Poesia e poema - Octavio Paz

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Poesia e poema* Por Octavio Paz A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de mudar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos escolhidos; alimento maldito. Isola, une. Convite à viagem: retorno à terra natal. inspiração, respiração, exercício muscular. Prece ao vazio, diálogo com a ausência: o tédio, a angústia e o desespero a alimentam. Oração, ladainha, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações e classes. Nega a história: em seu seio todos os conflitos e objetivos se resolvem e o homem finalmente toma consciência de ser mais que passagem. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar de uma forma superior; a linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da ideia. Loucura, êxtase, logos. Retorno à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, atividade ascética. Confissão. Experiência inata. Visão, música, símbolo. Analogia: o poema é um caracol onde ressoa a música, símbolo. Analogia: o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo e metros e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal. Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todos os rostos mas há quem afirme que não possui nenhum: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana!

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"Poesia e poema" que é, antes de uma aula magna sobre um conceito que une e separa os dois termos é também uma ode ou um canto de louvor a poesia e ao poema. Está nesse texto a "alma" de "O arco e a lira", por isso a importância de sua leitura

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Poesia e poema*

Por Octavio Paz

A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de mudar o

mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um

método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos

escolhidos; alimento maldito. Isola, une. Convite à viagem: retorno à terra natal.

inspiração, respiração, exercício muscular. Prece ao vazio, diálogo com a ausência: o

tédio, a angústia e o desespero a alimentam. Oração, ladainha, epifania, presença.

Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente.

Expressão histórica de raças, nações e classes. Nega a história: em seu seio todos os

conflitos e objetivos se resolvem e o homem finalmente toma consciência de ser mais

que passagem. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não dirigido.

Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar de uma forma superior; a linguagem

primitiva. Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real,

cópia de uma cópia da ideia. Loucura, êxtase, logos. Retorno à infância, coito, nostalgia

do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, atividade ascética. Confissão.

Experiência inata. Visão, música, símbolo. Analogia: o poema é um caracol onde ressoa

a música, símbolo. Analogia: o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo e

metros e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal. Ensinamento,

moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos

escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária,

coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todos os rostos mas há

quem afirme que não possui nenhum: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela

prova da supérflua grandeza de toda obra humana!

Como não reconhecer em cada uma dessas fórmulas o poeta que a justifica e que, ao

encarná-la, lhe dá vida? Expressões de uma coisa vivenciada e padecida, não temos

outra saída senão aderir a elas – condenados a trocar a primeira pela segunda e esta pela

seguinte. Sua própria autenticidade mostra que a experiência que justifica cada um

desses conceitos os transcende. Será preciso, então, interrogar os testemunhos diretos da

experiência poética. A unidade da poesia só pode ser captada pelo trato nu com o

poema.

Ao indagar do poema o ser da poesia, não estaremos confundindo arbitrariamente

poesia e poema? Aristóteles já diz que “nada há de comum entre Homero e Empédocles

exceto a métrica, e por isso, com justiça, o primeiro é chamado poeta e o segundo

fisiólogo.” E de fato: nem todo poema – ou, para ser exato, nem toda obra construída de

acordo com as leis do metro – contém poesia. Mas essas obras métricas são verdadeiros

poemas ou são artefatos artísticos, didáticos ou retóricos? Um soneto não é um poema, e

assim numa forma literária, exceto quando esse mecanismo retórico – estrofes, metros e

rimas – foi tocado pela poesia. Há máquinas de rimar, mas não de poetizar. Por outro

lado, há poesia sem poemas; paisagens, pessoas e fatos muitas vezes são poéticos: são

poemas sem ser poemas. pois bem, quando a poesia se dá como condensação do acaso

ou é uma cristalização de poderes e circunstâncias alheios à vontade criadora do poeta,

deparamos com o poético. Quando – passivo ou ativo, acordado ou sonâmbulo – o poeta

é o fio condutor e transformador da corrente poética, estamos na presença de uma coisa

radicalmente diferente: uma obra. Um poema é uma obra. A poesia se polariza,

congrega e isola em um produto humano: quadro, canção, tragédia. O poético e a poesia

em estado amorfo; o poema é criação, poesia erguida. Só no poema a poesia se isola e

se revela plenamente. É lícito perguntar ao poema pelo ser da poesia se deixamos de

conceber por este último como forma capaz de ser preenchida com qualquer conteúdo.

O poema não é uma forma literária, mas o ponto de encontro entre a poesia e o homem.

Poema é um organismo verbal que contém, suscita ou emite poesia. Forma e substância

são a mesma coisa.

Nem bem desviamos os olhos do poético para fixá-los no poema e somos surpreendidos

pela multidão de formas que assume esse ser que pensávamos único. Como captar a

poesia, se cada poema se apresenta como algo diferente e irredutível? A ciência da

literatura pretende reduzir a vertiginosa pluralidade do poema a gêneros. Por sua própria

natureza, essa tentativa padece de dupla insuficiência. Se reduzirmos a poesia a umas

poucas formas – épicas, líricas, dramáticas –, o que faremos com os romances, os

poemas em prosa, e esses livros estranhos que se chamam Aurélia, Os cantos de

Maldorar ou Nadja? Se aceitarmos todas as exceções e formas intermediárias –

decadentes, selvagens ou proféticas –, a classificação se transforma em um catálogo

infinito. Todas as atividades verbais, para não sair do âmbito da linguagem, são

suscetíveis de mudar de índole e transformar-se em poemas: da interjeição até o

discurso lógico. Essa não é a única limitação, nem a mais grave, das classificações da

retórica. Classificar não é entender. E mesmo ainda compreender. Como todas as

classificações, as nomenclaturas são instrumentos de trabalho. Mas são instrumentos

que se mostram sem utilidade quando queremos usá-los com tarefas mais sutis que a

mera ordenação externa. Grande parte da crítica não passa de uma aplicação ingênua e

abusiva das nomenclaturas tradicionais.

Acusação semelhante deve ser feita às outras disciplinas utilizadas pela crítica, da

estilística à psicanálise. A primeira pretende dizer-nos o que é um poema por meio do

estudo dos atos verbais do poeta. A segunda, da interpretação de seus símbolos. O

método estilístico pode ser aplicado tanto a Mallarmé como a uma coletânea de versos

de almanaque. O mesmo acontece com as interpretações dos psicólogos, as biografias e

outros estudos com que algumas pessoas tentam, e às vezes conseguem, explicar-nos o

porquê, o como e para quê foi escrito um poema. A retórica, a estilística, a sociologia, a

psicologia e as demais disciplinas literárias são imprescindíveis se quisermos estudar

uma obra, mas nada podem nos dizer quanto a sua natureza última.

A dispersão da poesia em mil formas heterogêneas poderia incitar-nos a construir um

tipo ideal de poema. O resultado seria um monstro ou um fantasma. A poesia não é a

soma de todos os poemas. cada criação poética é uma unidade autossuficiente. A parte é

o todo. Cada poema é único, irredutível e inigualável. E, assim, sentimo-nos inclinados

a concordar com Ortega y Gasset: nada justifica que se designem com o mesmo nome

objetos tão diversos como os sonetos de Quevedo, as fábulas de La Fontaine e o

Cântico espiritual.

Essa diversidade se oferece, à primeira vista, como filha da história. Cada língua e cada

nação geram a poesia que o momento e seu gênio particular lhes ditam. Mas o critério

histórico não resolve: ele multiplica os problemas. No interior de cada período e de cada

sociedade reina a mesa diversidade: Nerval e Hugo são contemporâneos, assim como

Velázquez e Rubens, Valéry e Apollinaire. Se é por um mero abuso de linguagem que

aplicamos o mesmo nome aos poemas védicos e ao haicai japonês, não será também um

abuso utilizar o mesmo substantivo para designar experiências tão diversas como as de

São João da Cruz e seu modelo profano indireto: Garcilaso? A perspectiva histórica –

consequência de nosso fatal distanciamento – nos leva a uniformizar paisagens ricas em

antagonismos e contrastes. A distância nos faz esquecer as diferenças que separam

Sófocles de Eurípedes, Tirso de Lope. E tais diferenças não são fruto das variações

históricas, mas de algo muito mais sutil e inapreciável: a pessoa humana. Então, não é

tanto a ciência histórica, mas a biografia, que poderia oferecer-nos a chave da

compreensão do poema. E aqui surge um novo obstáculo: no interior da producao de

cada poeta, cada obra também é única, isolada e irredutível. A Galateia ou Viagem ao

Parnaso não explicam o Dom Quixote da Mancha; Ifigênia é algo substancialmente

diferente de Fausto; Fuente Ovejuna, de Doroteia. Cada obra tem vida própria, e as

Éclogas não são a Eneida. Às vezes, uma obra nega a outra: o prefácio às poesias –

nunca publicadas – de Lautréamont lança uma luz equívoca sobre Os cantos de

Maldoror; Uma estadia no inferno declara loucura e alquimia do verbo de Iluminações.

A história e a biografia podem nos proporcionar a tonalidade de um período ou de uma

vida, desenhar as fronteiras de uma obra e descrever externamente a configuração de um

estilo; também são capazes de esclarecer o sentido geral de uma tendência e até de

revelar-nos o porquê e o como de um poema. Mas não podem dizer-nos o que é um

poema.

O único ponto em comum de todos os poemas consiste em que são obras, produtos

humanos, como os quadros dos pintores e as cadeiras dos carpinteiros. Pois bem, os

poemas são obras de uma maneira muito estranha: não existe entre um poema e outro a

relação de filiação que de todo modo tão evidente se dá nos artefatos. Técnica e criação,

utensílio e poema são realidades diferentes. A técnica é procedimento e só vale na

medida de sua eficácia, ou seja, na medida em que é um procedimento suscetível de

aplicação repetida: seu valor dura até o momento em que surge um novo procedimento.

A técnica é repetição que se aperfeiçoa ou se degrada; é herança e mudança: o fuzil

substitui o arco. A Eneida não substitui a Odisseia. Cada poema é um objeto único,

criado por uma “técnica” que morre no momento exato da criação. A chamada “técnica

poética” não é transmissível porque não é composta de receitas, e sim de invenções que

só servem a seu criador. É verdade que o estilo – entendido como jeito comum de um

grupo de artistas ou de uma época – faz fronteira com a técnica, tanto no sentido de

herança e mudança como no de ser um procedimento coletivo. O estilo é o ponto de

partida de toda iniciativa criadora; por isso mesmo todo artista aspira superar esse estilo

comunal ou histórico. Quando um poeta adquire um estilo, um jeito, deixa de ser poeta

e se transforma em construtor de artefatos literários. Chamar Góngora de poeta barroco

pode ser verdade do ponto de vista da história literária, mas não se quisermos penetrar

em sua poesia, que é sempre algo além. É verdade que os poemas do cordovês

constituem o mais alto exemplo de estilo barroco, mas será que podemos esquecer que

as formas expressivas características de Góngora – o que hoje chamamos seu estilo –

foram no início apenas invenções, criações verbais inéditas, que só depois se

transformaram em procedimentos, hábitos e receitas? O poeta utiliza, adapta ou imita o

fundo comum de sua época – ou seja, o estilo do seu tempo –, mas transmuta todos

esses materiais e realiza uma obra única – como Dámaso Alonso mostrou

admiravelmente – provêm justamente de sua capacidade de transfigurar a linguagem

literária de seus antecessores e contemporâneos. Às vezes, claro, o poeta é vencido pelo

estilo. (Um estilo que nunca é dele, e sim de seu tempo: o poeta não tem estilo.) Então a

imagem malograda se torna um bem comum, butim para os futuros historiadores e

filólogos. Como essas pedras e outras parecidas se constroem os edifícios que a história

denomina estilos artísticos.

Não quero negar a existência dos estilos. Tampouco afirmo que o poeta cria do nada.

Como todos os poetas, Góngora se escora numa linguagem. Essa linguagem era mais

precisa e radical que a fala; uma linguagem literária, um estilo. Mas o poeta cordovês

transcende essa linguagem. Ou melhor: transforma em atos poéticos irreproduzíveis:

imagens, cores, ritmos, visões: poemas. Góngora transcende o estilo barroco; Garcilaso,

o toscano; Rubén Darío, o modernista. O poeta se alimenta de estilos. Sem eles, não

haveria poemas. Os estilos nascem, crescem e morrem. Os poemas permanecem e cada

um deles constitui uma unidade autossuficiente, um exemplar isolado, que não se

repetirá jamais.

O caráter irreproduzível e único do poema é compartilhado por outras obras: quadros,

esculturas, sonatas, danças, monumentos. A distinção entre poema e utensílio, estilo e

criação é aplicável a todas elas. Para Aristóteles, a pintura, a escultura, a música e a

dança também são formas poéticas, como a tragédia e a épica. Por isso, ao falar da

ausência de qualidade morais na poesia dos seus contemporâneos, cita como exemplo

dessa omissão o pintor Zeuxis, e não um poeta trágico. De fato, mais significativo que

as diferenças que separam um quadro de um hino, uma sinfonia de uma tragédia, há

neles um elemento criador que os faz circular no mesmo universo. Um quadro, uma

escultura, uma dança são, à sua maneira, poemas. E essa maneira não é muito diferente

do poema feito de palavras. A diversidade das artes não impede sua unidade. Antes a

ressalta.

As diferenças entre a palavra, o som e a cor levam a duvidar da unidade essencial das

artes. O poema é feito de palavras, seres equívocos que, se são cor e som, são também

significado; o quadro e a sonata são compostos de elementos mais simples: formas,

notas e cores que nada significam em si mesmas. As artes plásticas e sonoras partem da

não significação; o poema, organismo anfíbio, da palavra, ser significante. Essa

distinção me parece mais sutil que verdadeira. Cores e sons também possuem sentido.

Não é à toa que os críticos falam de linguagens plásticas e musicais. E antes de tais

expressões fossem usadas pelos entendidos, o povo conheceu e praticou a linguagem

das cores, dos sons e dos gestos. Por outro lado, é irrelevante examinar insígnias,

emblemas, toques, chamadas e outras formas de comunicação não verbal que certos

grupos empregam. Em todas elas o significado é inseparável de suas qualidades

plásticas e sonoras.

Em muitos casos, cores e sons têm mais capacidade evocativa que a fala. Entre os

astecas, a cor preta era associada a escuridão, frio seca, guerra e morte. Também aludia

a certos deuses: Tezcatlipoca, Mixcóatil; a um espaço: o norte; a um tempo: Técpatl; ao

sílex; à lua; à águia. Pintar uma coisa de preto era como dizer ou invocar todas essas

representações. Cada uma das quatro cores significava um espaço, um tempo, alguns

deuses, astros e um destino. Nascia-se sob o signo de uma cor, como os cristãos nascem

com um santo padroeiro. Talvez não seja inútil dar outro exemplo: a função dual do

ritmo na antiga civilização chinesa. Toda vez que se procura explicar as noções de Yin e

Yang – os dois ritmos alternantes que formam o Tao – recorre-se a termos musicais.

Concepção rítmica do cosmos, o par Yin e Yang é filosofia e religião, dança e música,

movimento rítmico impregnado de sentido. do mesmo modo, não é um abuso da

linguagem figurada, mas alusão ao poder significante do som, o emprego de expressões

como harmonia, ritmo ou contraponto para qualificar as ações humanas. Todo mundo

usa esses vocábulos, sabendo que possuem sentido, intencionalidade difusa. Não há

cores nem sons em si, desprovidos de significação: tocados pela mão do homem, eles

mudam de natureza e adentram o mundo das obras. E todas as obras desembocam no

significado; o que o homem toca se tinge de intencionalidade: é um ir para... O mundo

do homem é o mundo do sentido. Ele tolera a ambiguidade, a contradição, a loucura ou

o embuste, não a carência de sentido. O próprio silêncio é povoado de signos. Assim, a

disposição das edificações, bem como suas proporções, obedecem a determinada

intenção. Não carecem de sentido – na verdade, pode-se dizer o oposto – o impulso

vertical do gótico, o equilíbrio tenso do templo grego, a redondeza do pagode budista ou

a vegetação erótica que cobre os muros dos santuários de Orissa. Tudo é linguagem.

As diferenças entre o falado ou escrito e os outros – plásticos ou musicais – são muito

profundas, mas não a ponto de fazer-nos esquecer que todos são, essencialmente,

linguagem: sistemas expressivos dotados de poder significativo e comunicativo.

Pintores, músicos, arquitetos, escultores e outros artistas não usam como materiais de

composição elementos radicalmente diferentes dos que o poeta emprega. Suas

linguagens são diferentes, mas não são linguagens. E é mais fácil traduzir os poemas

astecas para seus equivalentes arquitetônicos e esculturais que para a língua espanhola.

Os textos tântricos ou a poesia erótica kvya falam o mesmo idioma das esculturas de

Konarak. A linguagem do Primeiro sueño de sóror Juana não é muito diferente da do

Sacrário Metropolitano da Cidade do México. A pintura surrealista está mais próxima

da poesia desse movimento que da pintura cubista.

Afirmar que é impossível fugir do sentido equivale a inserir todas as obras – artísticas e

técnicas – no universo nivelador da história. Como encontrar um sentido que no seja

histórico? Nem por seus materiais nem por seus significados as obras transcendem o

homem. Todas são um “para” e um “em direção” que desembocam num homem

concreto, que por sua vez só adquire significação dentro de uma história precisa. Moral,

filosofia, costumes, artes, tudo, enfim, que constitui a expressão de um período

determinado participa do que chamamos estilo. Todo estilo é histórico e todos os

produtos de uma época, de seus utensílios mais simples a suas obras mais

desinteressadas, estão impregnados de história, quer dizer, de estilo. Mas essas

afinidades e parentescos encobrem diferenças específicas. No interior de um estilo é

possível descobrir o que distingue um poema de um tratado em verso, um quadro de

uma lâmina educativa, um móvel de uma escultura. Esse elemento distintivo é a poesia.

Só ela pode mostrar-nos a diferença entre criação e estilo, obra de are e utensílio.

Sejam quais forem sua atividade e profissão, artista ou artesão, o homem transforma

matéria-prima: cores, pedras, metais, palavras. A operação transformadora consiste no

seguinte: os materiais deixam o mundo cego da natureza para ingressar no mundo das

obras, ou seja, no das significações. O que ocorre, então, com a matéria pedra,

empregada pelo homem para esculpir uma estátua e construir uma escada? Embora a

pedra da estátua não seja diferente da pedra da escada e ambas se refiram a um mesmo

sistema de significações (por exemplo: as duas fazem parte de uma igreja medieval), a

transformação que a pedra sofreu na escultura é de natureza diversa daquela que a

transformou em escada. O que ocorre com a linguagem nas mãos de prosadores e de

poetas pode fazer-nos vislumbrar o sentido dessa diferença.

A forma mais elevada da prosa é o discurso, no sentido direto da palavra. No discurso,

as palavras aspiram a assumir um significado unívoco. Esse trabalho implica reflexão e

análise. Ao mesmo tempo, traz em si um ideal inalcançável, porque a palavra se nega a

ser mero conceito, apenas significado. Cada palavra – além de suas propriedades físicas

– contém uma pluralidade de sentidos. Assim, a atividade do prosador se exerce contra a

própria natureza da palavra. Não é verdade, portanto, que M. Jourdain falasse em prosa

sem dar-se conta. Alfonso Reys afirma com toda a razão que não se pode falar em prosa

sem ter plena consciência do que se diz. Pode-se mesmo acrescentar que prosa não se

fala: escreve-se. A linguagem falada está mais perto da poesia que da prosa; é menos

reflexiva e mais natural, e por isso é mais fácil ser poeta sem sabê-la que prosador. Na

prosa a palavra tende a se intensificar com um de seus possíveis significados, em

detrimento dos outros: pão, pão; queijo, queijo. Essa operação é de caráter analítico e

não se realiza sem violência, já que a palavra tem vários significados latentes, é

determinada potencialidade de direções e sentidos. O poeta, em compensação, jamais

atenta contra a ambiguidade do vocábulo. No poema a linguagem recupera sua

originalidade primeira, mutilada pela redução que a prosa e fala cotidiana lhe impõem.

A reconquista de sua natureza é total e afeta os valores sonoros e plásticos tanto quanto

os de significado. A palavra, finalmente em liberdade, mostra todas as suas vísceras,

todos os seus sentidos e alusões, como um fruto amadurecido ou como os fogos de

artifício no momento em que explodem no céu. O poeta põe sua matéria em liberdade.

O prosador a aprisiona.

Outro tanto acontece com formas, sons e cores. A pedra triunfa na escultura e se

humilha na escada. A cor resplandece no quadro; o movimento do corpo, na dança. A

matéria, vencida ou deformada no utensílio, recupera seu esplendor na obra de arte. A

operação poética e a manipulação têm sinais opostos. Graças à primeira, a matéria

reconquista sua natureza: a cor é mais cor, o som é plenamente som. Na criação poética

não há vitória sobre a matéria ou sobre os instrumentos, como quer uma vã estética de

artesãos, e sim uma libertação da matéria. Palavras, sons, cores e outros materiais

sofrem uma transmutação quando ingressam no círculo da poesia. Sem deixar de ser

instrumentos de significação e comunicação, transformando-se em “outra coisa”. Essa

mudança – ao contrário do que acontece na técnica – não consiste em abandonar sua

natureza original, mas em voltar a ela. Sem “outra coisa” quer dizer ser “a mesma

coisa”: a própria coisa, aquilo que real e primitivamente são.

Por outro lado, a pedra da estátua, o vermelho do quadro, a palavra do poema não são

pura e simplesmente pedra, cor, palavra: encarnam algo que os transcende e transpassa.

Sem perder seus valores primários, seu peso original, são também pontes que nos levam

a outra margem, portas que se abrem para outro mundo de significados inexprimíveis

pela mera linguagem. Ser ambivalente, a palavra poética é plenamente o que é – ritmo,

cor, significado – e, também, outra coisa: imagem. A poesia transforma a pedra, a cor, a

palavra e o som em imagens. E essa segunda característica, ser imagens, e o estranho

poder que elas têm de suscitar no ouvinte ou no espectador constelações de imagens,

fazem de todas as obras de poemas.

Nada nos impede de considerar poemas as obras plásticas e musicais, desde que tenham

as duas características indicadas: por um lado, devolver seus materiais ao que são –

matéria resplandecente ou opaca – e assim rechaçar o mundo da utilidade; por outro,

transformar-se em imagens e deste modo passar a ser uma forma peculiar de

comunicação. Sem deixar de ser linguagem – sentido e transmissão de sentido –, o

poema é o que está além da linguagem. Mas isso que está além da linguagem. Um

quadro será poema se for algo mais que linguagem pictórica. Piero della Francesca,

Masaccio, Leonardo ou Ucello não merecem, nem admitem, outro qualificativo senão o

de poetas. Neles, a preocupação com os meios expressivos da pintura, ou seja, com a

linguagem pictórica, se plasma em obras que transcendem essa mesma linguagem. As

pesquisas de Masaccio e Ucello foram aproveitadas por seus herdeiros, mas suas obras

vão além desses achados técnicos: são imagens irreproduzíveis. Ser um grande pintor

significa ser um grande poeta: alguém que transcende os limites da sua linguagem.

Em suma, o artista não serve dos seus instrumentos – pedras, som, cor ou palavra –

como o artesão, mas a eles serve para que recuperem sua natureza original. Servo da

linguagem, seja ela qual for, o artista a transcende. Essa operação paradoxal e

contraditória – que analisaremos mais adiante – produz a imagem. O artista é criador de

imagens: poeta. E sua qualidade de imagens permite chamar de poemas o Cântico

espiritual e os hinos védicos, o haicai e os sonetos de Quevedo. O fato de serem

imagens faz as palavras, sem deixar de ser elas mesmas, transcenderem a linguagem

enquanto sistema dado de significações históricas. O poema, sem deixar de ser palavra e

história, transcende a história, é possível concluir que a pluralidade de poemas não nega,

e sim afirma, a unidade da poesia.

***

Cada poema é único. Pulsa em cada obra, com maior ou menor intensidade, toda a

poesia. Portanto, a leitura de um único. Pulsa em cada obra, com maior ou menor

intensidade, toda poesia. Portanto, a leitura de um único poema nos revelará com mais

certeza que qualquer pesquisa histórica ou filológica o que é a poesia. Mas a experiência

do poema – sua recriação por meio da leitura ou da recitação – também contém uma

desconcertante pluralidade e heterogeneidade. Quase sempre a leitura se apresenta como

revelação de algo alheio à poesia propriamente dita. Os poucos contemporâneos de São

João da Cruz que leram seus poemas prestaram mais atenção em seu valor exemplar que

em sua fascinante beleza. Muitas das paisagens que admiramos em Quevedo deixavam

indiferentes os leitores do século XVII, enquanto outras coisas que nos desagradam ou

enfastiam constituíram para eles os encantos da obra. Só com um esforço de

compreensão histórica adivinhamos a função poética das enumerações históricas nas

Coplas de Manrique. Ao mesmo tempo ficamos comovidos, talvez mais profundamente

que seus contemporâneos, com as alusões a seu tempo e ao passado imediato. E não é

só a história que nos faz ler um mesmo texto com olhos diferentes. Para alguns, o

poema é a experiência do abandono; para outros, do rigor. Os jovens leem versos para

melhor expressar ou para conhecer seus sentimentos, como se só no poema as

nebulosas, pressentidas feições do amor, do heroísmo ou da sensualidade pudessem ser

vistas com nitidez. Cada leitor procura alguma coisa no poema. E não é anda estranho

que a encontre: já a tinha dentro de si.

Não é impossível que, depois desse primeiro e enganoso contato, o leitor chegue ao

centro do poema. Imaginemos esse encontro. No fluxo e refluxo de nossas paixões e

afazeres (sempre cindidos, sempre eu e meu duplo e o duplo de meu outro eu), há um

momento em que tudo concorda. Os contrários não desaparecem, mas se fundem por

um instante. É algo assim como uma suspensão do ânimo: o tempo não pesa. Os

Upanixades ensinam que essa reconciliação é “ananda”, ou deleite com o Um. É

verdade que poucos são capazes de alcançar tal estado. Mas todos nós, alguma vez,

mesmo que por uma fração de segundo, vislumbramos algo semelhante. Não é

necessário ser místico para chegar perto dessa certeza. Todos nós fomos crianças. Todos

nós amamos. O amor é um estado de reunião e participação aberto aos homens: no ato

amoroso a consciência é como a onda que, superado o obstáculo, antes de desabar se

levanta numa plenitude em que tudo – forma e movimento, impulso para cima e força

de gravidade – forma um equilíbrio sem apoio, sustentado em si mesmo. Quietude do

movimento. E assim como através de um corpo amado entrevemos uma vida mais

plena, mais vida que a vida, através do poema entrevemos o raio fixo da poesia. Esse

instante contém todos os instantes. Sem deixar de fluir, o tempo se detém, repleto de si.

Objeto magnético, ponto de encontro secreto de muitas forças contrárias, graças ao

poema podemos ter acesso à experiência poética. O poema, é uma possibilidade aberta a

todos os homens, qualquer que seja seu temperamento, seu animo ou sua disposição.

Pois bem, o poema é apenas isto: possibilidade, algo que só se anima em contato com

um leitor ou um ouvinte. Há um traço comum a todos os poemas, sem o qual eles nunca

seriam poesia: a participação. Toda vez que o leitor revive de verdade o poema, atinge

um estado que podemos chamar poético. Tal experiência pode adquirir esta ou aquela

forma, mas é sempre um ir além de si, um romper os muros temporais para ser outro.

Tal como a criação poética, a experiência do poema se dá na história, é história e, ao

mesmo tempo, nega a história. O leitor luta e morre com Heitor, hesita e mata com

Árjuna, reconhece os rochedos natais de Odisseu. Revive uma imagem, nega a sucessão,

reverte o tempo. O poema é mediação: graças a ele, o tempo original, pai dos tempos, se

encarna num instante. A sucessão se transforma em presente puro, manancial que se

alimenta a si mesmo e transmuta o homem. A leitura do poema tem grande semelhança

com a criação poética. O poeta cria imagens, poemas; e o poema faz do leitor imagem,

poesia.

* Texto copiado de PAZ, Octavio. O arco e a lira. Tradução de Ari Roitman e Paulinha

Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p.21-34.