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Poesia Reunida de Maria de Lourdes Hortas

50 Anos de Poesia

Organização de Juareiz Correya

Ebooks Panamerica / Panamerica Nordestal Editora

Recife – 2016

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DIREITOS EXCLUSIVOS DE “EDIÇÃO EM FORMATO DIGITAL”

ADQUIRIDOS PELA PANAMERICA NORDESTAL EDITORA E PRODUÇÕES CULTURAIS LTDA.

Copyright © Setembro, 2016 – Maria de Lourdes Mateus Hortas

DIREITOS AUTORAIS RESERVADOS

É proibida a distribuição comercial e ou promocional deste ebook sem autorização prévia da Panamerica Nordestal Editora

e Produções Culturais Ltda.

2016 – Edição Virtual / Ebook produzido pela Panamerica Nordestal

Editora e Produções Culturais Ltda.

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COLEÇÃO POESIA REUNIDA & POESIA COMPLETA LIVRO 1 Direção Editorial/Organização Juareiz Correya Arte/Editoração eletrônica/Capa João Guarani Ilustração/Pintura Maria de Lourdes Hortas Fotografias/Ilustração da capa e foto da autora Márcia Hortas Digitação Giovanna Guterres Revisão Juareiz Correya, Giovanna Guterres, José Terra Publicação em língua portuguesa e brasileira da PANAMERICA NORDESTAL EDITORA Rua Padre João Ribeiro, 33 – Boa Vista – Recife – PE. CEP: 50060-180 Telefones : (81) 98685.2194 / 98825.9941 Sites : http://www.panamerica.net.br http://www.panamericalivraria.com.br Email : [email protected]

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MARIA DE LOURDES HORTAS

(Foto de Márcia Hortas)

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POESIA REUNIDA DE

MARIA DE LOURDES HORTAS

50 Anos (1965 – 2015)

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MARIA DE LOURDES HORTAS: 50 ANOS DE POESIA LUSO-BRASILEIRA

Juareiz Correya

Nascida em Portugal (São Vicente da Beira / Beira Alta, no dia 4 de dezembro de 1940), em dezembro de 2015 a poetisa Maria de Lourdes Hortas comemorou, no Recife, de forma reservada, o seu 75º. aniversário.de nascimento. Vivendo no Brasil desde os 10 anos de idade, continua, na Vida e na Poesia, com a sua exemplar simplicidade e invejável humildade. Mulher, mãe, avó, amorosíssima com todos os que têm a sorte de estar ao seu lado, e humanamente solidária com aqueles que merecem o seu companheirismo e sua amizade, na arte da Vida e na vida da Arte.

No ano de 1965, a poetisa lançou, com 25 anos de idade, o seu primeiro livro de poesia – Aromas da Infância -, publicado em Portugal pela Edições Panorama (S.N.I. – Palácio Foz – Lisboa). O livro havia conquistado o primeiro prêmio do Concurso de Manuscritos – Poesia 1963, do S.N.I. Em seus 50 anos de fecunda carreira literária dedicada, sobretudo, à Poesia, Maria de Lourdes Hortas produziu um conjunto uniforme, todo harmonizado pela sua voz de terras e águas portuguesas e brasileiras, construído por 8 livros originalíssimos e que, mesmo tematicamente diversos, parecem ter sido escritos em um só tempo ou mesmo de uma só vez. É a vida de uma poesia inteira, como se não existissem territórios, fronteiras, rios, mares, cidades, países e continentes tão distintos, como são as suas pátrias Portugal e Brasil.

Este livro eletrônico – POESIA REUNIDA DE MARIA DE LOURDES HORTAS -,que sintetiza 50 anos (1965 – 2015) da sua poesia publicada, e que eu tive a sorte de organizar, reunindo e reeditando, na íntegra, todos os poemas e textos críticos dos seus 8 livros lançados e poemas de 5 antologias, me deu a alegria de encontrar e conhecer a criação poética de uma mulher que, em meio século de exemplar produção, tem elevado e irmanado a sua voz às grandes vozes femininas da Literatura Portuguesa e Brasileira.

(Boa Vista / Recife, agosto de 2016)

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NA ESCRITA DE MARIA DE LOURDES HORTAS O EXERCÍCIO DE SER Zuleide Duarte “Sou a minha linguagem / Nela venho e nela vem / Refletida esta paisagem / Que contenho e me contém.” (Maria de Lourdes Hortas)

Cultivar a poesia lírica é remontar às origens da linguagem e do sentimento naquilo que apela para nossa humanidade e resgata o sentimento pelas coisas simples, e talvez, o que nos salva do anti-sentir. O cantar a grandeza da vida menor, do cotidiano, do simples, do prosaico.

A poesia de Maria de Lourdes Hortas, essencialmente lírica, vincula-se a uma tradição que vem de tão longe como a rosa-raiz do seu poema “Rosa Rosae”, do seu penúltimo livro Dança das Heras (1995): “Não haveria rosa / entre as rosas / não existisse a rosa mais antiga.”

Como a rosa mais antiga do poema citado, Maria de Lourdes Hortas debutou na poesia com o livro Aromas da Infância, de 1963, quando recebeu o primeiro prêmio do Concurso de Manuscritos, realizado pelo Secretariado Nacional de Informações de Lisboa. Já nesse primeiro livro delineia-se a temática que permeia seu discurso poético: a aldeia na distante península ibérica e o Recife, pátria adotiva: o sonho da impossível ubiqüidade: estar aqui e na aldeia ao mesmo tempo. Sonho alimentado de duas vidas simultâneas, vividas pelo registro da realidade e do desejo. Entre as visões da aldeia e o colorido do Recife está o mar, símbolo ambivalente de corte e religação, de dor e esperança. Sendo a ruptura um traço da modernidade, seu efeito, em muitos aspectos bastante representativo, não eliminou os moldes e temas que são a herança de uma tradição que se confirma e conquista cada vez mais espaço.

Com a fragmentação, a bizarrice, a ironia e a desarticulação aparentes da poesia contemporânea coexistem os temas lírico-amorosos, barcarolas, odes, elegias, cantigas, acalantos. Nessa perspectiva, a poesia de Maria de Lourdes Hortas apresenta-se com a mescla da modernidade em poemas onde trabalha significantes essencialmente nominais, estruturas frásicas onde o estrato ótico completa a decodificação, entre outras técnicas ditas modernas. Paralelamente, sua lírica está marcada pela influência trovadoresca em que avultam a cantiga do amigo, lamento

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feminino pela ausência amada, a vassalagem amorosa, em construções onde o paralelismo é o recurso técnico privilegiado, ao lado de anáforas e refrões. Nos poemas “Ai quem me dera uma tristura antiga” e “Ciranda”, por exemplo, o esquema de repetição de versos próprios das cantigas paralelísticas é utilizado: “Em todas as casas te procuro, / Casa onde / habitou a infância...”

Textos onde chama pelo amado em tom plangente enriquecem a lira da poetisa: “Ó AMADO que partes sem ter vindo...”

Ao lado de composições que definem a filiação da escritora à lírica trovadoresca encontramos composições onde a ruptura com essa tradição se efetiva: “DISPO a armadura / cobre / amarro o cavalo / prata.”

Equilibrando-se entre as formas consagradas pela tradição e o gosto iconoclástico da modernidade, Maria de Lourdes Hortas vem cultivando, há três décadas, sua arte.

Do primeiro livro para o segundo, catorze anos. Mas a poetisa não parou: Exerceu atividade jornalística como colaboradora do Diário de Pernambuco, seguiu o Curso de Letras (já era advogada desde 1964), e incursionou pelo magistério. Crescendo no mister que se tornou a sua vida, a literatura, ganhou mais um prêmio, concedido pela Associação de Cultura Luso-Brasileira de Juiz de Fora (MG) pelo texto poético “Fio de Lã” que saiu em livro no mesmo ano, numa edição do Gabinete Português de Leitura do Recife. Ano produtivo foi o de 1979: dois livros publicados – Fio de Lã – poesias-, e Palavra de Mulher – antologia de poesia feminina contemporânea, publicada pela Editora Fontana (RJ).

O erotismo com que se tecem as imagens desse poema estará presente na obra de Maria de Lourdes Hortas, publicada a partir da década de oitenta. “A rosa desfolhada para e pelo prazer”, inspirará a velha dicotomia amor x dor. No livro Flauta e Gesto (1983), a mágoa floresce também e escorre pelas lágrimas da mulher/menina, da menina/mulher.

A escrita de Maria de Lourdes Hortas representa, como ela própria já afirmou, a sua linguagem, sua forma de estar no mundo, a via de acesso ao exterior e ao outro. Sua luta incessante com a palavra, à maneira drummondiana, fê-la cúmplice e irremediavelmente dependente, da palavra escrita : caminho que a conduz à auto-expressão e à expressão do mundo. O poema “Chave” evidencia quão estreita é a ligação entre a vida vivida e a vida recriada em imagens transfiguradoras da realidade mas nem por isso menos vivas.

No universo lírico da poesia de Maria de Lourdes Hortas o lugar para refletir sobre a condição da mulher, seu papel na vida

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afetiva, sua representação diante dos mistérios do ser está sempre em evidência.

No exercício da intertextualidade com “Os cantares de Salomão” o sensualismo desabrocha ousado e maduro: “Contigo se deitaram / setecentas rainhas / ... Sou eu a trigueira, porém formosa / filha de Jerusalém...”

Com a vida dedicada à literatura, Maria de Lourdes Hortas encontrou, na palavra, a resposta às suas mais profundas inquietações e linimento para suas feridas. Recriar pela palavra é o credo desta mulher simples, que ama as flores, a chuva, a vida, e faz do seu mister um sacerdócio, cujo “Acto de Fé” encerra estas breves considerações:

“Creio na alquimia da palavra / onde de um rio / raiz, seiva, resina / favo de mel silvestre / mina d’água / êxtase da infância / esperando-me na / esquina. / Ao terceiro verso / ressuscito dos mortos / enquanto lírios nascem / sereníssimos / varando a verde relva / do silêncio que respira.”

(Texto publicado no caderno JC Cultural / Jornal do Commercio – Recife, PE, 6 de novembro de 2000).

ZULEIDE DUARTE é doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Ex-professora da FUNESO (Olinda, PE) da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE (Recife); atualmente é professora da Faculdade de Letras de Campina Grande (PB). Tese de doutorado: A impossível ubiquidade: uma representação melancólica da diáspora portuguesa: A ficção de Maria de Lourdes Hortas.

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Dedicatória In Memoriam: A Maninha (Maria Daniel Mateus Hortas), minha única e amada irmã. Com gratidão e amizade para o poeta e editor Juareiz Correya, que projetou e concretizou a reunião de todos os meus livros de poesia.

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ÍNDICE DOS LIVROS AROMAS DA INFÂNCIA (Lisboa, Portugal /1965) FIO DE LÃ (Recife, PE, 1979) GIESTAS (Recife, PE, 1980) A COR DA ONDA POR DENTRO (Recife, PE, 1981) FLAUTA E GESTO (Recife, PE, 1983) RELÓGIO D’ÁGUA (Recife, PE, 1985) OUTRO CORPO (Recife, PE, 1989) RECADO DE EVA (Braga, Portugal, 1990) DANÇA DAS HERAS (Lisboa, Portugal, 1995) DUPLO OLHAR (Lisboa, Portugal, 1997) FONTE DE PÁSSAROS (Recife, PE, 1999) CANTOCHÃO DE TODAVIA (São Vicente da Beira, Portugal, 2005) RUMOR DE VENTO (Recife, PE, 2009)

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Concurso de manuscritos – S.N.I. 1º. Prêmio de Poesia - 1963

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AROMAS DA INFÂNCIA

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À minha avó

Guilhermina Amélia Henriques da Silva Mateus, que foi a minha infância.

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CARTEIRA DE IDENTIDADE Nome? Maria. Idade? Dois tempos: de valsa e sonata. Estado Civil? Noiva à beira-mar esperando a volta do que naufragou. Profissão? Poesia. Cor? Melancolia. Olhos? Duas cruzes, nos montes, à tarde, pouso para aves e último sol. Cabelos? Sombrios. (Guardam tantos rios...!) Natural? Do Fado (aí canto de chuva!...) Do Vira (o trigo) que Vira (a uva...) Sou de romarias. Ermidas. Serões. Rosmaninho. Eiras. Do mar e do pão. De naus. De Camões.

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TRANSFUSÃO Onde a vida te pôs tédio, acampo meu carrossel. Solto barcos de papel onde empoçou desalento. Em teu corredor cinzento reacendo a lamparina. Onde chora a tua sina, passo com meu realejo. Onde a vida te pôs fel, ponho ternura de beijo.

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QUATRO TEMPOS SOBRE HOMEM E TEMPO I. ESTRADA Numa pessoa caminham pessoas. A criança corre. Passa o jovem. Anda o homem. O velho passeia. Permanece o rastro do que passou por último.

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II. CASA Um corpo é uma casa que muda de inquilino em cada estação. Enquanto o pássaro canta na árvore onde rebenta o verde, há desenhos a carvão nas paredes: início de cultura e fim do mistério. Enquanto o pássaro ama na árvore de verde completo, na casa de paredes pintadas de sol ninguém sabe o que virá após o voo. Desconhece a casa os futuros habitantes.

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III. TRILHO Um corpo é, apenas, um trilho: nele passam vários comboios. Só de ida.

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IV. QUADRO Amanhã vão bater à minha porta e perguntar por mim. Alguém com certa semelhança comigo (como um parente próximo) dirá que fui a melhor, a mais linda, de uma perfeição de quem morreu.

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POEMAS PARALELOS 1º. À ESPERANÇA DE UM SÉTIMO VIOLINO Qual era a cor dos cabelos de Brahms? E seu sorriso era claro? Céptico? Brahms caçou pombos? Roubou cerejas? Você sabe? Nem eu, nem talvez as enciclopédias. À beira da alma de Brahms ouço cantar o infinito. É o importante. E o impossível é ouvir apenas a terceira sinfonia, que o rótulo vermelho do disco limita. Debaixo dela – um telhado, um céu – sinfonias se abrigam. As mãos que se prolongam nos arcos, as que tangem harpas, os dedos correndo no piano de quem são? Os lábios beijando metais, quem os beijou? Os olhos que apanham, como redes, peixes escuros em clave de sol quantos mares choraram, antes disso? A indiferença da orquestra apagou a esperança do sétimo violino.

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2º. AO MEU GALO DE BARCELOS Meu alegre Galo de Barcelos, cor da noite que bebes para que o dia volte, e resto de sol no bico amarelo de onde caiu esta madrugada, quem precisou sete corações para guardar amores perdidos? Meu alegre Galo de Barcelos lágrima cor de ouro onde fechaste o mistério de teu canto louco à alvorada, quem, nos labirintos de tuas asas, encarcerou o próprio pensamento? Quem, na tua cauda, aquarelou as próprias constelações? E na tua crista – flor de Verão – quem eternizou a própria vida? Meu alegre Galo de Barcelos, quem te modelou em barro? De que cor eram os seus olhos? Seu gesto era terno? E seu perfil, mouro?

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EVOCAÇÃO DE AROMAS Era tão branquinha a aldeia, e a praça era tão grande! Os degraus do pelourinho eram tão largos, Maninha, e, pra subi-los, que esforço!... A torre... tão alta a torre como as pernas das cegonhas que pousavam, no Verão, no catavento da igreja. Ah, o escuro da torre (escadinhas para os sinos...), longo, longo, aquele escuro e como cheirava estranho, hùmidamente, a morcegos... Os aromas da infância: gaveta da cristaleira tão fechada como a vida. A gaveta era tão alta!... Batia em nosso nariz. Bem acima dele víamos, na gaveta, as coisas boas: ah! o cheiro de baunilha misturado a chocolate, a frutas cristalizadas... A gaveta era tão alta! (Batia em nosso nariz!) Agora está muito baixa. E o aroma? – Disperso. A aldeia tão branquinha, como é cinzenta, Maninha. A praça – tão grande, a praça! – como é estreita, Maninha. A torre alta, tão baixa, o seu escuro em escombros, cheirando, apenas, estranho, hùmidamente, a passado.

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SONETO ABSURDO E MARINHO E “ORANGE” Ilha verde, ilha só, ilha tão longe, submerso o princípio e invisível fundo de corais, tesouro presumível, fim-pastor que brancas nuvens tange. Tuas raízes pintei-as de “orange” cor bem francesa, ó meu impossível músico louco, de riso insensível, neste soneto eu te faço monge, como te fiz ilha. Eu te faço tudo o que quero, da cor que idealizo. Tu não tens nome, és um sonho mudo. Se teu início-coral é arenito não me diz isso teu silêncio-riso. Eu te faço o amor que agora fito.

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CARTOLA MÁGICA Minha cartola mágica de onde tiro pombos-correios, coelhinhos brancos, lenços de várias cores para várias dores, minha cartola mágica poço fundo (transforma pedras em girassóis d’água) é muito rasa quando nela atiro meus olhos vertendo a solidão do mundo.

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HAI-KAI TRANQUILO Sim, eu sou tranquila. Tenho a árida e vazia tranquilidade de um rio sem água.

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UTILIDADE PARA POEMAS RASGADOS Francisco, Julieta e Conceição deram, finalmente, utilidade à minha poesia. Sentados no chão da varanda brincam a jogar cartas: meus poemas, em retalhos, são dama, valete, rei.

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GEÓRGICA Primavera. Domingo. Esta tarde, os pastorezinhos da semana transformam-se para os velhos da aldeia em canalha que é preciso enxotar dos pomares. Esta tarde, os pastorezinhos são pardais e os velhos, espantalhos. Esta tarde de domingo o pretexto de ir às cerejas faz dos filhos da aldeia crianças de verdade pescando arranhões vermelho sol pó beijos de rouxinóis e até ninhos. Quando vier a noite irão todos às avós queixar-se de dor de barriga (última consequência desta tarde. Domingo. Primavera.) E as avós irão fazê-los beber chás de cidreira que, desfazendo o encanto, hão-de ressuscitar os pastorezinhos da segunda-feira.

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PESCADOR O homem conserta redes: fita-as com olhos salgados, queimados... Mãos cor de areia molhada, o homem conserta redes: redes com cheiro de mar, redes que se misturaram aos peixes, algas, mariscos, às ondas, na madrugada... O homem conserta redes: o homem emudece as bocas que poderiam contar os seus riscos.

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DOMINGO À solta, uma arcada sobre mão-cheia de nada. De ilha, arca sem mapa. Esta ânfora despejada: em seu regaço o lugar para vinho é mormaço. Abas vazantes da infância: com a copa do chapéu cerejas e malmequeres partiram pra não sei onde. Ciranda, forma – sem vozes – de redondo, circular. Moldura pra Renoir desabitada, vazia. Meu domingo, pouso breve para um arcanjo ensaiar cantochão de todavia.

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CANTIGA DE AMIGO De castelo inevitável - ai que eu princesa era princesa moura sem rei – minhas tranças atirei e tu subiste por elas até meu olhar inteiro, tu que vinhas libertar-me de minha torre bem alta de onde se via, apenas, o cimo do mundo, a nata: o verde limpo dos campos, o lavado azul dos mares, - casca da vida, sem cortes. Princesa moura, sem rei, minhas tranças atirei - eis que tu as desmanchaste. Ai que fizeste das fitas? Foi com elas que amarraste os meus olhos no teu chão? Em cada cabelo meu Tu plantaste o conteúdo do mundo que eu não via de minha torre bem alta: debaixo do verde, o verme, debaixo do mar, a morte. Desmanchaste as minhas tranças, e me puseste no chão, coberta com meus cabelos de ti carregados tão!... Liberta de meu castelo olhar partido, fiquei. Sem tranças, ai, eu sem tranças, só, despenteada moura e, como antes, sem rei.

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ENQUANTO NÃO SABES, PETRUS Enquanto não sabes que as baleias não são peixes, que as estrelas não são lanternas de anjos ou buracos de fechaduras do infinito, que o trovão não é Deus que está ralhando, nem S. Pedro arredando móveis no céu, que a chuva não é o mesmo santo despejando cântaros sobre a terra, que as nuvens não são mares suspensos, cabeças de avós, rebanhos, fantasmas, mas vapor – só vapor condensado. Enquanto não sabes que tudo é fenómeno como, por exemplo, o arco-íris, espectro-solar. Enquanto não sabes o que é fenómeno, Ltda., ONU, verbos e provérbios, química, teu nome, sobrenome & Cia., cores, alfabeto, psicologia. Enquanto não sabes ver televisão E olhas a Lua – Bolacha Maria – que – não sabes – é satélite da Terra, telhado de ébrios e nau de poetas. Enquanto não sabes o que é poesia, crença ou cepticismo e a diferença de Banco maiúsculo e banco de praça. Enquanto não sabes o que é comunismo, megatons, foguete, gregos e troianos. Enquanto não sabes dar corda ao relógio, só tu sabes tudo, pois chegaste há pouco de cidade-enigma. (Logo esquecerás.)

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Quando já souberes falar convenções, ler definições, apertar botões, lembra-te que és Petrus e sobre esta pedra tua mãe se reconstruirá.

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CANTIGA PARA O AMOR-DE-ONTEM De que noite sem lua dobraste a esquina? Em que música tu silenciaste? Amor-de-ontem, onde adormeceste? Em que lágrima te afogaste? Que momento te esculpiu em amor de ontem? Que novo riso – como cristal – te partiu? Que encanto-enigma te reconstruiu?

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MANHÃ ENCARCERADA Atrás da janela gradeada a manhã está presa. Enquanto eu não sair ela me espera. Enquanto ela me espera espero alguém.

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NOVO ACTO DE ESPERANÇA Deixai-me crer, deixai, que neste Ano Novo será circunvagante a Paz e não satélites. Deixai-me crer, deixai, que o Ano Novo pôs, em vez de urânio, amor nos corações dos Grandes. Deixai-me crer intacta a candura no riso de todas as crianças. Deixai-me crer que do asfalto brotarão flores e nas ermas paredes dos arranha-céus sem cor nascerão musgo e ninhos. Deixai-me crer na verdade em todos os lábios. Deixai-me crer em dilúvios de aeromel molhando as línguas dos que blasfemam de fome. Deixai-me crer que o mundo será menos terra e mais universo. Deixai-me crer, deixai, que meu poema é novo, que são novos os homens que o Ano Novo é novo.

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TEMPO ÚNICO Tudo o que repousa em linhas geométricas muito aquém de nós detém-se, meu amor. Porque nada aprisiona a liberta estação que foi criada quando me vi em teus olhos quando te viste nos meus. A permanente estação de rosas que não se desfolham de pássaros que não emigram de tempo único – o feliz – sofreado e suspenso entre nós dois.

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URGENTE! CLARABÓIAS! Ponde claraboias nos telhados que o céu – lembrai – não é sòmente estrada para passos de pássaros de aço. Urgente! Claraboias! Céu a prumo descerá em vossos quartos e salas - vossas grutas. E em vez de muros brancos (vossos tectos) tereis lagos de azul para lavar os pés de vossas almas - vossos olhos peregrinos cansados, horizontais. Vossos telhados serão em cada noite aquário de estrelas. Em cada chuva, cisternas de prelúdios. E em cada pôr de sol vós, testemunhas do sopro eterno dos anjos que, no céu, queimando o dia, fazem dele rosas.

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MOINHO DE VENTO Foste tu, menino louco, quem moeu as minhas rosas em teu moinho de vento. Mas as tristezas avento na cor que está esmagada em teu sorriso-lamento.

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POEMA NO PARQUE Se há canteiros no parque por que não há flores? Se há protegedoras árvores no parque por que não há ninhos? Se há uma predisposição para crer em cada alma por que não há verdade?

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POEMA À MINHA ALDEIA Ao poeta José Lourenço

Dentro de mim, minha aldeia, mina d’água, entre serras, onde bebo minha infância. Ruas pautadas por muros – jardins de musgo e cocilhos – de onde caía o aroma de laranjeiras no Inverno, de onde caía o amarelo de mimosas em Abril. Velhinhas, tão quase iguais – cada ruga uma lembrança – as casas. De seus beirais escorriam orações: ou rosários de granizo, ou salmos de andorinhas. E nas tortas varandinhas, em panelas que os ciganos não poderiam soldar, cozia o sol sardinheiras e cravos e manjericos. Havia silvas na Lua que me acompanhava à fonte onde eu ia com a Céu e a Céu com o namorado. As silvas do castigado que trabalhara aos domingos... Silvas também nos atalhos - mas estas cheias de amoras – integralmente só nódoas para meu branco avental. Ponte, ribeira, moinho – os primeiros candelabros: inverno... gelo em cristais. E tantas lembranças mais. Passeios na Estrada Velha com as meninas Susana, Terezinha e Manuela... Quedas na Estrada Nova – ai! a brita aguçada rasgando em meus joelhos a dor de caminhos novos. Nas procissões, eu, de anjo, os lisos cabelos soltos - lembra-se, menina Emília? – inútil tostá-los antes, com seu ferro de frisar... Procissões de tantas festas! A do Senhor Santo Cristo... Terceiros... Ressurreição... “Porém, a Semana Santa”... lembrará Padre Tomás quando se lembrar de mim –

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Porque sou, na minha aldeia, Verónica toda de negro, cantando em cima do mocho, face de Cristo na mão. “E o teatrinho da Escola?” - lembra a menina Jesus. Porque sou, na minha aldeia, princesa toda de branco colhendo flores no campo do cenário, em papelão. José Lourenço, o poeta, em sua casa, morangos, condes, leite e laranjas. Em sua casa, mistérios, nas arcadas, no brasão, no barómetro engraçado... fácil: se fosse chover a bruxa entrava em casa e, se o tempo fosse bom, saía para varrer... Em sua casa, o fascínio, o medo do Cabanão: aí os ciganos temidos que consertavam panelas, que vendiam caravelas. (Na janela da cozinha Vi a minha caravela girando com o Verão a sua cor de papoulas seu frescor de melancia sua cantiga de noras...) Nessa mesma caravela, poeta José Lourenço, navego pra minha terra: mina d’água lá na serra...

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CANTO INTROSPECTIVO Voo-liberdade canto intuitivo penas coloridas um jovem é um pássaro. Sempre. Rirão os descrentes: “Ó jovem, és pássaro? Jovem perscrutado – problema – complexo, ó jovem-cansaço e tédio és pássaro?” Digo-vos, descrentes: um jovem é um pássaro. Mesmo introspectivo o voo, o canto. Um jovem é um pássaro – embora empalhado. Penas? Coloridas.

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SALMOS Senhor, às margens do vosso rio, as faces de Jacó e Raquel não se reconheceram. - Como explicar que te dei flores vermelhas ó pastor de meus carneiros silenciosos? Todos os sons libertos de tua flauta por teu lábio, ó pastor de meus carneiros sedentos, qual flores na boca prendo-os e no rio danço no limiar dos portais acesos. - Senhor, que permaneçam ali, adormecidos, biblicamente, os meus carneiros nocturnos.

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INTERVALO A vida está no canto do muro onde não chega o sol (cresce musgo ali) está na casa sem ninguém onde as aranhas cobrem, com seus véus, o silêncio. Na folha que treme. Na fonte que surge. Na expectativa da morte. A morte está entre os que riem, oscilando como pêndulo. Na mão do homem. Dentro de canções. Nas pedras. No intervalo de tudo está Deus.

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CANTIGA DE VÉSPERA Hoje é véspera de mim. Lavei todas as cortinas, a casa toda caiei. Vou passar o meu vestido que teci colhendo as résteas de minhas antemanhãs. Tenho rosas no jardim, uma pra cada amanhã de meu cabelo onde quero embalar-te, Amor-sem-fim, amanhã, dia de mim.

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O CANSAÇO DAS COISAS As estrelas despetalaram-se. E o tempo bebeu toda a poesia. O sol repete ocasos já arquivados por não ter mais cores a inventar. Os mares perderam seus enigmas e as sereias enforcaram-se nos cabos telegráficos. As rosas têm a mesma forma. As palavras, o mesmo som. O momento repete-se, sem originalidade. Inútil dizer: “a vida é bela”, pois até as crianças preferem o branco e o preto da TV e não têm mais celeiros de encanto para preencher amanhãs vazios. - Terra, minha velha, despe o tédio, mergulha um pouco em teus raros lagos de silêncio e veste Amor – o eterno prisma do novo olhar.

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PALAVRAS PARA O ACALANTO DE MEU PRIMEIRO CHORO No silencioso túnel de teu ventre, em tua submersa poesia, escolheste um a um os teus frustrados sonhos até formar com eles uma nova Maria. Em meu primeiro choro Compuseste o acalanto para tua esperança. E te fizeste fonte, árvore, rio, ponte, quando te fiz mamãe. Se em ti mergulho a face, se à tua sombra volto cada nova romagem, e se quando sou ponte a ti os remos cortam pra que eu olhe a paisagem, se quando sou o rio proteges-me dos pés (que o mundo inteiro passe...) tudo assim acontece porque és minha mãe e te fizeste fonte, árvore, rio, ponte.

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O HOMEM E O NATAL Enquanto o Natal vai navegando rumo a outro Natal, o homem fica, ancorado na ignorância primitiva. E contempla as estrelas imaculadas de pureza intocável. As lâmpadas coloridas (chamados suspensos, significações estéreis...) E sente-se um remoto antediluviano, junto ao fosso dogmàticamente intransponível.

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CANÇÃO DO PRESENTE Para que guarda-chuvas, se hoje há sol? Agasalhos de Antárctica em clima tropical? Que importa o tempo derramado no chão e desaparecido como água sob a terra? Se hoje há paz que foi a guerra? Que importa se as rosas murcham, quando estão perfumando minhas mãos? - Se o tempo é isso, um perfume que alguém sente e respira e alguém deixa escapar? Para que guardar sapatos para os caminhos que hão-de vir se ontem já passei por vales com silvas sem amoras e amanhã não sei se vou estar? Para que esperar a velhice, se a juventude é hoje e o tempo escasso? Para que chaves de portas se não houver regresso? Que importa o tempo que vai nascer se eu não o souber colher?

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MARINHA AO VELHO PESCADOR Lutam sóis de dia e noite - hora de puxar a rede – o homem luta com o mar. Com três cores de três sangues tingem-se as redes escuras: o do sol que em contato com o azul tornou-se roxo. O dos peixes que é “marrom” por causa da asfixia. O do pescador vermelho como sempre indolor. - Sua rotina é a dor. A pesca é o seu mastro. Lutam sóis de dia e noite. Corda humana está puxando a corda que puxa a rede onde vêm (e se não vêm!?...) polvos, sargaço, arraias, sardinha, ruivos, sargaço, sargaço, conchas, sargaço... Pescador velho e seu cão na praia, como fidalgos, percorrendo suas terras. O cão tem a cor da sombra. O velho já não tem cor: o negro de seus cabelos foi sugado pelo mar para nuvens de intempérie; o negro de sua barba escorreu pra sua roupa de viúvo por aquela que sempre ficava em terra (acenando, acenando...) E sob terra está.

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Olhos secos porque o mar Picado foi-os picando Fazendo-os esvaziar. E o rosto tatuado Pelo sal... pelo sol... Vai curvar-se o pescador ao peso da corda-cruz. (Não chorem, sentimentais.) Porque esticando a corda, pescador estica a vida puxando-a do mar com a rede...

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POEMA ELEGÍACO AO NATAL QUE FOI E o Natal que foi lanterna alumiando os passos dos grandes à Missa do Galo - que mistério, o galo da missa onde eu não ia... E o Natal que foi, não será, jamais. Porque nevou sobre os magos dedos de minha avòzinha. Ela tricotava toda magia De um Natal só nosso; regia o estalar do azeite para as filhoses... pintava de verde o presépio, com musgo... Das mãos do Natal caiu a lanterna: o círculo de luz - a cândida auréola – esbateu-se... A neve? Só neve metáfora - tempo feito branco, apagando os traços – ficou do Natal. E todos os galos perderam os cantos. A lanterna... os passos... O Natal que foi e não será mais.

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NOTA DISPERSA Tenho, dentro de mim, adormecidas, notas dispersas para a melodia. Quando deixarão de ser grito sem eco? Em que dia?

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PÔR DE SOL NO MAR Este domingo, para encontrar-se com seu amado, desfolhou-se ao vento a Rosa-dos-Ventos. Pétalas, como ondas, em crepúsculos - norte-sul leste-oeste – espalhadas foram.

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FLAMBOYANS EM FLOR A cidade ri vermelho. Não vermelho moscovita, apesar de equitativo: igual riso para todos. Tirai o antagonismo dos olhos. E vede o riso. É agora vossa vez. Olhai bem, pois a cidade, a dividi-lo por todos, vai desenhando a vermelho cinco peixes e dois pães. E depois de dividi-lo ainda encherá dois rios com sobras que ninguém quis.

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ELEGIA À MINHA AVÓ Teu último barco e único - todo âncora – é a redenção do homem da Lua. Construiu-o ele com paus de domingo. Agora nunca mais terá feixe às costas. A música, aquela retida no pote ao canto do muro. Em tardes de julho eu, menina, troquei cantigas de sol pelo eco úmido. Um cortejo de vultos em lenta agonia segue-te a passo mudo - contornos diluídos – vai-se esfumando... José do Egipto em seu carro egípcio. O Gato de Botas que se descalçou para não andar as últimas sete léguas de uma só vez. Em cavalos brancos, príncipes. E princesas voando em cisnes como a neve, brancos, como a morte. O Lobo invisível de presença constante em minha infância... O Lobo de apetite condicionado ao meu

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- só me comeria se eu não comesse a sopa...- o zeloso Lobo que só tu, Avó, poderias chamar, mas nunca chamaste, segue-te, cabisbaixo, uivando agonia. À distância vejo Os Santos Leões que o profeta Daniel domesticou e tu canonizavas em tuas histórias. Vão ficar contigo, ser teus guardas-túmulo. Até que te alcancem irão devorando tudo o que está entre eles e ti. Sob o teu barco - teu navio âncora – patas em coluna, hão-de dormir, mansos, imóveis na mesma mansidão eterna só interrompida com a tua morte onde minha infância se esculpiu, deixando rastro de sorriso que só eu conheço.

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EQUILÍBRIO Abri os braços para equilibrar-me na linha imaginária - Equador. E tive um braço em cada hemisfério. E minhas mãos foram cataventos, que retiveram, do mundo, o mistério: náufragos risos, inascíveis rosas, canções sem pauta, queimadas estrelas. E minhas mãos foram cataventos, que retiveram, do mundo, o mistério: entre as ruínas caminhavam pombas.

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CANTIGA DA APAIXONADA Que o tempo desmanche flores. Flores novas tempo faz. Que sopre o dia estrelas. Vem a noite, acende mais. Vai maré levando ondas, volta maré, ondas traz. Tempo, noite, maré sou. Meu nome hoje é amor. sem ondas, estrelas e flores se estive, não estou.

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POEMA APOCALÍPTICO SOBRE O FIM DO MUNDO A corda do mundo então, rebentada. O pêndalo inerte estancado a prumo sobre a hora estática. Atónito, verás em fuga teu corpo, ó tempo redondo: - fuga de ponteiros e sem badaladas!... A corda do mundo então, rebentada. Solta, no espaço, a hora estática. Depois, tudo, um passo no Tudo ou no Nada.

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VALE Não sei se o vale foi sulcado pelo meu baque súbito ao encontrar a menina que fui prisioneira para sempre das pálpebras cerradas de minha avó imóvel. De só reencontrar a criança boiando à tona gélida de minha avó. Imóvel. Não sei se o vale é, apenas, o espaço que a menina ocupava dentro de mim antes de se escoar. Sei apenas que este é o marco de êxodo entre a criança e o adulto. Como sinto que pelas encostas deste vale fujo de mim mesma, deixo-me só, despovoo-me.

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MAR-AMOR Antes de tudo é preciso quebrar relógios rasgar calendários ter como guias, sòmente, sóis e luas. Depois apenas com a vela muito branca sem leme sem bússola sem âncora ir navegando. Sòmente com a vela (nunca remendada nunca emurchecida) apenas – e sempre – branca.

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PRESENTE PARA MIM (em meu aniversário) Um céu antes de tudo infinito. Só depois o cemitério de mundos mortos. Um sorriso antes de tudo verdade. Aquela que mora no longe que há em nós para onde nem sempre se encontra o caminho. Um mar antes de tudo três quartos de Terra. Só depois a inconstância das marés o sal em minha língua, o azul da água que, afinal, é incolor em minhas mãos.

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SHEILA Sheila aponta a Lua com a metade de “quantos-anos-tem” ou seja: um dedinho. Mas a Lua só poderá decifrar-se para Sheila daqui a quantos anos forem precisos para prender-lhe os dedos entre outros dedos. Sheila não aponta as estrelas. (As estrelas são mais fáceis). Redondamente Sheila olha. E o anjo que mora lá paira algum tempo entre as duas noitezinhas (que são os olhos de Sheila) e, não aguentando mais, ajoelha-se a seu lado e curva a fronte coroada de flores que só nas estrelas brotam e que sòmente a Sheila é dado ver. Sheila recebe o anjo e suas flores. Conta-lhe segredos de Zèzinho – seu feio e querido boneco – e do coelho amarelo de pelúcia. Depois, sem consultar mapas (pois a geografia das estrelas sòmente Sheila, Zèzinho e o coelho amarelo conhecem de verdade) leva o anjo de volta na garupa de seu cavalinho azul, branco e vermelho. Através de planícies transparentes como pirulitos cavalgam. Riem os guizos do cavalinho. Tilinta o riso de Sheila. E vão tão depressa, tão depressa, tão depressa, que até parece não saírem do lugar. Quando estão perto, o cavalinho dá um pinote. Com pena de se despedir de Sheila, o anjo começa a bater asas enquanto ela – olhos fechados – ainda ri. E o riso de Sheila o detém. Então o anjo tira da fronte as flores que só nas estrelas brotam e as planta nas covinhas do rosto de Sheila.

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ÚLTIMOS PREGOS Apenas o contraste de seu rosto - imóvel como a morte – com o seu cabelo - desgovernado como a vida – fala da realidade. Independente contraste que a faz, a um tempo, Santa em procissão e jovem à beira-mar: a inabalável face de fé inabalável... os navegantes cabelos dando-se ao vento... Seu corpo está parado como tronco de árvore seguro à terra. Mas seus cabelos estremecem suavemente como ramagem sacudida pelo pássaro em fuga... Seus cabelos são o seu poema póstumo dedicado a mim. E suas mãos jogaram ao ar toda a primavera de lá fora. E são para mim, elegìacamente, no céu as aquarelas das gravuras de minha infância, pontilhadas de andorinhas. Nesta primavera, com as andorinhas, voou-me a infância. Do balanço, no sótão, a ausência das cordas enforcou a menina. Foi bom que assim fosse. Onde choraria a menina, agora, se os cantos das portas, sem mãos que a levem para o colo morno, são, apenas, cantos?... Foi bom que assim fosse para não sentir todo o absurdo de se não chorar a perda de um colo nesse mesmo colo... Do balanço, no sótão, ficaram os pregos - duros, fixos pregos, para acabamento do adulto incompleto. Os últimos pregos pregados no adulto recém-construído.

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EU SOU TUDO Eu sou tudo. Dentro de mim tenho o ritmo de um sistema planetário, tempo, atmosfera, água e sal de oceano e o mineral da montanha. Tenho rios vermelhos correndo em mim e florestas de nervos por onde passo. Eu sou um resumo do universo. Tenho o canto e a tristeza, as sementes da vida e o segredo do fim. Eu tenho Deus em mim. Eu sou tudo. - Também o mundo Porque o vejo.

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EDIÇÕES PANORAMA S. N. I. – Palácio Foz – Lisboa

1965

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FIO DE LÃ O poema Fio de Lã, de Maria de Lourdes Hortas, tem uma história ao mesmo tempo que conta uma história. Premiado com o “Troféu Portugal” em 16 de junho de 1978 num concurso literário instituído pela Associação Brasileira de Juiz de Fora (Minas Gerais), a divulgação jornalística desse fato foi o primeiro passo para tirar a autora do recolhimento em que vivia no Recife e trazê-la a público, a colaborar nos suplementos literários, principalmente no do DIÁRIO DE PERNAMBUCO, onde comparece com freqüência. Esta, resumidamente, é a história do poema, ou, com mais precisão, a de suas conseqüências para a autora. Quanto à história que o Fio de Lã conta, é confessadamente autobiográfica e narra uma experiência lírica e vivencial : a de alguém que se divide entre dois mundos distintos, e, na aceitação de uma cultura e de uma terra adotivas, não consegue, por um “atavismo irrecusável”, esquecer suas raízes pátrias. É assim que o poema revela a origem portuguesa de Maria de Lourdes Hortas, que, ainda menina, trazida para o Brasil, trocando o Tejo pelo Capibaribe, as amoras pelas pitombas, jambos, mangas e carambolas, toda entregue a esta suave passagem, a esta aceitação de um mundo novo que ia descobrindo, presa ao fio de lã do seu infantil “xailinho pra frio”, não se liberta dos “limos do tempo” que estão na raiz do seu canto.

As raízes portuguesas da poesia de Maria de Lourdes Hortas

não se revelam só em expressões como “xailinho pra frio, lírica voz” portuguesa ou num verso como “aqui tens o teu farnel para a viagem”, mas também e principalmente, em certa tradição e aprendizagem, reveladas na técnica de construção do poema e mais explicitamente nas epígrafes do Fio de Lã, já agora não só um poema isolado, mas um livro de poemas de elevada qualidade. Fernando Pessoa ou seu heterônimo Alberto Caeiro, Florbela Espanca, Sophia de Mello Breyner Andresen, são anjos tutelares da poesia de Maria de Lourdes Hortas. Certo lirismo místico está representado, na revelação das epígrafes, por um Salmo de Davi. Manuel Bandeira é um traço brasileiro na poética de Lourdes Hortas, mas o gesto de olhar, muito presente na sua poesia, o seu desejo de ver e representar o mundo, lembram também o Drummond que diz “quando eu morrer morre comigo um certo modo de ver”.

A poética de Maria de Lourdes Hortas é espontânea e simples e acha-se delineada no primeiro e no último poemas do livro: “Não farei poesia sofisticadamente profunda: / profundo na vida é viver

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(...) Eis a minha poesia: ressuscitar o que me foi dado / e desdobrá-lo para novo olhar.” Os temas de Fio de Lã têm uma amplitude universal e abrangem a angústia de solidão, a melancolia do cotidiano, certa ironia crítica, o lirismo transcendental, o social, a natureza e mesmo a hora técnica, com seu fantasma nuclear e a escalada cósmica. Mas sobre a técnica, da poesia de Maria de Lourdes Hortas a natureza ainda predomina: “a flor persiste / no ciclo da antiga noite / e orvalhos lavam a terra / como na madrugada / do gênesis.”

JOSÉ RODRIGUES DE PAIVA (Recife, PE, Cidade Universitária /

(29 de maio de 1979)

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À memória de Manoel Joaquim Hortas, meu pai, que sempre se comoveu até às lágrimas com a minha poesia.

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M A R I A D E L O U R D E S H O R T A S

F I O D E L Ã

RECIFE, 1979

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“Abri, Senhor, os meus lábios, E minha boca proclamará os vossos louvores”.

(Davi, Salmo 50, IV, 17)

“Da mais alta janela da minha casa Com um lenço branco digo adeus

Aos meus versos que partem para a humanidade (...) Escrevi-os e devo mostrá-los a todos

Porque não posso fazer o contrário Como a flor não pode esconder a cor,

Nem o rio esconder que corre, Nem a árvore esconder que dá fruto”.

(Fernando Pessoa/Alberto Caeiro)

“Quem nos deu asas para andar de rastros? Quem nos deu olhos para ver os astros Sem nos dar braços para os alcançar?”

(Florbela Espanca)

“Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.”

(Manuel Bandeira)

“Eu caminhei na noite Entre silêncio e frio

Só uma estrela secreta me guiava.”

(Sophia de Mello B. Andresen)

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MEU PREFÁCIO DE POETA SUPERFICIAL Não farei poesia sofisticadamente profunda: profundo na vida é viver e os conceitos são meros contornos de maquilagem. Não farei poesia: meu ato será apenas o de olhar e a poesia far-se-á narrando à superfície acerca do sol e da água e do riso e da lágrima.

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PARÁBOLA Perdoai, Senhor, mas um poeta é também pastor apascentando sedentos de beleza em campos largos. Sabe o poeta onde estão a relva e os regatos: isto, Senhor, o faz também profeta?

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A ARTE DE NÃO DIZER Penduro no cabide a veste de poeta e cubro de cinzas a cabeça pois lá fora está cantando o poeta em evidência evidentemente vidente sem gafanhotos e sem mel porém montado em apocalíptico equino galopando por abismos abissais. Até um dia, palavras, que arte é não dizer. É fazer o leitor ajoelhar-se no último degrau da ignorância, humílimo, batendo no peito “Senhor eu sou indigno...” Recolho os braços abertos e guardo no armário meu translúcido canto (espelho de opacos).

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FIO DE LÃ Quando no Tejo embarquei tinha um xailinho pra frio que os mares de sete dias desmancharam em novelo. Aqui achei outro rio e de Bandeira roubei o primeiro “alumbramento”. Desbotaram os rosados De minha face europeia: amorenei, inteirinha. De menina, virei moça. Troquei o falar castiço por sotaque tropical arrastado e mestiço. (Se esqueci das amoras? Das quintas e das latadas, das fontes, grilos, giestas, primaveras e outonos?) Passei a colher pitombas, jambos, mangas, carambolas, e me entreguei à passagem, às praias, coqueiros, pontes. Mas a ponta inicial daquele fio de lã (azul e quente da infância) ficou por certo amarrada do outro lado. Fixa por limos do tempo ainda existe, raiz, e insiste em meu canto. Só isso não consegui ao passar o Equador: de minha alma-guitarra fazer um clarim-metal Insisto, a culpa é da lã.

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Aquele fio azulado, que reteve o meu cantar longe, longe, do outro lado. Por ele caminham ondas de atavismo irrecusável (lírica voz portuguesa). E em minhas cantigas - todas – por mais que busque alegria choro fado concerteza. (1º Prêmio no Concurso da Associação de Cultura Luso-Brasileira e Comunidade Portuguesa – II Salão de Poesia – Juiz de Fora – 10 de junho de 1978).

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INTENÇÃO O que eu quero realmente é pôr à tona a alma do mundo translúcida como fonte. O que eu quero realmente é fazer brotar o coração do mundo alcançável como flor.

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CAÇADA Partem os poetas de espingarda e alpiste cartaz e brasão: o pé-ante-pé, o ouvido atento, o olfato em riste. Em bando farejam na mesma avenida a mesma emoção. Ânsia coletiva a pomba esfrangalha: cada um apanha a sua migalha.

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ROMARIA Aqui é a planície e eu busco a montanha. Aqui é a noite e eu aguardo o dia. Em mil e uma noites indormidas. decifrei rotas de astronomia: Que ninguém me detenha. Eu parto em romaria.

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OS ASSASSINOS DO PARQUE O parque é o local do crime. Cúmplice, o verão. E os assassinos Sentados então. As armas variam: uns trouxeram um filho, uns trouxeram um cão, uns, filosofia. Alguns, o jornal. Algumas, croché, E alguns só os olhos e a disposição. – Coração do tempo, onde o teu estar, que várias pessoas te vêm matar? Pescoço do tempo, vai te acautelar que várias pessoas te vão degolar... Das árvores, no parque, as flores no chão de que enterro são?

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ESFINGE Inova, homem e vê se modificas a milenar certeza de ti mesmo: dois olhos dois braços duas pernas um nariz uma boca um cérebro um sexo um coração.

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VERTICAL Sou a que, ao meio dia, em praça desolada obliquamente despeja sua sombra para sentir-se acompanhada bebendo amargamente limonada pelo estreito canudinho do tédio. Sou a que está em alto mar mão sobre os olhos procurando o vento atrás, em volta, à frente, sem uma ponte para o continente.

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NOTURNO Eis que a tarde serenamente comigo esperou a tua volta mas agora chegaste e a noite começa a partir. Vamos depressa reunir o essencial: nossas lembranças de romance, nossas vestes diárias de ternura, nossa comunhão de bens que se resume numa granja a haver, e fujamos com a noite descalços e depressa antes que o seu rastro se perca no infinito. Vamos segui-la abraçados e onde ela ficar sob o seu manto-ponte dormiremos.

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RETÂNGULO E para caber exata no retângulo universal corto meus gestos mais largos jogo metade ao mar. De mim tanto afogarei que à tona, boiando, mansa vai ficar (se não está) uma afogada tranquila como retrato-lembrança.

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ESTAÇÕES ANTÍPODAS É preciso alistar meu sentimento (disciplinadamente) no quartel das tuas horas. É preciso adiar meu sentimento para o conveniente estável (sem chuva, nem sol) neutro e vazio momento. (Nossas estações são antípodas e resolver esta equação e mais aquela da humana solitude é o absoluto impossível).

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ROUPA NO VARAL A roupa semi-presa nos arames alveja e veleja. No varal dançará até ser digna de receber de volta a sua alma que a água levou/lavou: o gesto a forma o aroma de quem a veste.

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RESIGNAÇÃO Não contemplarei a tarde lavando-se em poesia. Não procurarei a estrela que pinga do infinito. Não quero que o vento seja em minha face um eco de ternura. Não escutarei a Quinta Sinfonia. Não vou salvar os loucos do seu sub-mundo. Não peço o verde-verde de Garcia. Aceito o meu quarto coberto da poeira de mim que nele pousa. A encarcerada estrela: minha lâmpada. O rádio do vizinho. Meus impossíveis. E o livro negro da lei falimentar.

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RETIRADA Se tudo o que eu digo já foi dito antes então o melhor é sair, de mansinho, pela porta dos fundos e deixá-los falando na sala da frente. Saltarei o muro, muito devagarinho, para encontrar do outro lado os meus queridos lugares comuns: estrelas, pássaros, fontes, rios e seus afluentes. E lá, acocorada e só, vou rir, rir, rir até chorar.

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POEMA PARA UM RECLUSO DO TEMPO A idade que você tem, prisioneiro do tempo, é o número que se dá ao recluso. Lastimo você caminhando, monótono, na procissão de seus aniversários. Segue o tempo: é seu cão. Marcha nele, como soldado. Na hora marcada e conveniente matou a criança. E dentro do círculo de seus quinze anos foi adolescente. Agora é adulto de gestos pautados pelo figurino dos antepassados. Eu? Bóio em meu tempo ou nele mergulho. Posso cavalgá-lo também modelá-lo: fazer de um instante uma sinfonia para escutar em pausa vazia. Meu tempo eu o tenho, é luz que regulo, total ou velada, com natais em maio e páscoas em agosto. Eu visto o meu tempo segundo o meu gosto.

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SONETO CRISTALIZA/DOR Em cristal para sempre tornarei aquele que me deu aeromel. Este soneto cítrico é o cinzel da escultura em que o mudarei. Mas se em cristal de sempre eu o mantenho e de seu breve gesto faço rocha não apago por certo aquela tocha que ardendo eu lhe tive e sempre tenho. Do risco de deixar o sentimento derreter-se, fujo e o suspendo do áspero, do banal, da escuridade. No eterno do meu cristal-soneto vivo será e embora não o tendo Eu o (re) tenho na cristal-idade.

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MARÉ VAZANTE O mundo? está oco: rebentaram-lhe as comportas. Em revoada escapam mitos prisioneiros. O mar? Inconsciente. As estrelas? Já mortas. O sol? Queima-se, louco. E as pessoas dão voltas.

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CRAVO DE FERRO E quando sentires que parei pronta a partir o grito que grávida carrego como um cravo de ferro que me fura a alma prestes a romper quando sentires que meu grito AGUDO pode estilhaçar o cristal do céu poente em chuva de granizo com beijos molhados e quentes derreterás o gelo que me cerrou os dentes E hás de deixar que eu grite dentro de ti da minha para a tua garganta – precipício onde me vou matar.

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REGRESSO Regresso hoje ao cais de anteontem. Da pedra que atiraste fiz um astro: bússola para reencontrar meu rastro.

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SOLidão Figuram todos sono a dentro e abandonaram a praia. Esta primeira hora da tarde eu a recolho ao exato começar e para mim goteja minutamente. Além disso em minha SOLidão um sol inteiro arde.

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PRAÇA NOTURNA Nesta praça noturna onde ninguém se esconde perambulo sonâmbula escutando o lamento das fontes na sombra. Deixai-me aqui até que as minhas raízes brotem e as eras amadureçam os meus frutos.

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PRIMEIRA ELEGIA A MEU PAI Para minha irmã. Pai, repousa tua mão na testa dela, ardente, e segreda-lhe o que me revelaste, no silêncio de tua voz exata: que à manhã eterna, debruçado, esperas por nós e nos contemplas. Diz-lhe (do teu silêncio desvendado) que à sombra da tarde infinita placidamente aguardas o nosso reencontro. Repete ao seu ouvido o que me transmitiste: que estás na primeira esquina da noite cósmica lanterna à mão para nos guiar pelos densos precipícios da volta. Conta-lhe que atravessaste as colinas do tempo e desvendaste a esfinge – estátua nos pátios do Senhor. Revela que te banhaste nas fontes do saber e lá deixaste o barro da vã humanidade. Segreda-lhe que a morte é, apenas, a chave que fechando os olhos do corpo abre os da alma para a imensa e total realidade.

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SAGITÁRIO Pode o centauro meu em fuga do zodíaco galopar: arco retesado o meu arqueiro manda-lhe flechas – trespassantes flechas. Centauro em sangue arqueiro em expectativa a flecha não vincada (ansiedade em voo) vai caminhando alturas mais, ainda mais. Pensei que era sina. Mas é signo. Questão de horóscopo.

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TESTAMENTO Com uma argila que trago em mim – poeira densa – levantada pelo galope universal modelei uma ânfora que deixo – transbordante – aos portadores de idêntico mal. Mas se for vime isto que me enlaça entrançarei, apenas, uma forte cadeira e dela, alguém lírico ou indiferente contemplará da varanda serenamente o cortejo que passa.

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IMAGEM E SEMELHANÇA Onde pôs o homem que esgravata o lixo sua imagem e semelhança de Deus? Perdeu-a no caminho de sua miséria? Foi derretida por suas lágrimas? Ou deixou-a à porta do templo por muito pesar em seu corpo faminto?

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AUSÊNCIA PRESENTE A grama cresceu: meus traços digitais apagou do jardim. Um inverno passou: plantou pelos cantos decadência. Bati à porta, estranha. Respondeu-me o silêncio. (Pousando em tudo pesava a minha ausência).

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À ESQUINA DO TÉDIO O meu tédio teceu sono que me esbateu e me deixa só contorno. Meus passos onde marcá-los Se aqui a rua abre os braços? Não há sinais não há placas também não tenho armadura. O meu tédio teceu sono: Quem me acordará com sinos? Quem tocará violinos?

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CANTIGA HUMILDE Eis a canção fugida do in-cantado. Tem gosto de pão Cheiro a lavado calor de mão. Que do olhar caia a poesia de nós às coisas: Segunda-feira também é dia. E noite.

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DISTÂNCIA Eras tão perto (a um metro um pulo um gesto) E eras tão distante (a um deserto a um universo um infinito) Meu silêncio despencou pedra no abismo e caiu S E C O em teu corpo estátua estrutura armadura Intransponível o perto espaço Impossível o pulo o gesto o abraço

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FLUVIAL Aquarela no Tejo: as gaivotas são o acento circunflexo da Lisboa antiga.

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LISTA PARA COMPRAR LIRISMO Neste global supermercado seria possível comprar, mesmo enlatado, um pouco de lirismo em liquidação? (Se for, segue-se a lista). Pássaros pra telhados. Rosas pra sargetas. Fontes pra pedestres. Bandas pra coretos. Laços pras meninas. Tricô pras velhinhas. (E se não for pedir demais, comprem também) para as amadas serenatas e perfumes. (Porque se elas alargaram as suas estradas não espantaram de lá os vagalumes).

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BINÓCULO Dá três passos atrás e olha o teu dia: quase sempre o que é belo só se vê à distância.

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CANTO NOVO PARA SOL ANTIGO

A evidência do sol é irresistível: a manhã é linda e não se pode dizer outra coisa mais original. Antiga frase para antigo sol. Eis um bom dia para fugir em busca de pombos e de mel, para abrir janelas de cartórios e deixar que voem para longe o mofo e os papéis. A manhã é linda para nascer naturalmente como quem acorda e para acordar com o espanto de quem nasce. Um dia impróprio para a morte porque o sol cravejou de pássaros todos os verdes mesmo o dos ciprestes nos cemitérios. A manhã é linda e não se pode dizer outra coisa. As opiniões sobre a paz mundial e os comentários sobre a poluição ficam para amanhã, quando chover. Hoje sou a incivilizada: adoro o fogo e apenas leio o rastro dos bichos e a posição dos astros.

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A INÚTIL ROMARIA Buscando mais em seu eterno engano o Homem parte em jaula por galera singrando o cósmico deserto. Sonha deixar em litorais lunares de sua condição humana o triste fardo. Estilhaça limites atmosféricos e teoremas de cronologia. E enquanto avança por mundos-fantasmas maior que a assepsia em seu batel cresce dentro de si o desengano. Regressa à Terra e, para seus iguais, bichos de carne e sangue, é triste mensageiro: não conseguiu colher entre as galáxias aquele fruto bíblico que sua esperança procurava. Aquele doce fruto inicial que o tornaria ao menos imortal.

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SOL REPOSTO No chão do parque o sol caiu: estilhaçou-se. Aves correram para o apanhar. Bicando sóis pássaros vão tecendo canções em sol que ao sol vão com(c)sertar.

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INVOCAÇÃO Vem sobre as muralhas as trevas os pântanos os templos as forcas os desertos as tábuas os códigos as insídias os punhos os chicotes as serpentes os testamentos as lesmas os calvários os lobos as fronteiras. Vem sobre todas as tempestades roxas. Vem sobre mim.

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PALAVRAS NAS AREIAS CÓSMICAS Se espaçonaves atracam em portos de tranquilidade e rastros de metal violentam estrelas em verdade em verdade vos digo: a flor persiste no ciclo da antiga noite e orvalhos lavam a terra como na madrugada do gênesis.

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VESTAL Estar à tua espera completa meus anseios mesmo que eu não fuja – vestal – do limiar do templo. O fogo arde fora de mim: eu o acendo e zelo para que não se apague. (Quem sabe se algum dia à força de fitá-lo transfigurar-me-ei em chama ou sarça?)

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POEMA DE DESPEDIDA AO QUE PARTE PARA O MUNDO Neste átrio para o mundo viste passar nove luas. Agora estás pronto e eu te digo adeus porque não poderás voltar. Aqui tens o teu farnel para a viagem. Nele eu pus tudo, sem nada esquecer: teus olhos, tuas mãos, teu cérebro. Teus nervos, teu sangue, tua vocação, teus sentimentos, tuas palavras, teu nome, tua vida inteira com atitudes a vestir em cada ocasião. Aqui tens tua bagagem. Vai devagar, sozinho, ao leme de tua nave. De ti eu me despeço: para este átrio onde nove luas passam silenciosamente não há caminho de regresso.

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TRÊS PRÉ-ACALANTOS I Dorme, meu menino, o teu sono enorme. Dorme que eu te nino em meu corpo inteiro – teu berço primeiro. Dorme, meu menino, em mim Que eu te aqueço. Dorme que ainda não é tua hora. Dorme – eu te preparo para o acordar. Dorme o teu silêncio, Logo vais chorar. II

Tempo e terra se encontram para um florescer. É fruto? É flor? É quarta lua crescente: meu filho, em meu ventre.

III Agora contemplas de tua varanda de silêncio e noite tudo o que serás. Sabes do Natal/da pedra/do fogo/da gruta/da rota/ da flauta/e do sal. E eu nada sei. Estou te dando o meu sangue e nada sei. (Perdoa-me, porque também o esquecimento do eterno ao te dar o mundo, eu te darei).

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MENSAGEM PARA UM INTELECTUAL (que encontrei numa biblioteca) Por que você tem de usar óculos que lhe engarrafam o verde-olhar? Por que o seu cabelo é tão rimado repartido ao lado esquerdo? Por que você tem de correr cem-metros-de-cultura, tão sepultado em seu paletó quadriculado? Por que não foge, pulando a janela, com um assobio dentro de um sorriso liberto da gravata e de juízo? Por que não vai à procura da chuva Para fazer do peso dos ensaios barcos de papel bem navegantes? Por que não desce dos grossos volumes da alta filosofia para rever uma qualquer Maria antes da primavera agonizar no quintal e se tornar cinzento o azul-real?

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COMBOIO Mesmo partida comboio infatigável que sou dou-me partida cada manhã de novo nova Atrelo minhas carruagens todas e ao peso de tantas sigo nos carris tingidos de meu sangue cuspindo-me fogo em troca furiosos por minha correria que os desgasta Pelas janelas fogem árvores irrecuperáveis adeuses ficando nas campinas Avanço cancelas atravesso túneis cegos e vou engolindo minha estrada de ferro que me engole também e cada vez mais perto fico e longe resto Todos os meus lugares foram reservados para ti e apenas esperam que irrompas por meu vazio corredor passageiro do acaso clandestino sem bilhete sem bagagem

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Contudo Todavia No entanto conjunções adversativas Não te encontro entre tantos com tudo em toda a via

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DOIS SALMOS 1. Armamos nossa tenda na linha do horizonte E repousar um no outro nos foi dado. 2. E as coisas menores se transfiguram E os dias rasos se fizeram vastos e fundos.

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PALAVRAS-SANGUE

Enlouqueci de vez quando acordei com o vosso cantochão de lúcidos conjugando o verbo matar em todos os modos tempos e vozes. Por isso, não adianta se degolaram as gaivotas se esmagaram rosas com botas se queimaram as estrelas se explodiram os navios. Não adianta sobre mim estar passando esse tropel de apocalipse. Degolar, esmagar, queimar, explodir matar – não adianta. Já disse que enlouqueci definitivamente e em minha insensatez consegui reter o voo das gaivotas, o perfume das rosas, o pó dourado das estrelas e as rotas dos navios. De resto, as palavras substituíram meu sangue nas veias. E no meu horto agonizo suando palavras por todos os poros. (Só poderão calar-me se me fizerem o que fizeram às gaivotas. Caso contrário, enquanto me deixarem, louca e mansa, vagueando em meio às intempéries, seguirei cantando, compulsoriamente. Cantando, aconteça o que acontecer).

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ELEGIA A noite do menino teve fim quando a madrugada soprou as estrelas. Não chorem pelo que morreu hoje: o menino partiu ao colo da estrela d’álva, escutando o acalanto sem pausa. Não chorem pelo anjo alforriado. O seu dormir não está limitado pelo choro das velas nem a sua pureza pelo branco das flores.

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RECIFE, SEIS HORAS DA TARDE Os que se retornam e vão na calçada desde já tomando com o pão que levam o café de casa. Os que se retomam e vão na calçada cigarros em brasa transmitindo almas (sinais de fumaça de náufragos místicos, vulcões planejados queimando os demais, cigarros-faróis de rochas desertas) – estes, que retornam, no gelo estatístico que algarismos são? O que se regressa e vai na calçada com um assobio e nada para casa deve ser o ponto da cifra oval. (Eis porque tão leve, ou transbordaria).

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HISTÓRIA DE NATAL Com alvo cendal, Maria coberta. “Acorda, Maria” – José a desperta. O burrinho-monge paciente aguarda. “Acorda burrinho” – José o encilha. As heras e o musgo lhe arrancam do alforje. Põem-se a caminho, Maria e José. Maria, no burro. O esposo, a pé. Procuram um longe para descansar. (Há tantos natais procuram um longe!) Um Deus quer nascer e não há lugar. Seguem os viageiros Maria e José. Ela vai no burro. Ele vai a pé. Outra vez a gruta emerge e degela. Os pastores – cândidos – ocupam nos montes o lugar de sempre: à espera do anjo que desce da estrela... Os homens fecharam as portas do mundo. Um Deus quer nascer e não há lugar. O boi, fatalista, junto à manjedoura. Sempre anfitrião, continua à espera. Com alvo cendal, Maria coberta. “Acorda, Maria” – José a desperta. Olham a manjedoura Maria e José. Maria deitada e o seu filho ao pé.

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ANGÚSTIA AZUL Ligo a tevê na tomada do mundo e fico soterrada em meu sofá ao peso dos escombros de todos os conflitos da humanidade. Gritar por socorro? Para quê? Se moro sozinha num edifício de sessenta e quatro apartamentos de gente civilizada cuja elegância é manter distância. Arrasto-me à varanda (que dá para o mar). Porém o mar se retorce obstinadamente na estrutura líquida que vai e vem, exata. Então procuro os astros: quem sabe, em seus quadrantes, onde são maestros dos destinos me ouvirão? Porém a noite, sinistra, engoliu as estrelas e ficou redonda impenetrável adormecida e farta. Volto à tevê, o exílio certo para fugas de inquietações vivenciais. De fato: descubro que não há mais conflitos. Tudo bem, graças a Deus! Posso dormir em lençóis de veludo. No écran luminoso A humanidade está em paz, fuma cigarros extra-longos, com filtro e sopra no ar toda sua angústia azul resignada.

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ODE TELÚRICA Dormindo, aí estás, ó Terra. Antiga e tão mística com uma semente em teu bojo pronta a florir. Amanhã uma flor a mais estará nascendo e tu que a modelaste nas trevas mornas do teu ventre vais perdê-la para o sol que a creste ou para a mão que a decepe.

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CANTO NEGRO DE ADOLESCENTES Nos fios de milhares de guitarras corre a alta-tensão de nossos gritos. À fogueira lançamos harpas órgãos pianos violinos. Pare tudo e morra o tempo: as portas do mundo estalaram de alto a baixo batendo asas o contido o falso o pré-concebido. Roubamos as navalhas dos barbeiros e com elas descascamos a vida qual uma laranja e a deixamos desnuda.

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UNIDADE H Qual hidra sinistra tomando espessura em seu calabouço indócil, aguarda, que a estourem no espaço. Do pânico, em esboço, carrasco sem peias vai asfixiar em pó de segundo o grito do mundo. Os homens diversos difusos dispersos na explosão total unidos serão. E o planeta em chamas rolando nos breus se mutilar astros que importará? (Alguma coisa há de importar no silente conjunto amalgamado onde nem mesmo o soluço de um poeta há de restar?)

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DEFINIÇÃO DE LIBERDADE Vim com a primeira maré de sizígia quando o oceano transbordou de sua orla. Falei quando os vulcões jorraram das entranhas da terra. Rompi cadeias quando os meteoros caíram dos espaços e a brisa se enfureceu desgrenhada. Existo em tempo de rebeldia. Meu canto é o dos elementos indomáveis e me visto das cores da aurora boreal.

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TEMA LUNAR Uma nuvem matou a lua que eu via desta janela. Noutros alpendres plenamente cheia ela continua.

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CONFISSÃO Não tombo em charcos de tédio. Não toco réquiens de morte. Olvidei do medo as trevas trilhos rotas vultos gestos gritos brechas e das setas o veneno. Escondi as cicatrizes das chagas que estão saradas. Sim, está chovendo. Todavia não usarei o cenário para queixar-me da vida. Tampouco me esconderei atrás das portas esgravatando com as unhas o sujo das paredes.

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SER E ESTAR Abismo de silêncio e nele – exata – sou. Desencontro de vozes e nele – atônita – estou.

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CONCEITO DE FELICIDADE Felicidade não é o pássaro manso que venha pousar no parapeito com asas definidas, voo único, que eu engaiole para ti. Não é música em semibreves, compasso quaternário, título ajustado, opus tal, que eu toque agora, bem ou mal. Nem lágrima chorada com determinismo em estojo de veludo. Não é abismo que repita ecos Não é riso gravado em pista um. Não é este segundo (que eu faria prisioneiro se parasse o relógio?) Nem é o minuto de mais tarde. Não é a palavra “felicidade” datilografada, urgentemente, em telegrama de “parabéns a você”. Felicidade será aquele até que enfim do pano cair. Nos bastidores estarei consciente, que meu personagem, mesmo pequeno, completou a peça para que vim.

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CANÇÃO DE AMOR Todas as metafísicas pairam em teu olhar onde mergulho ó meu amor de hoje e de outro dia. Todos os infinitos param no teu olhar onde mergulho, ó meu amor, instante que o tempo feroz não esvazia.

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FIOS ELÉTRICOS Caminhos de pássaros. Pouso de chuvas. Túneis de vozes. Rios de luz. Esticados paralelos: os fios elétricos são os nervos do mundo.

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IMPROVISO NO ESCURO O negrume que ficou em meu quarto de janelas fechadas para a lua faz-me fantasma. A escuridão desintegrou meu corpo: sou unicamente pensamento esfarrapado pelos cães noturnos.

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DIA LOUCO O dia enlouqueceu: rindo em sol ficou à chuva deixando-se molhar com alheamento.

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LIBERT/AÇÃO Se fecho a porta é que estou liberta e eu liberta aprisiono o mundo para soltá-lo depois de amanhã. Eis a minha poesia: Ressuscitar o que me foi dado e desdobrá-lo para novo olhar.

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Desenho de capa e ilustrações de MARCOS CORDEIRO

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MARIA DE LOURDES HORTAS

G I E S T A S

EDIÇÕES PIRATA Recife - 1980

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MARIA DE LOURDES HORTAS: A DELICADEZA TECIDA

Jaci Bezerra

Maria de Lourdes Hortas desabotoou nas hastes do mundo em São Vicente da Beira, Portugal, uma aldeia que, segundo seu coração, foi inventada e construída com as nuvens da infância, sol, pássaros, flores. É incandescente como os fados que habitam a madeira e o arame das guitarras. Graudinha, depois de acender o diamante dos olhos na lírica portuguesa e outras líricas, transitando, curiosa e insone, por autores e livros, arejados, uns, nem sempre arejados, outros, entregou-se ao ofício de descobrir e semear encantos. Assim, debulhando a espiga da poesia, plantou dois livros. No primeiro, Aromas da Infância, tricoteou, consultando o coração e as lembranças, ponto a ponto, com inocência de menina e sortilégio de bruxa, o mundo de sua infância portuguesa: casas, paisagens, personagens, tudo. No segundo, Fio de Lã, aposentadas, possivelmente, as sandálias da adolescência, teceu um fio de prata e seda e, como nas histórias de fada, desceu do alto de invisíveis torres para deslumbrar-se com o resplendor do nosso sol maduro e tropical. Proprietária de duas pátrias, costurou, nesse livro, as paisagens de dois universos, o Português e o Brasileiro, já seduzida, porém, pela terra que amorenou o seu rubro coração. No rastro de sua vida-viageira, doce e femininamente plantou estes ramos de Giestas, em que sua voz, mais do que os olhos da atenção podem perceber nos seus livros anteriores, dói como o som dos cristais da delicadeza. Talvez porque ela tenha ceifado e atado em molhos as horas destes dias, e para plantá-los tenha afiado a adaga que escolheu: a palavra. Nos poemas tecidos neste livro, Maria de Lourdes Hortas dispensou as filigranas do acessório, fixando, apenas, as labaredas das suas emoções. Os versos desabrocham despojados neste canteiro de luz e, assim despojados, mas úmidos de magia e vida, acampam nas várzeas da nossa sensibilidade e aí permanecem, luminosos, iguais àquela tocha que “Arde/na cave/da minha precária/eternidade/uma tocha/arde”. Ou nos pedem silêncio, com dedos de vento e brisa, nos chamando para ouvir “as rosas/que me deu meu amor/e se abrem/agora”.

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Pessoalmente, não tenho dúvidas de que estou diante de uma poesia tocada pela encantação. Maria de Lourdes Hortas transfigura o amor e as lembranças com a delicadeza de que só são capazes as grandes poetisas. Por isso mesmo, tenho certeza de que ela é uma daquelas estrelas que, acudindo aos mágicos chamados, “se foram pelos campos/virando pirilampos”.

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A Osman Lins,

que me emprestou as Cartas a um jovem poeta, de Rilke,

quando eu tinha dezesseis anos.

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“Como contigo

eu chego a mim!”

Juan Ramon Jiménez

“Eis as horas em que a mim me encontro”.

Rainer Maria Rilke

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SIM CEIFEI E ATEI EM MOLHOS AS HORAS DESTE DIA. MINHA ADAGA: A PALAVRA.

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Arde na cave da minha precária eternidade uma tocha arde

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Um dia a mais e sua íngreme escalada. Um dia: montanha escarpada.

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Nem asas nem folhagens espreitam das ogivas apenas réstias se escoam pelas frestas Minha voz rouca emprestei à noite: sou eu a ventania uivando sobre o mundo

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Choro à beira-mar: choro choro tanto que se não houvesse um mar onde está um mar far-se-ia de todo este pranto.

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Deposta na profunda escuridade do mar alto sinto minha boca até o céu plena de areia

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Bruxo: em teu mirar bruxoleavam fogueiras alumiando a praia tua boca onde transbordava tua alma oceano Na praia à luz das fogueiras extasiada colhi tuas palavras de seivas tão doces e tão amargas como ervas molhadas por orvalhos e vagas

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Encantador de pássaros e serpentes encantador de instantes: desvela-me o caminho para a fonte de (m)águas que ouvi rumorejar atrás do teu semblante

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Duende, é teu coração que escuto quando tocas tua flauta de prata e pranto? Duende, é tua flauta de prata e pranto que ouço quando tocas meu coração?

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Naquela noite de brisa pluvial eras o interior de um astro o fundo de um poço a melodia ecoando dentro de um búzio e eras de mim mesma o rastro

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Quando a tua mão pousou sobre a minha mão nesse rastro de ave nesse peso de folha eternizou-se o instante

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Estou ouvindo as rosas que me deu meu amor e se abrem agora

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Ó meu amor, faz-me ouvir, apenas. Sê tu a minha boca.

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Não gritarei ao mundo que te amo. Nem falarei do silêncio que se fez quando terra e água se identificaram.

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Deixa as estrelas quietas e o seu olhar de metal. E que as rosas continuem o seu ciclo vegetal. Atrás de ti fecha a porta, que a terra espere, lá fora. Aqui é o nosso amor aqui o tempo sem horas. Dispo o tédio: fecha a porta. Que a terra espere, lá fora. Que o mundo se vá embora.

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O orvalho desta rosa encarnada que sou quando me desfolhas e enlanguesces é a úmida certeza que te dou do prazer que em mim teces.

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Somente naquela noite pude compreender a grandeza da vida menor: debruçada à janela da cozinha vi nitidamente e pela primeira vez como eram lindas as janelas alheias iluminadas – seu brilho multiplicando as estrelas e aquecendo a escuridão da noite gelada. Havia também o cheiro da sopa que eu fiz. Meu coração floria. Eu estava de avental e sentia-me profundamente comovida por estar à tua espera.

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Nesta vida viageira meu comboio faz uma curva-regresso: não desci nesta estação do outono que vou pisando pelas calçadas do Tejo. Aqui já não me revejo: Esta cidade é de outrem o meu país é o de ontem. Está marcada a passagem de volta àquela estação cálida onde me deixei: a terra que amorenou o meu rubro coração.

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De há muito emigraram as andorinhas e cegonhas fugiram aos vendavais e o aroma dos pessegueiros nos quintais mudou-se no cítrico olor a nunca mais. De há muito o cheiro das maçãs a cor dos morangos e os arabescos do sol foram tragados pelo tempo. E agora o que há para dizer, poeta, se é tão nítida a inclemência do regresso?

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Bruxas à beira do lume sentadinhas a fiar os linhos brancos do tempo: os laranjais davam flor cães rasgavam o luar a vida semi-desperta a madrugada entreaberta os pinhais eram macios cães rasgavam o luar Bruxas à beira do lume sentadinhas a fiar

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CANÇÃO DE VOLTA À ALDEIA Enluaraste meu caminho de regresso às urzes e giestas. Me enluaraste a vereda onde os grilos continuam a tocar seus realejos entre a relva de seda. Ensolaraste o moinho cuja roda Moía eternas águas rendilhadas. Orvalhaste as lajes alcatifadas de musgos – passagem para a ribeira transparente de areias cintilantes seixos lavados peixes fosforescentes. Me perseguistes entre os trigais macios. Devolveste o aroma aos roseirais bravios. E as campainhas de nosso riso claro ergueram revoadas de pardais em fuga para a quinta encantada onde o pavão abria em leque sua cauda. Pousaste andorinhas Em meus beirais. Encontraste o trevo Oculto nos paúis.

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Talhaste uma concha de cortiça para bebermos água daquela fonte que pranteia, incessante, sua mágoa nos ombros do monte. Assustaste as abelhas e seu zumbido, centelhas de sol crepitando em meu ouvido. Me enfeitaste com brincos de cerejas E em meu chapéu prendeste margaridas.

Estilhaçaste o rutilante espelho do poente ao tocares o sino da minha aldeia: e as estrelas acudindo ao teu chamado se foram espalhando pelos campos virando pirilampos.

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BILHETE PARA EXPLICAR PORQUE ORGANIZEI ESTE LIVRO Povo miúdo: Vocês já se deram conta de que o homem é o único bicho que fala? Parece bobagem, mas pensem bem: a palavra é muito importante. É através dela que a gente se comunica e trás para fora tudo o que acontece dentro do nosso pensamento. Graças à palavra é possível saber hoje o que pensava o homem de há muitos séculos atrás. E, daqui a muitos e muitos anos, ainda se vai saber o que estavam pensando as pessoas deste século. Compreendem, agora, por que os livros são fundamentais? De repente, lendo, vocês descobrem que o menino de uma época muito remota, em que não havia avião, nem foguete, tinha tristezas e alegrias igualzinhas às suas – não é maravilhoso? Estou escrevendo todas estas coisas para chegar ao ponto de dizer a vocês que a poesia é uma coisa muito séria. Vai ver, até aqui, vocês estavam achando que tudo não passava de joguinhos de palavras, para rimar pão com feijão, mão com coração, sabão com balão, passarinho com ninho. Mas agora vocês já estão vendo que não é nada disso. E depois de lerem este livro hão de concluir que poesia é, acima de tudo, o sentimento da gente gravado para sempre. É um momento que se guarda. É a resposta. É a interrogação. É o olhar das pessoas que, mesmo depois de terem crescido, ainda querem saber qual é a cor da onda por dentro.

P.S. – Este livro foi organizado por encomenda de Márcia e Gustavo, meus filhos, e de Fábio, meu sobrinho. Vai, também, para Gabriel e Juliana, irmãos de Fábio. E, como não poderia deixar de ser, para todo o povo miúdo deste Brasil. Com um beijo da

Lourdinha.

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A COR DA ONDA POR DENTRO (para o Guga) De que cor é a cor da onda por dentro? Pergunta ao Guga. Ele sabe, pois já fez essa pesquisa uma vez. E depois de mergulhar com os olhos bem abertos o Guga teve a certeza: a cor da onda por dentro não é branca nem cinzenta nem azul nem amarela. Sabe qual é a cor dela? é verde da cor da menta e arde que nem pimenta.

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A COR DA ONDA POR DENTRO OS POETAS DA ANTOLOGIA ALBERTO CUNHA MELO (Recife, PE) ANTONIO DE CAMPOS (Olinda, PE) AKEMI WAKI (São Paulo, SP) CELINA FERREIRA (Belo Horizonte, MG) CELINA DE HOLANDA (Recife, PE) CLEONICE RAINHO (Juiz de Fora, MG) CHICO BEZERRA (Fortaleza, CE) ELIZABETH HAZIN (Recife, PE) ELZA BEATRIZ (Belo Horizonte, MG) JACI BEZERRA (Recife, PE) JOÃO PROTETI (Campinas, SP) JOSÉ RODRIGUES DE PAIVA (Portugal / Brasil) JÚLIA LEMOS (Recife, PE) KÁTIA BENTO (Rio de Janeiro, RJ) LARA DE LEMOS (Nova Friburgo, RJ) LEILA MÍCCOLIS (Rio de Janeiro, RJ) LÉLIA COELHO FROTA (Rio de Janeiro, RJ) LUIZ SÉRGIO QUARTO (Vitória, ES) MARCUS ACCIOLY (Olinda, PE) MARIA DO CARMO FERREIRA (Niterói, RJ)) MARIA DE LOURDES HORTAS (Portugal / Brasil) MARIA DA PAZ RIBEIRO DANTAS (Esperança, PB) MYRIAM BRINDEIRO (Recife, PE) PEDRO AMÉRICO DE FARIAS (Ouricuri, PE) PAULO BANDEIRA DA CRUZ (Olinda, PE) PAULO GUSTAVO (Recife, PE) ROSA MARIA DOS SANTOS (Rio de Janeiro, RJ) STELLA LEONARDOS (Rio de Janeiro, RJ) STELA MARIS (Brasília, DF) YÊDA SCHMALTZ (Goiânia, GO)

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ESCREVENDO COM O CORAÇÃO Eugênia Menezes

Quem acompanha a caminhada poética de Maria de Lourdes Hortas desde o lançamento de seus dois primeiros livros, Aromas da Infância (Edições Panorama, Lisboa, 1965) e Fio de Lã (Gabinete Português de Leitura, Recife, 1979), certamente se surpreende com as transformações por que passou a sua poesia. Não se trata de uma mudança radical, nem de simples amadurecimento formal. Certos aspectos, como a preocupação com a morte, o amor, a vida, a beleza, vão-se entremeando ao longo de seus livros, como se ela os rebordasse continuamente. A consciência do ser em permanente busca de harmonia com o universo do qual é fragmento, está presente em sua obra marcada pelo telúrico. Mas os livros iniciais apresentam uma particularidade, na medida em que Maria de Lourdes Hortas confere importância singular ao ato de olhar. Ela observa, vê e relata o cotidiano , em tom saudosista, ao longo da diversidade temática desenvolvida. E o faz tocada por sua delicada sensibilidade, mas as emoções parecem exteriores, à margem de sua pessoa.

Seu livro Giestas (Edições Pirata, Recife, 1980), representa um marco em seu trabalho. Nele, a autora não se atribui apenas o ofício de narrar poeticamente, mas incorpora ao que escreve o pulsar de sua própria vida, como se ela tivesse de repente aprendido a enxergar com o coração.

Este fato confere nova dimensão à sua poesia – como se Maria de Lourdes Hortas passasse de expectadora a protagonista – e, neste livro, Flauta e Gesto, vem reforçada a conotação forte e intimista de seu trabalho mais recente. “E por estar assim/ tão vasta e tão ardente/ mastigo a terra/ e ao toque dos meus dentes/ brotam os rios/ rebentam as sementes”. De seu discurso, agora menos prolixo, emerge um canto denso e contundente, que consegue conferir à solidão uma dignidade inusitada: “Esta noite valeu por muitas eras/ e acordo cinza que é a cor mais triste:/ arderam-me as estrelas até as cinzas/ e como aqui não eras não as viste”.

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É um livro substancialmente belo, no qual a autora conseguiu incorporar seu sangue e sua alma. “Sou a minha linguagem:/ nela venho e nela vem/ refletida esta paisagem/ que contenho e me contém”.

Recife, março de 1983.

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maria de lourdes hortas

flauta e gesto

Recife – 1983.

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A Maria Amélia Hortas,

minha mãe

Para Márcia e Gustavo

meus filhos

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...Dulcíssima harmonia, sopro e gesto ...num timbre momentâneo e sobreposto ...

JORGE DE SENA

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VARIAÇÕES EM MI(M) MENOR

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VOZES aladas, quando se ataram as mãos que em brônzeos signos as retinham aos quatro ventos se escancararam e hoje as colho porque estou na vinha. E na videira onde passo agora vindimo o sangue que foi semeado: em minha voz se recomeça a aurora e por meu canto regressa o passado. E quando as mãos se me pousarem, quedas, sob a adaga que desatará da minha voz os signos que lês em tua vinha me ouvirás, alada, flama ateando a que em ti arderá vinho que somos, um de cada vez.

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AO LEME deste barco dia velejo minha vida romaria rumo ao país sem geografia.

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QUANDO as abelhas dormem roubo mel e o sorvo muito longe da colmeia depois fico tocando realejo cigarra em lua cheia.

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EM TUAS vias veias abertas ó terra me semeio. Por minhas veias vias abertas ó terra hão de passar as tuas flores.

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HOJE aqui estou amanhã vou somar-me à transparência dos que ontem aqui estiveram e hoje são ausência.

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COISAS antigas fósseis guardados em pupilas mortas são as mesmas coisas re/fletidas miragens novas em pupilas vivas.

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SOU a minha linguagem: nela venho e nela vem refletida esta paisagem que contenho e me contém.

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TESTEMUNHO este ruído e só este apreendido entre as limitações do meu ouvido.

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EM TELAS de silêncio bordo a fumo inconsútil estrelas onde arde minha tristeza inútil.

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DISPO a armadura cobre amarro o cavalo prata deixo o castelo pedra vagueio folha pela floresta negra

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INCOERCÍVEIS todas as horas sombras deslizando vão pelas alfombras e nas aléias passam irreversíveis à revelia de nós frementes ervas. Assim como reter o agora breve? A vida inteira neve irá se derreter e cada indício de mim se há de perder em todas as aléias e nas alfombras onde ora passo com estas horas, sombras.

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PÁTIOS, catedrais e lampiões e aos portais os vultos dos cães sombras coloniais. Qual dessas imagens transitórias do humano instante inda tem memória? A dupla sombra que, entrelaçada, uma só alma andou na calçada?

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OUTRO OLHAR. Outro nome. Outra mão. Outro mar. Outra areia. Outra porta. Outro vento. Outra mágoa. Outra canção. Outra luz. Outra sombra. Outra hora morta.

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EM CADA MORTO que morreu, morri. Em cada voz que se calou, calei. E tantas vezes já me despedi de tanto ver morrer tanto morri que, a morrer, já me habituei.

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DENTRO da casa ouço arfando as águas da noite: ainda não é hoje que me lavarão mancha pequena sobre o mosaico deste chão.

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SOLOS EM GUITARRA

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COLHE-ME, vento que é o teu fado papoula rubra ardo. Ser flama breve é o meu fado se não me colhes ardo. E se não vens me queimo e ardo. Como deter o fado ?

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ACENDI-ME em fogueira e te invoquei, ó deus do vento, e ao teu redor bailei. Bailei, bailei bailei, bailei. E mesmo em chamas não te chamei Bailei, bailei bailei em vão: eras de vento, impossessão.

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AGORA não preciso vigiar-te, hora de florir o cometa no céu: na terra que me veste nenhuma hora existe o tempo se ilimita e só me ensaio morta.

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RECUSO a paz porque prefiro a vida enquanto a posso haurir. O meu corpo gravita e os pés chorando sangue rasgam as pedras. Numa hás de florir cometa.

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ALGUMA praia há que domar possa marés que a vestem ou a deixam nua? Do mar que a invade, o sal que a adoça? Então como ousar posso não ser tua?

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AGUDOS ventos a espalhar meus ais de tantas mágoas pela praia afora agudos ventos a espalhar meu pranto que por ser tanto nem o mar o afoga.

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OUTRA VEZ esta navalha me trespassa. Urtigas outra vez nascem de mim. Outra vez antes do pleno amor o pleno fim.

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ONTEM à noite, quando o silêncio do meu amado me disse que não pensei na morte, me vi enforcada em cordas de guitarra, ou violão. Por mim gritei, que uma andorinha sangrava, morta, em meu coração. Em suas penas morria meu sonho de vôo findo, de asas em vão. Fui enterrá-lo sob a laje, em sono onde semeio outra ilusão. E me dei conta que já era outono um prévio-inverno, um findo verão. Assim varrendo as folhas caídas de minha vida que, com tantas mortes, me pesa com o peso de cem vidas, me orvalhei do meu próprio pranto até o amanhecer, nublado estio.

Voltei a mim, e em mim estava frio fiz um café e me sentei num canto. Devagarinho fui bebendo o espanto de me aquecer com a solidão o acorde manso, de ritmo constante, em mim batendo, firme, um coração.

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NAS HORAS lancinantes e escuras quando os vulcões explodem em teu peito sempre me encontrarás chuva atravessando o enigma das trevas até as raízes das folhagens. No tempo umbroso em que os pássaros se ocultam no mistério dos arvoredos sempre me encontrarás

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silêncio para ouvir o arfar das estrelas seu orgasmo-sereno molhando a relva. Na fera solidão da noite espessa quando os silvedos da agonia rasgam tuas veias sempre me encontrarás regaço quente para acalentar tuas mágoas até o sono. Na ventania do leste que não apaga teu incendido sonho sempre me encontrarás

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avivando as fagulhas até esmaltá-las nas galáxias. Nessas horas subterrâneas em que o peso do mundo inteiro pesa sobre o teu coração sempre me encontrarás penumbra alargando os contornos do teu corpo. Nas vezes em que, sôfrego, a vida te parece tão pequena e estreita sempre me encontrarás

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rebentando as represas para que a vida seja em tuas veias como um barco por rios. Na magia lunar unificando todos os caminhos em alamedas claras sempre me encontrarás fonte entornando música sobre a noite até a aurora.

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ESTE VENTO é teu silêncio de urtigas açoitando-me, nua na estrada. Este vento és tu em revoada espalhando na fria madrugada as cinzas da minhalma incendiada.

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PRELÚDIOS

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TENSO PORTAL de jasmins umbral sombrio em silêncio e sem peso o chão acaricio.

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ESTA MANHÃ afago tudo inclusive as pedras sou a mãe do dia aurora no horizonte solferina.

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PORQUE sou de terra preciso de chuva e para ser verde de ti tenho sede.

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FELINA por te amar esta vertigem se espreguiça virgem em meu corpo lunar.

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E POR ESTAR densa e túmida plena de amor e alegria explodi umedecendo o largo corpo do dia.

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QUE importa se nada sei de ti? Gosto tanto do sol e nada sei de astronomia. Amo tanto o mar E nada sei de oceanografia.

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POR NÃO ter sido rosa esta selva agoniza e em espinhos se cristaliza.

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Ó AMADO que partes sem ter vindo eu despida de ti fico de luto ó amado e agora o meu destino que faço deste amor absoluto? Que faço deste amor absoluto ó amado e agora o meu destino? Eu despida de ti fico de luto ó amado que partes sem ter vindo.

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ESTAVAS luminoso naquele dia: havias recolhido o sol dentro de ti e por isso chovia.

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OS VESTÍGIOS de ti, incandescendo, são na desordem desta casa fria acordes de um órgão estremecendo todas as naves da catedral vazia.

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ESTA NOITE valeu por muitas eras e acordo cinza que é a cor mais triste: arderam-me as estrelas até às cinzas e como aqui não eras não as viste.

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CANÇÕES

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A CANÇÃO da minha vida um dia ainda irás ler versos que entre as estrelas um a um vais acender. Então estarei bem longe escondida nos abismos então talvez me procures entre os teus mortos queridos e batas à minha porta sob as flores do jardim e eu surja, como gostas, com grinalda de jasmim em meu vestido de sombra um ramalhar de cetim as negras tranças de seda as mãos alvas de alfenim, virei tão branca e tão fluída como a outra amada vinha dos meus olhos de cisternas hão de fugir andorinhas. Fria e luminescente igual a um rio de prata hei de ser tão convincente como a outra, a amada morta. Mas no cristal apagado onde foi meu coração lê teu nome tatuado fonte da minha canção.

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A QUE na paisagem do teu coração se sonhou, ardendo pleno sol-verão na tua paisagem e por tua mão se acendeu, ardendo boreal-paixao

Porém a paisagem do teu coração se gelou, ardendo polar-solidão. E nessa paisagem mais um sol, em vão, se cumpriu, ardendo mais uma estação.

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O ESPELHO da cisterna te dirá: esfinge, foste amado. Longe estará a que, por ter riscado tua face de bronze indecifrado, te fitará eterna das águas do passado.

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Ó PEDRAS de um rio que o tempo infiltrais procuro um menino vede se mo dais. Procuro um menino que se viu no rio quando o coração não lhe estava frio. Ó pedras, ó rio, onde esse menino? Quem, do encantamento, lhe cortou o fio? Sua roupa orvalhada sua nau de lata alma em madrugada peixinhos de prata? Não volta o menino nas voltas do rio em mim que o procuro permanece o estio. Ó pedras lavadas que o tempo levais procuro um menino que não volta mais.

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ESTA RIBEIRA que sou de colina em colina a ti, meu rio, chegou afluentando em surdina. Correntes acorrentadas desaguaremos no mar: água una, misturada quem poderá separar?

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O DESTINO da margem é ser no rio reflexo de um instante por isso não te chamo nem abrando o teu curso ondulante. E assim como não me contentar em ser mansa paisagem de ti meu rio se buscando o mar me beijas de passagem?

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QUANDO minha paixão está crescente não a posso conter porque sou fonte: de mim transborda a vida e a alba se verte sobre a branca página do horizonte.

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QUANDO te afaga o meu olhar se torna a fonte de onde se entorna a minha alma. Quando me afaga o teu olhar me torna a ânfora onde se entorna a tua alma.

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UM REI que veio do mar com seu manto de corais e um bando de gaivotas nas ondas do seu olhar. Um rei de todos os mares com segredos e magias fazendo arder numa noite tantos sóis de meios-dias que, antes desse rei mago, desde a Alba anoiteciam.

Este mago rei do irreal emergiu do rio da distância atravessando a ponte do arco-íris – arco de encanto sobre o rio-infância. E por ser mago do bolso lhe espreita o coração, canário real olhando em torno ramagem me encontra para mim voa e em mim se deita.

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BARCAROLAS

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DE CHUVA quero esta cantiga mansa por ti deslize como desliza a dança da chuva pelo sonho da infância. De chuva quero esta cantiga terna em ti se empoce como se guarda eterna a chuva no escuro da cisterna.

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À MINHA BEIRA, menino desamarra tuas botas e ao tirá-las descalça também as antigas rotas. Desata dos pés o mundo descalço vem caminhar em mim que sou claro rio onde te podes mirar. Cantante água, num sino de flor, tu bebes, menino o meu silente e profundo coração de arroio fundo. Água para te lavar dourado arroio de mel em mim põe a navegar tua frota de papel. Ai que te posso levar onde o mundo não tem mágoa ai que te posso aquecer com os fios da minha água Ai que te posso abrigar Na gruta mais escondida ai que te posso esconder onde começou a vida.

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Em mim que sou o teu leito abandona-te de bruços e às queixas deste regato vem misturar teus soluços. Imprime tua passagem nos limos da minha margem que o teu rastro acaricio com beijos mansos de rio. Cantante água, um sino, cantarei a te chamar até que voltes, menino, dentro de mim caminhar.

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E POR estar assim tão vasta e tão ardente mastigo a terra e ao toque dos meus dentes brotam os rios rebentam as sementes.

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PENSEI que pousarias a bagagem amarrando o cavalo na cocheira corri ao prado trouxe margaridas varri o rosmaninho da lareira. E fiz a cama com lençóis de linho tirei do armário rendas e faianças vesti-me toda em seda e esperanças verti em duas taças doce vinho. Porém quando as estrelas se apagaram já te encontrei distante da bagagem e tuas emoções não me tocaram. A noite se abrasava na lareira quando foste outra vez para a viagem desatando o cavalo da cocheira.

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DENTRO do pátio no vão da porta me silhueto sombra à espera tão branda e branca. Sobre o sigilo da noite mansa um sino toca anunciando a tua volta.

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DAS ROSAS que te dei entrelaçadas temestes sebes espinhos raízes. Porém das rosas só entrelacei as pétalas a fragrância os matizes.

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Pois antes de te dar ó meu amor as rosas tantas rosas que te dei um a um os espinhos lhes cortei e, assim, das rosas colhi só eu a dor.

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SEMPRE que o amado longe silencia a vida arrefece e se planicia. Então a amada também silencia porque sem o amado seu canto fenece.

Mas se o amado perto se anuncia a vida se aquece e se oceania. Então a amada é toda poesia porque é o amado quem lha oferece.

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A MENINA que ele vê é feita dele chegar a veste de luz que usa é a luz dele a olhar. Alguém viu essa menina antes do amado a amar? Suas cantigas e aroma fonte do seu coração suas rosas suas pombas todas de seda e algodão as abelhas dos seus olhos e o sorriso lunar nascem quando ele as chama são feitos dele chegar. Alguém viu essa menina? antes do amado a amar?

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Nota Explicativa da Autora Em RELÓGIO D’ÁGUA estão reunidos os livros que publiquei de 1965 a 1985. Foi uma espécie de celebração de 20 anos de poesia. No entanto, “Cartas do Deserto”, “Cancioneiro das Chuvas” e “Música dos Cravos” eram pequenos conjuntos de poemas inéditos que incluí na abertura do livro. Nesta reunião da minha poesia, estão aqui apenas os poemas destes títulos referidos que fazem parte de RELÓGIO D’ÁGUA.

Maria de Lourdes Hortas (Recife, maio de 2016)

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A todos os amados dos vários tempos

deste relógio, águas tecendo o eterno amor.

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“Sua força recomeça a bater nos meus degraus

roda impelida que sou por suas águas.”

(CELINA DE HOLANDA)

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Cartas do Deserto

1985

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INVENTÁRIO Vida a fiar areias vento afiando plainas inventos, rapsódias rodopios miragens sobrepostas no granito da solidão. Inventárido : eólica erosão.

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ESPERA Violenta esta paz violeta. Pulveriza este chumbo de tristeza. Estilhaça os muros antárticos do silêncio voz que espero palavra rosa granada.

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LOUÇA PARTIDA Corredores siberianos da noite caixa tão grande para mim sozinha eu também caixa plena de palhas embalagem do vidro coração que afinal acabou por partir-se. Vitral partido um estilhaço de mim para cada lado estou lá fora nas ruas, casas, países, mares, instantes pontes dias e noites próximas e distantes tudo onde fui e andei. Que mão me recolheria toda?

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RASTROS Arma-dura esta armad’ilha de ser: pelas dunas dos dias arrasto a graVIDAde.

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OS AUTOS DO PROCESSO Acossada em abismos sem beiras esfolhada aos mil ventos errantes torturada na espera de instantes invadida por todas as fronteiras. Demolida desde os campanários afogada à margem das torrentes esquecida em câmaras flutuantes desterrada além dos calendários. Enganada em jogos malabares violada nos túneis mais silentes saqueada de pátrias e ocidentes estilhaçada pó de cristal nos ares. Arrastada por um tropel sem freio cravada por sabres bivalentes diluída em passados-presentes repartida alma cortada ao meio.

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INTERVALO Tudo já aconteceu inclusive este verso. Agora só me resta deixar-me ir na corrente do acaso até que eu própria desaconteça.

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PRISÃO PERPÉTUA Então o masculino Senhor disse: vai, Eva, e nutre a vida com o suor dos teus sonhos. Não te esqueças, mulher que inventaste o amor e isso é imperdoável.

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MONTANHISMO Via-sacra dos dias em que me escrevo pela chuva das horas fustigada ermas léguas em que procuro as frestas das escarpas na noite alcantilada.

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CHAVE Quando o medo vem tenho de acreditar, para enganá-lo que as palavras são a gênese de tudo - únicos traços para assinar o muro. E me sussurro: afinal não foi preciso ao próprio Deus dizer-se palavras para que a luz abrisse as portas do escuro?

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ENSAIO DA MORTE Ardis ocultos nas malhas de um instante cerimonial ensaio do corte que, por acaso, não se cumpriu. Sobre o abismo o filamento de seda ainda oscila.

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CACIMBAS De nenhuma casa me torno íntima de várias, mal me sento, desembarco e nas paredes, ao lhes despir os quadros ficam as chagas dos cravos que arranco. Ritual com que desabito mais um átrio de areia outra também dessas tantas cacimbas de luas cheias.

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BOLETIM METEOROLÓGICO Silêncio oscilante no extenso vazio da bruma. Nenhum rio água extinta nos lagos de areia. Calaram-se todas as chuvas rumores de correntes cristalinas sonho escoado até o pleno estio.

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AI QUEM ME DERA UMA TRISTURA ANTIGA D’antes, como dizia minha avó, tudo era diferente. Árvores de estrelas ficavam florindo estrelas no canto delas e nem se falava em astros metálicos corrupiando para atrapalhar o sossego desses quintais do céu. D’antes - e não faz muito tempo, ainda me lembro havia luas novinhas por estrear, luas novas em folha na noite e na folhinha que a gente dependurava na cozinha, além de outras luas, naturalmente: cheias, minguantes e crescentes. Pois nesse tempo sem campos de basalto sem brisas de ar condicionado sem pássaros travestidos de cigarras eletrônicos trinando dia e noite tão febris algazarras ainda se falava em pecado temia-se o inferno e o purgatório e o amor era assim um encanto-encantado, valsa, carícia sorrateira e trêmula de mãos, azul ou cor de rosa monograma bordado em linhos de noivado passeio aos domingos, bem-me-quer esfolhado bailes, luares, varandas, serenatas galopes flores secas em envelopes cartas, desmaios, frêmitos no coração amor-amor ao invés de relação. D’antes, como dizia minha avó, tudo era diferente: basta dizer que até havia gente. Por que me lembro agora de minha avó? Será mera saudade, ou já afinidade à porta do presente onde o passado finda? Ai quem me dera ainda que ela existisse. Queria perguntar-lhe como era mesmo a história do vice-rei da Índia um tal tataratio a serviço d’el rei quem sabe ela sabia

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até o endereço desse indiano paço num tempo de compasso damas de companhia saia de renda e laço morna melancolia. Ai, se Índias havia, era pra lá que eu ia. Ai quem me dera a minha fosse tristura antiga eu e a tataratia a tocar alaúde às sacadas do paço ou olhando, bem lânguidas as paisagens ao longe os nossos bastidores pousados no regaço: minha tataratia a bordar o fastio do meu tataratio que abalara para a guerra. E eu bordando em seda A tristura tão leda das flores que bordei por esse intimorato mui andarilho amado que partiu sem cuidado para além do além mar a serviço d’el(e)rei, sem data de voltar. Ai quem me dera agora estar nesses confins das Índias da avó a ouvir os flautins cimitarras, alaúdes, sem me sentir tão só. Ai quem me dera agora Andar pelas colinas tão branda e cristalina com mãos de parafina a esfolhar boninas.

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Ai, se Índias havia era pra lá que eu ia.

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RECADO DE EVA Antes que me esqueça, Adão, preciso perguntar-te: acaso conferiste, uma a uma, tuas costelas hoje pela manhã? Digo isto porque, de madrugada enquanto dormias o Criador veio e me fez de uma delas justamente aquela que ficava sob o teu coração. Para a teres de volta (e como ela te deve fazer falta) tens de me colocar inteirinha nesse lugar

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Cancioneiro das

Chuvas

1984/85

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CIRANDA Em todas as casas te procuro, Casa onde habitou a infância hora luminosa e matinal em que o galo canta e o sino toca punhados de granizo tamborilando no telhado e a silente carícia da neve pousando nos peitoris. Em todas as casas te procuro, Casa: beirais de pombas escadas de granito, vento de inverno uivando pelas frestas madrugadas de susto em que os foguetes te sacudiam, branca e recatada abadessa à esquina da rua do convento fazendo abanar os caixilhos das vidraças das janelas onde mais tarde se desfraldavam as colchas de damasco para as procissões de ver passar os anjos eu, entre eles. Em todas as praças te procuro, praça das cirandas Praça do pelourinho com a barca, o pássaro, o escudo real primeiras interrogações ao mistério do capitel. Em todos os navios te navego, Ribeira a fluir prateada sob o arco do tempo para te esfolhares na roda do moinho dentro da primavera de malmequeres quando me sentava à tua beira mordendo a cor vermelha das cerejas.

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Em todas as paisagens te procuro, aquarela de centeio e oliveiras, pinhais agrestes, ramos de giestas urzes, amoras, muros velhos de musgo e heras antigas. Em cada por-de-sol ardente vos espero Cegonhas de vôo lento e branco hóspedes de verão na torre da igreja. Em cada chafariz te procuro, Fonte explosão da vida líquidas estrelas de cristal recolhidas em meu cantarinho de zinco. Longe ficou o mundo em que a única ameaça eram os ciganos seu rufar de bombos acompanhando a evolução dos acrobatas no trapézio suspense anunciando os capítulos da história em que seria eu a trapezista. São Vicente, único país riscado a sangue no mapa das minhas lembranças tantas ruas atravessei no mundo porém as únicas que me atravessam são as tuas aldeia encravada nas serras do meu coração: ruas de São Vicente onde minha infância passou correndo com as tranças se desmanchando ao vento andorinhas emigrando sem retorno.

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MIRAGEM Do passado, heras, folhagens me espreito da aldeia moura vagando, encantada por eiras de lua-cheia. Que as clepsidras noturnas vertendo águas e ânsias não diluíram nas pedras os passos da minha infância. Toda luz, encantação de claves, pautas, colcheias à flor das águas, cantigas em canto de solidão como se, infanta, chorasse na voz de fontes antigas por serras do coração. Por trás do muro, barragem túnel de rosas, cadeia anda a menina, visagem lenda que mora na aldeia.

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PROCISSÃO Ah procissão de tantas ventanias esfolhando, uma a uma, as primaveras. Em qual delas ficaste diz-me em que dia te enraizaste com a força das heras.

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CÍRCULO A infância partida depois tudo passagem assim me leva a vida sempre numa viagem ponte para que eu volte ao eixo desse corte. Os ventos da viagem me dispersam na vida pois em cada partida só estou de passagem quem ficou nesse corte esperando que eu volte? Há um mar nesse corte que me cortou a vida me dizendo que volte ao porto da partida assim tudo é passagem à véspera da viagem. Em minha sina um corte corta a linha da vida e mesmo que eu volte resta a sina partida há cruzes na passagem na trilha da viagem. A infância que volte há de ser só passagem sonho que o sonho corte rumo a outra viagem. Não se restaura a vida que se quebra, partida.

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Minha sina, partida Se cumpre, na passagem não repousa na vida quem está de viagem. Há um doer de corte a me lembrar que volte.

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OS BASTIDORES DE PENÉLOPE Não sei se é mar o que, além, distante turvou o mar, esboço de um navio. Nem me pergunto, se aos portais do levante noivas esperam, bordando um desafio. Nem sei se é lenda isso que, de repente escuto, grave, como ouço um cantochão nada pergunto, basta saber, somente não ser a mão que aquece a tua mão. Nada pergunto, porque é uma ermida meu corpo onde se enterra a minha alma e o coração, nau sem velas, perdida vogante erra, num mar de fel e chama. Resvala a vida sob os arcos do sono coagulada na cor da indiferença. Se hoje as estrelas se matam, de abandono nada, a mim, pedra, faz qualquer diferença. Não vou matar-me, porque não sei aonde andam, perdidos, meus sete corações me dói a vida, porém a dor se esconde onde fiquei, nessas tantas versões. Não estou morta, contudo, entorpecida sob redoma de catalepsia clarins de pássaros trinam uma elegia à fera noite, devorando outro dia. Não vejo mais, como só antes via pelas janelas se escancarar a aurora. E até a lua, minguante, se extravia pelas ruínas onde só vento mora. Olho, sem ver, as fogueiras que via Soluça, longe, exausta maré-cheia. E no lugar onde a casa existia Ronda o silêncio a espalhar areia.

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DIURNA Infanta de miragens também fui Mas hoje não acendo os candelabros é diurna a certeza que sepulta as luas de que os sonhos são bordados. Desvesti-me de todas as paisagens e as atirei ao vento do desgosto desterrei flores, espantei estrelas foram-se os pássaros, um por um deposto.

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CADÊNCIAS Vens à varanda, nuvens de mil pássaros se desenlaçam de sob a folhagem: és tu, amado, que regendo espaços vestes de música a nua paisagem. Vens à varanda, me acenas, longe e uma praça nasce dos teus braços: um sino oscila cantigas de bronze sol de aleluia em meus dias baços. Enquanto a bruma, cúmplice e silente guarda a miragem onde me resguardas vens à varanda abrindo o horizonte chamas de cravos ardem, esfolhadas: és tu, amado, curva além do monte onde se ateiam minhas madrugadas.

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VERTIGEM Quando em vertigem tombo, enluecida, desço às cisternas, em seus cristais me cego por desespero a verdade nego apunhalada te apunhalo, vida. Brotam de mim espinhos que aos molhos são desatados pelas incertezas desenterradas desde as profundezas rompendo à flor das águas dos meus olhos. Punhais de amor varando esse gelado Aquário de ciúme onde o ciúme arde dentro do peito incendiado. Gritos em brasa, afagos de um cardo: Ao se cravarem no amor são vagalumes que em se apagando o deixam tatuado.

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LEVANTE Aurora só me acontece quando ao acordar contigo seja sábado ou segunda sempre há lua e é domingo áurea hora que se tece quando ao acordar contigo o levante se entumesce e põe meu corpo fremente igual a um campo de trigo.

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DENTRO DE UMA ROSA Trago no meu, teu coração guardado Como se guardam dentro de uma rosa as quatro estações que o completaram: assim, podes andar bem descuidado pois que nem aves, e nem mariposas hão de encontrá-lo aonde o semearam.

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MÚSICA DOS

CRAVOS

1984

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HERANÇA “Trago na boca o coração dos cravos” FLORBELA ESPANCA

Eis-me guitarra pela noite escura frêmitos rubros, cada nota um passo também me entrego inteira a essa tortura de tanger pranto e de lhe dar compasso. Trago na boca o coração dos cravos que me couberam como tua herança menos da cor e muito mais dos travos ardência amarga onde não há mudança. Hoje vou eu por esta sina afora plangendo as cordas que me levam presa a repetir o que disseste e dizes. Eis-me guitarra enquanto dure o agora à tua unindo a minha mágoa acesa queixa dolente de ancestrais raízes.

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ROSA-DOS-TEMPOS “O gosto que sinto em poder explodir silenciosamente”

MÁRCIA AMÉLIA HORTAS MOREIRA

Palavras que hoje esfolho às esquinas do vento hão de girar, libertas pela rosa-dos-tempos. Palavras que recolho quando eu silencio grito hão de varar distâncias notícias do instante que sou no infinito. Não ditas, mas escritas sempre as palavras voltam sonatas de silêncio que a quatro mãos se tocam. Palavras em torrente a derrubar as grades os muros e as portas e a fluir das caves que hão de gritar, rubras na espiral eterna áurea subterrânea nascente das cavernas por arcos, tantos arcos túneis e corredores enquanto a terra gire vale de chuva e flores: só a palavra escrita é realmente dita.

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TEOREMA Que nome tem o que em mim flameja Por vezes claro e tão luminoso outras, tão fundo, que se põe umbroso que nome tem, em mim, seja o que seja? Quem equaciona este teorema? Como cifrá-lo? Que signo lhe invento? Vem na cadência do tropel do vento o repetido som que o emblema? Ah fogo-fátuo, cometa em viagem alumiando nos breus do contexto os plenilúnios de outro personagem lume verbal, lanterna de romagem a projetar nas ruas do pretexto a sombra que me leva na bagagem.

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VITRAL Nestas sonatas de inverno cachoeiras pluviais pluralizam-se os eternos dilúvios conventuais: cisternas de aves retidas em claustros de pedra e sombra inventário de outra chuva que em minha chuva se alonga. Cursos d’água que reatam um a um os vendavais mantos, rendas de arrepios nos ombros das sombras nuas sobrepostas nos vitrais.

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BRISA Tangendo a harpa da fonte da monja que vaga brisa de violetas, perfume água rindo se irisa em vaga de vagalumes.

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CARROSSEL Nas fugitivas miragens do espelho de papel se sobrepõem as imagens dos enredos em tropel. Mudam só os personagens Que giram no carrossel.

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MINUETO Renascença no chafariz do claustro: concha sobre concha água sobre água contradança.

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QUANDO A SOMBRA SE ABRE Vivendo é que dormimos acordar é depois quando a sombra se abre e se finda o segredo desterro que se cumpre nesta esquina do medo.

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DOBRES Meus sinos dobram outras agonias: alheio campanário rosto vário porém os mesmos ais os mesmos dobres sinos sinas sinais mesmos calvários.

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RENOVAÇÃO É sempre o mundo que em nós principia nas fundas grutas de fontes secretas faíscam lumes de estrelas bravias deliram rosas plenamente abertas.

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MARIA DE LOURDES HORTAS

OUTRO CORPO

Recife, 1989

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Projeto Gráfico DULCE LÔBO LUIZ ARRAIS Ilustração da Capa PAULO DIAS

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ANATOMIA DE UMA POETISA: TRÊS OPINIÕES CONVERGENTES

I – COM UM BRAÇO EM CADA HEMISFÉRIO

Aricy Curvello UM TRILHO SOBRE O ATLÂNTICO Novembro de 1965, fim de tarde fria, em Lisboa. Ela caminhava apressada no calçamento antigo. Um salto de seu sapato achou de ficar preso numa das junções das pedras reboludas. Puxou-o com violência e o resultado foi a tira do calcanhar partida. Por causa do deslize na aparência pessoal, ela pensou em adiar a entrevista. Já se encontrava em frente ao endereço buscado. Travessa das Mônicas, 57. Entrou. Apresentou-se, preocupada com o sapato, escondendo um pé atrás do outro. E conheceu a grande poeta portuguesa que fora entrevistar. “... Quando saí da casa de Sophia de Mello Breyner Andresen, começava a escurecer. Fazia frio. Apertei o casaco e caminhei. Meus sapatos tinham deixado de existir. Estava mergulhada num mundo de poesia e nele me procurava dali a muitos anos ...” Vinte anos depois, em 1985, Maria de Lourdes Hortas certificou-se do que resultara dos seus trabalhos e vigílias. Ela contava então com seis livros de poesia já publicados. E organizara duas antologias. “Palavra de Mulher” (Ed. Fontana, Rio, 1979), de poesia feminina contemporânea , e “A Cor da Onda por Dentro” (Edições Pirata, Recife, 1981), de poemas para crianças. Presença em festivais e congressos, como o 4º Interamericano de Escritoras (México, 1981). Alguns prêmios importantes. Uma fortuna crítica em progressão. “... Estava mergulhada num mundo de poesia e nele me procurava dali a muitos anos ...” Maria de Lourdes Hortas, a portuguesinha de São Vicente da Beira, onde nasceu em 1940, aos dez anos emigrou com a família para o Brasil. Fixaram-se em Pernambuco, na cidade do Recife. Ali

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concluiria o Curso de Direito, em 1964 e, em 1977, o de Letras. Em 1980, fato capital da sua biografia, ingressou no movimento alternativo das Edições Pirata. Trata-se de uma poeta nas raias da maturidade. Seus recursos aguçaram-se. Alguns dos seus temas recorrentes foram solucionados. Ocorreu a depuração dos materiais. A máquina lírica fulgura em sua nudez de poema. Desde o seu livro de estreia (“Aromas da Infância”, Edições Panorama, Lisboa, 1965), com o qual, inédito, ela obteve em 1963 o I Prêmio do Concurso de Manuscritos do Secretariado Nacional de Informações, de Portugal, ela vem desatando o seu lirismo. Vem desatando o seu canto com algo próximo ao som das velhas fontes da aldeia “... da minha aldeia / mina d’água entre serras”. Maria de Lourdes Hortas não se separa da grande tradição da poesia lírica ibérica. No entanto, por mais impregnada que seja de reminiscências e acentos poéticos da velha península, não faz poesia portuguesa. Antes a faz também do Recife, de Pernambuco: luso-brasileira. Os trópicos estão por demais presentes em seus poemas. MLH tem sido entre nós, sim, um desses poucos trilhos de ligação entre a poesia dos dois principais mundos do idioma português. O SAL EM MINHA LÍNGUA Sua poesia embebeu-se das vozes de suas duas pátrias, o que enriquece o lastro de suas linguagens. Tal constatação é melhor auferida pela leitura desse complexo “Relógio d’Água” (Edições Pirata, Recife, 1985), uma bela antologia de poemas. Rigorosa seleção levada a efeito em seus seis livros já publicados e em trabalhos recentes, o volume comemora os vinte anos da carreira de MLH nos modos e tempos da poesia. O volume é bastante oportuno para uma análise geral da obra de MLH, trabalho ainda não ensaiado antes. Pelos poemas arrolados vê-se a preferência da autora pelos versos ímpares. E são versos caracterizadamente de corte moderno e não clássico. Em busca

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efetuada, não encontrei um só verso hendecassílabo dactílico ou arte maior, com dois hemistíquios e acentuação obrigatória na quinta, oitava e décima primeira sílabas. Encontrei sim o hendecassílabo moderno também chamado junqueiriano, com acentuação na quarta e décima primeira sílabas. Aparece o octassílabo clássico ou sáfico quebrado. No entanto a autora mantém um discreto compromisso entre o verso metrificado (clássico ou moderno) e o verso livre. Quanto aos ritmos, sua preferência dirige-se para os que possibilitam manter a fluência do verso na direção do coloquial, e não da empostação ou de uma retórica hiperbólica. É quase um fio de voz o que lhe ouvimos ou lemos. Na coleção observa-se que é brasileira uma relativa maioria dos esquemas frásicos. Evidente é que MLH tem poemas plenamente portugueses em sua bagagem, porém há mesmo poemas metrificados, como nos setissílabos seguintes, nos quais ocorre que: Troquei o falar castiço por sotaque tropical arrastado e mestiço. (Fio de Lã) O fato explica-se não apenas pela aculturação da menina portuguesa expatriada no Brasil. Vivemos uma época em que a poesia brasileira tornou-se mais importante que a lusitana, esta mais cerebral, mais epigramática, fabricada demais em vista das influências de Fernando Pessoa. “No século atual a poesia brasileira tem mais força...” reconheceu Mestre Jacinto do Prado Coelho em entrevista a MLH, em 1965, quando ela era bolsista da Fundação C. Gulbenkian, em Lisboa.

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UMA FARTURA LÍRICA O dilema da expatriada é bastante sensível na primeira obra de MLH, “Aromas da Infância” (1965), escrita por volta de 1963. Os poemas da Aldeia (Evocação de Aromas, Poema a minha Aldeia, Vale, etc) deixam esvaírem-se rosários de granizo ou salmos de andorinhas. E a partida: Um corpo é, apenas, um trilho: nele passam vários comboios. Só de ida. (Trilho) Após a partida dos emigrantes, alguém pode bater à porta e perguntar pela portuguesinha: Alguém com uma certa semelhança comigo como parente próximo dirá que fui a melhor, a mais linda de uma perfeição de quem morreu. (Quadro) O processo de amadurecimento é uma forma incômoda de ser. Mais penoso ainda o amadurecer para uma identidade maior, não apenas lusitana, agora luso-brasileira, um trilho nas duas direções. MLH começa a enunciar essa coincidência: Abri os braços para equilibrar-me na linha imaginária Equador. E tive um braço em cada hemisfério e minhas mãos foram cataventos... O título do poema acima é esclarecedor: “Equilíbrio”. Leia-se, também, “Transfusão”, em redondilha maior. ... onde chora tua sina passo com meu realejo. onde a vida te pôs fel ponho ternura de beijo.

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Por um largo espaço de tempo, quatorze anos, a poeta silenciou para o público. De 1965 a 1979. Período que corresponde aos anos mais brutais das ditaduras militares que infelicitaram o Brasil. E Portugal vivia sua grande crise da agonia do salazarismo e a Revolução dos Cravos, enquanto o Ultramar ensanguentado se fragmentava em novas nações lusófonas. Lançou então o seu segundo livro, “Fio de Lã” (Gabinete Português de Leitura, Recife, 1979). Os poemas deste livro selecionados para “Relógio d’Água” indicam que é outra a estatura da poeta. A jovem expatriada de antes é agora a mulher experiente e aguda. Se ela nos confidencia que, ao embarcar em criança no Tejo, tinha um xailinho para frio, que os mares desmancharam em novelo, a ponta inicial daquele fio de lã ... ficou por certo amarrada do outro lado. ... Aquele fio azulado que reteve o meu cantar longe, longe do outro lado, também nos deixa entrever que há algo a mais, bem maior do que o simples fio de lã, porque suas duas pátrias encontram-se em grave situação: Sou a que, ao meio-dia em praça desolada obliquamente despeja sua sombra para sentir-se acompanhada. Sou a que está em alto mar mãos sobre os olhos procurando o vento atrás, em volta, à frente sem uma ponte para o continente. O que ela descortina do mundo e da época não é de molde a fazê-la juntar-se ao coro dos otimistas profissionais à sombra do Poder, seja ele qual for. Em Palavras-sangue: Enlouqueci de vez quando acordei com o vosso cantochão de lúcidos

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......... Não adianta sobre mim estar passando esse tropel de apocalipse. Degolar, esmagar, queimar, explodir ......... De resto As palavras substituíram meu sangue nas veias. E no meu horto agonizo suando palavras por todos os poros. A respeito do livro “Fio de Lã” Mauro Mota registrou em artigo no jornal “Diário de Pernambuco”, de 22/06/1980: “A fascinante Maria de Lourdes Hortas só com o seu poema Três pré-Acalantos, de implicações muito além da primeira leitura, recebe o passaporte para qualquer antologia da nova poesia em língua portuguesa”. Em seu terceiro livro “Giestas” (Edições Pirata, Recife, 1980), encontra-se um dos pontos altos da sua obra, o longo poema Canção de Volta à Aldeia, em que concretizou e esgotou as possibilidades de um tema seu recorrente. Em atmosfera mágica, de sonho, o desfecho ocorre “ao tocares o sino de minha aldeia”. as estrelas acudindo ao teu chamado se foram espalhando pelos campos virando pirilampos. Em “Flauta e Gesto”, o livro seguinte, (Edições Pirata, Recife, 1983), o crispamento de: outra vez esta navalha me trespassa. Urtigas outra vez nascem de mim. Outra vez antes do pleno amor o pleno fim. A poeta já se encontra senhora dos recursos líricos e do conhecimento das coisas-ofertas e coisas-perdas que são a vida. A concisão, toques lancinantes, exclusão do desnecessário, a nudez da palavra emocionalizada – o fenômeno poético de MLH já ocorre em alturas mais altas nos mais recentes poemas, como em:

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PRISÃO PERPÉTUA Então o masculino Senhor disse: vai, Eva, e nutre a vida com o suor dos teus sonhos. Não te esqueças, mulher que inventaste o amor e isso é imperdoável. (Cartas do Deserto/1985)

Niterói, RJ, 1986

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II – A DUALIDADE DAS PÁTRIAS

Astrid Cabral No poema que dá título ao segundo livro de Maria de Lourdes Hortas (“Fio de Lã”, edição do Gabinete Português de Leitura, Recife, 1979), poema a que, sintomaticamente, foi conferido o 1º prêmio em concurso da Associação de Cultura Luso-Brasileira no II Salão de Poesia de Juiz de Fora, em 1978, colocava-se de maneira figurada, mas eloquente, a dualidade das pátrias da autora – a portuguesa, de nascimento e remota infância; a brasileira, de adoção e vivência de mais de trinta anos. Depois de contrapor circunstâncias e paisagens do viver português às correspondentes ou afins com que veio se deparar no Brasil, a autora mostrava que a ponta inicial do fio de lã da infância ficou como que amarrada do outro lado do Atlântico. E assim Fixa por limos do tempo / ainda existe, raiz / e insiste / em meu canto. Ao que acrescenta: Por ele caminham ondas / de atavismo irrecusável / lírica voz portuguesa. A esse apego ou prisão espiritual às raízes lusas dever-se-á também o afinco com que se entregou à organização de alentada antologia da poesia portuguesa deste século, para a qual chegou a obter depoimentos de importantes poetas, alguns deles já falecidos. É essa raiz portuguesa que vai florescer em “Giestas” (Edições Pirata, Recife, 1980). É esse confessado atavismo lírico a característica predominante de “Flauta e Gesto”. Nele a temática amorosa, que constitui sua espinha dorsal, inscreve-se na multissecular tradição ibérica. Numerosas são as reminiscências da lírica galaico-portuguesa, seja nas reiterações interrogativas e exclamativas de algumas barcarolas, seja na invocação à natureza confidente. Na canção 57, a autora substitui as flores do verde pinho, de Dom Dinis, pelas pedras de um rio: Ó pedras de um rio/ que o tempo infiltrais/ procuro um menino/ vede se mo dais. Da mesma forma, no solo 26 há sutil alusão às bailias, embora não se mencionem as avelaneiras floridas: Acendi-me em fogueira/ e te invoquei/ ó deus do vento/ e ao teu redor bailei./ Bailei, bailei/ bailei, bailei.

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Perpassa por todo o livro um clima de nostálgica reverência ao passado. A persistência do simbolismo romântico e da imagética tradicional culmina nos poemas 16 e 72. Lê-se no 16: Dispo a armadura/ cobre/ amarro o cavalo/ prata/ deixo o castelo/ pedra/ vagueio/ folha / pela floresta/ negra. No 72 o amado não é o homem urbano moderno que viaja de ônibus e de avião, mas o cavaleiro andante que comparece no poema amarrando o cavalo na cocheira ou desatando o cavalo da cocheira. Coerentemente não são de tergal ou poliéster os lençóis, mas de linho. Vivendo no Nordeste brasileiro há longo tempo, a paisagem de seus poemas, no entanto, é a da infância rural portuguesa, que recupera pela emoção: corri ao prado trouxe margaridas/ varri o rosmaninho da lareira/ E na videira onde passo agora/ vindimo o sangue que foi semeado. A par dessas constantes temáticas e léxicas, é de se notar também a ocorrência de construções sintáticas nitidamente lusitanas. Um dos aspectos fundamentais de “Flauta e Gesto” é a frequente sintonia do ser com a natureza, que funciona como presença estrutural e não como circunstancial cenário. Tal comunhão do eu como o não-eu pulsa de maneira tácita ou explícita no coração da maioria dos versos e aparece expressa de modo lapidar no poema: Sou a minha linguagem nela venho e nela vem refletida esta paisagem que contenho e me contém. Há um forte telurismo alicerçando o livro inteiro e que transparece no auto-retrato de Maria de Lourdes Hortas, a ser esboçado a partir das afirmativas poéticas: “Porque sou de terra/ preciso de chuva;/ Esta ribeira que sou/ de colina em colina;/ mastigo a terra/ e ao toque dos meus dentes/ brotam os rios rebentam as sementes. A própria dor da morte como que é neutralizada pela reintegração à terra. Tal cosmovisão panteísta extravasa-se magistralmente assim: Em tuas vias veias abertas ó terra me semeio. Por minhas veias

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Vias abertas ó terra hão de passar as tuas flores. É também valendo-se da natureza que a autora revela o seu erotismo: Acendi-me em fogueira/ e te invoquei/ papoula rubra/ ardo. Erotismo que encontra sua expressão mais completa na estrofe: Ai que te posso abrigar/ na gruta mais escondida/ ai que te posso esconder/ onde começou a vida. Com versos despojados, curtos e musicais estruturam-se os poemas de “Flauta e Gesto”. Poemas avessos ao intelectualismo e que prestigiam deliberadamente a emoção. Pois, nas palavras da autora: Que importa/ se nada sei de ti/ gosto tanto do sol/ e nada sei de astronomia/ amo tanto o mar/e nada sei de oceanografia.

Rio de Janeiro, RJ, 1984

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III – MARIA DE LOURDES HORTAS E O RESGATE DO INSTANTE

Gastão Castro Neto Neste livro, o leitor há de se confrontar com uma poesia que se quer celebrante do efêmero: O nada pleno era tudo o que era./ E o resto foi ausência/ e primavera. Maria de Lourdes, em seu novo “corpo” poético, nos dá uma visão de quem na vida aceita, aceitação da vida e da perda, numa tentativa, ou numa consecução, de amar essa mesma vida (Balança equilibrada pelo peso/ do acaso/ – é isso estar aqui) pelo que ela é. E o que a vida (peso/ do acaso), para nossa autora, realmente é? Um golpe de vento espalhou as cartas mudando o destino. Destino? Vamos deixar Maria de Lourdes nos dar a sua definição: E a nossa Casa Blanca tão azul/ até ires embora/ deixa o que não somos nós dois ficar lá fora/ the end onde recomeçamos. O que nos remete para outro fato-fator constante em sua poesia: a temática – a celebração – amorosa. Maria de Lourdes não tem “vergonha” de seu romantismo (ou de seu medievalismo trovador): sabe, bem no fundo, da existência do elemento amoroso, tal como ele sempre foi mostrado pelos poetas, músicos, dançarinos, pintores. Suas raízes lusitanas, do interior agrário português, a sua vivência da tão atualmente negada cordialidade brasileira (ou nordestina: o que é o Nordeste se não a célula mater da futura civilização brasileira?) fazem-na tratar com absoluta naturalidade de temas – tramas – hoje bastante desacreditados: O café quente/ é sempre novo./ Exatamente como o amor. Mas que amor é esse? Amor-libertação, diríamos, se não víssemos na poeta, também, uma equilibrada forma de se ater à realidade quotidiana: À vida agradeço todos os dias o amor didática diária da arte da vida Como na ucraniana-recifense-carioca Clarice Lispector (e como também em boa parte das melhores escritoras da “safra recente”, nacional e estrangeira), Maria de Lourdes encontra na realidade

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quotidiana, temperada pelo fator amoroso, sua “felicidade clandestina”. Maria de Lourdes sabe tirar sua sabedoria de que, para um leitor dasavisado, ela possa ser meramente “outra poeta” e seu novo livro “outro corpo”. O que torna, vocacional e tecnicamente nossa poeta não apenas “mais uma” e esse livro um Outro Corpo iluminado? Diríamos que M.L.H., pelo lado da carpintaria literária – e pelo lado do exercício poético – é uma autora ciente das dificuldades não só eternas (do ato de se propor escrever um poema) como também das responsabilidades perenes (em chegar ao leitor) do processo – ato contínuo – de compor um livro. LIVRO Afloram rios e jazidas e poderíamos repetir com satisfação que esses rios nos levam onde ondula o mais espesso açude: ao amor e à poesia entrego o mesmo corpo. Poesia sintética, profundamente orgulhosa de sua simplicidade. Poesia de quem encara o “fado” lírico como um processo de constante depuramento, e para quem a meta máxima é a profundidade sem complicação. Escrevo e sinto a fulguração da vida espessa e quente. Um psicólogo diria: Maria de Lourdes se encontrou. Acontece que, de forma diferente da de Cartola (“Acontece que ... não sei mais ... amar”, diz o sambista), nossa escritora nos vem doando seus auto-encontros desde seu primeiro livro (Aromas da Infância, 1965), onde já nos brindava com um dístico: Onde a vida te pôs fel ponho ternura de beijo.

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Neste seu novíssimo opus, M.L.H. na verdade brinca conosco, seus leitores, ao nomeá-lo Outro Corpo. A vero, em sua obra, este conjunto de poemas (em geral breves e elípticos) denuncia a postura de quem conseguiu, como “artista literário”, arregimentar num só “novo” corpo o sonho e a realidade quotidiana. Como ela conseguiu chegar aí? A poeta nos dá, como sempre, a resposta: Tudo é provisório nesta vida: Nem a morte é definitiva. Sabedoria Zen? Diríamos mais: conhecimento da vida (lusitano e nordestino), de quem soube ouvir o canto das pessoas simples, que termina sempre ressoando mais fundo e melhor.

Niterói, RJ, outubro, 1988.

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Para Jaci Bezerra

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L’amoureux qui j’avais (...) c’était mon chef d’orchestre

moi son corps de ballet.

JACQUES PRÉVERT

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CORPO DE BAILE

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Outro Corpo Corpo não o meu ou o teu porém o nosso: mistura, encontro, mutação. ser pleno que se liberta do eixo isolado de cada um de nós: outro corpo fusão.

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O Mesmo Corpo Escrevo e sinto a fulguração da vida espessa e quente. Dentro de mim ondula o mais espesso açude: ao amor e à poesia entrego o mesmo corpo.

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Manto Já nem sei como era meu corpo sem o manto da tua sede.

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Fogos de Artifício Estilhaço-me girândola em vagas violentando o céu.

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Disposições Testamentárias Porcelana açúcar açucenas deixo a quem infinitamente mais do que penas me deu o infinito amor possível.

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Cântico dos Cânticos para Salomão

Contigo se deitaram setecentas rainhas e trezentas concubinas mas houve uma, entre as mil a quem dedicaste teu cântico dos cânticos. Vieste para mim igual à cabra montanhesa correndo sobre os montes de Beter. Sou eu a trigueira, porém formosa filha de Jerusalém de olhos como os das pombas e de peitos melhores do que o vinho açucena entre os espinhos.

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Outro Tempo Há muito cessaram as chuvas. Passou o inverno. Deixa que eu adormeça à tua sombra.

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Inundação Quando voltas de par em par arrebentas as comportas e então a vida em tua ausência retida água corrente, se solta.

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Rupestre Da tarde em transe pende a lua ígnea laranja para minhas mãos. Deito-me no chão e vejo bonitezas de resina explosão no tronco da árvore que me dá sombra. É lua nova a vida é nova rutilezas, cores, centelhas.

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Vestígios (I) Passou por aqui um bruxo exilando a solidão. Floriram luas crescentes no regaço do verão deixou um bando de pássaros crepitando em minha mão.

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Vestígios (II) Passagem de um vendaval partindo a esfera: estrelas errantes ficaram presas no casulo das chuvas. Pássaros bandoleiros me assaltaram a solidão.

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Et Cetera Há quem diga que o amor principalmente depois da marca dos quarenta faz bem às coronárias, et cetera. Não tenho ido ao cardiologista. Aliás o amor explica muita coisa inexplicável: com seu isqueiro de estrelas acendo meus cigarros.

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Composição para Flauta (I) Anda uma ventania carpideira aqui dentro soprando folhas pelas ruas de mim fazendo outono.

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Composição para Flauta (II) No sono da tarde se espraia tua voz: sopro acendendo a vida apoteose da criação.

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Composição para Harpa (I) Vendaval de lavas pelo túnel do meu ouvido: tambores de vento acordam tribos de pássaros afloram rios e jazidas me enfloro em ti, caule.

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Composição para Harpa (II) Sopro de vida em meus ouvidos: teu sopro dedilhando a harpa dos sentidos.

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Liturgia No meio da vida acendo o amor: fogo louvando os deuses e afugentando as feras.

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Afluência Vem, corredeira sobressalto em minha placidez de lago adormecido faz jorrar a vida transborda-me deste leito contido arrasta-me para marinhos abismos azuis imensos além do mundo me inunda, me cria, me transforma. Vem torrente, inundação, redemoinho desfaz as rotas dos naufrágios dos veleiros passivos rastro de viagens sem descobrimentos ao sabor das calmarias. Transporta-me para a espiral das cores e das formas além do horizonte que o olhar restringe. Vem água funda funde a luz e a treva rompe os cercos revolve-me as raízes.

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Primitiva Nas clareiras do corpo me descubro serpente lúbrica e aquática tentação entre o ensombramento dos segredos.

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OS TEMAS COTIDIANOS

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“Corto o pão em fatias bem fininhas:

multiplico o pão.”

YEDA SCHMALTZ

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Síndrome de Solidão Solidia: cabeleiro, manicure, compra de um vestido visita arrumação de gaveta sessão da tarde na tevê calorias extras de amargura e pavê. Solinoite: cigarros, um cálice de licor sessão da noite na tevê reprise de um filme de horror lua velha na varanda telefonema para uma amiga que falou de gripe e de como se diverte nos fins de semana e, mais uma vez, o telefone: disque-se um dos quartéis dos anjos da guarda da solidão sempre alertas bombeiros a apagar incêndios de corações tão frios com mangueiras cheias de frases conselheiras. Clarão ilumina as trevas trem da esperança rapidamente cruzando encruzilhadas: voz masculina! – Então, o que é isso, por acaso já pensou alguma vez em fazer uma boa ação? Alguma coisa assim como, por exemplo indo pela rua e vendo uma casca de banana no chão ter o cuidado de apanhá-la para evitar a queda [do irmão? Resposta da consulente: Não leve a mal, meu caro escoteiro digo

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boníssimo cavalheiro mas o que eu precisava quem sabe, merecia era ter a certeza de que alguém na tal rua das cascas antes de mim passaria.

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Cartilha O café quente é sempre novo. Exatamente como o amor.

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Calendário Todavia há dias de ser feliz: aqueles, por exemplo, em que dispo a alma e a levo à beira-rio onde a mergulho e lavo e depois a espalho na relva, ao sol.

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Pequenos Anúncios Perdeu-se uma alegria: impossível precisar o instante e muito menos o ano, mês ou dia. Gratifica-se a quem a devolver mesmo danificada: é bem melhor meia alegria do que nada. § Foi roubada a lua da noite da minha rua: implora-se ao ladrão que a devolva em mãos.

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Doméstica Quando o amor acaba fica no fundo da porcelana da alma um resto amargo assim como um gole frio de café numa xícara. Melhor não tomá-lo: lavar a porcelana e pô-la de volta no armário.

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Augúrio O tarô chegou a prever a mudança. Alvorocei-me mas foi tudo um lapso de interpretação: um golpe de vento espalhou as cartas mudando o destino.

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Tema para Tango ou Bolero (duas vozes e dois tempos) I – Andante Ah nebulosa noite onde ardo mortiça lamparina iluminando a redoma onde o marido às vezes resvala sonolento pela farsa das núpcias cumprindo o preceito conjugal entre todas as contas na conta-corrente comum estagnada. II – Alegretto Ah luminosa tarde onde ardo candente ocaso iluminando o refúgio onde o amado sempre percorre infatigável o livro das volúpias descumprindo o preceito conjugal entre todas as contas da vida – correntes comuns reinventadas.

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AS IMAGENS REINVENTADAS

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“Um pássaro na mão: soltá-lo (...)

mais vale o voo que o provérbio.”

KÁTIA BENTO

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Reprise Como se eu fosse praia aberta para o mar. Como se eu fosse estrada à espera do luar. Exatamente como as estrelas num poema entras em mim, incandescência.

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Epitáfio A vida é apenas ficção. Realismo só a morte escreve.

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Reinvenção da Fábula Com tua chave, Sésamo abre-me mil e duas manhãs.

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Aprendizagem À vida agradeço todos os dias o amor didática diária da arte da vida: todos os dias abraços de adeus todos os dias beijos de despedida.

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Urgência Amanheci como se te ver fosse caso de morte ou vida. Dentro de mim um mar violento arrebentava muralhas antigas.

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Balanço Por mais que fizesse não consegui alugar teu coração. Porém acabei por possuí-lo por usucapião.

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Viagem ao Tempo do Primeiro Baile Primaverou tudo quando a poesia saiu esvoaçando do bolso da camisa do amado vindo pousar, fremente, em minha mão. Minha alma, feito louca, saiu bailando vestindo aquele vestido com todos os peixinhos do mar aquele que imaginei estar vestindo na primeira vez que fui ao baile.

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Casa / Blanca Sempre que chegas te vejo aportar à ilha descendo da escuna com tua mala e então love is a many splendored thing, meu amor sou Ingrid Bergman e tu Humphrey Bogart e a nossa Casa Blanca tão azul até ires embora deixa o que não somos nós dois ficar lá fora the end onde recomeçamos. Há música de fundo no silêncio: é a serenata ao luar no clarinete de prata de Glenn Miller ? Victor Young and his orchestra? Ou serão os serafins celestes reeditando a festa do princípio da vida?

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CHUVAS CIGANAS

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“Tanta a febre de deter o instante

e sempre os rios a correrem enchente ou vazante.”

ASTRID CABRAL

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Elegia para a Tristeza Violinos de vento me fazem dançar: chuvas ciganas tumultuando as estações e a minha sina.

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À Maneira de Rembrandt Sem ti, por certo, seria outra a paisagem de minha vida, com lânguidas e ociosas águas tranquilas, que em claustro de monja chorassem, fonte, por desmaiadas rosas. Talvez então um luar inconsútil afugentasse as noites ansiosas e assim a vida, claro jardim inútil hibernaria no cárcere das rosas. Mas no amor por ti fui desterrada: há muito estou no mais fundo dos rios onde te habito, e já não sei de estradas que não me levem às tuas luminosas sombras, onde a vida, por teu jardim sombrio me ordena, plena, em cadeias de rosas.

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Paisagem Diluída Foi tão comprido o túnel da noite e o trem do dia entrou com atraso na estação. Adormeci num banco ao relento para esperar-te. Um molho de violetas exaustas expirou entre os meus dedos.

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Dama das Camélias Pegou as luvas e a cartola apanhou a bengala e despediu-se à porta com um ósculo. Então as camélias da pobre Margarida Gauthier ficaram se esvaindo em sangue e soluços ao crepúsculo.

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Oriental Queixa de gueixa: um rio fluindo aprisionado de meu leque fechado.

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Agenda Por vezes acordo loucamente florida. Então chegas, fluvial. E fico parecendo um campo de girassóis desfolhados depois do vendaval.

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CICLO DE ANDORINHAS

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“É urgente inventar alegria

multiplicar os beijos, as searas é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras.”

EUGÊNIO DE ANDRADE

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Madrigal No percurso da noite regressam andorinhas: versos escritos por tuas mãos em meus cabelos.

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Aquarela Um pássaro veio e pousou no peitoril da varanda e depois saltou para a haste de uma avenca onde brincou com o meu deslumbramento. Na casa a beleza maior é haver espaço para a visita gratuita deste pássaro voo dentro do voo da vida.

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Alegria Outra vez amanheço. Ao mistério que me criou outra vez respondo: estou presente. Por um instante um afago de sol atravessa a cumeeira da casa e me abençoa.

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Acorde Minha alegria, pássaro é quando pousas em mim sem temer meus laços de brisa.

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Três Tempos para um Tempo de Silêncio e Mar I – Havia tanto e nada e no entanto alguma coisa entre o silêncio havia. Alguma coisa que o silêncio, em ondas dentro do mar, entre nós dois, tecia. II – Havia o mar, não só verde oceano porém felino, pousado em meu regaço. Havia o espanto de uma ternura à solta incandescências de outras tardes de março. III – O pensamento nas asas das gaivotas planava além das rotas e da paisagem: o nada pleno era tudo o que era. E o resto foi ausência e primavera.

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Canção O sol é lamparina que trazes na mão. A lua, moedinha que perdes no chão. Tão meia-noite o meio-dia quando te vejo, amado magia, bruxedo.

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ILUMINURAS DA BRISA

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“Não sei porque sorri de repente e um gosto de estrela me veio na boca.”

MÁRIO QUINTANA

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Búzio Respiração do mar dentro de um búzio: dentro de mim ressoa o coração dos mortos pelas abóbadas do meu coração reboando.

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Interlúdio Tristíssima me debruço alegremente na janela da minha solidão. Sou livre. Posso ficar aqui o resto da minha vida e ninguém me virá bater à porta. Tão livre como se, dentro de um túmulo já estivesse morta.

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Gestual Abraço ponto de apoio do compasso eixo para o círculo da solidão.

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Festim Embriago-me com o licor das palavras cicuta da minha tristeza.

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Rimas Ao correr dos dias dentro da vertente estreitadamente abraçada à lâmina do fio da vida de um animal pensante vou, grito precário dúbio, visionário gravado no vento que varre o instante onde fui lamento. Ao correr dos dias dentro da vertente floriu, chamejante vou, palavra errante.

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Crônica de fim de século Sitiadas salinas. Chão viscoso onde se arrastam víboras. Para onde fugiram os pássaros? Deuses, bruxos, magos todos estão ausentes no silêncio. De resto continuam os mares se desdobrando solenemente ferozes enquanto, das vias-lácteas longínquas piscam sinais: olhar cego das estrelas sobre nós, que as vemos.

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Óbvio Tudo é provisório nesta vida: Nem a morte é definitiva.

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La Donna Mobile Quando a vida é festa de maravilha e arco-íris relâmpagos me mostram a vida como é piscar de pirilampo em meio à grande névoa. Me comovo e arrepio como simples folha de relva visitada pelo orvalho. No entanto quando o delírio passa volto a desejar secretamente como qualquer humana mulher mortal passear na calçada do passageiro instante de mãos dadas com o amado.

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Zen Minha vida: uma fração de segundo me pertence.

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Talvez Zen Ser apenas sendo: aranha tecendo placidamente a teia do instante.

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Dimensão A dimensão da vida de cada um: passos na areia que o vento leva.

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Renovação Breve é a visita de cada estação movimento de cores sobre a paisagem: onde ontem foi neve agora há pássaros.

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Acaso Balança equilibrada pelo peso do acaso – é isso estar aqui.

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Peso do corpo Brisa muito leve resvalando na fímbria do abismo.

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Hóspedes Ao Gastão Castro Neto

Somos apenas hóspedes Desta velha estalagem: quando bater a hora de fechar a mala e encerrar a conta a quem importará o espólio irrepartível das nossas violáceas tristezas? Ou esse invendível tesouro Das preciosíssimas e tão raras alegrias? Quem fará o inventário dos sabres, das vigílias das culpas e dos venenos? E desses transbordantes e tão fundos poços que enchemos com as lágrimas de não tirar por menos? Que se saiba nada disso aparece nas autópsias e muito menos mágoas e remorsos marcam o imperturbável frio marfim dos ossos.

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Solstícios de verão Quando rosas bravias se abrem com o dilúvio há fogueiras acesas na grande noite lume reacendendo as escrituras. Então compreendo a plenitude efêmera das rosas cintilação na transitória beleza da existência.

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Arrepio Passas carícia leve e fugidia medindo minha pele. São afagos do amor ou apenas a brisa conferindo quando serei de cinza?

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Cântaro Não só o corpo. Também a alma. De barro me sinto, inteira. Se não como explicar este vazio atávico de cântaro sempre à espera da água que me dê sentido?

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APRESENTAÇÃO Este Recado de Eva estrutura o fundo sem fundo que é fundador. Funda n’Os bastidores de Penelope, pela visão de um olhar “de avental” até “a grandeza da vida menor”: o que a Eva não se pode perdoar – O amor –, “e isso é imperdoável”! Maria de Lourdes, entre dois mundos – nasceu em Portugal, São Vicente da Beira, optou por outra forma de ser portuguesa, naturalizou-se brasileira, vive quase sempre e desde sempre no Recife, voando de quando em vez à terrinha, mora, o seu mais notavel dado biografico, na Matria: Lingua da lusofonia. Entre cá e lá, ao longo de uma obra, desde “Os aromas da infancia” (1963) esta Mulher, através da sublevação excessiva – A Poesia –, fala o dizer das cousas simples, limpidas, naturais. Agora neste Recado, reclama a nudeza essencial do ato de viver Vivendo. Acerca destes poemas não se pode afirmar nada. Eles são em si, um a um, as petalas de um botão que se vê desabrochar expondo-se fragilidade premente ao sol incidente na palavra – corpo, ou no corpo pela palavra, que recebe o calor, às vezes o calor gelido de “estar assim / tão vasta e tão ardente”. Se em toda a obra de Maria de Lourdes não há espaço para a mistificação, este Recado, evamente laborado, institui nesse fundo fundador irreprimivel que tudo transmuda numa visão nada feminista, muito feminina, a desocultação. Cada poema que se ergue mostra a pulsão erotica em todo o seu frescor – e esplendor – de o orvalho desta rosa encarnada que sou quando me desfolhas e enlanguesces ... traz à superficie do som (...) a umida entrega

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que te dou do prazer que em mim teces e, sem subterfugios, o seu sujeito poetico feminino não canta, canta, trata o tema ou tece considerações sobre o amor, simplesmente faz amor. Experimenta nesse fazer a morte e a inocencia imanente – morte iminente inscreve na naturalidade da palavra sem parras a Eva, reenviando o mito ao mito na sua verdade essencial: Mulher. Subverte-se uma certa ordem cultural para, sobre o clã fertil da transgressão se plantar ou restaurar a relação total entre a linguagem e o mundo, entre o real e a irrealidade, sem deixar, apesar de tudo, de se ouvir um levissimo murmurio elegiaco, um certo tom onde se esvaem os contornos da enunciação, a palavra, à medida que se afirma e intensifica, deixa-se de constrangimentos e revela-se a libertação do desejo para alem do dualismo e da morte espiritualista, fundando o sitio da consciencia unificada em concordancia com o corpo. Ato amoroso e ato poetico reinserem o humano no universo e no seu proprio corpo. A trinca na maçã que a eva – Eva se permite, atraves tambem de uma insinuante ironia (cousa tambem e ainda pouco perdoavel as eras, que a inteligencia viva incomoda) rejeita a folha da videira e prefere a folha branca sob a forma de recado – recado dos simbolos? – onde entretece a virgindade do pedido primordial que o sujeito faz ao outro: formular o informulavel do desejo, busca a adesão total ao outro que lhe restitui sempre o vazio, mas, ao mesmo tempo, a possibilidade dessa relação e da sua continuidade. Sendo a poesia sempre a projecção da essencia da experiencia humana, a mulher que do paraiso em perda, até ao reencontro de si pela des/aprendizagem da perda nos chega neste diario a bordo de uma vida (os diversos poemas ressoam como paginas intimas de um diario aberto) é bem a Eva aprendida, conquistada que assume o Outro corpo Não o meu ou o teu porem o nosso: mistura, encontro, mutação

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ser pleno que se liberta do eixo isolado de cada um de nós: Outro corpo Fusão Ouçam! Escutem o Recado. Braga, 90.04.19

MARIA ROSA DA ROCHA VALENTE (Universidade do Minho)

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NOTA DA AUTORA O grupo que editava os “Cadernos do Povo”, e que defendia o galego como lingua portuguesa, e a Galicia como pertencente a Portugal, pediu-me para fazer uma coletanea de dicção feminina. Eu mesma os selecionei em varios dos meus livros, reunindo-os sob o titulo de “Recado de Eva”. Foi publicado em 1990 pelo grupo que transitava entre Pontevedra (Galícia) e Braga (Portugal). A ortografia era a que eles, a epoca, consideravam galaico-portuguesa : portugues de Portugal, sem acentuação.

Maria de Lourdes Hortas (Recife, maio de 2016)

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(Fotografia de Walmir Sabino)

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Este livro foi escrito a partir da emoção de uma visita a

Conímbriga, cidade romana, próxima de Coimbra.

MARIA DE LOURDES HORTAS

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Este pó foram damas, cavalheiros,

rapazes e meninas; foi riso, foi espírito e suspiro,

vestidos, tranças finas. Este lugar foram jardins que abelhas

e flores alegraram. Findo o verão, findava o seu destino...

E como estes, passaram.

Emily Dickinson

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À memória dos poetas Paulo Bandeira da Cruz e Gastão Castro Neto.

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Pórtico São asas de mil pássaros esses bandos de rosas que partem revoando cumprindo o seu destino de rosas que abertas floriram seu instante minutamente belas.

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Rosa, Rosae Não haveria a rosa se entre as rosas não existisse a rosa mais antiga: essa rosa-raiz rosa-semente inevitável rosa sempre ardente há milénios se abrindo e se esfolhando entre a rosa da aurora e a do poente.

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Vitral Seta de luz irisando o cristal de arabescos secretíssimos. Lança de fogo atirada ao silêncio de antiga catedral: incêndio onde se escutam harpas.

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Interpretação das Ruínas Houve passos nas pedras dentro da madrugada alvoroço de pássaros tropel de cavalgada. Houve um cordão de estrelas nas janelas das casas as luzes das candeias leve fremir de asas. Houve salas e quartos cozinhas e latrinas houve átrios, cisternas oficinas, tabernas pátios, fontes, piscinas. Houve cítaras e harpas beijos, dança fogueiras. Houve medo, esperança flores, ritos, festins houve guerras e trégua tempo de sol ou névoa na relva dos jardins. Houve mantos e túnicas seda, algodão e linho. Houve sombras mirando as sombras do caminho. Entre verões acesos e ardentes temporais houve núpcias secretas rosas de lume abertas no leito clandestino do feno ou dos trigais. Alguém pintou murais alguém fez os mosaicos

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alguém na olaria riscou flores e falos sobre a face dos pratos. Alguém armou os jogos de águas nos repuxos. Alguém se sentiu deus, Alguém se julgou bruxo. Alguém bebendo vinho. Outros comendo pão. Alguns dizendo sim. Outros dizendo não. Longe uma voz chamando outra que respondia. Houve noite. Houve dia. Infâncias, solidões amores e traições chegadas e partidas: existências cumpridas. Antes de haver ruínas houve os jogos da vida.

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Feminae Eva Erva Hera eras sem fim agasalhando a pedra.

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Gravura Há um risco de pluma viajante sobre a névoa e os sulcos da colina: um fulgor de tempo alumiando o desenho de quem a vida assina.

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Cave Agora quero que a poesia venha do mundo à minha volta e me tome de assalto e se guarde na cave onde fique macerando tempo sem pressa para a transparência.

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Estação Amarela No segredo espesso da terra no silêncio nocturno desse ventre dorme a semente para o canto amarelo-canário: campo de girassóis.

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Rupestre Sobre as ruínas meu sentimento paira sobrevoando signos. Do mirante surpreendo territórios antiquíssimos seres encurralados em cavernas de vidro. Pelo filtro de gaze das cortinas vê-se luz confirmação da vida saltimbancos no trapézio dança de folhas numa réstea de outono. Dentro da noite o luar é o rectângulo da janela fluorescência flutuando no silêncio sibilas da água e do fogo armando jogos – ritos de pânico exorcizando o enigma.

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Festim Convidar a tristeza esperar que se instale permitindo que aflore das funduras mais fundas onde a gente se esconde. Entornar a tristeza sobre o linho da mesa numa festa de versos.

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Mosaico Uma só época época nenhuma: arco sobre o infinito e sobre a pedra um pássaro.

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As Evidências Alguma coisa pelos túneis caminha imponderável subtileza de aranha tecendo teias. Do espelho implacável me assalta: onde foi a que foste?

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Caleidoscópio Inconcluída história que acrescenta o sonho ao sonho, poesia à poesia vida que não se fecha e se recria estrela sempre em febre que orienta a explosão do encontro, vida inquieta pleníssima, e no entanto, sempre incerta e porque incerta, assim, mais descoberta aventura e ventura que se amplia cumplicidade, mútua alegria vertigem, avidez, deslumbramento ardência e delírio além do tempo mais que perfeita junção porque harmonia inconcreto sentir, e todavia tão concreto e tão pleno sentimento desejo que se excede a cada dia insossegada paixão, porque infrene que ao tédio e à clepsidra desafia roubando ao eterno a flama e a magia: inexplicável amor porque perene.

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Revoada Em alguma praça de mim um sino dobra sons de pedra arremessados à vidraça da tarde que sou: assim me parto deixo cair a noite do regaço e fogem em revoada as pombas meus fantasmas.

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Flama Ai que doce e ardente primavera neste outono de ouro tão vermelho Ai que êxtase festim de antiga era nos renova nas águas do espelho Duplicados na flama do espelho duplicamos a dimensão do instante Neste ocaso de rosas tão vermelhas renascemos além do horizonte

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Cometa Cadente outra vez passa a estrela riscando a treva que interrogamos: candente outra vez passa e com ela o enigma do que somos. Canção para Reinventar um Tempo Antigo Faz-de-conta que o tempo é uma varanda voltado para um pátio circular: faz-de-conta que em canto de ciranda regressamos ao cais de regressar. Faz-de-conta, nas água do destino um aquário de luas nos espera: Faz-de-conta que um canto repentino Traz de volta uma antiga primavera. Faz-de-conta que esta contradança nas varandas do nosso coração reacende os sóis de antigamente: Faz-de-conta que os rios da lembrança reacendem a flama da canção neste pátio-passado – tão presente.

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Canção para reinventar um tempo antigo Tambores de chuva, ofegantes ordenam a festa da vida mais um dia. A seiva da poesia em maré-alta dos cântaros da palavra se extravia.

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Gravitações Rodas de vento e de chuva as mesmas luas e ritos cega harmonia girando na olaria dos mitos. Rodas de vento e de chuva elos da mesma ilusão: pacificando a passagem sobre a pele do chão.

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Marinha Emerge do oceano outro oceano translúcido lugar além das ondas país interior, interno azul água-marinha que se fende e expõe submarina trajectória fluida deserto azul onde pousam silentes os vestígios dos dias – rosas rubras azul além do azul águas mais fundas um mar dentro do mar.

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Acto de Fé Creio na alquimia da palavra onda de um rio raiz, seiva, resina favo de mel silvestre mina d’água êxtase da infância esperando-me na esquina. Ao terceiro verso ressuscito dos mortos enquanto lírios nascem sereníssimos varando a verde relva do silêncio que respira.

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Rosa-dos-ventos Há sempre um canto claro aclarando o silêncio assim como uma rosa representando a vida: há sempre um sino claro numa esquina florida.

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Desocultar as Fontes O invasor que ultrapassa fronteiras precisa pouco a pouco desvendar seu espaço: desocultar os encantos da aldeia devagar mapeá-la com a marca do seu passo. Lentamente à medida que avança enfrentar o mistério de inscrições estranhas: decifrar os túneis mais secretos antigos aquedutos que vêm das montanhas onde se ocultam pássaros imprevisíveis por caminhos de barro limo, hera, areia e se espreguiça um rio primitivo que recita as lendas da construção da aldeia. Desfolhar o dia e a noite calma ir acendendo o rasto de tudo o que desvende até chegar à praça onde a fogueira aquece as mãos geladas daquele que a acende. Então beber na fonte que se entrega a água que entre musgos

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se rende à sua sede. Saciado ergue a flecha e o arco e mirando o infinito finca no chão o seu marco.

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Heráldica Dor submersa remota inscrição apaziguada pelo passo felino verde musgo do tempo.

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Inscrição Na pedra uma palavra afirma a vida: flor do instante desfolhado à deriva.

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Circunavegação Na folhagem das tílias vôos passam e regressam: sombras de pássaros sempre.

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Barro Abstracto Sobre o barro onde agora te debruças há um sopro o mesmo sopro que te anima: a essência perene sopro-ânima pedra-cárcere que reteve a criação. Pedra-pássaro vôo pleno em tua mão.

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Geometria Nos rituais da chuva que mortos vestem as rosas do próximo enterro?

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Escultura Tigre de pedra aveludando o silêncio. Lua-pena singrando sereníssima rumo aos acasos do sol.

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Jogos d’Água Que chegue assim de assalto imprevisível sem se anunciar como chega o destino. Que venha leve e alto como o vôo de um pássaro que pouse igual ao vento incauto e repentino. Assim seja o alvoroço sereno nunca aflito que cante silencioso como a argila dos mitos – elos de uma ilusão: marcas pacificadas sobre a pele do chão.

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Vibrações Pelo rubi do vinho transparente na taça pela brisa que espalha o cheiro a maresia pelas rosas bravias voluptuosamente vermelhas abraçando as arcadas do dia pelo amor que me lembra com sorriso de esfinge pela verdade oculta por tudo o que se finge vale a pena este verso de silêncio que escrevo com a pena da pomba que tão plena se arrisca riscando a brevidade luminosa da vida.

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Epílogo O que haverá de urgente diante do repouso destas muralhas em ruínas séculos e séculos de silêncio indiferente sobre a certeza do pó de vidas que pisamos?

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Dança das Heras Felinas heras sobre ruínas dançam. Bárbaras heras de garras como feras amorosas enlaçam os vestígios do templo farejando a faísca dessa flama que mora no coração dos seixos: vida cravada sobre o flanco da pedra.

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MARIA DE LOURDES HORTAS

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SONATINA A verdade era verde e verde a vida na antiga paisagem transparente onde as ondas teciam uma cantiga talvez de outra canção tema e semente. Eram claves de sol e de ilusão mar azul sem medos e sem medusas só ternuras de brisa e o coração recusava o tom das semifusas. A verdade era verde nessa antiga história onde existiam outras mãos compondo ao piano outra cantiga : Vertigem que me visita de passagem revoada que é na solidão fugaz reinvenção de outra paisagem.

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NOCTURNO Pediria ao poeta que trouxesse o vinho e depois a doçura do instante antigo para lembrar que a vida pode ser o farfalhar de folhas uma fuga de pássaro canto longínquo grito piscar de estrela soluço : esta chuva que escuto sobre o telhado.

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PÁGINA DE DIÁRIO Assim que, aportando, a primavera trouxe o rasto de rosas e andorinhas à janela do quarto onde habito trouxe também a pomba que, nocturna vigilante velou do parapeito minha saudade da janela antiga de um quarto onde dormia, bem-amada enquanto as pombas lá fora iam ruflando as asas que abriam a madrugada.

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ESTAÇÕES Poderia afogar-me na silente cisterna de lágrimas léguas de um longo tempo extraviado quando o mar recua para ermo horizonte de incompletude e inesperança. Todavia há marés que me resgatam : réstia de luz por instantes ferindo a silente espessura da lembrança.

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NAVEGAÇÕES (I) “A minha pátria é a língua portuguesa.” FERNANDO PESSOA

A minha pátria sim, por certo, é também aquela ilha caverna dentro de mim lugar onde é possível revisitar sempre o êxtase da fábula da infância ouvindo a música secreta dos temporais do génese no perdido paraíso. A minha pátria é toda essa engrenagem de dizer minha casa de ser permanente textura de tudo o que penso e digo e escrevo e canto pelos quatro cantos da vida sempre com o gosto agreste das urzes e das rosas do mel e do pão da chuva e do vento das giestas e da serra. Tinhas razão, poeta : a pátria da gente é mesmo a nossa Língua. Assim, eu mesma sou a minha Terra.

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NAVEGAÇÕES (II) O ponteiro riscando na ardósia a primeva palavra na longínqua aldeia O ponteiro riscando o coração negro da pedra fala no silêncio da sala na longínqua aldeia O ponteiro riscando a raiz primitiva do poema no templo da escola O ponteiro arranhando a noite de pedra da ardósia poesia querendo ser O gume do ponteiro inventando na ardósia o prodígio da flauta para o canto O gume do ponteiro traçando o alfabeto mapa da fala fundações do país que transportei e carrego até hoje para sempre comigo eu, mala.

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RECADO “Mas quanto mais me alongo mais me achego.” CAMÕES

Nenhuma carta porém ressoam versos : sabor de mel lavando o sal do pranto vale de águas, fronteira inconsistente pois tantas milhas de mim jamais me apartam. Que longe ou perto refaço a mesma rota ao cais seguro, definitivo porto onde me espero e sempre me encontro.

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Maria de Lourdes Hortas

FONTE DE PÁSSAROS

Cia. Pacífica Recife - 1999

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Coordenação Editorial JADSON BEZERRA Criação da Capa FREDERICO FONSECA e MÁRCIA HORTAS Foto da Capa MÁRCIA HORTAS

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POESIA COMO LEGADO Zuleide Duarte Pássaros, Flores, Chuva, Fonte, Luz: cenário do livro Fonte de Pássaros, de Maria de Lourdes Hortas. Poemas tecidos com a luz da aurora e a emoção da vida. Versos onde a autora, em idílio com a solidão compartilhada com a natureza exuberante – interlocutora privilegiada de sua alma inquieta – dá voz às interrogações e aos sonhos, num grito de liberdade que se espraia pelo domínio da palavra, eterna cúmplice. Da sua janela, mirante de pássaros e luz, a poetisa destece, da trama do tempo, o fio da vida e dá expressão a sentimentos impregnados pela luminosidade da paisagem, ressumando terra molhada e seduzindo as ninfas do bosque com o canto nostálgico das lembranças. Desvelando emoções em trajes de romaria, vai a poetisa “No pote do coração/ carreg(and)o a água mais pura/ de fonte da solidão/ de torrente de amargura” ou passeando “entre bambuzais e regatos,/o olhar colhe(ndo) ramos de versos”. A identificação com a natureza é a marca destes poemas em que a vogal “a”, pelo seu ponto de articulação no centro permite a expressão plena da palavra em vôo. São albas que saúdam a aurora luminosa, despedindo-se da noite no entressonho do milagre da vida. São sonatas e noturnos à “lua nova (que) adoça os frutos” ou laudêmios à “arcana coruja/ sacerdotisa grisalha.” O olhar transfigurador da escritora vela o Tejo, espreita vacas, compartilha “o licor do orvalho” com as flores e divide o mel com as abelhas. Refugiada nas saudades – pássaros cantando no escrínio da memória – MLH constrói um mundo onde é possível voltar a ser menina e ir à fonte: “À beira das águas/lá do ribeirinho/regressa a menina/com seu cantarinho”. Cumprir o ritual da contemplação dos mistérios do existir, transpondo-os para o verso onde imprime a alma, tem sido o caminho da poetisa “Na estrada (onde) a sombra/é a lembrança/ súbito pássaro/ me esvoaçando/ o coração”. Na urdidura do texto, ela realiza uma poesia que conjuga a pureza e a coragem da mulher aldeã com a consciência dolorosa da mulher urbana, dividida entre duas pátrias, entre as quais não pode escolher

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porque, segundo André Gide, “escolher é renunciar” e não se pode renunciar ao dom da vida nem à dádiva da poesia. Evocando D. Dinis, que era rei e poeta ou poeta e rei, encontra-se a resposta à pergunta: “para que serve isso/ ó poetisa? / que deixarás/ aos pósteros/ além dos teus/ fragilíssimos suspiros?”. D. Dinis deixou cantigas, plantou pinhais. Não pôde escolher: entre a realeza e a poesia, ficou com as duas. Maria de Lourdes Hortas, mais feliz que o rei, tem duas pátrias, “o universo das palavras” – como Cecília Meireles – e uma poesia que é, ao mesmo tempo, canto e encanto. Este, o seu legado.

(Recife, 1999)

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A Zuleide Duarte.

E também para

Tereza Halliday, Arnaldo Saraiva, Frederico Fonseca, Armando Mello, Magnólia Amorim e Zeneide Costa,

amigos de sempre.

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Imagens que passais pela retina Dos meus olhos, por que não vos fixais?

Que passais como a água cristalina Por uma fonte para nunca mais ...

CAMILO PESSANHA

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Apontamentos de Aldeia

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Abaix’esta serra verei minha terra. Ó montes erguidos deixai-vos cair deixai-vos sumir (...) FRANCISCO DE SOUZA (Cancioneiro de Rezende, 3, V, 294.5)

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LEGADO Para amanhã e depois, mais tarde àqueles que ainda gostem de chuva para habitar enigmas labirintos e prodígios para não deixar fugir o espanto diante das coisas essenciais para ouvir o silêncio de Deus para não me perder de mim: escrevo.

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PALIMPSESTO Insciente de tudo quanto ocorre além da guarita dos pássaros como se o início e o fim de tudo aqui fosse regresso às poderosas noites ouvindo estrelas.

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ALBA Sonolenta, de pálpebras cerradas a madrugada sob o frio lençol de neblina ainda oculta não se apressa. Do carrilhão despencam lentas horas de chumbo que ressoam e somem no pântano do silêncio. Viajantes pontuais operários passarinhos aportam e estremecem os vitrais do dia preparando os círios para acender o sol. No mirante de papoulas vigiando o território ladra o Tejo. Vacas ruminam versos e passam, sonhadoras, no portão. Em fila marcial gansos refazem trilhas. Boêmio rocim ensonado pelo cálice de humildes florinhas amarelas sorve licor do orvalho. Do ocidente ao oriente a manhã felinamente cresce e se alonga. Rigorosas abelhas cumprem o destino por ínvias veredas percorrendo flores.

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GEÓRGICAS Lua nova adoça os frutos Rosa nova acorda, plena. É preciso atar as trepadeiras podar as papoulas aparar a grama coar café fazer doce e licor ajeitar as telhas do telhado responder a carta do poeta arrumar a gaveta antes que o inverno chegue. Todavia deixemos para amanhã o que se pode fazer hoje. Nova rosa acorda, plena. Lua nova adoça os frutos. Na pausa de luz viajam pássaros.

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CAPÍTULO Ainda há pouco, quando a primeira estrela se acendeu meu neto, de apenas três anos muito sério e solene, veio e disse: Qualquer dia, Vovó, vou ao céu buscar três estrelas para pôr na varanda, no lugar das lâmpadas. Vai ficar tudo bem clarinho e luzente! Diante do meu encanto ou espanto ponderou: Mas não é hoje não, vovó! É qualquer dia...

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SORTILÉGIO Devagar a tarde leveda e se arredonda. A noite principia pelo rumor de asas vôo tangente maga que surge das trevas e adentra no templo da jaqueira a oeste do jardim. Laudemos a arcana coruja sacerdotisa grisalha: Oremos. O órgão da brisa solene anuncia transmutações: estandarte de rosas sobre o hálito de estrelas.

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NOTURNO Não acendas a luz do alpendre: um pássaro dorme a lua se derrama nos ladrilhos e o cão pesadamente sonha.

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CÂNTARO À beira das águas lá no ribeirinho regressa a menina com seu cantarinho. Dançando e folgando rosa de verão com seu espelhinho de lua na mão. Vem pisando ervas mordendo maçãs. Procura segredos dentro de romãs. Escuta os adufes da serra distante inventa giestas à beira do monte. Lá na funda mata canta um ribeirinho: nele me debruço com meu cantarinho.

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FUGA Nas páginas do álbum os caminhos dão voltas: reencontro as manhãs findas no espelho.

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SONATA Tempo plácido regato: sem nenhum acidente que lhe corte o pulso.

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BUCÓLICA Bando cigano de cigarras sob tenda de folhagem acampa no jardim: fulvos sons de metal decepando o silêncio sob o pálio pesado de púrpura do poente.

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LITURGIA Eu vos agradeço, ó deuses, este luar agridoce ardência de vinho maduro tinto sobressalto rio solto despencando sobre matas e abismos. Eu vos agradeço, ó deuses por me teres deixado cair em tentação: seja feita a vossa vontade assim no céu como no chão.

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TRAJE Quando vou à romaria à festa da poesia uso o traje apropriado com saiote de quebranto colete de labirinto alva blusa de ternura cinto cor de manuscrito. Vou fermosa e insegura por veredas de verdura. No pote do coração carrego a água mais pura de fonte da solidão de torrente de amargura. Com traje de romaria Ponho o xale bem cruzado e com ais da Mouraria escrevo cantando o fado.

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INTERVALO Enquanto a chuva veste a noite sinais do pássaro anunciam o regresso: tambor de luz.

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AUGÚRIO Na encruzilhada da noite um pássaro se faz presente: seu grito de pedra atirado ao poço do silêncio abre uma fenda morada para o susto golpeando o sono.

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ARGILA No carro de chuva vem a infância: o vento acorda o cheiro de pão quente, mel e frutos. As brasas da fogueira estalam. Ouço os veios da água me atravessando, argila.

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INSCRIÇÃO A relva ondulava líquida primavera dançando à minha porta.

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FONTE DE PÁSSAROS Alfombra macia de luar e pétalas assim por certo tua pele onde me deitaria abandonada como no chão da infância. Enche-se de abelhas minha alma. Ao longe os sinos. Ao longe os barcos. E eu em ti sozinha às portas do baile ouvindo os boleros que retornam esplendor, névoa, perfume, arrepios vaga-lumes sedas. E eu em ti enquanto as ondas uma a uma regressam – inquietas águas. E eu aqui enquanto o vento levianamente assobia invadindo frestas da janela onde ninguém espero. E eu aqui desfolhando as páginas do diário antigo como se desfolhasse margaridas e esperanças. De onde nasce este desassossego rutilante fonte de pássaros em meu coração?

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ACALANTO Quando a noite passeia pelo jardim a brisa traz de volta a infância no seu coche noturno. E no sono regressa a dolente cantiga contradança de inverno pandeiretas de chuva. O marulho do bosque conversas de arvoredo de um mundo sem pressa hibernando em segredo: negra molhada noite onde respira a vida contradança de inverno pandeiretas de chuva.

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PLUVIAL Vergastando a noite vem a chuva ventania subitamente abrindo todas as janelas do meu coração.

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CATA-VENTO Onde foram os pássaros de outrora ? Gravitam, sombras no carrossel de agora.

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CANTATA Arabescos muito finos violinos. Rendas parlendas guitarras de cigarras. As horas crescem como ervas. Galos arautos fendem as trevas.

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COSMOGONIA Inteira deságua a vida neste largo segundo fulgurante: chão onde escrevo.

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VISITA DE COLIBRI Fragmento hieróglifo luminoso verde flecha surpresa em travessia frêmito.

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ABISSAL Enigmas de pássaros e serpentes estremecem o silêncio onde habito. Súbita ventania se levanta. Sobre o vale um anjo deixa cair um grito.

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ESTRADA Na estrada a sombra é a lembrança súbito pássaro me esvoaçando o coração.

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ÉCLOGA Guardiã de rio primitivo tecedeira telúrica urdo o linho e acompanho sem pressa a alquimia das escrituras. O tempo lagarto sobre a folhagem da tarde fia os finíssimos fios da noite de seda. Entre bambuzais e regatos o olhar colhe ramos de versos.

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FLAMA Silente flama asa planando, breve sobre o espelho onde a tarde se ensombra.

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EMBLEMÁTICO Por decreto de abril fechou-se o dia e a noite evadiu-se da cisterna. A dama repentina trouxe a guitarra e o anjo andaluz trouxe a lanterna.

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BICO DE PENA Muro de folhagens e papoulas assim minha alma onde se escondem pássaros.

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TENDA Em carroça de estrelas chego a esta colina de vento cigano como eu viandante inquieta perseguindo o sossego às avessas por trilhas de exílio e solidão. Sob luares e chuviscos de orvalho armo a tenda: claustro de avencas e livros onde insetos fabricam silêncio e névoa.

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ANTEMANHÃ Acordo pássaros. Caminheira por humildes veredas sem destino submissa à serra rente aos lagos esfolho flores que mato com ternura. Acordo pássaros. Na borda do abismo há miragens e neblinas: Bom dia, árvores. Bom dia, vento. Sabiás cantam: bom dia, vida.

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DEVANEIO Mazurcas em surdina: linguagem de árvores revelando se o vento as açoita ou acaricia.

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ALEGORIA Ao invés de alegria apenas alegoria: arroio que jamais há de ser rio.

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SOLIDÃO AMESTRADA Coloquei a coleira na solidão depois fui passear com ela no caminho como quem passeia um cão.

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DILUVIANA Se vendavais desabassem quando há tristezas demais hoje diluviaria num aguaceiro de mágoa que nem pomba nem folhinha de oliveira restaria. Sobre as navalhas da água nada, nada nadaria.

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BRUXEDO Pelas furnas da mata nos covis de folhagem vejo mitos – arquétipos de magos duendes e assombros. O imaginário felino se embrenha no mundo elementar.

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ÓRBITA À medida que o tempo se escoa diminui a medida do que preciso: no fim de tudo precisarei de nada.

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ENSAIO Afagar de mãos doçura de licor fuga de pássaros dança ambígua: fragmentos de pedra e lenha seca. Hibernação. Tocaia à vida.

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TROPEL Súbita primavera desgarrada frontalmente aflora: emblema da paixão soprando o sono. Súbita primavera me agarra assustando resignações de outono.

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PASTORAL Pesada cai a tarde como um fruto. Outra vez a noite profundamente ouve o silêncio a emergir das rosas. Fugitivo passa o suspiro do jasmim. Dormem as pedras. Em tocaia, na sombra um anjo espera.

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NASCENTE Por que recusaria a gratuita poesia que chega dia a dia e me habita nascente súbita brotando como erva nas funções das pedras?

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MANUSCRITO Em minha própria sombra gravo a certeza de que a luz me habita.

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TELÚRICA Na textura do silêncio entre a chama da vela e sua sombra pulsa o tempo. Folhas crepitam. Ramos estalam. Serpentes fogem. Pelos caminhos cavalos lêem antigas inscrições.

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SINGULAR Há frutos no jardim que habito porém, Eva sem Adão, (todo o mal traz um bem) me regozijo: não corro o risco de vir o Grande Anjo expulsar-me do paraíso.

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AQUARELA A ardência do dia vai beber à fundura do vale onde o lago repousa.

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CÍCLICO De vez em quando um vendaval me visita e arreda as telhas do telhado: estrelas me espreitam e bem-te-vis me acordam.

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PÉTALA Seda carmim data no calendário de uma história: houve um jardim e um verão antigo folha entre as folhas de um livro.

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SAGRAÇÃO DAS COISAS MÍNIMAS Bendito seja o sorriso da chuva nova canção gole d’água para a sede do alecrim colônia e capim-santo. Bendita seja a chuva chá do céu santo remédio para todos os males de alfenim.

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BARCA DE ARGILA Como se fosse a primeira da vida inteira outra vez no caminho me surpreende a chuva. Barca de argila cheiro a barro e molhada navego arca no dilúvio.

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CIRANDA Túnel de árvores e folhagem: Bom barqueiro bom barqueiro dá licença de passar? Passarás, passarás passarinho.

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MONÁSTICA Ao relento no portal do meu convento dança a chuva mais o vento... Em minha cela escrevo.

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BAILIA Bateste-me à porta tresloucada amiga: de onde vens, velida? Bailemos, amiga a tua cantiga pelo monte afora. Bailemos agora por vales floridos ó chuva perdida. Brunindo os cajus e as mangas, bailemos lavando as faianças das folhas dancemos. Ó chuva benvinda bailemos agora por vales, por serras pelo mundo afora.

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ALEGRIA Hoje teria pena de morrer: A lua encalhou no meu telhado a mata me abraça a aragem me beija o orvalho é de mim que goteja.

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ÍNTIMO Fundura da casa silêncio onde lentos segundos seculares de areia se esboroam no velho mar morto íntimo charco do coração.

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CANTIGA DE ROMARIA Nossa Senhora da Vida pede ao vento que se cale e à chuva que não demore a passar. Nossa Senhora da Vida traz-me de volta a cantiga do mar.

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À BEIRA DO POÇO – Ai, Mãe se ao poço da alegria eu tirasse o balde o que viria? – Água muito fria.

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EMBOSCADA Ao acender o quebra-luz olhou-me o retrato da estranha. No estígio espelho não reconheci os lábios onde passei batom.

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RIOS NOTURNOS No profundo silêncio onde dormem rosas correm noturnos rios. Incansável, a vida dobra corta e fia o seu fio.

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GRAVURA Nas muralhas de ontem novo dia de novo no entanto na lonjura do vale por trás do tule da neblina assobia o comboio onde viajo outra geografia debruçada à janela vendo passar as fontes líricas obviamente subjetivas tempo meu era de mim rupestre de muros primitivos pedras soltas amaciadas por musgo.

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FATALISMO Assim como este dia placidamente à revelia de mim decorreu entre balizas de chuva a poesia pousa pássaro e na varanda aporta pelo tempo de um canto.

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POEMAS AVULSOS

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“Nunca desejei ser nada A não ser poeta”

HILDEBERTO BARBOSA FILHO

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DESCOBRIMENTO DO RECIFE Heróis de ontem de vós herdei a compulsão dos descobrimentos porém minha bússola esteve apontando rotas absurdas ao Cabo Nunca Mais por isso fiz tantas vezes a Expedição impossível por mares, Dantes, navegados impossíveis de resgatar com a mala de ontem cheia de laços que já não atam tranças perdidas. Não foram as pedras destes monumentos que me construíram embora existam, base, em meus alicerces. Contemplo o incêndio das searas desertas da infância e estou pronta para arrumar a mala de regresso a mim com os trajes sonâmbulos das miragens dos oásis perdidos. Há sempre um passo que nos leva ao marco onde as fronteiras se esclarecem meridianos definindo os hemisférios. Agora na peregrinação ao reino dos mortos pinheiros são ciprestes e o musgo esta certeza do tempo sobre os túmulos. Debruçada na cisterna das chuvas de ontem convoquei sombras e lume heróis e naves saudade e ternura catedrais, hinos, atavismos, guitarras heranças e destinos.

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Todavia, no coagulado silêncio das águas pantanosas me vi – forasteira por ruas alheias. Chego enfim ao presente reverso desta paisagem lá onde estou outra margem deste mar águas se desdobrando em rios e mangues e pedras se fazendo arrecifes.

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EVOCAÇÃO DE D. DINIS Inútil - houve quem dissesse - minha poesia vida ociosa rabiscando versos: - Para que serve isso Ó poetisa Que deixarás aos pósteros além dos teus fragilíssimos suspiros? Por acaso lembrei-me de D. Dinis: era rei todavia a suspirar vivia: Ai flores, ai flores do verde pinho! Aliás até lembrei de mais: sua alteza, o poeta em meio a tantos ais também plantou pinhais.

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FADO NOTURNO Cala-te porque não sabes dos comboios que passaram nos carris do mar sem naves onde os sonhos se mataram. Cala-te porque insone nas noites adormecidas tecelã teci teu nome de estrelas destecidas. Sobre o mar morto contemplo minha vida em agonia: minha saudade é um templo onde rezo cada dia.

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ARDÓSIA A palma da tua mão é a ardósia pedra onde inscrevi os versos do meu destino

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CANÇÃO PARA AGRADECER UMA CAPA MOURA (*) A capa trouxeste, Moura À chuva da Mouraria: chuva tecendo o fadário da chuva da poesia chuva da sina chovendo na aldeia onde existia o sortilégio da moura que na fonte se escondia principalmente se a chuva diluía em noite o dia. No tear das águas mornas aguaceiros de verão - tua Arte, essa magia na palma da tua mão - a capa teceste, Moura para um Diário passado: guarda-sol em guarda à chuva capa, capote encantado como aqueles da infância transparências, rutilâncias de pleno e azul meio-dia moura-capa que encapa a chuva da nostalgia. Do alto desta manhã com águas do mar vestida te saúdo mago Moura e te canto uma cantiga como se, moura, cantasse na fonte da praça antiga liricamente chovendo onde a Arte encontra a Vida.

(*) Ao artista plástico pernambucano José de Moura, Agradecendo o pastel que me ofereceu para a capa do livro Diário das Chuvas.

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FADO DEPOIS DA CHUVA Não foi nada... Este uivo que veio inesperado pelas frestas do chão que se abria Não foi nada... foi apenas o amor ausente nem fantasmas nem lobos Não foi nada ... Era o fim do verão e de repente revoaram as rosas desvairadas. Não foi nada ... Foi apenas aguaceiro trovoada que veio, inesperada desabaram as fontes e as torrentes e os soluços da vida de repente escaparam nas águas desatadas.

Não foi nada Foi apenas o amor ausente solidão e tristeza e agonia uma dor cristalina desgarrada dor tão solta ai tão solta de repente como um pássaro negro que fugisse da cisterna da infância que sangrava...

Não foi nada.

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POST-SCRIPTUM Havia o meu convite para um chá que tomaríamos na varanda ao fim da tarde quando o azul do mar enverdecendo se pontilhasse de regatas e pombas. Porém subitamente o poeta foi chamado para a travessia do mais largo oceano. No calendário de contratempos ficou tarde para aquela tarde de chá e chocolates Mozart, poesia e rosas.

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RESPEITÁVEL PÚBLICO O poema é o chicote com que espanto as feras neste circo neste palco nesta arena. Domadora as enfrento para que não me ataquem: meu canto, capa branca.

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RITO Meu coração é seda que a vida ciclicamente rasga inexplicável rito me devolvendo ao mito da poesia.

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PÂNICO Subitamente a vida se vai fazendo tarde:

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MOTE PERPÉTUO De tão triste a tristeza já nem chora porque habita em sossego a alegria nem o sol da manhã, dia após dia descongela seu manto cristalino: de tão triste a tristeza já nem chora dobra, mansa, longínqua, como sino.

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FÁBULA Um dia há sempre um dia em nossos dias dia que vem no vaivém das vagas horas que passam no vaivém dos dias como se fossem as fugitivas águas. Um dia há, porém há, sim, um dia esse que é marco data que se guarda.

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SUBMARINA Só o avesso do olhar penetraria o avesso da onda e sua luz: clara vidência captando o invento do mar além do mar um mar inverso: recriação do azul.

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OS CONTINENTES DA CASA Além da porta nas entranhas da casa um rio largo divide a casa ao meio. Rio de outrora frio jazente rio: eras remotas que fecho e desabito.

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APONTAMENTOS PARA UM ROMANCEIRO DO RECIFE Depois do carrossel das águas no moinho da Aldeia veio a chuva do Recife restos de infância soçobrando nos caudais que desciam pelas ruas do subúrbio na casa do antigo quintal onde fantasmas escoltavam botijas de ouro entre seivas estranhas de mangas e de cajus dias aflorando com cheiro de café e cuscuz. A infância acabou de repente, de madrugada quando os matizes da aurora se transferiram para a cambraia da camisola e o algodão do lençol. Então alvoroçou-se a vida com o frêmito do pássaro do primeiro amor de bicicleta passeando na calçada e na tarde episódios do Zorro na matinal de cinema dos domingos com gosto de chiclete tutti-fruti e hortelã. As serenatas vieram bem mais tarde. Antes disso, porém, houve os relâmpagos aguaceiros de março quando, a sete chaves me fechei no quarto criminosa lendo O Crime do Padre Amaro.

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TARDE DE JULHO (**) Foi preciso uma tarde assim: violinos de chuva acalantos dolentes vertentes entre céu e terra. Uma tarde assim tão paz tão guerra uma tarde em dilúvio pleno julho para que nas rotas desses rios navegassem nossas naves nossos barcos literalmente de papel.

(**) Ao artista plástico Frederico Fonseca, agradecendo as 10 gravuras onde transcreveu e ilustrou 10 poemas meus.

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APONTAMENTO EM LISBOA Sentada sozinha bem acompanhada em plena esplanada bebo cerveja como tosta mista: ninguém me percebe. Uma avó a mais esquentando ao sol num banco sentada sequer personagem digna de filmagem turista, estrangeira mansa inquietude entre pombas mansas. Que bom estar só sem dor, nem saudade em plena avenida que comigo rima redundância larga rua Liberdade!

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TEMA E VOLTA À esquina do Ano Novo um assaltante me exige a verdade ou a vida. Apenas uma verdade tenho a oferecer: a minha mais terna e doce piedade por toda a humanidade principalmente aquela que ainda vai nascer.

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PRETEXTO NATALINO “Mas algo falta que não sei o que seja.” JUAN RAMON JIMENEZ De onde vem o toque vago de um sino suspiro de um Deus perdido menino se afogando nas frias fundas águas do poço do Natal? Por um instante o acorde longínquo o faz presente e o acorda sob presépio ausente.

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PARÁGRAFO Que poesia teria sido escrita se todo domingo fosse dia de poeta fazer visita?

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CRÓNICA LÍRICA DE SÃO VICENTE DA BEIRA Ao sul, no regaço da Gardunha imerso no acalanto dos pinhais aconchega-se um lugar de maravilha que resiste ao tempo e aos vendavais : São Vicente da Beira, vila antiga de foral e glórias medievais. Reza a lenda que há, nas redondezas ruínas de um castelo, ou cidadela vestígios de história e de grandezas que se guardam ali, de tempos mouros onde um gato de pedra é sentinela de séculos, de estrelas, de tesouros. Na verdade, esta vila foi fundada por Afonso Henriques, rei primeiro em paga aos favores de um valente castelão quando aos mouros combatia : são heranças que vêm desde sempre terra da melhor cepa e melhor gente. Tanto assim, sendo terra de valia com insígnias e honras assinalada foi então consagrada a São Vicente e à capital do Reino irmanada na heráldica, também no padroado de Lisboa pequena foi chamada. Se episódios de infamia e de amargura a crónica vicentina atravessaram saqueando-lhe honras e foral esses contos e cantos de tristura anais e pergaminhos não levaram nem o orgulho da Vila medieval. Casario de pedra onde as heras testemunham séculos de vida

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no percurso de tantas primaveras por rotas de chegada e de partida : aqui um chafariz nos mata a sede além uma ribeira se desvenda. Os brasões da história vicentina encontram-se na pedra eternizados : nos solares, nas fontes, nas esquinas dão-nos conta de gentes e de fados. E os sinos das igrejas em canto novo contam contos dos feitos deste povo. Na Praça o capitel do Pelourinho assinala raízes ancestrais pássaro, escudo, barca, cruz florida resistindo ao tempo e aos vendavais : São Vicente da Beira, vila antiga de foral e glórias medievais.

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NOTA DO EDITOR Organizado e editado pelo GEGA – Grupo de Estudos e Defesa do Patrimônio Cultural e Natural da Gardunha, o livro CANTOCHÃO DE TODAVIA (São Vicente da Beira, 2005) é uma antologia especial, de natureza paterna e materna da terra natal (São Vicente da Beira, Beira Baixa, Portugal) de Maria de Lourdes Hortas, fonte de inspiração dos 50 poemas da autora reunidos nesse livro. Os poemas de CANTOCHÃO DE TODAVIA foram publicados, em tempos diversos, nos seus vários livros aqui reunidos. Registramos a edição dessa antologia, com os créditos necessários - um projeto particularmente importante na obra reunida de Maria de Lourdes Hortas - e republicamos o único poema inédito apresentado nessa antologia, lançada nas Festas de Verão (agosto, 2005), em tiragem de 500 exemplares.

(Recife, 2016)

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A poetisa luso-brasileira Maria de Lourdes Hortas, ausente das livrarias locais há mais de 5 anos, desde a publicação do seu livro Cantochão de Todavia, editado em São Vicente da Beira (Portugal), sua terra natal, em 2005, lança este seu livro inédito – Rumor de Vento -, no Brasil e em Portugal, retomando mais uma vez o seu compromisso com a cultura literária dos dois países irmãos, aquém e além Atlântico. Autora com trabalhos divulgados em antologias brasileiras e portuguesas, ela mesma já organizou várias antologias, destacando-se entre outras, a Palavra de Mulher (Poesia Feminina Brasileira Contemporânea), publicada em 1979 no Rio de Janeiro, e Poetas Portugueses Contemporâneos, publicada em 1985 no Recife.

Poetisa, com 9 livros de poesia publicados, novelista, romancista, pintora, e atuante diretora cultural do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, Maria de Lourdes Hortas, neste seu novo livro de poesia, alcança a maturidade plena de uma autora consciente do seu ofício e da sua identidade como uma mulher de duas pátrias, não divididas mas irmanadas em sua criação.

Juareiz Correya (Recife, PE, 2009)

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Aos meus cinco netos - Gustavo, Raphael, Lucas,

Júlio e Manuel – com esperança e carinho.

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Não esquecer o ruído do vento - essa angústia especial

que se sente quando o vento sopra. (...) O vento que passa sobre a erva

e a faz estremecer.

KATHERINE MANSFIELD (“Diário”)

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CONFIDÊNCIA No início de tudo quase menina o poema deitava-me de bruços no chão frio da varanda como se me rendesse sobre as carumas de um pinhal: escrever era necessário e compulsivo. Agora não me assalta. Nada me exige. Chega de mansinho pés de lã gato inaudível cochilando se aquieta numa réstia de outono. Se insisto e o chamo Se espreguiça e dói.

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MALA Espécie de mala a alma do poeta porão onde se guarda tudo o que serve para a poesia: cartas por enviar labirintos de intenções partidas inacabadas vertigens inominadas catedrais de silêncio mapas indecifrados medos, lápides eclipses, horizontes icebergues, vulcões sonatas de chuva retratos em sépia arquivo de auroras e crepúsculos maravilha de instantes tempo avulso que se escoa e nos leva na voragem da ciranda. O que guardo na alma abro na poesia: nela interrogo a vida dia após dia.

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QUASE HAI-KAIS Não sei onde entre o dia e a noite passa um bonde.

*

Que notícia de pássaros entre sombras se escondem?

*

Por vezes a palavra ao invés de ponte é muralha enigma: gelo, fóssil.

*

Mais depressa do que se espera vira a maré expondo cascos de barcos.

*

Árvore carregada de pássaros: eclipse de frutos ramos de música.

*

Na largueza dos gestos generosos agradecer caminhos que ensinam buscas mais fundas.

*

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Cristal ferindo a noite: alguém desce escadas. A porta estronda adeus.

* Canto orfeônico de galos no lusco-fusco do alvorecer: tenores renomeando coisas.

*

Nas ramas do silêncio despencam águas nos açudes do tempo.

*

Nas antecâmaras da morte a vida se evola. Um Anjo súbito apaga a luz.

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PRELÚDIOS DE SILÊNCIO

I. Debruçada no poço do silêncio chamo por mim: das faíscas das pedras vêm a tona palavras que escondi.

II. Silêncio reboando no vazio de ontem. Heras vestem muros e fecham a casa fria. Não se volta: o tempo não espera.

III. No gume do silêncio pelas dunas da noite dói o olhar e o sorriso do morto sentinela vigilante em tocaia à janela do porta retrato.

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DILUVIANA Dilúvio apazigua a manhã ou a paz é de chuva? O mundo afoga-se. A tristeza ajoelha-se. Lá fora chapinhando descalça anda a poesia.

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OUTONAL O verão se despede porém ainda há festa mel e vinho. Entre acácias bentevis solistas desafiam o sol. Serenamente o amor: marulho estelar à beira-rio.

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BAUNILHA E CHOCOLATE Na aquarela do calendário antigo desmaiam rituais de subúrbio longos domingos de ir à missa com véu de filó branco e vestido cor-de-rosa de fustão. Na lembrança regressa o cheiro de alfazema e o sabor inocente de pecado: comunhão de sorvete de baunilha e chocolate - beijo do namorado.

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ERA DO RÁDIO Cantava um muedjim na casa da infância: meu pai, beduíno, cavalgava por desertos de ondas curtas em busca de oásis nas estações árabes.

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LEVITAÇÃO Acima do abismo do tempo consumido a memória levita: de repente numa tarde de chuva dos sessenta e cinco anos afoguei trinta.

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REENCONTRO Veio. Trouxe rosas do jardim de antigo endereço. Veio. Trouxe sortilégios de inconcluída história e me deixou do avesso.

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PASSOS DO TEMPO Ainda ontem era manhã bem cedo: cinzento o céu, molhadas as vidraças e a neve sobre a paisagem acolchoava o mundo. Ainda ontem era manhã cedinho: ouvia o pai partindo para a caça e o avô contando histórias da França. A avó, junto à lareira, tricotava meias. E a mãe, com seu perfume doce, as mãos de pétala, pairava em surdina no quarto das meninas (minha irmã e eu), aconchegando mantas e sussurrando canções para embalar-nos. Ainda há pouco Maninha me chamava e de mãos dadas corríamos pela praça pulando poças d’água na chuva. Ainda ontem era meio-dia: estava na escola, me vestia de anjo. Depois embarquei num navio para longe e chorei. Ainda há pouco rodopiava no baile e depois esperava o noivo no portão. Ainda ontem entrei na igreja com véu de tule no rosto e rosas brancas nas mãos sob pesado silêncio de pedra.

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Ainda há pouco os meus avós eclipsaram-se. E de repente o meu pai também partiu. Ainda há pouco tive filhos, fui levá-los à escola, Acompanhei-os por caminhos e descaminhos e fiz festa quando reencontraram a casa pródiga. Ainda há pouco as mãos de pétala da mãe cruzaram-se sobre o peito e o acalanto dela em minha vida congelou-se para sempre. De repente sou avó. Daqui a pouco vai anoitecer.

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RUMOR DE VENTO Quando o poeta se desabita parte mas fica. Restam vestígios talvez um código talvez um mito. Sua palavra seiva, raiz flama no tempo: rumor de vento.

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FADO DA INDECISÃO Entardecer. Estou em Lisboa. Atravesso o Rossio. Compro castanhas. Parece que vai chover. Faz frio. Chego à beira do Tejo: vai partir a barca para Cacilhas. Dou meia-volta atravesso a grande praça. Um elétrico passa. Regresso ao Rossio. Parece que vai chover. Faz frio.

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CEIFEIRA À moda de Alberto Caeiro

Não entendo os versos dos poetas literatos: herméticos eremíticos eruditos cabalísticos se escondem entre campos minados cifrando entre si os seus recados. Sou uma simples ceifeira: pelos campos de ervas passo a colher flores.

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PRIMAVERA Chapéu branco de palhinha com fita xadrez atada ao pescoço. Meias de renda até os joelhos feitas com três agulhas pela minha avó. Assim chegava a primavera cheirando a rosas bravas e alecrim. A brisa, ainda fria, arrepiava-me as pernas Recém despidas das polainas de lã. Aos beirais aportavam andorinhas viajantes. Logo as cerejeiras se enchiam de pardais. As meninas da aldeia transformavam as cerejas em brincos de rubis e miravam-se, lindas, no cristalino espelho das águas da ribeira.

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CIRANDA AO PÔR-DO-SOL Nas longas tardes de verão o sino trocava o dia pela noite intervalo mágico do crepúsculo manto de violetas e rosas no céu enquanto brincávamos de ciranda na Praça: - Bom Barqueiro, Bom Barqueiro dás licença de passar ? Por nós passava o melhor tempo de nossas vidas doce inconsciência de ser feliz.

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SEIXOS BRANCOS Não jorram como fontes nem correm em fio como lágrimas: seixos brancos e lisos as palavras afundam nas espessas águas do rio que atravessa o meu coração. Não me consola mais dizer rouxinol, pomar fonte, sino, roseiral penhasco, cereja, chafariz moinho, concertina, pinhal praça, guitarra, alecrim ribeira, rosmaninho. As palavras já não me aquecem. Às vezes digo aldeia e o silêncio paira pluma que se perde sobre a neve.

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ESPIRAL Árvore despida no vendaval dançando eólica sinfonia :rodopio no baile final.

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ÁLBUM DE SOMBRAS Os moços ufanam-se da sua juventude como se a mesma fosse conquista pessoal. Tudo o que os velhos viveram e recordam são enfadonhos capítulos de antanho em tempo jurássico e ancestral. Para os jovens só o presente conta. Mas que presente se apresenta intacto?

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P.S. AOS CONTEMPORÂNEOS Encontros entre amigos horas solitárias para escrever tempo para leitura contemplação de lua, estrelas e sol posto são rituais perdidos neste mundo prático imediatista financista estoicista puritanista asséptico violento cínico. Daqui a algumas décadas, nós que valorizamos a beleza das coisas sem utilidade imediata e a dimensão estética da vida estaremos mortos. Que corcel levará os que agora chegam à secreta ilha da poesia?

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PONTO DE INTERROGAÇÃO Idealismo e esperança não acendem ruínas. Fraternidade e justiça são ecos de promessas extintas que o vento varreu para além do tapete da noite escura. Que deus ainda habita a lua estática?

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VESTÍGIOS Na argamassa do chão colhemos as pegadas da passagem de povos milenares registrados ou anônimos - indestrutível herança urdida ponto a ponto no tear da história: vestígios de miragens e sentimentos dos visitantes que antes de nós fizeram a travessia nesta mesma barca de areia.

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REGISTRO PARA MAIS TARDE Meu neto Julinho com oito anos e janelas nos dentes lanchava tangerinas bago a bago, pensativo. Então olhou para mim e refletiu: “As tangerinas são muito previsíveis. Todas têm os caroços no mesmo lugar!”.

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CANÇÃO PARA MEUS 5 NETOS Quando chegam em revoada uma avalanche passa na sala do apartamento. Em algazarra espalham-se como se desfolhassem as cores do arco-íris na relva de um jardim. Desarrumam o tempo e confirmam a brevidade e urgência da infância.

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ACALANTO PARA MANUEL Assim que o sol vai dormir com edredom bem fofinho entre nuvens de cetim mando chamar estrelinhas com pós de pirlimpimpim: com elas teço cantigas aos teus sonhos serafim. Peço aos anjinhos do céu que cantem bênçãos pra ti. Depois, quando vem a lua, linda lua de marfim, nela embalo teu soninho com doçuras de alfinim.

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CAVERNAS DE VIDRO

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No princípio aprenderam a ter medo e protegeram-se. Construíram casas de pedra e lama, pequenos refúgios

onde não tardaram a sentir-se cada vez mais sós.

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA (Poetisa portuguesa contemporânea)

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RUPESTRE Sobre as ruínas meu sentimento paira sobrevoando signos. Do mirante surpreendo territórios antiquíssimos seres encurralados em cavernas de vidro. Pelo filtro de gaze das cortinas vê-se luz confirmação da vida saltimbancos no trapézio dança de folhas numa réstia de outono. Dentro da noite o luar é o retângulo da janela fluorescência flutuando no silêncio sibilas de água e fogo armando jogos: ritos de pânico exorcizando o enigma.

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LEGENDA CONTEMPORÂNEA PARA GRAVURA RUPESTRE Que grito virtual estilhaça o cristal do silêncio nesta surda selva cega? Que sombra se reflete no cristal do silêncio máscara para o eterno ser rupestre?

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CRÔNICAS URBANAS

1. Da garganta da noite na cidade degradada brotam anjos degredados matando-se pelos desvãos sombrios nas valas de becos apocalípticos.

2. Abro a janela para a paisagem. Ainda há mar e céu e pássaros. Esgueirando-se na esquina o menino assaltante. A luz do dia não afugenta pequenos anjos maus.

3. A lua se aquarela por trás das escarpas dos mausoléus urbanos onde seres em pânico se escondem.

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4. Ouço apenas contar as lendas. Nada sei dos signos ilegíveis cifrando nos muros ameaças em surdina.

5. No lamento noturno do mar sinto cheiro de sangue: a Terra se esvai apunhalada.

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MARINHA CONTEMPORÂNEA O mar obstinado e azul vai e vem na estrutura líquida e se retorce indiferente e exato. A noite engoliu as estrelas e se quedou redonda impenetrável adormecida e farta.

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O SANTO E OS POMBOS Todos os dias ao alvorecer à beira-mar um velho reedita São Francisco alimentando pombos. No século da minha juventude vi cena parecida na praça do Rossio. A imagem poética (à época) merecia crônica foto e postal. Mas os valores líricos arderam pouco a pouco no torvelinho da poesia abolida. Neste século ecológico o gesto do santo tornou-se incorreto e os pombos tornaram-se perigosos predadores.

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CANÇÃOZINHA PARA UM MENINO SEM TETO Na avenida maior um menino e um pardal tomam banho num charco de chuva. Sem telhado que os cubra deixam-se agasalhar pelo manto inútil da minha compaixão adormecendo ao relento das estrelas no chão.

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FRAGMENTO DE UMA CANÇÃO TELÚRICA Todavia pássaros assobiam enamorados e ainda se amam nos telhados. Todavia bichos passeiam pelos montes e frutos amadurecem à revelia das harpias.

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ESPERANÇA Há de existir um ponto de candura fulgurante nas mandalas das galáxias onde seja possível renascer. Há de existir uma nascente nas mandalas das galáxias onde a gente se permita apenas ser.

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ÓBVIO Embora a gente finja que não ninguém escapa da similitude com o símio nosso irmão.

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PAISAGEM DE OUTRORA Antes das jaulas de cimento e alumínio cárceres de concreto e vidro houve casas com alpendres e jardins e muros de papoulas com borboletas e pássaros. Antes destes calabouços ao fim da tarde depois do trabalho os homens vinham de ônibus para casa com o pacote do pão. E as mulheres coavam o café faziam a ceia e com os cabelos molhados cheirando a sabonete iam esperá-los faceiras em cadeiras na calçada proseando com as vizinhas e vigiando as crianças que de banho tomado e roupa especial para as tardes cantavam cirandas sob a luz das estrelas enquanto a brisa acariciava a relva do chão.

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ANTI-DEPRESSIVOS Os infortúnios acendiam versos antes das pílulas para a melancolia Agora as mágoas fundas abortam rosas diluídas que são em verdes cápsulas Todavia há sempre uma opção: poesia, ou não.

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PARADOXO Impossível conter o pranto sobre a argila doente deste planeta em chamas: quanto mais o degelo se processa mais se enregelam os corações das feras.

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FLECHAS Incidentes nefastos ultrapassam fronteiras e cravam-se abruptos em nossos corações. Estilhaços de dor tingem de sangue a insônia. Por areais da noite o anjo do terror corta o caule do sonho.

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IMAGENS DIGITAIS

1. No parque minha ausência passeia.

2. Talvez o rastro de perfume na caixa do elevador confirme que há gente neste palco vazio.

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CARTAS À MINHA MÃE

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Aos poucos a hera sobre as pedras Vira pedra (...)

WALLACE STEVENS

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I.

Quando quase menina, comecei a escrever eras sempre a primeira leitora. Se gostavas, dizias: “Fiquei arrepiada. Isso é bom!” Se não gostavas, o arrepio não vinha. Aconselhavas-me: “tenta outra vez...” Depois que partiste, Mãe, naquele agosto cinza, A poesia calou-se dentro de mim. Hoje ocorreu-me a causa do meu silêncio: tanta coisa para te dizer e não consigo... Certamente por conta da ausência do barômetro, teu arrepio. Por isso resolvi escrever estas cartas: quem sabe assim conseguirei demolir o silêncio que vem aprisionando o meu coração? Minha querida Mãe, Quando receberes esta, de onde estiveres, como te for possível por favor envia-me um sinal de que a carta chegou. Pode vir numa sonata de chuva na visita de beija-flor no arrepio de vento...

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II. Minha alma regressa esta noite: Seu retorno dói. Dou-me conta de que não sou de pedra.

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III. À noite o silêncio da casa parece levedar como crescia a massa do pão sob dobras de linho nos mistérios da infância. Mal escurece pressinto teus passos riscando o corredor. O coração acelera-se prelúdio na penumbra da sala dissonância no piano ausente.

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IV. No sonho ultrapasso o portal secreto. Meus dedos resvalam pela seda lilás do teu vestido.

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V. Esta madrugada liguei para ti: Chamou, chamou e ninguém atendeu. De repente veio a chuva dialogar na vidraça. Do retrato antigo escapou o teu sorriso.

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VI. Agora que dormes sob a pirâmide no vértice do tempo sabes o que diz o vento quando passa assobiando pela estrada.

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VII. Na casa onde vivias murcharam as violetas todavia chuvas e ventos ainda conversam na varanda onde rezavas voltada para o mar. O quarteto de pássaros teus amigos visitantes pontuais pela madrugada e ao entardecer não entenderam porque emudeceu tua presença azul alumiando o sol.

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VIII. O rio da tua vida passou a ser meu afluente enquanto rio eu for. Depois de mim quem colherá tuas águas?

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IX. A porta da tua casa cerrou-se para sempre quando fecharam a porta da caixa onde apenas coube teu corpo frio.

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X. ...livro aberto na mesinha de cabeceira porta-jóias caixa de música xícara sobre a mesa vidro de perfume anel retrato vestido sobre a cama coisas tantos e tantos signos da engrenagem da vida gestos expostos emoções à deriva espalhados na pressa da partida.

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XI. Inviolável cofre tua vida tornou-se ontem para sempre. Impossível reverter a rocha lava fria.

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XII. Agora tua casa se entrelaça nas casas daqueles que ainda por aqui se demoram mais um pouco. No retrato antigo sorris e esperas: é véspera, Mãe.

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XIII. Quando te cobriram com a mortalha de terra a vida pesou sobre mim, órfã.

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XIV. Um portal se fecha a tristeza me cobre: crepe negro e molhado terra soterrando o cofre que te enterra.

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XV. Implacável eclipse o da morte transformando em bronze a que viaja mares de terra a dentro. A ressonância do pranto não atinge o biombo que te oculta.

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XVI. Menina adormecida dentro do barco sonhas com a eira ao relento do luar. Para essa geografia viajas ao encontro dos que vivem na aquarela antiga.

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XVII Ficaram teus recados inscritos na tarde lilás de um agosto de chuva. Fábulas cifradas nas folhas de chá depostas na porcelana fria.

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OUTRAS OPINIÕES SOBRE A POESIA DE

MARIA DE LOURDES HORTAS

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Arnaldo Saraiva A POETISA DE SÃO VICENTE DA BEIRA (...) Creio que numa das primeiras semanas de 1959, o Diretor deste Jornal entregou-me uma carta chegada do Brasil, com um poema bucólico e disse-me: “Veja se vale a pena publicá-lo.” Assim fiz. E eu próprio redigi a pequena nota que sob o título de “Bens de Raiz” apareceria, tempos depois, no canto superior da 6ª coluna da primeira página do Jornal do Fundão e acompanhava a publicação do primeiro poema da jovem (18 anos no tempo) Maria de Lourdes Mateus Hortas.(...) “ O mundo é grande e é pequeno”. Não voltamos a ver-nos. E quando já mutuamente nos julgávamos no Brasil... (Eis que nos cruzávamos, em Lisboa, à saída do Tivoli). Desta vez, Maria de Lourdes Mateus Hortas, já não tinha um poema para submeter à minha apreciação: tinha um livro. Um livro que acabava de sair, fresquinho, dos prelos portugueses e que, à hora em que escrevo, ainda não está à venda. Intitula-se Aromas da Infância e ganhou o primeiro premio do concurso de manuscritos do SNI, em 1963. (...) É ainda um livro de juventude. Quero dizer, um livro não expurgado. Há nele achados sensacionais. (...) Sobre a pedra da sua infância reconstrói Maria de Lourdes Hortas a sua vida e constrói a sua poesia. Que as paredes e o telhado desses dois edifícios sejam tão sólidos como a base - eis o que deseja a Maria de Lourdes Hortas quem, por grato acaso, foi o primeiro a criticar publicamente o seu primeiro poema e o seu primeiro livro publicado.”

ARNALDO SARAIVA - Poeta, escritor, crítico, professor da Faculdade de

Letras da Universidade do Porto, Portugal. Texto publicado no Jornal do

Fundão, em 5/12/1965.

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Paulo Caratão Soromenho MARIA DE LOURDES HORTAS AROMAS DA INFANCIA Edições Panorama, S.N.I. Lisboa. -Primeiro premio de poesia do Concurso de Manuscritos do Secretariado Nacional de Informação de 1963.

(...) A autora dedica o livro à sua avó a quem se prendem as recordações da sua infância - e daí o romântico título que qualquer autor de há cem anos não desdenharia: a técnica é moderna, o que em linguagem corrente chamaríamos modernista; a poesia é, musicalmente linda e agradaria aos ouvidos de quem fala a nossa Língua, a partir, pelo menos e conforme creio, do século XVII; a linguagem é de lei, quero dizer, poderia afoitamente sujeitar-se à análise dum professor rigoroso de português. (...) As coisas simples atraem a autora mas deixam de ser coisinhas,quando ela as chama a si e lhes dá a grandeza da sua emoção poética. Não se transcreve nada - o espaço é tirano - mas insisto no conhecimento da poetisa.

PAULO CARATÃO SOROMENHO - Escritor português. Texto publicado na Revista Colóquio Letras, Lisboa, dezembro, 1965.

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José Afrânio Moreira Duarte A POESIA DA SIMPLICIDADE (...) Maria de Lourdes Hortas, usa como uma das epígrafes o verso de Manuel Bandeira: “ Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples”.Foi uma feliz escolha, pois tais versos definem toda a essencia de Fio de Lã , onde belos poemas se sucedem comunicativos e sem afetação, inspirados na temática do cotidiano, de pensares e sentires, tudo de acordo com o propósito expresso pela própria autora: Não farei poesia sofisticadamente profunda:/ profundo na vida é viver/e os conceitos são meros contornos de maquilagem.” Realmente, profundo na vida é viver e através das páginas de Fio de Lã aspectos da vida, com toda a sua profundidade, estuam. (...) realmente, é muito difícil hoje em dia falar algo inteiramente novo, mas MLH sabe com segurança dar sua visão muito pessoal das coisas já vistas, já sentidas, de tal forma que elas chegam a assumir um aspecto de novidade. (...) Neste bom livro, que se lê com interesse e agrado, Maria de Lourdes Hortas toma um “Fio de lâ” e com ele vai tecendo não apenas poemas e sim poesia mesmo. Uma autora de talento, um nome a guardar.

JOSÉ AFRÂNIO MOREIRA DUARTE - Membro da Academia Mineira de Letras. Texto publicado no jornal Estado de Minas em 15 de outubro de 1980.

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Josué de Oliveira Lima PALAVRA DE MULHER O mais novo lançamento da poesia feminina brasileira contemporânea está ocorrendo em Pernambuco, com ampla cobertura dos meios de comunicação e plena aceitação do público que prestigiou o acontecimento, vendo de perto um grupo de autoras e adquirindo a obra antológica organizada por Maria de Lourdes Hortas. Logo nas primeiras páginas, o motivo da antologia foi justificado com a rica frase de efeito reparador, afastando a idéia apressada de feminismo predatório, ao tempo em que se livram as musas das cavilações poéticas que envolvem as mulheres sem objetivos culturais definidos, muito em voga na sociedade cheia de transfigurações do conturbado mundo em que vivemos: Cansada dos histerismos de um movimento que por pouco não a levou ao caos, a mulher assume sua verdadeira condição, sem pretender ser um carbono masculino que pede a palavra, libertando-se através dela, com toda a carga biológica inarredável”. (...) Em Palavra de Mulher são quarenta e cinco figuras escolhidas e projetadas pelo mesmo livro, que oferece ótima contribuição para restaurar o bom gosto pelas suaves cousas do espírito, como se fosse um elenco de vozes empenhadas na composição de uma sinfonia virtual, disciplinada pelo hinário das vocações contemplativas, numa comtraposição codificada de reação ao estigma da violência que ameaça o espírito humano. (...) São nomes respeitadíssimos no campo da poesia e das letras, (...) que poderá o leitor encontrar nesse importante trabalho de Maria de Lourdes Hortas, cujo dinamismo e operacidade a faz portadora do maior respeito na sua linhagem mágica de luso-brasileira.

JOSUÉ DE OLIVEIRA LIMA – Jornalista, crítico. Publicado no Correio da Manhã, Rio de Janeiro, RJ (11/08/1979)

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Ligia Averbuck NOVA MULHER, NOVA POESIA Palavra de Mulher: Poesia Feminina Brasileira Contemporânea. Org. de Maria de Lourdes Hortas, Fontana, Rio, RJ, 1979. A idéia de uma antologia “feminina” geralmente causa desconfiança. Tanto poderá se aproximar do tipo “panfleto feminista”, como, do gênero conservador que, sob as vestes de um pseudo feminismo remete às velhas idéias do “ eterno feminino”. Terreno delicado, portanto, o que pisou a organizadora desta antologia. A desmentir possíveis dúvidas, quanto à possibilidade de êxito, aí está Palavra de Mulher,em edição cuidadosa, confirmando, na apresentação gráfica, bom gosto idêntico ao que presidiu a seleção e ordenação dos textos. (...) Se é certo que essas 45 escritora não utilizam a mesma linguagem ( o que é próprio das antologias), é bem verdade que a mostra alcança um nível de unidade , que não advém da identidade formal ou de princípios poéticos, mas de um ponto de vista comum, identificável a partir da organização temática do livro, a espelhar a nova consciência da mulher no mundo. (...) Nas páginas bem escolhidas de Palavra de Mulher pode-se ler o discurso eloquente de uma nova linguagem – a que foi conquistada pela mulher brasileira na busca da sua autonomia.”

Publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, RJ. (01/09/79)

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Stella Leonardos ACIMA DO TUMULTO DE HOJE, BELAS VOZES FEMININAS “A mulher também é autora e não apenas musa.”- Estas palavras são de Maria de Lourdes Hortas, jovem poeta corajosa. Numa época em que a poesia é relegada para o fundo das estantes das livrarias ( sob o pretexto de que não se vende), vem Maria de Lourdes, com o talento que lhe é próprio e a coragem que Deus lhe deu, e organiza um livro que já é marco de poesia e documento epocal. Um livro que reune 45 mulheres de vários cantos do Brasil, falando poesiamente, aos leitores de língua portuguesa. Uma antologia que está dando o que falar, lançada com êxito sem precedentes no Recife, disputada em noite de autógrafos no Rio, e em tantas outras cidades brasileiras. (...) Maria de Lourdes Hortas deixa bem claro que a intenção da coletânea é a de se constituir, principalmente, num registro, subsídio não só literário, mas social.”

STELLA LEONARDOS - Poetisa e escritora. Texto publicado no Jornal de Letras, Rio de Janeiro, RJ. (Outubro/1979)

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Alberto Lins Caldas O LIRISMO EM GIESTAS A poesia lírica é no nosso tempo, antes de tudo, um ato de coragem. Escrevê-la é mergulhar na origem poética da linguagem, do sentimento, naquilo que nos faz humanos e que apesar de tudo ainda nos salva do anti-sentir. Nos poemas de Maria de Lourdes Hortas é alcançado um vigor lírico dos mais belos da literatura brasileira. A precariedade do mundo, suas coisas pequenas, “ o cheiro das maçãs/ a cor dos morangos/ os arabescos do sol”, não são desperdiçados pelo seu modo gostoso e alegre de ver as coisas. Nela se recria, a cada leitura, a magia imemorial dos rituais do amor,” entre os trigais macios.” Em Maria de Lourdes Hortas o amor é algo novo, trazido do passado com a força e “ a grandeza da vida menor”, sendo “ rastro de ave, peso de folha, “, chutando para o lado a selvageria deste tempo esquecido de amar e de escrever amor. (...) Em Giestas (a autora) nos leva a passear por suas emoções, soltando, em cada poema, o “ fio de lã” a nos conduzir por um universo perfumado que não nos faz sentir tanto a falta de Cecília Meireles, mas que completa o quadro lírico brasileiro com maestria. (...) O “mundo” de MLH é a “ madeleine” das nossas origens sentimentais e literárias. Sua obra, a ponte entre o passado e o presente-memória e o presente-palavra, realçando a vida , seja ativa como escritora a trabalhar o sentido, seja como recriadora da luminosidade estranhamente proustiniana na cozinha imaginária dos seus “versos” feridos da imortal beleza”.

ALBERTO LINS CALDAS - Escritor e ensaiasta pernambucano. Texto publicado no Diário de Pernambuco (Recife, 7 de maio /1982).

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António Salvado FLAUTA E GESTO Maria de Lourdes Hortas / Recife, 1983. (...) Este itinerário metafórico, sugerido pelo belo livro de Maria de Lourdes Hortas, alicerça-se na riqueza evidente de uma voz lírica cheia de timbre que, embora portuguesa, no Brasil tem corporizado uma obra poética de real importância. Em alguns aspectos Flauta e Gesto consubstancia técnica que livros anteriores patentearam. Voz discreta porque profunda e grave e grave porque sincera, ela colhe nas raízes ( nas origens, se quisermos) o pólen e o som, suportes da sua linguagem. (...) Obedecendo a determinada configuração de quase pequeno diário ( e tão vasto na substância), Flauta e Gesto encadeadas ressonâncias de um cântico incessante que repercute encontros e desencontros, as tristezas e as alegrias, a não abdicação da consciência de se viver: “Recuso a paz porque prefiro a vida/ enquanto a posso haurir.”

ANTÓNIO SALVADO - Poeta e escritor português. Texto publicado no Jornal do Fundão, cidade do Distrito de Castelo Branco, Portugal (2 de março de 1984).

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César Leal RELÓGIO D´ÁGUA – VERTIGEM Relógio d`Água, poemas de Maria de Lourdes Hortas, é uma obra excitante pelo muito que tem a oferecer ao leitor no âmbito de experiências liricamente comunicáveis. Trata-se de uma poesia rica em sensações visuais, auditivas e tácteis, elementos que contribuem para a formação de uma variada tipologia de imagens. (...) A imagem intensificadora, da classificação de Henry Wells, imagem capaz de revelar o apenas abstrato ou espiritual em forma concreta e com espantosa nitidez, também está presente nesta poesia. (...) Na maioria dos poemas de Maria de Lourdes Hortas a imagem visual ou auditiva apresenta um elevado coeficiente de visibilidade. (...) Um bom exemplo de criação de imagens poéticas dotadas de eficácia expressiva está neste soneto de Maria de Lourdes Hortas: Quando em vertigem tombo enluecida desço às cisternas, em seus cristais me cego por desengano a verdade nego apunhalada te apunhalo, vida. Brotam de mim espinhos que aos molhos são desatados pelas incertezas desenterradas desde as profundezas rompendo à flor das águas dos meus olhos. Punhais de amor varando esse gelado aquário de ciúme onde o ciúme arde dentro do peito incendiado. Gritos em brasa, afagos de um cardo ao se cravarem no amor são vagalumes que em se apagando o deixam tatuado.

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O poema fala do amor e dos males do amor. As imagens refletem essa situação. Basta observar que as palavras estão dispostas em uma relação de mútua dependência, semanticamente solidárias. “Vertigem”, como qualquer palavra isolada, não diz mais do que aquilo que literalmente significa. Mas é do sentido formado por “ tombo”, resultrante da “vertigem “ que nasce a loucura de que é sinônimo a palavra “ enluecida”. Enluecida tanto pode sugerir imagens de claridade lunar como de loucura: enluecida desço às cisternas e me cego em seus cristais. A verdade é negada pelo desespero e o amor é o bem que apunhala o agente da ação de amar que, por sua vez, apunhala a vida. (...) Maria de Lourdes Hortas é autora de uma poesia verdadeiramente lírica, sendo este seu livro, lançado pelas Edições Pirata, um dos melhores aparecidos no Brasil em 1985.”

CÉSAR LEAL - Poeta, crítico literário, professor de literatura da UFPE, fundador do Mestrado de Letras na mesma Universidade. Este texto foi publicado no Caderno Panorama / Diário de Pernambuco (Recife, 22/11/1985)

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Celso Pontes REENCONTRO COM MARIA DE LOURDES HORTAS OUTRO CORPO (Edição Fundarpe, Recife, 1990) Maria de Lourdes Hortas é uma brasileira nascida em Portugal. Uma brasileira completa que jamais se desprendeu das suas origens.(...) E por isso a Poetisa vai sempre descrever o amor, por mais que lhe passe ou lhe bata à porta em fantasia ou realidade, se enraize de esperanças ou se esváia; seja motivo de esperança ou desilusão, de alegria ou de medo,como razão de inspiração para cantar o destino, a sorte, a sina, como fonte cristalina que só o Poeta conhece, porque é nela que bebe e mira tanto a dor como a beleza da vida, fazendo-a antever tal qual ele ou ela, aos que não tiveram o sortilégio de serem poetas, mas de amar a poesia.(...) É rico o lirismo de Maria de Lourdes Hortas e não o meto em gaiola de escolas: por que ela é tão livre, tão livre, que não cabe, nem vive em recintos onde não possa voar o seu divino estro. O que é outro corpo? Corpo/não o meu ou o teu/ porém o nosso: / mistura, encontro, mutação./ Ser pleno que se liberta/ do eixo isolado de cada um de nós:/ Outro corpo/ fusão. Tudo é novo, neste cantar que atingiu plenitude. Só não é nova a beleza formal, a palavra certa que parece ter sido concebida para a Poetisa a usar, pois ela É a lua nova/ a vida é nova/ rutileza, cores, centelhas. (...) No meio da felicidade de Outro Corpo encontrado, existe, bem lá no fundo, inconsciente talvez, a raiz: o estalar e crepitar das fogueiras em noites de Inverno luarentas e estreladas, mas álgidas, no aconchego vivificante da lareira familiar, onde já não o fado, mas as fadas nos vêm contar histórias de encantar, tanto que

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Um pássaro veio e pousou no peitoril da varanda e depois saltou para a haste de uma avenca onde brincou com meu deslumbramento. Na casa a beleza maior é haver espaço para a visita gratuita deste pássaro võo dentro do vôo da vida.

CELSO PONTES - Jornalista e cronista português. Texto publicado no Suplemento Cultural “Facho”, do jornal Comercio de Vila do Conde, de Vila do Conde/Portugal, julho de 1990.

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Iolanda Rodrigues Aldrei EVA, NO RECADO DE MARIA DE LOURDES HORTAS RECADO DE EVA Publicado pelos Cadernos do Povo, em 1990, edição Braga/Pontevedra (Galícia). “(...) Trata-se de um texto composto por vinte e nove poemas nos que a voz pertence a uma Eva, narradora em primeira pessoa, quem, com um profundo lirismo, nos leva de mão dada à sua vida feita de acontecimentos diferentes. (...) Mas Eva deixou a Adão o seu recado: Antes que me esqueça, Adão, preciso perguntar-te : acaso conferiste, uma a uma, tuas costelas hoje pela manhã ? Digo isto porque, de madrugada enquanto dormias o Criador veio e me fez de uma delas justamente aquela que ficava sob o teu coração. Para a teres de volta (e como ela te deve fazer falta) tens de me colocar inteirinha nesse lugar. É a particular visão de Eva. A mulher apanha a voz que lhe foi tirada, recupera o protagonismo de pessoa e interroga Adão com a sua linguagem coloquial que nos leva até uma familaridade pre-existente. Eva continua uma conversa começada já antes de ele ser. Com uma certa dose de ironia afirma que foi feita de uma das costelas de Adão, mas não de uma qualquer senão daquela que ficava sob o seu coração; produz-se a reconversão do mito, é agora

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Adão quem necessita amar Eva para ter a costela que o Criador lhe tirou. Lourdes Hortas não rompe, não modifica nada, mas assume com olhos próprios e voz feminina, aceita Eva necessidade do homem e outorga-lhe a palavra quotidiana do ineludível. Não é Pigmalião quem suplica a Afrodita, é Afrodita quem decide e a estátua quem informa ao companheiro da sua existência. A poeta cria um quadro no que é melhor, optimista, confiada, pode ter todas as possibilidades porque tudo é simples neste primeiro poema, o verso, a expressão, o estilo, a palavra... Eva nasce com o mais puro racionalismo de uma criança.”

IOLANDA RODRIGUES ALDREI - Professora de Literatura na Galícia, Espanha. Trechos do Estudo apresentado durante Simpósio Internacional de Literatura, em Santiago de Compostela – Universidade de Letras, em fins do ano de 1990.

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Hildeberto Barbosa Filho VIAGEM PELAS RUINAS Com dois romances - Adeus Aldeia, 1990, e Diário das Chuvas,1995 -, é na poesia, contudo, que a portuguesa, hoje brasileira radicada em Recife, PE, Maria de Lourdes Hortas, vem se exercitando de modo contínuo e sistemático, a exemplo do seu mais recente livro de poemas, Dança das Heras , publicado pela Átrio, Lisboa, na coleção O Lugar da Pirâmide. Aqui, à maneira de outros momentos (e penso especialmente em Flauta e Gesto, Relógio d’Água e Outro Corpo), o lirismo de Maria de Lourdes Hortas se recorta dentro de um modelo vérsico em que a contenção não anula o dado afetivo, a espessura sensível, a fatura sentimental que parece ser peculiar à sua dicção. A sua frase poética é infensa tanto ao arrebatamento conteudístico como ao gratuito experimentalismo formal, edificando-se, portanto, numa zona intermediária em que a lírica serve tanto ao contole do ritmo, no seu leve andamento melódico, como o domínio discreto das pressões emocionais. Dança das Heras é, num certo sentido, um livro de viagem, um livro de circunstância, como esclarece a própria autora numa notinha de rodapé: escrito a partir da emoção de uma visita a Conimbriga, cidade romana próxima de Coimbra. Nem por isso, todavia, se constitui numa obra datada, localizada, fechada tão somente no circuito semântico da sua referencial motivação. Ao contrário: a percepção lírica que se arquiteta, nessa pequena coletânea de textos poéticos, transcende os elementos meramente circunstanciais, para alcançar patamares de abstração, somente identificáveis na esfericidade e abertura da mensagem estética. (...) O foco da criação, nesta obra, parte do olhar. Do olhar que observa, do olhar que descreve, fazendo-o, contudo, à margem das grades realistas da percepção. À poeta interessa observar, sim, observar a paisagem já devastada pela ação do tempo, a paisagem em escombros, mas observar para transfigurar, num movimento

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que é muito mais de dentro para fora do que de fora para dentro, num procedimento típico, embora aqui a leveza e a simplicidade não o permitam, como tal, da arte expressionista. (...) O resultado de tudo isso consiste num pendor indisfarçável para a metáfora visual, a vincular a poesia de Maria de Lourdes Hortas ao território plástico da pintura. A inventividade de certas imagens (“um aquário de luas nos espera” e “tigre de pedra, aveludando o silêncio”) transforma, nos limites da palavra, sua poesia em tela, onde se atritam, na procura da harmonia estética, imagens, cores, sinestesias para, entre o descrever e o pensar, entre o pensar e o sentir, entre o sentir e transfigurar, moldar o paradigma da poesia ou, na voz do eu poético, Ao terceiro verso, ressuscito dos mortos, como está lá, em “Acto de Fé”. A visualidade dessa lírica beira o flagrante do haikai, com todas as suas implicações filosóficas e metafísicas. (...)

HILDEBERTO BARBOSA FILHO - É poeta e crítico literário. Texto publicado no jornal O Norte, João Pessoa, Paraíba (01/09/1996)

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César Leal DIÁRIO DAS CHUVAS: PROSA OU POESIA? Maria de Lourdes Hortas, que pelo seu trabalho está a merecer atenção dos analistas do fenômeno poético, acaba de lançar Diário das Chuvas. Seria a segunda parte de uma trilogia situada no âmbito da ficção narrativa. Contudo, creio que essa projetada trilogia continua à espera da segunda parte.(...) O que se apresenta agora, sob o selo da Editora Bagaço, Recife, 1995, é um livro de poemas. Poemas com muitos recursos próprios da expressão poética e não da expressão literária, conforme a distinção estabelecida por Benedetto Croce. Alternando versos brancos com versos rimados, outros metrificados com versos livres e a prosa poética presente em todos os capítulos, tudo isso faz do seu livro uma autêntica obra de criação no âmbito da poesia. (...) O capítulo VII é simplesmente um poema. Um poema construído com rigor. As estrofes são irregulares, os versos polimétricos, as imagens são ousadas e belas, como neste exemplo: “Quem me abriga a nudez com amplas asas/ de serenidade.” O capítulo X é um poema em quartetos com quatro estrofes em versos heptassilábicos, com exceção do primeiro que é um hexassílabo. Maria de Lourdes Hortas parece gostar do número 4. Neste poema de 16 versos que forma todo o capítulo XXXI, nota-se que há um ponto no final de cada quadra, o que vem a ser igual a quatro estrofes. Transcrevo o seu poema para dar ao leitor um conhecimento imediato da força do poeta: Um ser candente de luz que prometia levar a noite e inaugurar o dia. De olhar macio com o peso de veludo e de silêncio que me dizia tudo.

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Talvez um anjo de voz tão funda e calma enluarando os vôos de minha alma. Asas tão largas cuja sombra podia trazer a noite e abolir o dia. (...) Maria de Lourdes Hortas não é uma estreante. É uma escritora com uma consciência muito forte de seu ofício.

CÉSAR LEAL - Poeta, escritor, crítico literário, professor de Literatura. Texto publicado no caderno Panorama, do Diario de Pernambuco, em 17 de junho de 1995.

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Hildeberto Barbosa Filho UMA COROGRAFIA DO INVISÍVEL (...) Em Fonte de Pássaros, mais do que nas coletâneas anteriores, Maria de Lourdes Hortas assume o total despojamento da linguagem, procurando, parece, centrar o sentido de elaboração de sua dicção poética na noção medular que exigia o paideuma poundiano. Isto é, uma dicção sintética, uma construção contida, uma espécie de expressão mínima para um máximo de conteúdo. Em outros termos, uma linguagem plena de significados (....) A poeta revela uma inconfundível sensibilidade voltada para os aspectos inefáveis que modulam secretamente a textura do real. Diríamos que, nesta vertente a lembrar as figuras icônicas de uma Emily Dickinson, de uma Cecília Meireles ou de uma Henriqueta Lisboa, M.L.H. como que tece a poesia das coisas invisíveis, a poesia das coisas essenciais. (...) A poesia de Maria de Lourdes Hortas, neste momento, mais que em qualquer outro, deixa-se invadir, a par dos elementos mínimos que compõem uma espécie de corografia do invisível, por aquela típica leveza proposta, no plano literário e estético, por Ítalo Calvino para o terceiro milênio. (...) Sagração das coisas mínimas é o poema da página 64. No seu título, tem-se, assim, um perfeito resumo do lirismo, em Maria de Lourdes Hortas, lirismo de celebração, lirismo de ternura, lirismo de encontro, revelação e epifania. (...) É uma grata surpresa, portanto, termos um encontro marcado com a singularidade desta voz poética, desta voz feminina, sobretudo num momento em que a voz feminina, salvo as exceções de sempre, vem como que se perdendo na ciranda dos estereótipos ou no apelo do cânone fraudulento de uma ainda mais fraudulenta pós-modernidade.

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Neste sentido, a poesia de Maria de Lourdes Hortas, sobretudo neste Fonte de Pássaros, se faz fonte de resistência e, por assim dizer, fonte de permanência, quer na sua singeleza formal, quer na sua magia temática, enfim na sua diáfana poeticidade, da alta tradição lírica de língua potuguesa.

HILDEBERTO BARBOSA FILHO - Poeta e crítico paraibano. Texto publicado no jornal O Norte (João Pessoa, PB, em 10/10/1999).

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Juareiz Correya MARIA DE LOURDES HORTAS, POETISA LUSO-BRASILEIRA Do lado de cá do Atlântico, apreciamos, desde os últimos anos do século passado, até embalados pelo canto da fulgurante baiana Maria Bethânia, as vozes líricas que têm renovado a rica poesia portuguesa. E, para além-mar, projetam-se algumas vozes de mulheres brasileiras notáveis – a exemplo de Renata Pallotini, Eunice Arruda, Neyde Archanjo, Dalila Teles Veras e Maria de Lourdes Hortas. Esta, habitante natural do Recife desde os dez anos de idade, é cidadã das duas pátrias, de Portugal e do Brasil, uma legítima poetisa luso-brasileira. As outras poetisas também citadas vivem em São Paulo, destacando-se, como luso-brasileira, Dalila Teles Veras, que é exemplarmente uma infatigável animadora cultural com a sua livraria e editora Alpharrábio, de Santo André, no ABC paulista. Autora de vaários livros de poesia e de ficção publicados, no Brasil e em Portugal, a partir da década de 1960, com os traços inconfundíveis das culturas européia e americana, Maria de Lourdes Hortas, desde cedo, se manteve antenada com a criação poética produzida nos dois países. E, por força disso, organizou e publicou duas antologias preciosas, que estão merecendo no Brasil e em Portugal urgentes reedições : Palavra de Mulher (Poesia Feminina Brasileira Contemporânea), publicada pela Editora Fontana, do Rio de Janeiro, em 1979, e Poetas Portugueses Contemporâneos (Poemas e Confissões), publicada pela Pirata Edições, do Recife, em 1985. Com este livro o Brasil conheceu, pela primeira vez, a poesia da geração pós-Fernando Pessoa : José Régio, Vitorino Nemésio, Eduíno de Jesus, Antonio Ramos Rosa, Sophia de Mello Breyner Andresen, Pedro Homem de Melo, Jorge de Sena, Herberto Helder, José Carlos Ary dos Santos, Maria Tereza Horta e Fernando Grade, entre outros. Agora a poetisa, ausente das livrarias locais há mais de 5 anos, publica o livro de poesia inédito Rumor de Vento (Panamerica Nordestal Editora, Recife, 2009), a ser lançado nesta quinta-feira,

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dia 7 de maio, às 17 horas, no Gabinete Português de Leitura de Pernambuco (Rua do Imperador, 290, Santo Antonio, Recife, PE), e, em seguida, em Portugal : na sua cidade natal, São Vicente da Beira, e em Lisboa. Opiniões do poeta e crítico português Celso Pontes, da professora pernambucana Zuleide Duarte e do poeta e crítico carioca Aricy Curvelo atestam o valor da sua criação poética e o caráter inabalável da sua dupla identidade cultural. Construído em três partes, com a reunião de poemas distintamente tematizados, Rumor de Vento nos coloca, mais uma vez, diante de uma mulher delicada, culta e amorosamente sensível, revelando sua inquietação e perplexidade diante do próprio ato da criação poética, exprimindo seu temor e sua indignação frente a pequenez humana e a degradação social e, se despojando, terna, comovida, espiritualmente rica em memoráveis cartas à mãe falecida. Assim se manifesta a saudade luso-brasileira de Maria de Lourdes Hortas: “Depois que partiste, Mãe, naquele agosto cinza / a poesia calou-se dentro de mim. / Hoje ocorreu-me a causa do meu silêncio: / tanta coisa pra te dizer / e não consigo... Certamente por conta da ausência do barômetro, teu arrepio. Por isso resolvi escrever estas cartas: / quem sabe assim conseguirei demolir o silêncio / que vem aprisionando o meu coração? Minha querida Mãe, / quando receberes esta, de onde estiveres, como te for possível / por favor envia-me um sinal de que a carta chegou./ Pode vir numa sonata de chuva / na visita de beija-flor / no arrepio de vento...”

JUAREIZ CORREYA – Texto publicado no jornal Diário de Pernambuco

(Recife, PE, .25 de abril / 2009)

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BIOBIBLIOGRAFIA MARIA DE LOURDES MATEUS HORTAS nasceu a 04 de dezembro de 1940 em São Vicente da Beira, vila medieval situada na encosta sul da Serra da Gardunha , concelho de Castelo Branco, Beira Baixa, Portugal. Acompanhando a sua família, veio para o Recife, PE, Nordeste do Brasil, em 1950, onde se radicou e vive até hoje. Bacharel em Direito (1964) pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é também licenciada em Letras (1976) pela Faculdade de Filosofia do Recife (FAFIRE). Em 1965 fez o curso de Língua e Civilização Portuguesa, na Faculdade de Letras de Lisboa. Artista plástica, frequentou durante 10 anos o ateliê de José de Moura e há cerca de 10 anos participa de um ateliê coletivo em Piedade, Jaboatão dos Guararapes, PE. Atualmente, exerce as funções de Diretora Cultural do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, cargo que já desempenhou em outras gestões, perfazendo, até agora, quase vinte anos de dedicação ao GPL. DA AUTORA:

POESIA Aromas da Infância Edições Panorama, Lisboa, Portugal, 1965. Fio de Lã Ed. Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, Recife, 1979. Giestas Edições Pirata, Recife, PE, 1980. Flauta e Gesto Edições Pirata, Recife, PE, 1983.

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Relógio d`Água Edições Pirata, Recife, PE, 1985. Outro Corpo Ed. Fundarpe, Recife, PE, 1989. Recado de Eva Ed. Cadernos do Povo, Pontevedra/ Galiza – Braga/ Portugal, 1990. Dança das Heras Ed.Átrio, Lisboa, Portugal, 1995. Fonte de Pássaros Cia Pacífica, Recife, PE, 1999. Cantochão de Todavia Ed. GEGA, São Vicente da Beira, Portugal, 2005. Rumor de Vento Panamérica Nordestal, Recife, PE, 2009.

FICÇÃO Adeus Aldeia Ed. Sólivros de Portugal, Trofa, Portugal, 1999. Diário das Chuvas Edições Bagaço, Recife, PE, 1995. Caixa de Retratos Edições Bagaço, Recife, PE, 2003. Caja de Retratos (tradução, em espanhol, de Jorge ArielMadeazo e Cecília B. Madrazo ), Ed. Francacela, Buenos Aires, Argentina, 2008.

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TESE SOBRE A AUTORA A Impossível Ubiquidade - Uma representação melancólica da diáspora portuguesa : A Ficção de Maria de Lourdes Hortas. Tese de doutoramento de Francisca Zulmira Duarte de Souza, UFPb, João Pessoa, Paraíba, 1999.

ANTOLOGIAS Organização: Palavra de Mulher Poesia brasileira feminina contemporânea – Ed. Fontana, Rio de Janeiro, RJ, 1979. A cor da onda por dentro Poesia para crianças – Edições Pirata, Recife, PE, 1981. Poetas Portugueses Contemporâneos Edições Pirata, Recife, PE, 1985. Representada (em volumes antológicos ou coletivos): Presença Poética do Recife Org. Edilberto Coutinho – Ed. J. Olympio, Rio de Janeiro, RJ, 1983. Carne Viva Org. Olga Savary – Ed. Anima, Rio de Janeiro, RJ, 1984. Álbum do Recife Org. Jaci Bezerra e Sylvia Pontual – Ed. Prefeitura do Recife, 1987. Antologia didática de poetas pernambucanos Ed. Secretaria de Educação / Governo do Estado de Pernambuco, Recife, PE, 1988. Escritores Modernos da Beira Baixa Org. Arnaldo Saraiva – Ed. Comunidades Portuguesas, Lisboa, Portugal, 1988. Escritores naturais da Beira Interior

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Org. António Salvado - Jornal do Fundão, Suplemento Ideias, Fundão, Portugal, 1990. A mulher na poesia pernambucana Ed. Espaço Pasárgada / Fundarpe, Recife, PE,1994. Poesia Viva do Recife Org. Juareiz Correya - Companhia Editora de Pernambuco - CEPE, Recife, PE, 1996. Antologia de poetas portugueses e brasileiros Org. Maria de Lourdes Brandão - Publicações Vip, São Paulo, SP, 1996. Poésie du Brésil Org. Lourdes Sarmento – Ed. Vericuetos, Paris, França, 1997. Duplo Olhar 13 poetas portugueses contemporâneos Org. Manuel Cândido Pimentel, Ed. Aríon, Lisboa, Portugal, 1997. Água dos Trópicos Ensaios e seleta de poemas contemporâneos, Volume 2 Org. Beatriz Alcântara e Lourdes Sarmento – Edições Bagaço, Recife, PE, 2000. Corpo Luna Org. Edileusa da Rocha – Prefeitura da Cidade do Recife, PE, 2002. Poetas revisitam Pessoa Antologia de autores portugueses e brasileiros - Org. João Alves das Neves – Universitária Editora, São Paulo, SP, 2003. Retratos: a poesia feminina contemporânea em Pernambuco Org. Elizabeth Siqueira - CEPE, Recife, PE, 2004. Olhares: o conto feminino contemporâneo em Pernambuco Org. Elizabeth Siqueira e Laura Areias - CEPE, Recife, PE, 2006. Vozes: a crônica feminina contemporânea em Pernambuco Org. Elizabeth Siqueira e Laura Areias, CEPE, Recife, PE, 2007.

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Imagem passa palavra Organização e edição de Identidades Intercâmbio Artístico, Brasil, Cabo Verde, Moçambique, Portugal - publicado no Porto, Portugal, 2004. Panorama do conto pernambucano Org. Antônio Campos e Cyl Galindo – Ed. Escrituras, São Paulo, SP, 2007.

INCLUÍDA Dicionário de Mulheres Org. Hilda Agnes Hubner Flores - Ed. Nova Dimensão, Porto Alegre, RS, 1999. Enciclopédia de Literatura Brasileira Org. Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza – Global Editora / Biblioteca Nacional, São Paulo, SP, 2001. Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras Org. Nelly Novaes Coelho Ed. Escrituras, São Paulo, SP, 2002. Mulheres que mudaram a história de Pernambuco Volume VI - Org. Carlos Cavalcante, Ed. Elógica, Recife, PE, 2010.

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ATIVIDADES CULTURAIS Convidada, como representante do Nordeste do Brasil, para o IV Congresso Interamericano de Escritoras, na capital do México, 1981. Diploma de Personalidade Cultural, concedido pela União Brasileira de Escritores, Rio de Janeiro, RJ, 1982. Participante, entre os coordenadores, do Movimento de cultura alternativa Pirata Edições, Recife, PE (1980-1986). Coordenadora do jornal literário Cultura & Tempo, quando editado pelas Edições Pirata, Recife, (1981-1983). Membro do Conselho Editorial da Revista Pirata Edições, Recife, PE (1983-1984). Convidada para o Festival das Mulheres nas Artes, São Paulo, SP,1982. Diretora da galeria de arte e edições BELO BELO com sede no Recife e filial em Braga, Portugal (1989-1995). Diretora Cultural do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, por várias gestões, a partir de 1990, totalizando mais de vinte anos, onde atualmente (2016) exerce a função. Diretora da Revista ENCONTRO, publicação anual do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco, sempre que exerceu a função de diretora cultural da entidade. Sócia da Irmandade da Fala, Braga - Galiza. Sócia da União Brasileira de Escritores, Secção de Pernambuco. Sócia - correspondente da Academia Juiz-forana de Letras, Minas Gerais.

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PRÊMIOS Primeiro lugar no Concurso de Manuscritos de Secretariado Nacional de Informação (Lisboa, Portugal, 1963) para o livro de poesia Aromas da Infância. Primeiro lugar no Concurso da Associação Luso-Brasileira de Juiz-de-Fora, MG, para o poema Fio de Lã (1988). Menção especial do prêmio Fernando Chinaglia, (UBE, Rio de Janeiro), para a novela Testamento de Tâmara, 1982, publicada em 1995 sob o título Diário das Chuvas. Indicação para publicação do prêmio Mauro Mota, Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco - FUNDARPE – para o livro Outro Corpo ( 1988). Prêmio Jorge de Lima, da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte, MG, para Fonte de Pássaros, 2001. Prêmio José Cabaça, da UBE, Rio de Janeiro, RJ, para o romance Caixa de Retratos, 2004.

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www.panamerica.net.br

www.panamericalivraria.com.br

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