“A poesia purifica a alma, Mario Quintana...um belo poema sempre leva a Deus!”
Poesia e poema - Octavio Paz
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Poesia e poema*
Por Octavio Paz
A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de mudar o
mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um
método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos
escolhidos; alimento maldito. Isola, une. Convite à viagem: retorno à terra natal.
inspiração, respiração, exercício muscular. Prece ao vazio, diálogo com a ausência: o
tédio, a angústia e o desespero a alimentam. Oração, ladainha, epifania, presença.
Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente.
Expressão histórica de raças, nações e classes. Nega a história: em seu seio todos os
conflitos e objetivos se resolvem e o homem finalmente toma consciência de ser mais
que passagem. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não dirigido.
Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar de uma forma superior; a linguagem
primitiva. Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real,
cópia de uma cópia da ideia. Loucura, êxtase, logos. Retorno à infância, coito, nostalgia
do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, atividade ascética. Confissão.
Experiência inata. Visão, música, símbolo. Analogia: o poema é um caracol onde ressoa
a música, símbolo. Analogia: o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo e
metros e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal. Ensinamento,
moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos
escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular e minoritária,
coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todos os rostos mas há
quem afirme que não possui nenhum: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela
prova da supérflua grandeza de toda obra humana!
Como não reconhecer em cada uma dessas fórmulas o poeta que a justifica e que, ao
encarná-la, lhe dá vida? Expressões de uma coisa vivenciada e padecida, não temos
outra saída senão aderir a elas – condenados a trocar a primeira pela segunda e esta pela
seguinte. Sua própria autenticidade mostra que a experiência que justifica cada um
desses conceitos os transcende. Será preciso, então, interrogar os testemunhos diretos da
experiência poética. A unidade da poesia só pode ser captada pelo trato nu com o
poema.
Ao indagar do poema o ser da poesia, não estaremos confundindo arbitrariamente
poesia e poema? Aristóteles já diz que “nada há de comum entre Homero e Empédocles
exceto a métrica, e por isso, com justiça, o primeiro é chamado poeta e o segundo
fisiólogo.” E de fato: nem todo poema – ou, para ser exato, nem toda obra construída de
acordo com as leis do metro – contém poesia. Mas essas obras métricas são verdadeiros
poemas ou são artefatos artísticos, didáticos ou retóricos? Um soneto não é um poema, e
assim numa forma literária, exceto quando esse mecanismo retórico – estrofes, metros e
rimas – foi tocado pela poesia. Há máquinas de rimar, mas não de poetizar. Por outro
lado, há poesia sem poemas; paisagens, pessoas e fatos muitas vezes são poéticos: são
poemas sem ser poemas. pois bem, quando a poesia se dá como condensação do acaso
ou é uma cristalização de poderes e circunstâncias alheios à vontade criadora do poeta,
deparamos com o poético. Quando – passivo ou ativo, acordado ou sonâmbulo – o poeta
é o fio condutor e transformador da corrente poética, estamos na presença de uma coisa
radicalmente diferente: uma obra. Um poema é uma obra. A poesia se polariza,
congrega e isola em um produto humano: quadro, canção, tragédia. O poético e a poesia
em estado amorfo; o poema é criação, poesia erguida. Só no poema a poesia se isola e
se revela plenamente. É lícito perguntar ao poema pelo ser da poesia se deixamos de
conceber por este último como forma capaz de ser preenchida com qualquer conteúdo.
O poema não é uma forma literária, mas o ponto de encontro entre a poesia e o homem.
Poema é um organismo verbal que contém, suscita ou emite poesia. Forma e substância
são a mesma coisa.
Nem bem desviamos os olhos do poético para fixá-los no poema e somos surpreendidos
pela multidão de formas que assume esse ser que pensávamos único. Como captar a
poesia, se cada poema se apresenta como algo diferente e irredutível? A ciência da
literatura pretende reduzir a vertiginosa pluralidade do poema a gêneros. Por sua própria
natureza, essa tentativa padece de dupla insuficiência. Se reduzirmos a poesia a umas
poucas formas – épicas, líricas, dramáticas –, o que faremos com os romances, os
poemas em prosa, e esses livros estranhos que se chamam Aurélia, Os cantos de
Maldorar ou Nadja? Se aceitarmos todas as exceções e formas intermediárias –
decadentes, selvagens ou proféticas –, a classificação se transforma em um catálogo
infinito. Todas as atividades verbais, para não sair do âmbito da linguagem, são
suscetíveis de mudar de índole e transformar-se em poemas: da interjeição até o
discurso lógico. Essa não é a única limitação, nem a mais grave, das classificações da
retórica. Classificar não é entender. E mesmo ainda compreender. Como todas as
classificações, as nomenclaturas são instrumentos de trabalho. Mas são instrumentos
que se mostram sem utilidade quando queremos usá-los com tarefas mais sutis que a
mera ordenação externa. Grande parte da crítica não passa de uma aplicação ingênua e
abusiva das nomenclaturas tradicionais.
Acusação semelhante deve ser feita às outras disciplinas utilizadas pela crítica, da
estilística à psicanálise. A primeira pretende dizer-nos o que é um poema por meio do
estudo dos atos verbais do poeta. A segunda, da interpretação de seus símbolos. O
método estilístico pode ser aplicado tanto a Mallarmé como a uma coletânea de versos
de almanaque. O mesmo acontece com as interpretações dos psicólogos, as biografias e
outros estudos com que algumas pessoas tentam, e às vezes conseguem, explicar-nos o
porquê, o como e para quê foi escrito um poema. A retórica, a estilística, a sociologia, a
psicologia e as demais disciplinas literárias são imprescindíveis se quisermos estudar
uma obra, mas nada podem nos dizer quanto a sua natureza última.
A dispersão da poesia em mil formas heterogêneas poderia incitar-nos a construir um
tipo ideal de poema. O resultado seria um monstro ou um fantasma. A poesia não é a
soma de todos os poemas. cada criação poética é uma unidade autossuficiente. A parte é
o todo. Cada poema é único, irredutível e inigualável. E, assim, sentimo-nos inclinados
a concordar com Ortega y Gasset: nada justifica que se designem com o mesmo nome
objetos tão diversos como os sonetos de Quevedo, as fábulas de La Fontaine e o
Cântico espiritual.
Essa diversidade se oferece, à primeira vista, como filha da história. Cada língua e cada
nação geram a poesia que o momento e seu gênio particular lhes ditam. Mas o critério
histórico não resolve: ele multiplica os problemas. No interior de cada período e de cada
sociedade reina a mesa diversidade: Nerval e Hugo são contemporâneos, assim como
Velázquez e Rubens, Valéry e Apollinaire. Se é por um mero abuso de linguagem que
aplicamos o mesmo nome aos poemas védicos e ao haicai japonês, não será também um
abuso utilizar o mesmo substantivo para designar experiências tão diversas como as de
São João da Cruz e seu modelo profano indireto: Garcilaso? A perspectiva histórica –
consequência de nosso fatal distanciamento – nos leva a uniformizar paisagens ricas em
antagonismos e contrastes. A distância nos faz esquecer as diferenças que separam
Sófocles de Eurípedes, Tirso de Lope. E tais diferenças não são fruto das variações
históricas, mas de algo muito mais sutil e inapreciável: a pessoa humana. Então, não é
tanto a ciência histórica, mas a biografia, que poderia oferecer-nos a chave da
compreensão do poema. E aqui surge um novo obstáculo: no interior da producao de
cada poeta, cada obra também é única, isolada e irredutível. A Galateia ou Viagem ao
Parnaso não explicam o Dom Quixote da Mancha; Ifigênia é algo substancialmente
diferente de Fausto; Fuente Ovejuna, de Doroteia. Cada obra tem vida própria, e as
Éclogas não são a Eneida. Às vezes, uma obra nega a outra: o prefácio às poesias –
nunca publicadas – de Lautréamont lança uma luz equívoca sobre Os cantos de
Maldoror; Uma estadia no inferno declara loucura e alquimia do verbo de Iluminações.
A história e a biografia podem nos proporcionar a tonalidade de um período ou de uma
vida, desenhar as fronteiras de uma obra e descrever externamente a configuração de um
estilo; também são capazes de esclarecer o sentido geral de uma tendência e até de
revelar-nos o porquê e o como de um poema. Mas não podem dizer-nos o que é um
poema.
O único ponto em comum de todos os poemas consiste em que são obras, produtos
humanos, como os quadros dos pintores e as cadeiras dos carpinteiros. Pois bem, os
poemas são obras de uma maneira muito estranha: não existe entre um poema e outro a
relação de filiação que de todo modo tão evidente se dá nos artefatos. Técnica e criação,
utensílio e poema são realidades diferentes. A técnica é procedimento e só vale na
medida de sua eficácia, ou seja, na medida em que é um procedimento suscetível de
aplicação repetida: seu valor dura até o momento em que surge um novo procedimento.
A técnica é repetição que se aperfeiçoa ou se degrada; é herança e mudança: o fuzil
substitui o arco. A Eneida não substitui a Odisseia. Cada poema é um objeto único,
criado por uma “técnica” que morre no momento exato da criação. A chamada “técnica
poética” não é transmissível porque não é composta de receitas, e sim de invenções que
só servem a seu criador. É verdade que o estilo – entendido como jeito comum de um
grupo de artistas ou de uma época – faz fronteira com a técnica, tanto no sentido de
herança e mudança como no de ser um procedimento coletivo. O estilo é o ponto de
partida de toda iniciativa criadora; por isso mesmo todo artista aspira superar esse estilo
comunal ou histórico. Quando um poeta adquire um estilo, um jeito, deixa de ser poeta
e se transforma em construtor de artefatos literários. Chamar Góngora de poeta barroco
pode ser verdade do ponto de vista da história literária, mas não se quisermos penetrar
em sua poesia, que é sempre algo além. É verdade que os poemas do cordovês
constituem o mais alto exemplo de estilo barroco, mas será que podemos esquecer que
as formas expressivas características de Góngora – o que hoje chamamos seu estilo –
foram no início apenas invenções, criações verbais inéditas, que só depois se
transformaram em procedimentos, hábitos e receitas? O poeta utiliza, adapta ou imita o
fundo comum de sua época – ou seja, o estilo do seu tempo –, mas transmuta todos
esses materiais e realiza uma obra única – como Dámaso Alonso mostrou
admiravelmente – provêm justamente de sua capacidade de transfigurar a linguagem
literária de seus antecessores e contemporâneos. Às vezes, claro, o poeta é vencido pelo
estilo. (Um estilo que nunca é dele, e sim de seu tempo: o poeta não tem estilo.) Então a
imagem malograda se torna um bem comum, butim para os futuros historiadores e
filólogos. Como essas pedras e outras parecidas se constroem os edifícios que a história
denomina estilos artísticos.
Não quero negar a existência dos estilos. Tampouco afirmo que o poeta cria do nada.
Como todos os poetas, Góngora se escora numa linguagem. Essa linguagem era mais
precisa e radical que a fala; uma linguagem literária, um estilo. Mas o poeta cordovês
transcende essa linguagem. Ou melhor: transforma em atos poéticos irreproduzíveis:
imagens, cores, ritmos, visões: poemas. Góngora transcende o estilo barroco; Garcilaso,
o toscano; Rubén Darío, o modernista. O poeta se alimenta de estilos. Sem eles, não
haveria poemas. Os estilos nascem, crescem e morrem. Os poemas permanecem e cada
um deles constitui uma unidade autossuficiente, um exemplar isolado, que não se
repetirá jamais.
O caráter irreproduzível e único do poema é compartilhado por outras obras: quadros,
esculturas, sonatas, danças, monumentos. A distinção entre poema e utensílio, estilo e
criação é aplicável a todas elas. Para Aristóteles, a pintura, a escultura, a música e a
dança também são formas poéticas, como a tragédia e a épica. Por isso, ao falar da
ausência de qualidade morais na poesia dos seus contemporâneos, cita como exemplo
dessa omissão o pintor Zeuxis, e não um poeta trágico. De fato, mais significativo que
as diferenças que separam um quadro de um hino, uma sinfonia de uma tragédia, há
neles um elemento criador que os faz circular no mesmo universo. Um quadro, uma
escultura, uma dança são, à sua maneira, poemas. E essa maneira não é muito diferente
do poema feito de palavras. A diversidade das artes não impede sua unidade. Antes a
ressalta.
As diferenças entre a palavra, o som e a cor levam a duvidar da unidade essencial das
artes. O poema é feito de palavras, seres equívocos que, se são cor e som, são também
significado; o quadro e a sonata são compostos de elementos mais simples: formas,
notas e cores que nada significam em si mesmas. As artes plásticas e sonoras partem da
não significação; o poema, organismo anfíbio, da palavra, ser significante. Essa
distinção me parece mais sutil que verdadeira. Cores e sons também possuem sentido.
Não é à toa que os críticos falam de linguagens plásticas e musicais. E antes de tais
expressões fossem usadas pelos entendidos, o povo conheceu e praticou a linguagem
das cores, dos sons e dos gestos. Por outro lado, é irrelevante examinar insígnias,
emblemas, toques, chamadas e outras formas de comunicação não verbal que certos
grupos empregam. Em todas elas o significado é inseparável de suas qualidades
plásticas e sonoras.
Em muitos casos, cores e sons têm mais capacidade evocativa que a fala. Entre os
astecas, a cor preta era associada a escuridão, frio seca, guerra e morte. Também aludia
a certos deuses: Tezcatlipoca, Mixcóatil; a um espaço: o norte; a um tempo: Técpatl; ao
sílex; à lua; à águia. Pintar uma coisa de preto era como dizer ou invocar todas essas
representações. Cada uma das quatro cores significava um espaço, um tempo, alguns
deuses, astros e um destino. Nascia-se sob o signo de uma cor, como os cristãos nascem
com um santo padroeiro. Talvez não seja inútil dar outro exemplo: a função dual do
ritmo na antiga civilização chinesa. Toda vez que se procura explicar as noções de Yin e
Yang – os dois ritmos alternantes que formam o Tao – recorre-se a termos musicais.
Concepção rítmica do cosmos, o par Yin e Yang é filosofia e religião, dança e música,
movimento rítmico impregnado de sentido. do mesmo modo, não é um abuso da
linguagem figurada, mas alusão ao poder significante do som, o emprego de expressões
como harmonia, ritmo ou contraponto para qualificar as ações humanas. Todo mundo
usa esses vocábulos, sabendo que possuem sentido, intencionalidade difusa. Não há
cores nem sons em si, desprovidos de significação: tocados pela mão do homem, eles
mudam de natureza e adentram o mundo das obras. E todas as obras desembocam no
significado; o que o homem toca se tinge de intencionalidade: é um ir para... O mundo
do homem é o mundo do sentido. Ele tolera a ambiguidade, a contradição, a loucura ou
o embuste, não a carência de sentido. O próprio silêncio é povoado de signos. Assim, a
disposição das edificações, bem como suas proporções, obedecem a determinada
intenção. Não carecem de sentido – na verdade, pode-se dizer o oposto – o impulso
vertical do gótico, o equilíbrio tenso do templo grego, a redondeza do pagode budista ou
a vegetação erótica que cobre os muros dos santuários de Orissa. Tudo é linguagem.
As diferenças entre o falado ou escrito e os outros – plásticos ou musicais – são muito
profundas, mas não a ponto de fazer-nos esquecer que todos são, essencialmente,
linguagem: sistemas expressivos dotados de poder significativo e comunicativo.
Pintores, músicos, arquitetos, escultores e outros artistas não usam como materiais de
composição elementos radicalmente diferentes dos que o poeta emprega. Suas
linguagens são diferentes, mas não são linguagens. E é mais fácil traduzir os poemas
astecas para seus equivalentes arquitetônicos e esculturais que para a língua espanhola.
Os textos tântricos ou a poesia erótica kvya falam o mesmo idioma das esculturas de
Konarak. A linguagem do Primeiro sueño de sóror Juana não é muito diferente da do
Sacrário Metropolitano da Cidade do México. A pintura surrealista está mais próxima
da poesia desse movimento que da pintura cubista.
Afirmar que é impossível fugir do sentido equivale a inserir todas as obras – artísticas e
técnicas – no universo nivelador da história. Como encontrar um sentido que no seja
histórico? Nem por seus materiais nem por seus significados as obras transcendem o
homem. Todas são um “para” e um “em direção” que desembocam num homem
concreto, que por sua vez só adquire significação dentro de uma história precisa. Moral,
filosofia, costumes, artes, tudo, enfim, que constitui a expressão de um período
determinado participa do que chamamos estilo. Todo estilo é histórico e todos os
produtos de uma época, de seus utensílios mais simples a suas obras mais
desinteressadas, estão impregnados de história, quer dizer, de estilo. Mas essas
afinidades e parentescos encobrem diferenças específicas. No interior de um estilo é
possível descobrir o que distingue um poema de um tratado em verso, um quadro de
uma lâmina educativa, um móvel de uma escultura. Esse elemento distintivo é a poesia.
Só ela pode mostrar-nos a diferença entre criação e estilo, obra de are e utensílio.
Sejam quais forem sua atividade e profissão, artista ou artesão, o homem transforma
matéria-prima: cores, pedras, metais, palavras. A operação transformadora consiste no
seguinte: os materiais deixam o mundo cego da natureza para ingressar no mundo das
obras, ou seja, no das significações. O que ocorre, então, com a matéria pedra,
empregada pelo homem para esculpir uma estátua e construir uma escada? Embora a
pedra da estátua não seja diferente da pedra da escada e ambas se refiram a um mesmo
sistema de significações (por exemplo: as duas fazem parte de uma igreja medieval), a
transformação que a pedra sofreu na escultura é de natureza diversa daquela que a
transformou em escada. O que ocorre com a linguagem nas mãos de prosadores e de
poetas pode fazer-nos vislumbrar o sentido dessa diferença.
A forma mais elevada da prosa é o discurso, no sentido direto da palavra. No discurso,
as palavras aspiram a assumir um significado unívoco. Esse trabalho implica reflexão e
análise. Ao mesmo tempo, traz em si um ideal inalcançável, porque a palavra se nega a
ser mero conceito, apenas significado. Cada palavra – além de suas propriedades físicas
– contém uma pluralidade de sentidos. Assim, a atividade do prosador se exerce contra a
própria natureza da palavra. Não é verdade, portanto, que M. Jourdain falasse em prosa
sem dar-se conta. Alfonso Reys afirma com toda a razão que não se pode falar em prosa
sem ter plena consciência do que se diz. Pode-se mesmo acrescentar que prosa não se
fala: escreve-se. A linguagem falada está mais perto da poesia que da prosa; é menos
reflexiva e mais natural, e por isso é mais fácil ser poeta sem sabê-la que prosador. Na
prosa a palavra tende a se intensificar com um de seus possíveis significados, em
detrimento dos outros: pão, pão; queijo, queijo. Essa operação é de caráter analítico e
não se realiza sem violência, já que a palavra tem vários significados latentes, é
determinada potencialidade de direções e sentidos. O poeta, em compensação, jamais
atenta contra a ambiguidade do vocábulo. No poema a linguagem recupera sua
originalidade primeira, mutilada pela redução que a prosa e fala cotidiana lhe impõem.
A reconquista de sua natureza é total e afeta os valores sonoros e plásticos tanto quanto
os de significado. A palavra, finalmente em liberdade, mostra todas as suas vísceras,
todos os seus sentidos e alusões, como um fruto amadurecido ou como os fogos de
artifício no momento em que explodem no céu. O poeta põe sua matéria em liberdade.
O prosador a aprisiona.
Outro tanto acontece com formas, sons e cores. A pedra triunfa na escultura e se
humilha na escada. A cor resplandece no quadro; o movimento do corpo, na dança. A
matéria, vencida ou deformada no utensílio, recupera seu esplendor na obra de arte. A
operação poética e a manipulação têm sinais opostos. Graças à primeira, a matéria
reconquista sua natureza: a cor é mais cor, o som é plenamente som. Na criação poética
não há vitória sobre a matéria ou sobre os instrumentos, como quer uma vã estética de
artesãos, e sim uma libertação da matéria. Palavras, sons, cores e outros materiais
sofrem uma transmutação quando ingressam no círculo da poesia. Sem deixar de ser
instrumentos de significação e comunicação, transformando-se em “outra coisa”. Essa
mudança – ao contrário do que acontece na técnica – não consiste em abandonar sua
natureza original, mas em voltar a ela. Sem “outra coisa” quer dizer ser “a mesma
coisa”: a própria coisa, aquilo que real e primitivamente são.
Por outro lado, a pedra da estátua, o vermelho do quadro, a palavra do poema não são
pura e simplesmente pedra, cor, palavra: encarnam algo que os transcende e transpassa.
Sem perder seus valores primários, seu peso original, são também pontes que nos levam
a outra margem, portas que se abrem para outro mundo de significados inexprimíveis
pela mera linguagem. Ser ambivalente, a palavra poética é plenamente o que é – ritmo,
cor, significado – e, também, outra coisa: imagem. A poesia transforma a pedra, a cor, a
palavra e o som em imagens. E essa segunda característica, ser imagens, e o estranho
poder que elas têm de suscitar no ouvinte ou no espectador constelações de imagens,
fazem de todas as obras de poemas.
Nada nos impede de considerar poemas as obras plásticas e musicais, desde que tenham
as duas características indicadas: por um lado, devolver seus materiais ao que são –
matéria resplandecente ou opaca – e assim rechaçar o mundo da utilidade; por outro,
transformar-se em imagens e deste modo passar a ser uma forma peculiar de
comunicação. Sem deixar de ser linguagem – sentido e transmissão de sentido –, o
poema é o que está além da linguagem. Mas isso que está além da linguagem. Um
quadro será poema se for algo mais que linguagem pictórica. Piero della Francesca,
Masaccio, Leonardo ou Ucello não merecem, nem admitem, outro qualificativo senão o
de poetas. Neles, a preocupação com os meios expressivos da pintura, ou seja, com a
linguagem pictórica, se plasma em obras que transcendem essa mesma linguagem. As
pesquisas de Masaccio e Ucello foram aproveitadas por seus herdeiros, mas suas obras
vão além desses achados técnicos: são imagens irreproduzíveis. Ser um grande pintor
significa ser um grande poeta: alguém que transcende os limites da sua linguagem.
Em suma, o artista não serve dos seus instrumentos – pedras, som, cor ou palavra –
como o artesão, mas a eles serve para que recuperem sua natureza original. Servo da
linguagem, seja ela qual for, o artista a transcende. Essa operação paradoxal e
contraditória – que analisaremos mais adiante – produz a imagem. O artista é criador de
imagens: poeta. E sua qualidade de imagens permite chamar de poemas o Cântico
espiritual e os hinos védicos, o haicai e os sonetos de Quevedo. O fato de serem
imagens faz as palavras, sem deixar de ser elas mesmas, transcenderem a linguagem
enquanto sistema dado de significações históricas. O poema, sem deixar de ser palavra e
história, transcende a história, é possível concluir que a pluralidade de poemas não nega,
e sim afirma, a unidade da poesia.
***
Cada poema é único. Pulsa em cada obra, com maior ou menor intensidade, toda a
poesia. Portanto, a leitura de um único. Pulsa em cada obra, com maior ou menor
intensidade, toda poesia. Portanto, a leitura de um único poema nos revelará com mais
certeza que qualquer pesquisa histórica ou filológica o que é a poesia. Mas a experiência
do poema – sua recriação por meio da leitura ou da recitação – também contém uma
desconcertante pluralidade e heterogeneidade. Quase sempre a leitura se apresenta como
revelação de algo alheio à poesia propriamente dita. Os poucos contemporâneos de São
João da Cruz que leram seus poemas prestaram mais atenção em seu valor exemplar que
em sua fascinante beleza. Muitas das paisagens que admiramos em Quevedo deixavam
indiferentes os leitores do século XVII, enquanto outras coisas que nos desagradam ou
enfastiam constituíram para eles os encantos da obra. Só com um esforço de
compreensão histórica adivinhamos a função poética das enumerações históricas nas
Coplas de Manrique. Ao mesmo tempo ficamos comovidos, talvez mais profundamente
que seus contemporâneos, com as alusões a seu tempo e ao passado imediato. E não é
só a história que nos faz ler um mesmo texto com olhos diferentes. Para alguns, o
poema é a experiência do abandono; para outros, do rigor. Os jovens leem versos para
melhor expressar ou para conhecer seus sentimentos, como se só no poema as
nebulosas, pressentidas feições do amor, do heroísmo ou da sensualidade pudessem ser
vistas com nitidez. Cada leitor procura alguma coisa no poema. E não é anda estranho
que a encontre: já a tinha dentro de si.
Não é impossível que, depois desse primeiro e enganoso contato, o leitor chegue ao
centro do poema. Imaginemos esse encontro. No fluxo e refluxo de nossas paixões e
afazeres (sempre cindidos, sempre eu e meu duplo e o duplo de meu outro eu), há um
momento em que tudo concorda. Os contrários não desaparecem, mas se fundem por
um instante. É algo assim como uma suspensão do ânimo: o tempo não pesa. Os
Upanixades ensinam que essa reconciliação é “ananda”, ou deleite com o Um. É
verdade que poucos são capazes de alcançar tal estado. Mas todos nós, alguma vez,
mesmo que por uma fração de segundo, vislumbramos algo semelhante. Não é
necessário ser místico para chegar perto dessa certeza. Todos nós fomos crianças. Todos
nós amamos. O amor é um estado de reunião e participação aberto aos homens: no ato
amoroso a consciência é como a onda que, superado o obstáculo, antes de desabar se
levanta numa plenitude em que tudo – forma e movimento, impulso para cima e força
de gravidade – forma um equilíbrio sem apoio, sustentado em si mesmo. Quietude do
movimento. E assim como através de um corpo amado entrevemos uma vida mais
plena, mais vida que a vida, através do poema entrevemos o raio fixo da poesia. Esse
instante contém todos os instantes. Sem deixar de fluir, o tempo se detém, repleto de si.
Objeto magnético, ponto de encontro secreto de muitas forças contrárias, graças ao
poema podemos ter acesso à experiência poética. O poema, é uma possibilidade aberta a
todos os homens, qualquer que seja seu temperamento, seu animo ou sua disposição.
Pois bem, o poema é apenas isto: possibilidade, algo que só se anima em contato com
um leitor ou um ouvinte. Há um traço comum a todos os poemas, sem o qual eles nunca
seriam poesia: a participação. Toda vez que o leitor revive de verdade o poema, atinge
um estado que podemos chamar poético. Tal experiência pode adquirir esta ou aquela
forma, mas é sempre um ir além de si, um romper os muros temporais para ser outro.
Tal como a criação poética, a experiência do poema se dá na história, é história e, ao
mesmo tempo, nega a história. O leitor luta e morre com Heitor, hesita e mata com
Árjuna, reconhece os rochedos natais de Odisseu. Revive uma imagem, nega a sucessão,
reverte o tempo. O poema é mediação: graças a ele, o tempo original, pai dos tempos, se
encarna num instante. A sucessão se transforma em presente puro, manancial que se
alimenta a si mesmo e transmuta o homem. A leitura do poema tem grande semelhança
com a criação poética. O poeta cria imagens, poemas; e o poema faz do leitor imagem,
poesia.