d de si. A outra misso do leitor, no ato literrio, a saber, a de colaborar indiretamente na criao desconhecida ou negada. Este poeta no quer receber nada nem com-pree_nde que sua riqueza s pode ter origem na realidade. Na sua literatura existe apenas uma metade, a do criador. A outra metade, indispensvel a qualquer coisa que se comunica, ele a ignora. Ele se julga a parte essencial, a primeira, do ato literrio. Se a segunda no existe agora, existir algum dia - e ele se orgulha de escrever para daqui a vinte anos. Mas ele esquece o mais importante. Nessa relao o leitor no apenas o consumidor. O consumidor , aqui, parte ativa. Pois o homem que l quer ler-se no que l, quer encontrar-se naquilo que ele incapaz de fazer.

    Houve pocas, e creio que ningum duvida disso, em que o entendi-mento foi possvel. Infelizmente, o plano terio a que me obriga o tamanho desta conversa no me permite a descrio concreta de uma delas. Naquelas pocas, inspirao e trabalho artstico no se opunham essencialmente. Isto , no se repeliam como plos de uma mesma natureza. Nessas pocas, a exigncia da sociedade em relao aos autores grande. A criao est su-bordinada comunicao. Como o importante comunicar-se o autor usa os temas da vida dos homens, os temas comuns aos homens, que ele escreve na linguagem comum. Seu papel mostrar a beleza no que todos vem e no falar de nenhuma beleza a que somente ele teve acesso.

    Nessas pocas, a espontaneidade ganha novo sentido. No mais uma facilidade extraordinria de indivduo eleito. o sinal de uma enorme identificao com a realidade. No mais uma maneira de valorizar, in-discriminadamente, o pessoal. Nessa espcie de espontaneidade o que se valoriza o coletivo que se revela atravs daquela voz individual. Como na poesia popular, funde-se o que de um autor e o que ele encontrou em alguma parte. A criao inegavelmente individual e dificilmente poderia ser coletiva. Mas individual como Lope de Vega escrevendo seu teatro e seu "romancero", de aldeia em aldeia de Espanha, em viagem com seus comediantes e profundamente identificado com seu pblico.

    Nessas pocas, tambm essencialmente diferente da que vemos hoje, a atitude do poeta em relao ao tema imposto. Esse poeta cuja emoo se identifica com a de seu tempo, jamais considera violentao sua persona-

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    !idade o assunto que lhe ditado pela necessidade da vida diria dos ho-mens. Para o poeta de hoje essa exigncia violenta porque em sua sensibi-lidade ele no dispe seno de formas pessoais, exclusivamente suas, de ver e de falar. Ao passo que no autor identificado com seu tempo no ser difcil encontrar a mitologia e a linguagem unnimes que lhe permitiro corresponder ao que dele se exige.

    Nessas pocas de equilbrio, fceis de encontrar nas histrias literrias, no h na composio duas fases diferentes e contraditrias - no h um ouvido que escuta a primeira palavra do poema e uma mo que trabalha a segunda. Nessas pocas, pode-se dizer que o trabalho de arte inclui a inspi-rao. No s as dirige. Executa-as tambm. O trabalho de arte deixa de ser essa atividade limitada, de aplicar a regra, posterior ao sopro do instinto. Tambm no se exerce nunca num exerccio formal, de atletismo intelec-tual. O trabalho de arte est, tambm, subordinado s necessidades da co-municao.

    As regras nessas pocas, no so obedecidas pelo desgosto da liberdade, que segundo algumas pessoas a condio bsica do poeta. A regra no a obedincia, que nada justifica, as maneiras de fazer defuntas, pelo gosto do anacronismo, ou as maneiras de fazer arbitrrias, pelo gosto do ma-labarismo. A regra ento profundamente funcional e visa assegurar a existncia de condies sem as quais o poema no poderia cumprir sua utilidade. Para o poeta ela no jamais uma mutilao mas uma identifi-cao. Porque o verdadeiro sentido da regra no o de cilcio para o poeta. O verdadeiro sentido da regra est em que nela se encorpa a necessidade I!\ da poca.

    FIM DE "POESIA E COMPOSIO"

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