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Poesias

de Soares de Passos

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Poesiasde Soares de Passos

1858 (1ª ed. em 1856)

SOARES DE PASSOS

(ESCORÇO BIOGRÁFICO)

POR TEÓFILO BRAGA

A nova época literária do Romantismo, iniciada em Portugal por Garrett e Herculano, depois de cooperarem como cidadãos nas lutas da implantação do regime liberal, ficara bem definida nos seus dois aspectos: o Romantismo liberal, que se inspirava das tradições e do sentimento nacional, e o Romantismo emanuélico, em que o espírito religioso, suscitado pelos quadros da vida da Idade Média, favorecia, pela emoção poética, a reacção clerical que vinha a revelar-se desde que Chateaubriand publicou o Génio do Cristianismo. Toda a obra de Garrett, acordando o sentimento da nacionalidade, torna-o um dos grandes corifeus do Romantismo liberal na Europa; Herculano, na Harpa do Crente e na sua predilecção pela Messíada de Klopstock, é um poeta emanuélico, que na idade da crítica se torna um polemista teológico.

O Romantismo, esgotado na sua emotividade, recorria aos estímulos da sobre-excitação, aos exageros da frase, aos quadros tétricos, ao pessimismo subjectivo da passividade apática ou dos ímpetos da revolta Por estes extremos denunciou-se uma tal degenerescência ou Ultra-Romantismo. A Idade Média foi então representada pela sua exterioridade pitoresca, com um guarda-roupa cavalheiresco da extinta sociedade feudal. O romance histórico, da vida dos castelos medievais, dos torneios e das vinganças hereditárias, tem como forma poética correspondente a balada, a xácara, o solau, que se foram apagando na banalidade inexpressiva dos imitadores medíocres. A sentimentalidade tornou-se melancólica, dando ao romance uma forma subjectiva, numa geração de tristes, representada nesses tipos de René, Werther, Jacopo Ortiz, Obermann, Manfredo, Lélia; também o correspondente lirismo tornou-se a expressão de uma sentimentalidade depressiva, umas vezes convencional como nos Laquistas, outras patológica, como em Millevoye, ou filosófica como em Novalis. Numa tendência geral dos espíritos, que se compraziam na admiração das falsificações literárias de Mac Pherson, dando relevo a este sentimentalismo com devaneios em nome de Ossian, um bardo bretão do século sexto!

Soares de Passos também traduziu, depois da Marquesa de Alorna, alguns trechos épicos do melancólico Ossian. Na transição da poesia romântica cavalheiresca, das xácaras e solaus, lírica na forma, mas na essência objectiva e descritiva como as baladas do Norte, para a poesia sentimentalista, verdadeiramente pessoal e subjectiva, vendo na natureza uma expressão moral da melancolia fatídica da alma, cabe a Soares de Passos o lugar proeminente como representante desta

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corrente lírica na literatura portuguesa. Esta corrente estética, que foi geral na Europa, é explicada pelo estado de depressão dos espíritos depois dos grandes abalos morais da sociedade moderna, depois da explosão temporal da Revolução Francesa. Compreende-se isto: passada a catástrofe, vem a emoção como reacção da sensibilidade, chora-se depois do perigo.

Pela época em que nasceu Soares de Passos, e pelas crises tremendas da nação portuguesa em que desabrochou a sua vida, o seu espírito devia naturalmente pender para a reconcentração subjectiva. Esses acontecimentos influíram na sua constituição orgânica; fizeram dele um doente, um débil, com um retraimento que lhe agravou a sensibilidade com uma tristeza de incompreendido. A poesia apareceu-lhe como um recurso de expressão para esse subjectivismo melancólico, que a fatalidade da doença, que o vitimou no esplendor do seu talento, tornou de uma sempre impressionante verdade. Esse lirismo pessoal de Soares de Passos, aparece isento do artifício e mesmo da pecha de atrasado ultra-romantismo, conhecendo-se a sua biografia. É uma condição imprescindível para bem avaliar os seus versos.

António Augusto Soares de Passos nasceu na cidade do Porto em 27 de Novembro de 1826; foram seus pais Custódio José Passos, estabelecido na Praça Nova, nº 111 a 113, com um armazém de drogas, em cujo prédio habitou sempre a sua família, e D. Ana Margarida do Nascimento Soares de Melo. Deste consórcio nasceu um outro filho, também de nome Custódio José Passos, que seguiu o comércio e continuou a casa, e uma menina. Esse ano de 1826 era o início de uma nova época de perturbação terrível: inaugurava-se o regime constitucional parlamentar com a Carta outorgada por D. Pedro IV, mas ia desencadear-se a mais tremenda reacção dos absolutistas apostólicos e realistas, começando pela regência pérfida da devassa Isabel Maria e pelo governo de D. Miguel, que atraiçoou a causa constitucional que jurara, proclamando-se rei absoluto, e exercendo a soberania pela violência canibalesca das forcas, dos confiscos, das perseguições, dos cárceres e dos caceteiros assalariados. O Porto foi o ponto escolhido para o absolutismo miguelino se impor pelo terror rubro; a fuga dos chefes da resistência liberal no Belfast justificava a repressão. O honrado negociante Custódio José Passas, pelo seu espírito liberal, foi um dos inúmeros perseguidos, tendo de fugir, escondendo-se e homiziando-se para não ser preso e sucumbir no cárcere. Sob a pressão destes terrores, a mãe do poeta contraiu os sofrimentos, que nunca mais a abandonaram; e diante da sua casa, na Praça Nova, foram levantadas as duas forcas, em que a Alçada miguelina mandou executar os nove liberais, com que entendeu cimentar o prestígio do realismo brigantino. Numa carta de Rodrigues Cordeiro ao jornalista Martins de Carvalho, vem uma nota pessoal deste quadro tremendo, contado por Custódio Passas, irmão do poeta: «O irmão de Soares de Passos disse-me que defronte da janela da casa da sua família, na Praça Nova, estiveram levantadas duas forcas durante três anos; que o irmão se lembrava delas com horror; e que isso influíra bastante para o seu espirito liberal.

Na poesia – Ao Porto – escreveu ele, referindo-se ao que vira, quando os soldados de D. Pedro chegaram à Praça:

Ei-los à Praça chegados,E os cadafalsos alçadosLá baqueiam derribadosAos gritos da multidão. 1

1 Carta de 17 de Junho de 1874, perguntando a Martins de Carvalho sobre as execuções políticas da Praça Nova de 1828 a 1831 (Conimbricense, nº 5 131 (1896); e nº 5 394 (1899).

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Na Praça Nova, em 1829, levantaram-se as duas forcas, onde se trucidaram as nobres vítimas de um sentimento liberal burlado pela outorga da Carta de 1826, que o Porto festejara. As cabeças das vítimas furam decepadas a esses nove cidadãos sem crime, e mandadas colocar em postes nas terras de suas naturalidades, para intimidação e escarmento de quantos se não conformassem com a rara felicidade do absolutismo paternal. Quando na véspera dos enforcamentos, à noite, se batiam os postes das forcas, julgaram nas casas vizinhas que esses estalos eram de foguetes, supondo alvorecer do dia seguinte campearam as forcas, e a cidade do Porto apareceu encerrada, como se em cada família houvesse luto. A execução realizou-se com todos os seus horrores, mas o absolutismo ferira-se a si mortalmente. A liando-se por isso a concessão da amnistia. Ao

A linguagem dos periódicos mais graves proclamava o rigor, classificando esse inolvidável acto do canibalismo de 7 de Maio:

«A sociedade, o estado, o trono e a espécie humana não podem existir sem que pereçam os inimigos da espécie humana, do trono, do estado e da sociedade; e eis aqui onde fulgura a justiça de Deus e de El-Rei, e ande a natureza não geme!» Parece-nos estar lendo o preâmbulo de João Franco à lei de 3l de Janeiro de 1908! O trono e o altar nunca hesitaram diante do sangue. Convulsionado por estes actos bestiais do terror realista, o Porto tornou-se o apoio de toda a resistência para a reconquista da liberdade; sem muralhas, teve a firmeza de suportar um terrível cerco, e de triunfar sem recursos, apesar da fome e da peste. E consideram os historiógrafos oficiais, que todo este sacrifício de um povo, e heroísmos incomparáveis foram motivados para a restauração do trono da jovem D. Maria da Glória! dessa rainha D. Maria II, que levada pelo germanismo do seu segundo marido, fazia a Belenzada em 1836, e em 1842 violava a Constituição de 1839, e em 1847 chamava a intervenção armada estrangeira, para segurar-se no trono, tendo ainda para isso de submeter-se, depois de nova traição, ao movimento de 1851, chamado da Regeneração!

Mas, a que vêm estes factos políticos, que tanto convulsionaram a nação portuguesa? Foi através destas tremendas crises que Soares de Passos cresceu, estudou e se fez homem, actuando no seu temperamento sombrio, valetudinário e retraído. No meio destes abalos que perturbaram profundamente a família, e das tristezas e misérias domésticas de um cerco desesperado, Soares de Passos, criança e sem perceber os espantosos acontecimentos, vendo lágrimas e mortes em volta de si, sentiu duramente as consequências sofrendo uma doença prolongada, que o predispôs para a tuberculose, que o vitimou aos trinta e quatro anos, quando o seu talento atingiu o máximo esplendor.

A primeira educação de Soares de Passos foi-lhe ministrada até aos catorze anos no Colégio do Corpo da Guarda, com destino para a vida comercial, na própria casa paterna; aí adquiriu o conhecimento das línguas francesa e inglesa. Desde 1840 a 1845 Soares de Passos esteve efectivamente ao balcão do armazém de drogas de seu pai e encarregado também da escrituração da casa. Neste período angustioso em que se lhe acordava no espírito a paixão literária, ele ensinava, nos momentos vagos, a língua francesa a sua irmã, e o inglês a seu irmão Custódio Passos. A leitura das novas obras do romantismo mais lhe desvendava a vocação literária. No Porto é frequente esta aliança da prática do comércio com o interesse pelas letras, como já o notava o célebre erudito João Pedro Ribeiro dando notícia da preciosa livraria de um negociante do século XIV. Soares de Passos revelou ao pai a aspiração de seguir os estudas superiores; conseguiu essa aquiescência em 1845, começando a frequentar a aula de latim do celebrado professor José Rodrigues Passos, e lições de filosofia racional de António Fernandes da Silva Gomes, pai do poeta portuense Henrique

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Luso da Silva, falecido prematuramente, e Augusto Luso da Silva, ambos íntimas amigos de Soares de Passos e de Custódio Passos, que também cultivava com o maior segredo a poesia. Terminados estes preparatórios de latinidade e de filosofia elementar em 1848, e hesitando ainda em seguir o Curso matemático ou o jurídico, ele partiu para Coimbra, matriculando-se em Outubro de 1849 no primeiro ano da Faculdade de Direito. Circunstância digna de reparo: neste mesmo curso apareceu matriculado João de Deus, o que se revelou como o renovador do Lirismo português depois de Garrett. Os dois poetas não se conheceram nesse primeiro ano de Universidade: João de Deus era um boémio, vivendo com os estudantes conterrâneos seus do Alentejo e Algarve; Soares de Passos, naturalmente reservado, morava na Rua dos Militares, numa casa ou pequena república, em que tinha por companheiros outros poetas portuenses, Alexandre Braga, o autor das Vozes da Alma, Silva Ferraz e Aires de Gouveia, planeando com eles o continuarem a tradição académica do jornal de versos O Trovador, de 1844, em que brilhavam João de Lemos e Couto Monteiro, António Pereira da Cunha, António Xavier Rodrigues Cordeiro, os dois Serpas (José e António), Augusto Lima, Evaristo Basto, Henrique O'Neil, Luís Augusto Palmeirim e Correia Caldeira. Era legítima a empresa de reatar a tradição poética; esse grupo da Rua dos Militares empreendeu em 1851 a publicação do Novo Trovador. João de Deus, com a sua tendência apática, deixara-se ficar em Messines em 1850, regressando a Coimbra para matricular-se no segundo ano em 1851-1852; esta circunstância explica como ficou atrás da curso de Soares de Passos, não tendo por isso ensejo para se aproximarem. É, certo que esses dois vultos, que a vida de Coimbra ali juntou em 1849, tinham no seu talento os destinos da poesia lírica portuguesa. Era o influxo daquela encantada Coimbra, de que falava Antero de Quental com saudade.

Assim como a Provença foi para a Europa do fim da Idade Média a capital de onde irradiou a poesia lírica do Amor, que todas as nações imitaram na forma trovaderesca, e que a Itália transformou na norma definitiva do Lirismo moderno, idealista e humano, também Coimbra, desde a Renascença, tornou-se para Portugal o centro fecundo de elaboração poética, e todos os génios portugueses ali foram receber a sugestão emocional e ali idealizaram, em estrofes imperecíveis, as emoções com que ainda nos encantam. A mudança da Universidade para Coimbra em 1537 determinou este concurso permanente da mocidade de todas as províncias de Portugal; pela cultura humanista, e predilecção literária, em Coimbra se manifestaram constantemente as vocações poéticas, muitas das quais deixaram um traço luminoso na história. Em Coimbra inicia Sá de Miranda a transformação do gosto poético, o dolce stil nuovo que ele soube encontrar através dos provençais nos líricos italianos; foi em Coimbra que Luís de Camões e o seu amigo Jorge de Montemor, na livre expansão da mocidade, nas margens do Mondego, acharam os primeiros acentos da harmonia, com que imortalizaram a sua afectividade pessoal. No ruído das Escolas, e no fervor dos estudos de Humanidades e da Jurisprudência, o Dr. António Ferreira continua o impulso dado por Sá de Miranda, e compreende o valor artístico da lenda sentida dos amores da D. Inês de Castro, para modelar a primeira tragédia moderna segundo a estrutura da tragédia clássica directamente conhecida na forma grega. Em Coimbra, Vasco Mouzinho de Quevedo e Francisco Rodrigues Lobo continuam a tradição quinhentista, mau grado o Culteranismo, que assoberbou todo o século XVII. Enfim, cada escola acha em Coimbra os melhores representantes da emotividade poética, como no século XVIII Garção, Dinis, Tolentino e José Anastácio da Cunha, árcades e proto-românticos, e no princípio do século XIX os autores das tragédias voltaireanas, que precederam a revolução liberal, os poetas didácticos como Castilho,

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os românticos como Garrett, os ultra-românticos como João de Lemos, os sentimentalistas como Soares de Passos e João de Deus, os revolucionários como Antero de Quental, parnasistas como Gonçalves Crespo, simbolistas, decadistas, nefelibatas, de uma exuberante seiva da mocidade.

Para Soares de Passos, a poesia foi um refúgio, a Turris eburnea em que se confinara. Era nesse meio turbulento da Coimbra das grandes troças, que ele passava absorvido e alheio a toda a expansão da mocidade, mal conhecendo os condiscípulos, resguardando-se na intimidade quase exclusiva de Silva Ferraz e de Alexandre Braga. Em Março de 1852 começou-se a publicar no Porto um jornal de versos intitulado O Bardo, de que eram fundadores o poeta satírico Faustino Xavier de Novais, e o ncgociante metrificador António Pinheiro Caldas. Pela sua amizade pessoal obtiveram de Soares de Passos a distinção de publicarem poesias suas. Aí apareceram pela primeira vez a balada do Noivado do Sepulcro, as odes À Pátria, Rosa Branca (no álbum da Exª Srª D. J. Maria de Figueiredo), Canção, Desejo, Saudade, com variantes que merecem estudar-se, porque revelam o seu processo artístico. No texto definitivo da mais popular das suas composições, o Noivado do Sepulcro, em geral as modificações que adoptou na edição de 1854 são inferiores à redacção primitiva d'O Bardo (Março de 1852). Confrontemos esta lição com as variantes ulteriores:

Mulher formosa, que adorei na vida,E que inda adoro neste chão de horror,Porque tão cedo foi assim traídaTua promessa de constante amor? 2

Depois que em leito sepulcral repousaInda há três dias não vieste aqui...Ai! quão pesada me tem sido a lousaSobre este peito que bateu por ti. 3

Caí exausto neste abismo fundoQue em tua morte me cavou a dor. 4

Deixei a vida... que importava o mundo,O mundo em trevas sem a luz do amor!

Saudosa ao longe vês no céu a Lua?– Ai, se a vejo? Bem a vejo, sim...Foi à luz dela que jurei ser tua,Na vida e morte, com amor sem fim. 5

2 (2) Mulher formosa, que adorei na vida,E que na tumba não cessei de amar,Porque atraiçoas, desleal, mentida,.O amor eterno que te ouvi jurar? 3 Abandonado neste chão repousaHá já três dias não vieste aqui...4 Feliz que pude acompanhar-te ao fundoDa sepultura, sucumbindo à dor...5 Saudosa, ao longe, vês no céu a Lua?Ah, vejo sim... recordação fatal;Foi à luz dela que jurei ser tuaDurante a vida, e na mansão final,

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Em seguida a estas estâncias aparece uma estrofe, que o poeta omitiu na edição de 1856; não se compreende porque a desprezou; ei-la:

Se em vida, ai triste, não no quis a sorte,Hoje eis cumpridos os protestos meus;Oh, dá-me, dá-me que no chão da morteMeus frios ossos eu reúna aos teus.

O Noivado do Sepulcro é cantado numa melopeia, que o vulgarizou entre o povo, sem ter contudo condições de popularidade; no Porto ouvimo-lo bastantes vezes cantado pelas ruas, em noites de luar, mas deturpadas as palavras cultas pelos mais deploráveis plebeísmos. A extrema vulgarização desta balada chegou a produzir a ilusão mental de um poeta provinciano, que protestava tê-la escrito e recitado à família nas férias escolares em 1853, acusando Soares de Passos, depois de morto, como indigno plagiário.

Adiante analisaremos este caso psicológico.Numa outra poesia intitulada A Pátria, inspirada pelo verso de Camões: – Esta

é a ditosa Pátria minha amada – acham-se no texto d'O Bardo de 1852 estrofes inteiramente diversas da lição do texto definitivo de 1856, e outras omitidas. Confrontemo-las, para a melhor compreensão do processo artístico de Suares de Passos:

Esta é a ditosa pátria minha amada,Ditosa noutro tempo, hoje abatida;Foi grande, foi potente... hoje coitadaAo mundo apenas dá sinais de vida. 6

Segue-se-lhe esta estrofe desprezada:

Portugal! Oh, perdoa se o meu cantoEm lugar de exaltar-te um ai suspira:Sou teu filho... nos olhos geme o prantoBanhando as cordas trémulas da lira.

Pátria, pátria, que tens que em desalentoVergas a fronte que alterosa ergueste!Porque, às bordas do gélido moimentoTeus brios e valor adormeceste? 7

Onde está esse génio de teus filhos,Que outrora avassalando o mar profundoAbria sobre as ondas novos trilhos,

6 (6) Esta a nação de laureada frente,Esta a ditosa pátria minha amada,Ditosa e grande, quando foi potente,Hoje abatida, sem poder, sem nada.7 Pátria minha, que tens, que em desalentoVergas a fronte que alterosa erguias?Porque fitas o gélido moimentoPerdida a força dos antigos dias?

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Mostrando ao mundo antigo um novo mundo? 8

Que fizeste do império desse OrienteOnde raiaram teus formosos dias,Quando sentado em trono refulgenteO ceptro a imensos povos estendias. 9

Então eras tu grande! os reis da terraVinham deixar-te aos pés ricos tesouros,O mar tinto de sangue em dura guerraGemia sob o peso dos teus loiros. 10

Não apontamos todas as outras variantes; revelam um trabalho intenso de modificação de uma frase sempre enfática, que não era a expressão de um verdadeiro sentimento. Henriques Nogueira, que vira essa miséria da intervenção armada estrangeira, pedida por D. Maria II em 1847, teve rasgos de suprema eloquência proclamando a doutrina do Federalismo peninsular; Palmeirim vibrou por um momento, para calar-se depois; Soares de Passos sofria intimamente, mas a retórica era então uma forma imperiosa. Notaremos apenas esta estância omitida:

Tudo o mais acabou... cem fortalezasCom sangue de teus filhos cimentadas,Baquearam por terra, ou indefesasChoram de teus heróis sobre as ossadas.

O fenómeno da desnacionalização actuava na depressão tremenda em que se afundou Portugal, por forma que aquele único espírito que acordava nas almas o sentimento da nacionalidade, Garrett, era torpemente caluniado pelos políticos palacianos, e odiado por D. Maria Libânia (pseudónimo usado por D. Maria II) na sua correspondência com os espiões cabralistas.

Numa visita a Coimbra, António Xavier Rodrigues Cordeiro, um dos poetas do Trovador, procurou em 1851 Soares de Passos, movido pelo interesse que lhe suscitara o pensamento do Novo Trovador; morava ele então na Rua do Corpo de Deus, tendo por companheiros de casa os portuenses Alexandre Braga e António Aires de Gouveia. Deixou-nos em poucas linhas o retrato do poeta: «Era de estatura mediana, franzino, fronte larga, e de olhas rasgados, com cabelo castanho liso e pouco espesso, bigode aloirado; e quanto ao aspecto moral de uma vaga tristeza, pouco comunicativo». 0 engenheiro Eduardo Falcão, que igualmente o tratara com intimidade, conversando sobre as modernas doutrinas científicas, também representa

8 Onde está esse vasto capitólioDe tuas glórias, o soberbo Oriente,Lá onde erguida em triunfante sólio,Empunhavas teu ceptro refulgente?9 Que fizeste do génio destemidoCom que douravas esse mar profundo,E sorrias das vagas ao rugido,Ignotas praias descobrindo ao mundo?10 Então eras tu grande! os reis da terraDerramavam-te aos pés os seus tesouros,O mar saudando teus pendões de guerraGemia ao peso de teus verdes louros.

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Soares de Passos com traços realistas: «Acanhado entre desconhecidos, e modesto diante de amigos, preocupando-se com os problemas do homem e da humanidade. Era apático, passando quase sempre deitado, no seu quarto, dando apenas um pequeno passeio ao cair da noite». Apontamos estes factos para se reconhecer quanto absurda é a afirmativa de que esse tímido se apropriara de certas poesias que alguém declarou ter escrito em 1853, quando Soares de Passos as publicara n’O Bardo em Março de 1852. Também tornam inexplicável a lenda, de que o poeta sofrera em Coimbra uma agressão violenta, às Olarias, por causa de uma aventura amorosa; nega-o terminantemente Aires de Gouveia.

É certo que nas férias de 1853 ( Junho a Setembro ) Soares de Passos jazeu doente em casa, indo tarde e ainda convalescente matricular-se no quinto ano jurídico. Erguendo-se dessa grave doença, não se lhe proporcionava ensejo para qualquer actividade literária; tal era o seu estado que só pôde começar a frequência às aulas no mês de Novembro. Nesta situação, quebrantado da viagem de estafete, difícil e acidentada para Coimbra, escreveu Soares de Passos a inimitável elegia Partida, publicada pela primeira vez em 1855 na Grinalda (vol. I, pág. 99), jornal de versos de Nogueira Lima. Os pressentimentos da morte atravessavam-se por meio das recordações e saudades, prevalecendo sobre todos os outros sentimentos como uma obsessão permanente:

Mas se as flores do campo voltaremSem que eu volte co'as flores da vida,Chora aquele que em tumba esquecidaDorme ao longe seu longo dormir;E cada ano que o sopro do OutonoDesfolhar a verdura do olmeiro,Lembra-te ainda do adeus derradeiro,Deste adeus, que te disse ao partir.

O ano da formatura findava; mas ficava assinalado esse ano de 1854 pelo estrondoso conflito entre os estudantes da Universidade e a população de Coimbra, que é conhecido pelo nome da Tomarada. Os estudantes resolveram abandonar Coimbra, e retiraram-se em tropel para Tomar, onde o governo os sustou sem violência, mas por acordo, fazendo-os, sob promessa, voltar a Coimbra. Essa energia transformou-se então num sistema de resistência organizada na Liga Académica, sob a forma de associação secreta. Começava assim a iniciar-se entre os académicos o espírito associativo, criando-se nesse ano de 1854 a Sociedade Civilizadora, de que eram membros os dois companheiros de Soares de Passos, Silva Ferraz e Aires de Gouveia, Ernesto Marecos e Tomás Ribeiro, também poetas, e outros que lhes sucederam, como Silva Leal, Correia Harcourt, Filipe de Quental e Ernesto do Canto.

O poeta deixava Coimbra no período mais turbulento da vida académica, que retomava todo o seu espírito de revolta medieval.

Quem entra em Coimbra, ao ver os estudantes desfilando unidos, em grupos, com as longas capas negras, batina e gorro, crê-se momentaneamente transportado a uma cidade da Idade Média, do tempo em que o Poder real protegia com privilégios excepcionais as corporações escolarescas, e quando o clericus andava sempre em conflito com o laicus, ou o burguês. O que parece uma ilusão torna-se uma realidade, porque, à medida que se toma conhecimento da organização íntima da Universidade, transparece ali o espírito medieval em todas as suas feições. A grande corporação escolar, embora hoje submetida ao centralismo administrativo, persiste em ter uma

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jurisprudência sua, não reconhece a base moderna do direito constitucional da igualdade perante a lei, fortifica-se num anacrónico ou fantástico foro académico, e nas suas deliberações soberanas manda pôr fora de Coimbra, em vinte e quatro horas, o cidadão sobre quem, pela disciplina da matrícula, se arroga o poder de exercer uma acção despótica. Pelo seu lado, os estudantes não se mostram mais adiantados; ao envergarem a capa e a batina apossam-se do velho espírito da classe, da época em que o clericus vivia na bambochata dos Goliardos e da tuna, dos sopistas e martinets, e ei-los durante os anos da formatura entregues com todo o desplante e audácia da mocidade aos arruídos das antigas Soiças e Investidas a que chamam – as troças.

Ninguém há em Portugal que não conheça as troças de Coimbra: a troça é a alma da Universidade, a tradição escolaresca na plena inconsciência; é uma orientação secular, com que o corpo catedrático transige paternalmente, contanto que não roce pela gravidade doutoral.

O uso da troça encasou-se tão profundamente em Coimbra, que a população burguesa da cidade fala com o calão da Universidade; tudo o que se diz ou faz é sempre em ar de troça, operando-se a transição para a seriedade por um modo brusco e instantâneo, como se se puxasse um cordel ou se pusesse uma máscara. O bom dito é a piada, que persiste até na linguagem dos conselheiros de Estado, que conservam essa prega de Coimbra. Daqui provém esse fenómeno psicológico singular do tipo coimbrão, mantido desde o que chegou a ministro da Coroa até ao mais anónimo barbeiro: apresenta-se com uma gravidade olímpica na linguagem e nas maneiras, e de repente, quando menos se espera, enfia as mais pitorescas piadinhas da gíria com uns gestos faiantes, que desconcertam o observador. Não existe uma transição natural entre a troça do estudante e a autoridade catedrática do doutor; de modo que, quando este quer assumir a altura da respeitabilidade do seu grau, só tem o meio violento, a reprovação no fim do ano no acto, ou a resolução absurda de um conselho de decanos.

O lente, que começou por ser estudante e obedeceu à orientação tradicional da troça escolar, sofre desde o dia em que toma capelo uma vesânia de respeitabilidade; adquire na fisionomia um ar meditabundo; emprega no andar o passo cadenciado do séquito, na conversa usa o tom dogmático, enfim todos as característicos exteriores de uma seriedade superior a que internamente não corresponde a própria consciência. Põe-se imediatamente em antinomia com os estudantes, a quem só fala como seu julgador. Esta moda doutoral é conhecida em Coimbra pela frase de gíria: – Aquele já botou a albarda aos ombros – com que designam a cerimónia do capelo. Quebra-se toda a relação moral do mestre com o discípulo; aquele julga-se três vezes mais do que o estudante (magis ter), e este, na sua situação degradada, revoca-se ao passado e fortifica-se com o espírito sarcástico, mofador e irreverente da Idade Média, mantendo a independência intelectual pela troça.

Observando estes costumes, pode-se recompor todo o viver íntimo das antigas Universidades da Europa, ainda persistente em Coimbra. Além do hábito talar do clericus, subsiste ali a antiga hostilidade entre o estudante e o burguês (scandala ac dissentiones), que motivou uma legislação privilegiada; para o estudante, o filhote ou cidadão de Coimbra é um ente desprezível, a que dá o nome de futrica; e para o burguês o bacharel que se vai deixa uma argola em Coimbra. O conflito da Tomarada de 1854 proveio desta hostilidade imanente. Em geral, a lente que é natural de Coimbra ou casado com filha de lente, que o anichou na Universidade, é a favor do futrica e contra o estudante.

Muitos dos costumes da vida académica de Coimbra, são em tudo semelhantes ao das Universidades francesas do século XIV, tais como se propagaram na Alemanha e para a Suécia. ainda hoje os estudantes em Coimbra se dividem em três classes,

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correspondentes às designações medievais: os Recentiores, a que equivalem os Caloiros; os Juniores ou Novatos, e os Seniores ou Veteranos, que compreendiam os terceiranistas ou Pés-de-banco, sendo esse ano denominado a ponte dos asnos, as quartanistas ou Candeeiros e os quintanistas. As relações destas diferentes classes regulam-se pelos velhos cerimoniais da Idade Média, por uma tradição automática, que nem os próprios doutores saberiam explicar.

É esse o drama da troça, conhecido nas antigas Universidades dos séculos XV e XVI pelo nome de Depositio, com o Vejamen e a Prise de la pierre. O personagem objectivo da troça escolar é o Caloiro, da classe dos Bancorum ou Becjaunes, que vem da casa paterna como o jumentinho ainda coberto de pêlo. É preciso tosquiá-lo, cortar-lhe a trunfa, torná-lo gente. Às vezes a reacção da vítima produz consequências mortais. Leva-se depois o Caloiro a uma casa para lhe serem propostas as Captiosae quaestiunculae da Idade Média, em que sumulam do modo mais grotesco as cerimónias da defesa de teses e do doutoramento. O encarregado desta troça é sempre um secundanista, verdadeiro Depositor, que faz a Vexatio e que dá o grau no Cornutus. Nas Universidades espanholas conservou-se o costume dos Vejamens; nas poesias de Soropita vem um Vejamen a um lente zarolho de Coimbra no fim do século XVI. As teses são os mais fantásticos Quod libetus.

O grau é conferido tendo por borla um capacho das pernas, e por vezes um bispote de barro vidrado, conforme as cores simbólicas das Faculdades. Os graus degeneraram em violentas brutalidades na Alemanha, no século XVI; o Novato que entra na Universidade é recebido à Porta férrea com pontapés, chamados na gíria coimbrã canelão, e quando protegido sob a pasta do quintanista apenas é permitido desmanchar-lhe o penteado e atirar-lhe algumas chufas.

Em todas as vésperas das férias do Natal, Páscoa, ou do encerramento das aulas, renovam-se as troças, que reflectem dos Novatos sobre os Caloiros. O fim do ano escolar assinala-se com o gáudio do toque das latas, espécie de grande Sabath, ao qual concorrem todos com panelas, tachos, chocalhos, búzios, percorrendo até de madrugada as ruas de Coimbra. É a libertação do toque da Cabra, espécie de couvre-feu ou sino corrido da gente escolaresca.

No meio deste tropel, os estudantes agrupam-se ainda pela antiga forma de Nationes, a que chamam repúblicas: associam-se entre si os ilhéus, os beirões, os minhotos, lisboetas, alentejanos e algarvios; nas suas choldras, há um que faz de bolsa, como nas colegiaturas. Aos estudantes medíocres dão-lhes o nome de músicos, formando a coelheira; cábulas aos que não abrem livro, e urso ao que alcançou a benevolência do lente que o faz premiado. Esta notável persistência dos costumes escolares de Coimbra ressente-se nos métodos e no espírito pedagógico da Universidade; ali subsiste o vicio dialéctico e da ostentação banal do tempo em que as Universidades eram exclusivamente teológicas; ali impera a Sebenta, representante da época em que não havia livros impressas e se apostilava o que o Lente ditava lendo pelo seu caderno; e se ensebava passando de mão em mão. Quando se uniformizará a Universidade de Coimbra, no plano integral da instrução pública portuguesa, aberta ao livre magistério, mundificada dessa crusta medieval da sua organização interna?

Desse agitado ano de 1854 deixou Soares de Passos uma recordação no Álbum do seu condiscípulo Gaspar de Queirós Botelho de Almeida e Vasconcelos, um Soneto bocagiano, o único que escreveu, talvez por não lhe ser simpática esta forma poética. A primeira estrofe merece transcrever-se:

Nossa lidas findaram. Chega o diaDe deixar estas margens bonançosas,

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Onde colhemos as purpúreas rosasDa ciência, do amor e da poesia. 11

Antes de atirar-se à luta da existência como bacharel formado, Soares de Passos, ao terminar o acto de formatura, fez uma excursão ao Buçaco e ao Mosteiro da Batalha, acompanhado de seu irmão Custódio José Passos, de Silva Ferraz e Augusto Luso; as poesias que lhe inspiraram a floresta secular do monumento histórico são frias, enfáticas, falhas de pensamento, no estilo característico da plêiade de João de Lemos. Era preciso que a sua sensibilidade se exacerbasse para tornar a achar a eloquência do sentimento. 0 regresso ao Porto, onde a vida prática prepondera em absoluto, forçava-o a empenhar-se desde logo no exercício da sua formatura. Lançou-se à acção, inscrevendo-se como advogado na secretaria da Relação do Porto, para contar os dois anos exigidos para despacho na carreira judiciária. Repugnavam-lhe os processos, as tricas forenses; mais facilmente se lhe votou de alma e vida o seu condiscípulo e também poeta Alexandre Braga, que deixou nome no foro português. Uma ocupação sedentária, que honraria com a sua índole artística e tendência apática, ter-lhe-ia prolongado a vida. Soares de Passos concorreu à vaga de segundo bibliotecário da Biblioteca Municipal do Porto; como os lugares públicos servem para pagar os que intrigam nos partidos políticos, o ministro que fez o despacho de um outro candidato, nem suspeitava que feria mortalmente aquela pobre alma na sua última aspiração. O poeta caiu na impotência moral, numa tristeza que o levava a evitar todas as relações, confinando-se entre alguns poucos amigos, e chegando a permanecer perto de quatro anos fechado no seu quarto. A vida de Coimbra deixa esta prega de atonia moral em muitos bacharéis que se anulam no isolamento da província. Em casa não era um ocioso; no artigo intitulado Os Dois Irmãos, escreveu Augusto Luso: «António Augusto Soares de Passos, formado em Direito na Universidade de Coimbra, e poeta conhecido, não se recusava a auxiliar seu pai, e seu irmão nos trabalhos comerciais, quando a necessidade o exigia». 12

Em Setembro de 1854, tendo Castilho ido ao Porto, aí celebrou um sarau poético; era esse árcade póstumo um exímio recitador, dando um relevo impressionante a todas as composições que exibia. Para esse sarau convidou Castilho a Soares de Passos, já bastante conhecido pelas poesias publicadas n'O Bardo. Passava-se então no seu espírito uma crise profunda, entrando na sua plena floração ou idealização poética. Esse estado de alma apresentava-se sob dois aspectos: um elegíaco, pessoal, exprimindo na forma a mais dolorosa e bela, o desânimo de quem 5e sente morrer, como no Desalento, Anelos, a Vida e Consolação; o outro era uma tendência para a Ode filosófica, a alta contemplação que dá a visão subjectiva mas científica do Universo, como síntese racional, fase que deixou esboçada no Firmamento e na Visão do Resgate. Explica-se esta fase de idealização científica por sugestão de conversas do seu último ano de Coimbra. O Firmamento é a manifestação de uma nova maneira, em que a intenção filosófica e a forma sintética do quadro dão ao lirismo uma grandeza de ideal, mais verdadeiro e belo do que o tema da imaginação individual.

Para esta alteração do processo estético houve decerto uma forte sugestão exterior. No Almanaque de Lembranças de 1875, contou Rodrigues Cordeiro: «Depois de uma conversa que se travou entre Soares de Passos e o seu amigo o Sr.

11 Foi publicado este soneto pela primeira vez no Almanaque de Lembranças de 1883, pág. 151, peio possuidor do álbum condiscípulo e íntimo amigo. Está incorporado na sétima edição das Poesias, pág. 197.

12 Museu Ilustrado, vol. I, pág. 10.

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Eduardo Augusto Falcão, que nas suas ambiciosas, por não dizer exageradas teorias, queria a poesia da ciência na arte moderna, e quase que não admitia outra, levou-lhe este um dia o Système du Monde de Laplace. O poeta leu-o, e daí a muito pouco tempo, diz-me o Sr. Falcão, apresentou-lhe a ode ao Firmamento, perguntando-lhe se havia ali poesia da ciência». A história psicológica de todas as obras belas provoca o mais vivo interesse; e no Firmamento, além da sua beleza estrutural, há os novos recursos de idealização do poeta. O Sistema do Mundo é uma grandiosa síntese cosmogónica, que tem dominado e ainda prevalece na astronomia, e dá vontade de convertê-la numa Epopeia, num hino. O génio surpreendente de Edgar Poe converteu essa alta hipótese cosmogónica no seu belo quadro fantástico Eureka! Era plausível que um poeta elaborasse algumas estrofes eloquentes sobre a visão subjectiva da formação e destruição do universo sideral, saindo da grande Nebulose central pela condensação e voltando a ela pelo predomínio das forças repulsivas. Suares de Passos não era repentista; e a leitura rápida do Sistema do Mundo só depois de uma laboriosa assimilação poderia sugerir ao seu deísmo uma nova idealização poética. Pelo menos a obra de Laplace serviu-lhe para sistematizar ideias vagas recebidas nas conversas científicas de Coimbra, no meado do ano de 1854.

O ano de 1856 foi-lhe tormentoso; quatro meses sucessivos velou à cabeceira de seu irmão Custódio Passos, durante uma grave doença. Na biografia do Poeta, este irmão deve ocupar o lugar luminoso que lhe compete; conhecemo-lo ainda quando residimos no Porto; mas para o retratar condignamente, a ele, também tão reservado, transcreveremos alguns traços do estudo Os Dois Irmãos, do professor Augusto Luso, que assim o define: «Este era dotado de um espírito claro e pensador; pouca gente o conhecia bem. A sua honradez aparecia em todos os actos da sua vida... Conhecia o latim, entretendo-se mesmo em ler os clássicos nesta língua; havia estudado o grego; lia, escrevia e falava o francês, conhecia o inglês, o alemão e o italiano. Tinha estudado os três primeiros anos de matemática na Academia desta cidade (Porto), bem como a física e a química... Os seus conhecimentos em história, geografia e literatura eram em geral muito vastos, e sobrepujavam aos de seu irmão, apesar de este se tornar mais conhecido.

Amava em extremo a Poesia, e tinha um fino tacto e delicado para a critica, que era sempre justa, baseada e segura. Viveu quase sempre desgostoso, vendo desaparecer-lhe, roubada pela morte, toda a sua família, com quem vivia e a quem amava extremosamente: sua tia, seu caro irmão, a sua querida irmã, sua terna mãe e seu bondoso pai; mas forte pela resignação, pôde sobreviver a tudo, porque nunca desamparou esta virtude. – Custódio José Passos, desde que deixou as aulas da Academia, viveu sempre doente, aumentando-se-lhe o sofrimento até sucumbir também. – Escreveu alguns versos e algumas traduções, mas nada publicou, porque a muita modéstia lho proibiu. 13 E Foi nesta crise da doença de seu irmão que Soares de

13 Eis uma pequena Elegia de Anastacius Grün, traduzida por Custódio Passos:

AS LÁGRIMAS DO HOMEM

Tu viste minhas lágrimas um dia.Escuta; em vossas faces são os prantosComo o orvalho que o Céu à flor enviaE que em seu cálix só derrama encantos.Ou o distile a noite húmida e escura,Ela, sorrindo, a manhã clara e formosa,Sempre à flor vem dar vida e cor mais pura,Fazendo-a erguer mais bela e mais viçosa.

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Passos elaborou as poesias O Mendigo, o Filho Morto, Infância e Morte, Amor e Eternidade, a Mãe e a Filha, e Tristeza. Neste mesmo ano colige o seu livro Poesias, publicado pelo tacanho livreiro alfarrabista Cruz Coutinho. O pequeno volume de versos produziu uma grande impressão no público, cansado das banalidades de impertinentes versejadores. Em carta de 5 de Agosto de 1856, Alexandre Herculano felicitou Soares de Passos pela sua obra, considerando-o como sucessor de Garrett, dizendo também de si: «Fui poeta até aos vinte e cinco anos». 14 Numa carta do grande tribuno Passos Manuel ao pai do poeta, afirmava-lhe com entusiasmo: «O jovem poeta era o primeiro, o maior e mais ilustre dos poetas da nova geração...» Depois de 1856 parece que nada mais escreveu, além de uma tradução da Monja de Uhland, e ainda três versões de Heine, que apareceram em alguns números da Grinalda de Nogueira Lima, incorporadas na sétima edição das Poesias de 1890. O entusiasmo provocado pelo livro fez que logo em 1858, o tacanho editor fizesse uma reprodução, retocada e ampliada. A doença de sua mãe influiu também para esta apatia. Fechado quase sempre no seu quarto, junto dele reuniam-se alguns amigos íntimos, entre eles Gomes Coelho (Júlio Dinis), o autor d'As Pupilas do Senhor Reitor e de outros romances no tipo das novelas inglesas. Gomes Coelho fala dessas reuniões, «nas sempre lembradas noites em que, entre poucos mas escolhidos amigos, víamos na sua casa correrem as horas como instantes, e passarem as longas noites de Inverno como um sonho». A família de Júlio Dinis, também se extinguiu completamente vitimada pela tuberculose, sendo o insigne romancista derrubado quando estava no apogeu do talento e da glória. Sob o peso desta fatalidade morreu-lhe seu irmão José Joaquim Gomes Coelho; Soares de Passos consagrou-lhe estas duas quadras até hoje ainda não incorporadas nas suas Poesias:

Vinte anos! Ai, bem cedo arrebatado,O guardaste no seio, oh campa fria!Flor passageira, sucumbiste ao fado,E seus perfumes, exalou num dia.

Quanta ilusão desfeita em seu transporte,Sonhou glórias talvez! sonhou amores!Tudo, tudo aqui jaz! Carpi-lhe a sorte;Derramai-lhe na tumba algumas flores. 15

Castilho estava trabalhando na versão parafrástica dos Fastos de Ovídio, e entendeu anotar esse poema com notas ilustrativas por vários escritores portugueses;

Porém os prantos que derrama o homemSão a estimada goma do LevanteQue os arbustos no seio, avaros, somemE não deixam correr a cada instante.Mas firam um na casca ressequida,Se o golpe o coração do arbusto vara,Vê-se correr então da larga f'ridaAurea resina, gotejando, rara.Breve, é certo, essa fonte não transuda,Esse arbusto persiste e frutifica,Mais duma primavera inda saúda;Mas o sinal do golpe esse lá fica.14 Lemos esta carta, de que era possuidor o Sr. Leal Barroso.15 Citada no Discurso de Rodrigues de Freitas na Abertura da Academia Politécnica em 1

de Outubro de 1867.

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escreveu, pediu, e alcançou diversas monografias mais ou menos valiosas com que ampliou em três os volumes da sua tradução. Tendo conhecido Soares de Passos, na visita ao Porto em 1854, escreveu-lhe pedindo para que lhe redigisse uma memória sobre Tibur; essa nota efectivamente foi escrita pelo poeta, e está publicada no tomo III dos Fastos, página 522, devendo ficar também ligada à sua obra. 16 É um exemplar da sua prosa desataviada mas pura. Transcrevemos aqui a carta que em 23 de Dezembro de 1859 escreveu a Castilho, dando conta do desempenho do seu pedido; é um documento inédito valiosíssimo:

Il.mo e Ex.mo Snr.

Estou envergonhadíssimo do modo por que me tenho havido para com V. Exª, deixando de cumprir até hoje a promessa que lhe fiz de contribuir com o meu ténue contingente para os comentários à sua tradução dos Fastos de Ovídio; mas eu espero que V. Exª se dignará desculpar-me acreditando que a omissão proveio não de descuido ou desatenção para com um objecto que dizia respeito a V. Exª, e em que havia um compromisso da minha parte, mas da falta de saúde por um lado, e por outro de ocupações. que me impediram de ser pontual corno desejava. Bem sei que às mais urgentes ocupações devia antepor esta por todos os motivos; mas a consideração de que V. Exª ampliava o número dos convidados para esta obra (comum – riscada esta palavra) e por isso de que a execução desta talvez se prolongaria, fez-me cometer o que eu reconheço ter sido um atrevimento. (Finalmente – riscada esta palavra.) Por último é menos em razões, do que na bondade de V. Exª que eu ponho a esperança. de obter a remissão desta falta.

Permita-me agora V. Exª que lhe peça um grande favor. Depositando em suas mãos a nota que V. Exª (riscadas as abreviaturas) me encarregou de redigir, (intercalada a palavra anterior) reconheço quanto está longe de corresponder ao pensamento que V. Exª me indicou. Lembrou-me V. Exª que a escrevesse em verso ou em prosa entremeada de verso; tentei-o, mas não pude achar meio de realizá-lo de modo que ela fosse poesia e ao mesmo tempo (sem deixar de ser – riscado) esclarecimento do texto, condição que V. Exª decerto me impunha.

O que pois consegui escrever foi uma colecção de apontamentos em forma de artigo bem singelo e bem insignificante. Se V. Exª entender que o que fiz é uma coisa inútil, peço-lhe encarecidamente queira pô-la de parle sem contemplação, porque me resultaria eterno remorso de haver lançado este joio no meio dos frutos e das flores do seu precioso livro. Eis o favor que lhe roga quem é

De V. ExªO mais ard.te adm.or erespeitoso discípulo

A. A. Soares de Passos. 17

Porto, 23 de Dezembro de 1859.

O estado do poeta, aparentemente satisfatório, encobria um inesperado desenlace; entrava na crise dos projectos, que irisam a imaginação dos físicos.

16 Foi publicada dois anos depois da sua morte; Nota quadragésima dos Fastos de Ovídio, tomo I, pág. 167, § 21. Traz esta versão anotações de mais de cem escritores portugueses contemporâneos, 1862.

17 Ms. 449 da Biblioteca Nacional (Inventário).

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Projectava ir passar o Inverno em Lisboa, no Dezembro de 1859. Talvez que Castilho o estimulasse para isso; mas um ataque de hemoptise em 6 de Janeiro de 1860, e repetições sucessivas, anunciaram-lhe um fim breve, falecendo às 8 horas da manhã do dia 8 de Fevereiro de 1860.

Em carta de seu irmão Custódio José Passos a Rodrigues Cordeiro, vem a narrativa do seu falecimento:

«Pelas 8 horas da noite do dia 6 de Janeiro ainda ele conversava largamente e bom na aparência comigo e com o seu amigo Dr. Miguel Teixeira Pinto. Das 10 para as 11 sobreveio-lhe uma hemoptise. A esta sucederam-se outras. Nunca mais pôde estar deitado; o seu estado foi piorando dia para dia, até que, conhecendo que o seu fim estava próximo, aceitou a sua morte com a maior resignação e coragem. Pelas 8 horas da manhã do dia 8 de Fevereiro expirava Soares de Passos nos braços de sua mãe e irmãos, e no meio da família, que tanto o amava. Realizaram se nisto os nossos e os seus desejos.»

Passos Manuel, o iniciador das maiores fundações do constitucionalismo, escrevia então ao pai do Poeta, em carta de 17 de Dezembro de 1860: «Um dos grandes sentimentos que tenho, é o de não ter abraçado em vida esse glorioso filho que V. Exª perdeu e com tanta razão pranteia».

A morte prematura de Soares de Passos, e a sua organização débil para entrar na luta, não o deixaram elevar-se acima das emoções da personalidade; a sua bela organização artística, não pôde por essa fatalidade orgânica atingir a plenitude criadora e consciente. A obra de arte não pode ser unicamente elaborada pelo poeta com os elementos que constituem a sua subjectividade; há um factor alheio a ele e com quem tem de colaborar é a multidão, o povo, a sociedade, a colectividade nacional, enfim, que lhe fornecem o elemento morfológico da tradição, que o artista idealiza, dando-lhe a expressão com que é renovada e mais vigorosamente universalizada. Em geral os grandes artistas modernos esquecem-se deste facto natural – a tradição – concentram-se no seu espírito, tiram tudo de si, e assim como os organismos se tornam mais pequenos quando a sua evolução morfológica se exerce no sentido interno, também os artistas são mais pessoais e mais limitados nos intuitos, exercendo a sua actividade nos detalhes do estilo, da metrificação, da rima, das imagens, nos calculados recursos do efeito. São como as lindas plantas de estufa, alentadas num meio artificial; falta-lhes a grande comunicação do ar livre, o estro vivificante da multidão. Os talentos novos deviam procurar o modo de restabelecer esta aliança natural, que em tempos antigos produziu todas as formas esplêndidas da Arte grega, e ainda na Idade Média provocou um original vigor estético, que não saiu do seu estado rudimentar em virtude da instabilidade política dessa época fecunda e da posterior direcção erudita dos espíritos que iniciaram a Renascença pela imitação de obras que correspondiam a um outro estado social. É certo que o estado mental moderno produz um novo estado de consciência humana, e que esta modificação que se revela pelas noções morais, actua sobre os costumes e formas da actividade social. Enquanto se fez a transição, nesse período da Revolução Francesa e nas reacções inconscientes da Santa Aliança, apareceu um espírito superior, Byron, que idealizou os seus cantos dando expressão ao mal-estar moral de uma época perturbada por forças repressivas, e a sua eloquência e sublimidade vem-lhe da oportunidade do protesto. Byron, como o notou Comte, admiravelmente (Cours de Phil., IV, 366), foi o génio que deu uma enérgica expressão de revolta contra este estado de retrogradação transitória, como o grito de uma consciência atropelada. Essa fase passou; preponderam as forças propulsivas dos dois grandes poderes espiritual e temporal que se afirmam por novas manifestações, a unificação moral pelo regime da

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Ciência; e a cooperação social dirigida ao bem-estar de todas pela Indústria. É desta fase organicamente construtiva que provém a missão de uma nova Poesia. Porém, como? Pondo a ciência em verso, como considera o boçalismo retórico? Não. Compreenda-se a orientação social correspondente a estes progressos intelectuais, e formule-se a aspiração aí implícita, esboçando a futura síntese do estado normal humano. Assim se estabelecerá o acordo entre a multidão e o artista, e só assim se conceberá e realizará a nova poesia, suprema pela sua missão construtiva.

A poesia não consiste nos versos bem medidos, mas na verdade do sentimento humano, tão complexo nas suas manifestações individuais e sociais. A falta de conhecimento da realidade das coisas, não deixa o poeta impressionista ver para dentro do mundo moral, cobrindo esse vácuo com o efeito da frase, com os símiles e comparações, com rimas imprevistas e pitorescas as desvairadas correntes literárias. A individualidade do poeta é também uma obra faceada pela acção forte da sua época. Disse Milton: The life of Poet is a true poem – a vida do poeta é um verdadeiro poema. O que quer isto dizer? A vida acidentada, complicada pelo conflito dos interesses e das aspirações ideais é que faz os Poetas, como Dante banido de Florença nas lutas políticas, como Milton envolvido na Revolução de Inglaterra, como Byron quebrando o convencionalismo inglês de uma aristocracia hipócrita e verberando o retrocesso da Santa Aliança, como Vítor Hugo protestando contra os vinte anos de traição e infâmia do segundo Império; e se olharmos para a nossa península como Camões desterrado da corte beata de D. João III, escrevendo a Epopeia da nação portuguesa nos cruzeiros doentios, nos cárceres e misérrimos hospitais, nos naufrágios e perseguições, como Cervantes escondido no convés de uma nau na batalha de Lepanto, e escrevendo o Dom Quixote no cárcere de Argamasila, ou ainda Garrett, colaborando na legislação que renovou as instituições portuguesas, e acordando a consciência da nacionalidade nas lutas do cartismo e do cabralismo. A vida destes poetas é na realidade um verdadeiro poema; não viveram em si e para si, e é por isso que foram grandes na sua obra.

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NOTA BIBLIOGRÁFICA

Quando a memória de Soares de Passos estava consa grada, reconhecendo-o como um talento primacial, sucedeu um estranho caso: um contemporâneo seu dos tempos de Coimbra, veio, anos depois da sua morte, increpá-lo de plagiário, reclamando insistentemente na imprensa periódica a paternidade das melhores composições de Soares de Passos. É o Dr. Lourenço de Almeida e Medeiros, bacharel formado em Filosofia pela Universidade de Coimbra, proprietário rural, vivendo há longos anos na sua quinta da Fermelã. Em carta que nos escreveu em 4 de Julho de 1886, queixando-se-nos de que Soares de Passos se apropriara da ode O Firmamento, acrescenta: «E não me roubou só isto; na noite a que me refiro, confiei-lhe todos os assuntos sobre que tencionava exercer-me, dei-lhe indicações, glosou a parte que lhe expliquei com mais clareza, e assim fez o Anjo da Humanidade, os Anelos, o Desalento; roubou-me ainda mais, até estâncias desgarradas de outras poesias que já esboçara, como da Noite, do Camões –estragou estes assuntos por não lhe alcançar a ideia principal ou não saber tratá-la!»Até aqui o tremendo libelo acusatório; na continuação carta, apelando para o nosso critério, termina: Faço v. juiz...

Como todas as composições de Soares de Passos lhe eram assim extorquidas, em 1886, pelo Dr. Lourenço de Almeida e Medeiros, suspeitei logo de uma vesânia, a que já me tinham aludido, e aceitei o mandato, para que me fornecesse dados positivos da sua afirmação e reivindicação poética.

Enviou-nos um artigo que publicara no Distrito de Aveiro em 1886, com a narrativa da palestra literária que tivera com Soares de Passos na Rua dos Militares, em Coimbra, em 1854, única vez em que se encontraram; é desse momento que derivam todos os plagiatos; transcrevemos esse trecho:

«Em Coimbra, no ano de 1854, alguns dias antes de se fecharem as aulas, querendo recitar ao meu amigo o Sr. Aires de Gouveia, hoje bispo de Betsaida, O Firmamento e o Noivado do Sepulcro, dirigi-me a sua casa na noite de uma quarta-feira, por ser o dia seguinte feriado para os estudantes de Direito.

Morava o Sr. Aires de Gouveia na Rua dos Militares. Encontrei-o na sala de jantar com os seus comensais Soares de Passos, Silva Ferraz e o Sr. José Carlos Lopes.

Acalorado um pouco, o Sr. Aires de Gouveia disputava com Soares de Passos, e perguntei-lhe eu qual era o assunto discutido; vira-se para mim rapidamente depois de alguns momentos de silêncio e disse-me: – As Folhas Caídas, de Garrett.

E desta maneira instando-me a expor o meu conceito sobre aquelas pérolas da nossa literatura, ainda que não desejasse ser desagradável a nenhum dos interlocutores, pois era claro que discutiam o mérito dessas poesias, não ocultei que as julgava, como todos as julgam, a• par da nossa época, com a sua índole e modo de sentir, de uma forma espontânea, mas que é muito artística, nova, admirável, e além disso elevada e ao mesmo tempo um mimo, que ninguém até hoje excedeu ou igualou.

A isto respondeu Soares de Passos: – Pois eu creio que se em vez do nome de Garrett, as firmasse um outro que não fosse conhecido, ninguém faria caso delas.

Um silêncio constrangido sucedeu a esta observação, pela qual ninguém esperava.

Daí a pouco levantou-se o Sr. Aires de Gouveia, e eu com ele fui para o seu quarto, onde não tardou que aparecesse o Sr. José Carlos Lopes com uma arte de inglês, língua que presumo lhe andava ensinando, e ouvi ao Sr. Aires de Gouveia: –

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Hoje não pode ser; hei-de entregar amanhã uma dissertação, e só tenho esta noite para escrevê-la.

– Também eu vinha tirar-lhe o tempo, disse eu; e visto isso, retiro-me.Insistindo em que me demorasse, supondo ser algum escrito, rogava-me que lho

desse.– São versos, que trago de memória, mas o assunto precisa de longas

explicações, e hoje não há tempo, nem ocasião para elas; e despedi-me.Ao sair, topo com Soares de Passos e Silva Ferraz defronte do quarto de Miguel

Teixeira Pinto, para onde entrámos.Este quarto era, por sinal, esquinado; eu sentei-me perto da janela, numa das

duas cadeiras que tinha, Soares de Passos na outra, Silva Ferraz debruçou-se sobre a mesa de estudo, e assim se conservou quase todo o tempo que ali estive com eles.

1 – FIRMAMENTO

Quando em direcção à minha casa, que era na Rua do Correio, passei na que corre por detrás do Observatório, de cujo nome me não recordo, soava uma hora na torre da Universidade.

No começo da conversação observei que o estudo das ciências e da filosofia muito devia convir aos poetas.

Então o Sr. Soares de Passos atalhou-me com a seguinte pergunta:– O Sr. Almeida nunca fez versos?A esta pergunta deve Soares de Passos uma parte da sua glória, e eu alguns

dissabores de que podia ter-me dispensado; respondi:– Tenho apenas duas poesias em estado de poder recitá-las, mas uma delas

ainda está incompleta, e a outra desejo corrigi-la em algumas passagens. Esta versa sobre um assunto tão original e inesperado, que receio, publicando-a, me chamem louco ou extravagante. Imagine o Sr. Passos, é a destruição de todo o universo suposta como provada pela ciência.»

Até aqui a narrativa da palestra da Rua dos Militares antes das férias de 1854, que durou até à uma hora da noite. É natural que o Sr. Lourenço de Almeida, que por esse tempo se graduara na Faculdade de Filosofia, fantasiasse um quadro poético, contrário às doutrinas de Laplace e de Marcel de Serres, e sugerido pelas novas

teorias baseadas no cálculo, que demonstrava o encurtamento à órbita do cometa de Encke; é portanto improcedente o seu argumento: «Que as estâncias do Firmamento se baseiam em suspeitas e induções só minhas, mas de um carácter científico bastante para se afirmar – que só quem soubesse reflectir sobre certos factos astronómicos e outros geológicos os podia conceber e depois desenvolver em formas poéticas». 18

Versos que trago de memória foi o que declarou a Aires de Gouveia; admitida a hipótese, que recitasse esses versos sobre a destruição de todo o universo, que desejava corrigir em algumas passagens, não é aceitável, que por uma simples audição de uma conversa muito complexa, Soares de Passos retivesse de memória uma Ode constando de dezoito estrofes em oitavas. E demais sabendo-se o estado de doença nesse ano final de formatura. Quando o Dr. Lourenço de Almeida quer recorrer à prova, cai em contradições que anulam a sua afirmativa; assim na aludi4a carta de 4 de Julho de 1886, escreve: «Aqui estão minha irmã e meu cunhado, que nas férias de 1853 me ouviram na minha casa em Fermelã recitar o Firmamento, e as

18 Distrito de Aveiro, no 1498 (ano XV), 1886.

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primeiras quadras do Noivado».É assombrosa a inconsciência! Em Março de 1852 publicou Soares de Passos,

no número 4 d'O Bardo, pág. 50, o Noivado do Sepulcro, de que Lourenço se dá como autor, compondo em 1853 as primeiras quadras.

Num dos seus artigos de Reclamação das Poesias, confessa que só no fim do ano de 1854 achou a verdadeira forma do Firmamento completando a concepção: «Explicarei primeiro a ideia original do Firmamento. Do contraste da natureza, que supomos eterna, imensa, sempre jovem, sempre bela, com o homem, o mais nobre dos seres, mas efémero, que decai e não se remoça, e por fim se extingue, formara-se-me no intimo da alma uma dolorosa impressão, que nunca me largava. Eis aí o gérmen da poesia. Como se vê, estava ela pedindo para o seu começo um rápido esboço do universo – o sublime espectáculo da noite, em que se mostra o espaço cheio de sóis e de mundos, as suas multidões, as suas distâncias prodigiosas, e de envolta o mistério das origens e dos destinos que encerra o insondável abismo, ofereciam-me o assunto das primeiras estrofes.

Estava pois no meu plano fazer sentir a grande mágoa do homem, pela sua breve decadência em face dos seres que a não conhecem, em face da eterna juventude da natureza. Mas o supor-se um como resumo da imensidade, segundo uma teoria que não consegui tornar acessível a Soares de Passos, o atingir pela razão o infinito, o sentir a beleza das coisas, o eternizar-se pelas gerações sucessivas, vinham consolá-lo e minorar-lhe aquela mágoa.

Aqui rematava o Firmamento, na sua primeira concepção.Aproxima-se o fim do 4º ano de Filosofia, que eu então cursava. Indagando

como a Terra se constituiu (sobre o que o ensino e os livros do curso passavam mui de leve), concebi a suspeita de que assim como o nosso globo, no princípio diverso do que hoje é, só depois de longas modificações chegou à sua forma e modo de ser actuais, da mesma sorte era provável que em época mui distante viesse a decompor-se, alterando pouco a pouco as condições de equilíbrio e de harmonia, que naquele tempo da Universidade e ainda muito depois se julgavam perpétuas.

A Terra será sempre o que é agora? Durará com ela eternamente a humanidade?A estas interrogações dá hoje a ciência uma resposta negativa...Vem daí toda a parte do Firmamento, que a esse assunto se refere. E com isto a

ideia da poesia se completou». 19

Como é que Soares de Passos, não falando já nas estrofes feitas, se apropria da ideia com que o Dr. Lourenço de Almeida completava o plano da sua trilogia, a que chegou depois da palestra da Rua dos Militares?

É sobre estas bases: assuntos em que tencionava exercer-se, indicações, que Soares de Passos glosou no pouco que compreendeu, e estâncias desgarradas de poesias esboçadas, que julga fundamentar os plagiatos.

Bases inconsistentes em coisas de Arte, porque na idealização estética o poder criador e a obra genial consistem na forma, no dom da expressão em que se uni-versaliza o sentimento. Pode qualquer indivíduo ter indicações, tencionar ou projectar poemas, mas esses temas indeterminados só existem no mundo da Arte e só per-tencem àquele que soube dar-lhes expressão. Quem negará a originalidade das tragédias de Shakespeare por se encontrarem a maior parte dos seus argumentos nos Novelistas italianos em simples esboços, sem paixões, nem caracteres, nem situações definidas? Quem negará a La Fontaine a originalidade das suas Fábulas, embora venham os seus temas de Esopo, de Fedro ou dos Fabliaux da Idade Média, se a

19 A Locomotiva, nº 106, Aveiro, 1884.

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forma é incomparável, pelo cunho de individualidade crítica, pelas alusões ou intenções morais ou históricas da época de Luís XIV?

Quando muito, só podemos conceder qualquer influxo sugestivo de uma exposição científica da cosmogonia, ainda assim menos poderosa do que a leitura do Sistema do Mundo, de Laplace, provocada pelo engenheiro Eduardo Falcão em 1854.

A forma vesânica da Reclamação das Poesias, verifica-se na insistência continua do Sr. Lourenço de Almeida, e na complicação dos plagiatos abrangendo mais cinco das melhores poesias de Soares de Passos. As contradições em que escorrega mostram a inanidade das afirmações; diz que: «No Porto, em 1858, a primeira vez que soube do embuste de Soares de Passos...» (Carta de 4 de Julho de 1886.) E .antes desse ano, diz do poeta: «Humilhou-se diante de mim, e teve a fortuna de eu não saber do seu indiscreto abuso senão em Outubro de 1860, depois da sua morte». (Carta de 20 de Julho de 1886.)

E desde 1854 até ao presente nunca teve ensejo para publicar uma obra poética que pelo menos justificasse a plausibilidade da delirante afirmativa.

2 – O NOIVADO DO SEPULCRO

Quando nas Modernas Ideias na Literatura Portuguesa a individualidade poética de Soares de Passos, lírico obermanista, foi estudada como representante da fase ultra-romântica, referimos este caso de um contemporâneo da Universidade se atribuir a paternidade das suas principais composições, destacando a balada elegíaca O Noivado do Sepulcro, e a grandiosa ode O Firmamento. Estas acusações de plagiário tantas vezes feitas pelo Dr. Lourenço de Almeida e Medeiros, em jornais da província, como o Distrito de Aveiro e a Locomotiva, não podiam passar indiferentes para o meu estudo crítico. Tendo falado em 1871 com o Sr. Dr. Lourenço de Almeida e Medeiros, formulou-me as suas provas, que se limitaram a afirmações verbais contra Soares de Passos, com quem conversara antes das férias de 1854, resultando daí o publicar com o seu nome as melhores composições que contém o livro de Poesias de 1856. No meu assombro, o Dr. Lourenço de Almeida disse que me fazia juiz sobre estas suas reivindicações. A apreciação do talento de Soares de Passos obri-gava-me a examinar este problema ou caso anedótico; há dados concretos de prioridades que se evidenciam bibliograficamente, há antecedentes artísticos, e mesmo tendências vesânicas que ajudam à solução.

Sobre o Noivado do Sepulcro declarou em jornais o Sr. Lourenço de Almeida que o escrevera em Fevereiro de 1853, recitando-o ainda nesse ano à família e a outras pessoas cujos nomes invoca. Infelizmente para o acusador, esta data categórica patenteou a falsidade da imputação; porque em Junho de 1852, publicou Soares de Passos O Noivado do Sepulcro no nº 4 do jornal de poesias O Bardo, pág. 50, do qual eram directores Faustino Xavier de Novais e A. Pinheiro Caldas.

Depois de termos expendido esta conclusão em 1892 no livro supracitado, escreveu-nos o Sr. Dr. Lourenço de Almeida uma carta em 24 de Outubro de 1904, dizendo ter chegado ao seu conhecimento as Modernas Ideias e protestando: «Li a parte que se refere ao Firmamento e Noivado...

Diz V. que já estava publicado em 1852, e que por isso dá a questão como resolvida a seu respeito.

Não pode ser, protesto.Soares de Passos não compôs em 52 a poesia que eu compus em 53.É engano de V., e se não for corto a cabeça.Escrevi a Magalhães & Moniz pedindo uma edição d'O Bardo. Na carta em que

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a peço protesto contra este erro de data que V. me atribui, sem dúvida sinceramente, mas que me desacredita.

Só se houve alguma reprodução d'O Bardo, onde fosse incluído o Noivado.Espero ainda que V., reconhecendo o seu engano, o repare em qualquer das

suas publicações, porque assim o exige a minha honra. Não sei nunca em que faltei à verdade».

À vista desta intimativa fui outra vez examinar o nº 4 d'O Bardo publicado em 1852, e lá encontrei a pág. 50 O Noivado do Sepulcro assinado por Soares de Passos, tendo demais a mais a folha impressos na cruzeira o lugar, ano e tipografia. Para mais confirmação fui à Biblioteca Nacional examinar os exemplares d'O Bardo e ali chamei a atenção de dois bibliógrafos para o seu exame. Em 10 de Novembro de 1904 o ilustre bibliotecário actual Dr. Xavier da Cunha, conhecido por trabalhos. da especialidade, e o primeiro conservador da mesma biblioteca Alberto Carlos da Silva, diante do exemplar. d'O Bardo reconheceram que no nº 4, de 1852, a pág. 50, estava publicado com o nome de Soares de Passos O Noivado do Sepulcro, tendo essa folha tipográfica, como todas as outras que constituem o volume, autenticado o local, ano e tipografia, a que são obrigadas as publicações periódicas.

Contra este facto inegável e que imediatamente se verifica, opõe o Sr. Dr. Lourenço de Almeida em carta de 28 de Outubro de 1904 variadas hipóteses curiosas:

«Chegou à minha mão O Bardo, isto é, uma reprodução das poesias publicadas neste jornal desde 1852 até fim do ano de 1854.

Logo vi o engano de V., como lhe afirmei sem ainda ter visto O Bardo para verificar a minha afirmativa.

Enganou-se V., com a data das poesias que ali antecedem O Noivado.Repito, O Noivado ninguém o encontrará n'O Bardo de 1852, nem de 1853,

nem mesmo no de 1854, antes de Fevereiro desse ano.Visto a fama e autoridade do autor das Ideias Modernas, fico desacreditado no

conceito de todos que as lerem, pois não têm O Bardo para examinarem e reconhecerem o engano de V.

A data de 1852 e o nome da tipografia na reprodução d'O Bardo e na linha vertical a pág. 64 iludiram a V., e talvez não me iludissem se o Sr. Teófilo Braga fosse o autor do Noivado e o reclamasse atestando tê-lo composto em Fevereiro de 1853.

O Bardo primitivo é que o decidirá.Na primeira página vê-se no alto O Bardo; trazia pois o 1º número o nome do

jornal – e devem tê-lo todos os números seguintes se fosse uma colecção de jornais primitivos. E não pode sê-lo – porque não podia estar publicado o Noivado no nº 4 de 1852.

Agora explique V. o facto: Nas férias de 53 recitei à Sr. D. Maria do Carmo Sousa Brandão o Noivado; eu nunca li O Bardo, não soube da sua existência senão lendo as Ideias Modernas, como é que adivinhei?

E se li O Bardo, como adivinhei as alterações no livro de v6rsos de Passos, publicado em 56?

– P. S. – Como se acha o Noivado na reprodução d'O Bardo em 1854, e entre as poesias relativas ao ano de 1852?

Aí vai uma hipótese:Soares de Passos trouxe de Coimbra uma cópia da poesia incompleta em 1854.

A reprodução d'O Bardo fez-se nesse ano.Se publicou alguma poesia em 1852, sabendo da reprodução d'O Bardo, quis

substitui-la pelo Noivado com uns acrescentos e com umas correcções que rejeito.

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Resta agora O Bardo primitivo.Alguém já se incumbiu de obtê-lo.Mas, tendo a data de 52, se tiver o Noivado essa data é falsa, não é O Bardo de

52. Indague-se bem, e a verdade há-de aparecer.Outros, e principalmente os indiferentes, que nada examinam ou nada sabem do

assunto, podem dar razão às Ideias Modernas; mas eu, que sou o verdadeiro autor, vejo quanto V. se engana e como a sua critica prevenida arbitrariamente me nega a elaboração artística e a atribui a Soares de Passos.

– P. S.– Ainda uma vez. Como não é uma reprodução, se em 53 compus o Noivado e só em 54 o recitei a Soares de Passos?

Como não é uma reprodução feita em 54, ao menos do nº 4, onde acho o Noivado?

Como explica V. isto?E sendo assim, que valor têm os dados bibliográficos que V. assevera serem

rigorosos.»Depois destas argumentações contra o facto positivo e autêntico, reproduzidas

pelo Sr. Dr. Lourenço de Almeida no jornal A Vitalidade, aí dá conta das pesquisas que mandou fazer no Porto para saber da reprodução do texto d'O Bardo que tem o frontispício de 1854: – «Que a edição se fez reunindo-se (os Bardos) o que mais se pudesse e imprimindo os que faltavam. (Alfarrabista da Rua Chã.)

Não preciso eu de mais para saber como o Noivado do Sepulcro feito em 1853, aparece num suposto nº 4 d'O Bardo com a data de 1852.

Muitas vezes me rio comigo do embuste do Sr. Passos, que enganou uma geração inteira, e do crítico prevenido a quem incumbia esclarecê-la, principalmente depois das minhas declarações e provas». (Vitalidade, nº 502, de 26 de Novembro de 1904.)

Muito se engana quem julgar que eu afirmo um facto ou qualquer circunstância em que possa desmentir-me.

Quando não seja pela seriedade de que me prezo, conceda-se que, pelo brio, pelo orgulho, pelo capricho de ninguém ter motivo de vexar-me, eu ser capaz de uma impostura.

O que diz a meu respeito o Sr. Teófilo Braga nas Ideias Modernas é um escarro na sua obra e sobre o meu nome». (Vitalidade, nº 503, de 3 de Dezembro de 1904.)

___________

Por mais voltas que dê, o Sr. Dr. Lourenço de Almeida não invalida o facto de ter publicado Soares de Passos em Junho de 1852, no nº 4 d'O Bardo, o Noivado do Sepulcro, que Sua Exª há muitos anos reclama como tendo-o escrito em Fevereiro de 1853. Todas as suas hipóteses se esvaem diante da descrição bibliográfica dessa colecção de versos:

O Bardo – Jornal de Poesias inéditas – Publicado desde Março de 1852 a Março de 1854. (Emblema – uma Lira.) Porto. Na Tipografia de Sebastião José Pereira, Praça de Santa Teresa, nº 28, 1854.

É um volume in-8º grande de 384 páginas, com mais 6 de Índice. Publicava-se mensalmente em números avulsos de 16 páginas, tendo o titulo O Bardo só na primeira folha, e nas folhas restantes ao baixo da página a par da indicação do nº da folha servindo também de numeração da série. Como publicação periódica, cada folha traz na cruzeira declarado o local, ano e tipografia em que se imprimia O Bardo.

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Depois de distribuídos pelos assinantes, ao fim de 24 números foi distribuído com o último o frontispício com a data de 1854.

O Bardo (sem frontispício) começou este 2º volume em Março de 1854 e interrompeu-se em Fevereiro de 1855, na folha 21, pág. 192; tem ainda o mesmo tipo e papel, com as indicações do ano, local e tipografia.

A suspensão d'O Bardo, não terminando a série dos 24 números, foi devida à partida de Faustino Xavier de Novais para o Brasil.

Em 1857, o livreiro Francisco Gomes da Fonseca comprou todo o depósito das folhas d'O Bardo, e brochou-as, fazendo frontispícios para os dois volumes:

O Bardo, I Parte.O Bardo, II Parte.

Como lhe faltassem as 12 primeiras folhas do volume de 1852-1854, para salvar algumas colecções reimprimiu em papel azulado, e noutro tipo, as 12 folhas (pág. 1 a 192) e inteirando o volume com as que abundavam; pôs-lhe o título:

O Bardo. Jornal de Poesias inéditas – Redactores A. P. C. – F. X. de Novais. Nova edição (Emblema da Lira) Porto. Editor Francisco Gomes da Fonseca. 1857, 1 volume in-8º. I Parte.

Nesta reprodução de 1857, vem o Noivado do Sepulcro transcrito do texto de 1852, e isto quando já andava com variantes no livro das Poesias de Soares de Passos de 1856.

O Bardo. Jornal de Poesias inéditas – Redactor F. X. de Novais. Porto, Editor Francisco Gomes da Fonseca, 1857. In-8º. II Parte.

É um frontispício falso posto às 12 folhas incompletas de 1855, impressas na tipografia de A. J. de Freitas e na de Sebastião José Pereira. Neste volume vêm poesias de Soares de Passos inéditas ainda em 1855, mas não o sendo já em 1857, depois do aparecimento do seu livro em 1856.

Deste quadro bibliográfico conclui-se, que o texto tipográfico de 1852 se reimprimiu em 1857 em diferente papel e tipo, e sem intuito de falsificação, e que o Noivado do Sepulcro é autenticamente de Soares de Passos. 20 Como apagar este irrefragável testemunho? São curiosos os expedientes, que mais agravam a situação em que se colocou o reclamante:

«O número 4 d'O Bardo foi todo ou parte reimpresso, quando se tratou de reunir em volume em 1854.»

Quando a entrega do nº 24, Índice e Frontispício, se fez aos assinantes d'O Bardo, já havia dois anos que o nº 4, com o Noivado do Sepulcro, lhes estava distribuído e não era possível reavê-lo, destruí-lo e substitui-lo por outro texto; e além disso o Índice geral enviado aos assinantes d'O Bardo, inclui o Noivado do Sepulcro nas páginas do número respectivo. Este esforço de imaginação do Sr. Lourenço, fazendo que Soares de Passos, que em 1854 cursava o quinto ano jurídico em Coimbra, obrigasse Pinheiro Cuidas e Faustino de Novais a refazerem um número atrasado d'O Bardo, para incluir aí com antedata de 1852 o Noivado do Sepulcro, que um sujeito que casualmente encontrou lhe comunicara, só isto basta para reconhecer falta de sinceridade na ilusão. E nos mesmos voos da imaginação continua o reclamante com singular hermenêutica:

«Os números de um periódico que nunca saiu do armazém da tipografia que os imprimia, não se pode negar que fossem reimpressos, não se revestem do carácter de

20 Revista Literária, Científica e Artística, nº 320 do Século de 19.XII.904.

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autenticidade que o Sr. Teófilo levianamente lhe atribui.»O Bardo imprimia-se para ser distribuído mensalmente aos seus assinantes, e

pelas colecções particulares e bibliotecas públicas existem exemplares, e todos eles são uniformes, trazendo o Noivado do Sepulcro com a data de 1852 no registo da folha. Os números que ficaram em depósito ou armazenados foram adquiridos depois de 1855 pelo livreiro Gomes da Fonseca. Depois desta segunda fantasia vem uma exigência verdadeiramente fenomenal:

«Apareça um Bardo de 52, ou mesmo de 53 (eu dou largas ao Sr. Teófilo) ou anterior a 15 de Fevereiro de 1854, e só então se justificará da insolência que me dirige. Tem obrigação de apresentá-lo. »

Não se pode saber o que entende S. Exª por um Bardo de 52, ou mesmo de 53, ou anterior a Fevereiro de 54. O único texto do jornal O Bardo compreende os 24 números desde Março de 1852 a Março de 1854, formando um volume completo. É neste volume, e no nº 4, distribuído em Junho de 1852, que Soares de Passou publicou o seu Noivado do Sepulcro. Para indicar este facto não nos acusa a consciência de ter dirigido insolência a quem só carece de piedade, refugiando-se detrás da ininteligível exigência de um Bardo de 52. E acrescenta ainda o reclamante, torvado se não iracundo:

«Não era bastante ser vilmente espoliado do que pensei e escrevi, mas sofrer agora insultos como este, que sem escrúpulo deixou cair da sua pena sobre o meu nome, o caso era para uni sério desagravo, se o riso medianeiro não viesse atenuar a indignação que me causa. (!)

Felizmente para mim e infelizmente para o Sr. Teófilo, a falsidade do que me imputa é que está provada». (!)

Esta cólera, estas afirmações imperativas e explicativas hipóteses, encerram o bastante para esclarecer o problema literário que há quarenta e seis anos o Sr. Dr. Lourenço de Almeida, a seu grado, propõe e resolve. Mas quem caiu na ingenuidade de acusar Soares de Passos de plagiário, ficou sujeito à alçada da crítica rigorosa de quantos estudarem a obra poética daquele espírito, e às conclusões psicológicas que deduzirem. 21

21 Revista Literária do Século, 16-1-905.

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POESIAS

A CAMÕES

Ai do que a sorte assinalou no berçoInspirado cantor, rei da harmonia!Ai do que Deus às gerações enviaDizendo – vai, padece, é teu fadário;Como um astro brilhante o mundo o admira,Mas não vê que essa chama abrasadoraQue o cerca d'esplendor, também devora Seu peito solitário.

Pairar nos céus em alteroso adejo,Buscando amor, e vida, e luz, e glórias;E ver passar, quais sombras ilusórias,Essas imagens de fulgor divino:Tais s o vossos destinos, ó poetas,Almas de fogo, que um vil mundo encerra;Tal foi, grande Camões, tal foi na terra Teu mísero destino.

A cruz levaste desde o berço à campa:Esgotaste a amargura ate às fezes:Parece que a fortuna em seus revezesTe mediu pelo génio a desventura.Combateste com ela como o cedroQue provoca o rancor da tempestade,Mas cuja inabalável majestade Lhe resiste segura.

Foste grande na dor como na lira!Quem soube mais sofrer, quem sofreu tanto?Um anjo viste de celeste encanto,E aos pés caíste da visão querida...Engano! foi um astro passageiro,Foi uma flor de perfumado alentoQue ao longe te sorriu, mas que sedento Jamais colheste em vida.

Sob a couraça que cingiste ao peitoDo peito ansioso sufocaste a chama,E foste ao longe procurar a fama,Talvez, quem sabe? procurar a morte.Mas, qual onda que o náufrago arremessaSobre inóspita praia sem guarida,A morte crua te arrojou a vida, E as injúrias da sorte.

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De praia em praia divagando incertoTuas desditas ensinaste ao mundo:A terra, os homens, ‘té o mar profundoConspirados achavas em teu dano.Ave canora em solidão gemendo,Tiveste o génio por algoz ferino:Teu alento imortal era divino, Perdeste em ser humano:

Índicos vales, solidões do Ganges,E tu, ó gruta de Macau, sombria,Vós lhe ouvistes as queixas, e a harmoniaDesses hinos que o tempo não consome.Foi lá, nessa rocha solitária,Que o vate desterrado e perseguido,À pátria, ingrata, que lhe dera o olvido, Deu eterno renome.

«Cantemos!» disse, e triunfou da sorte.«Cantemos!» disse, e recordando glórias,Sobre o mesmo teatro das vitórias,Bardo guerreiro, levantou seus hinos.Os desastres da pátria, a sua queda,Temendo já no meditar profundo,Quis dar-lhe a voz do cisne moribundo Em seus cantos divinos.

E que sentidos cantos! d'Inês tristeSe ouve mais triste o derradeiro alento,Ensinando o que pode o sentimentoQuando um seio que amou d'amores canta:No brado heróico da guerreira tubaO valor português soa tremendo,E o fero Adamastor com gesto horrendo Inda hoje o mundo espanta!

Mas ai! a pátria não lhe ouvia o canto!Da pátria e do cantor findava a sorte:Aos dois juraram perdição e morte,E os dois juntaram na mansão funérea...Ingratos! ao que, alçando a voz do génioAlém dos astros nos erguera um sólio,Decretaram por louro e capitólio O leito da miséria!

Ninguém o pranto lhe enxugou piedoso...Valeu-lhe o seu escravo, o seu amigo:«Dai esmola a Camões, dai-lhe um abrigo!»Dizia o triste a mendigar confuso!

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Homero, Ovídio, Tasso, estranhos cisnes,Vós, que sorvestes do infortúnio a taça,Vinde depor as c'roas da desgraça Aos pés do cisne luso!

Mas não tardava o derradeiro instante...O raio ardente, que fulmina a rocha,Também a flor que nela desabrocha,Cresta, passando, coas etéreas lavas!Que cena! enquanto ao longe a pátria exangueAos alfanges mouriscos dava o peito,De mísero hospital num pobre leito, Camões, tu expiravas!

Oh! quem me dera desse leito à beiraSondar teu grande espírito nessa hora,Por saber, quando a mágoa nos devora,Que dor pode conter um peito humano;Palpar teu seio, e nesse estreito espaçoSentir a imensidade do tormento,Combatendo-te n’alma, como o vento, Nas ondas do Oceano!

O amor da pátria, a ingratidão dos homens,Natércia, a glória, as ilusões passadas,Entre as sombras da morte debuxadas,Em teu pálido rosto já pendido;E a pátria, oh! e a pátria que exaltarasNessas canções d'inspiração profunda,Exalando contigo moribunda Seu último gemido!

Expirou! como o nauta destemido,Vendo a procela que o navio alaga,E ouvindo em roda no bramir da vagaD'horrenda morte o funeral presságio,Aos entes corre que adorou na vida,Em seguro baixel os põe a nado,E esquecido de si morre abraçado Aos restos do naufrágio:

Assim, da pátria que baixava à tumba,Em cantos imortais salvando a pátria,E entregando-a dos tempos à memória,Como em gigante pedestal segura:«Pátria querida, morreremos juntos!»Murmurou em acento funerário,E envolvido da pátria no sudário Baixou à sepultura.

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Quebrando a lousa do feral jazigo,Portugal ressurgiu, vingando a afronta,E inda hoje ao mundo sua glória apontaDos cantos de Camões no eterno brado;Mas do vate imortal as frias cinzasEsquecidas deixou na sepultura,E o estrangeiro que passa, em vão procura Seu túmulo ignorado.

Nenhuma pedra ou inscrição ligeiraRecorda o grã cantor... porém calemos!Silêncio! do imortal não profanemosCom tributos mortais a alta memória.Camões, grande Camões; foste poeta!Eu sei que tua sombra nos perdoa:Que valem mausoléus antes a coroa De tua eterna glória?

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O OUTONO

Eis já do lívido outonoPesa o manto nas florestas;Cessaram as brandas festasDe natureza louçã.Tudo aguarda o frio inverno;Já não há cantos suavesDo montanhês e das aves,Saudando a luz da manhã.

Tudo é triste! os verdes montesVão perdendo os seus matizes,As veigas e os dons felizes,Tesouro dos seus casais;Dos crestados arvoredosA folha seca e mirrada,Cai ao sopro da rajada,Que anuncia os vendavais.

Tudo é triste! e o seio tristeComprime-se a este aspecto;Não sei que pesar secretoNos enluta o coração.É que nos lembra o passadoCheio de viço e frescura,E o presente sem verduraComo a folhagem do chão.

Lembra-nos cada esperançaPelo tempo emurchecida,Mil áureos sonhos da vidaDesfeitos, murchos também;Lembram-nos crenças fagueirasDa inocência doutra idade,Mortas à luz da verdade,Criadas por nossa mãe.

Lembram-nos doces tesourosQue tivemos, e não temos;Os amigos que perdemos,A alegria que passou;Lembram-nos dias da infância,Lembram-nos ternos amores,Lembram-nos todas as floresQue o tempo à vida arrancou.

E depois assoma o inverno.Que lembra o gelo da morte,

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Das amarguras da sorteÚltima gota fatal...É por isso que estes diasDa natureza cadente,Brilham n'alma tristementeComo um círio funeral.

Mas ânimo! após a quadraDe nuvens e de tristeza,Despe o luto a natureza,Revive cheia de luz:Após o inverno sombrioVem a flórea primavera,Que novos encantos gera,Nova alegria produz.

Os arvoredos despidosSe revestem de folhagem;Ao sopro da branda aragemRebenta no campo a flor:Tudo ao vê-la se engrinalda,Tudo se cobre de relva,E as avezinhas na selvaLhe cantam hinos d'amor.

Ânimo pois! como à terra,Também à nua existênciaVem, após a decadência,Às vezes tempo feliz;E a vida gelada, estéril,Que o sopro da morte abala,Desperta cheia de gala,Cheia de novo matiz.

Ânimo pois! e se acasoNosso destino inclemente,Em vez de jardim florente,Nos aponta o mausoléu;Se a primavera do mundoJá morreu, já não se alcança,Tenhamos inda esperançaNa primavera do Céu!

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O NOIVADO DO SEPULCRO

BALADA

Vai alta a lua! na mansão da morteJá meia-noite com vagar soou;Que paz tranquila; dos vaivéns da sorteSó tem descanso quem ali baixou.

Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longeFunérea campa com fragor rangeu;Branco fantasma semelhante a um monge,D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.

Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celesteCampeia a lua com sinistra luz;O vento geme no feral cipreste,O mocho pia na marmórea cruz.

Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espantoOlhou em roda... não achou ninguém...Por entre as campas, arrastando o manto,Com lentos passos caminhou além.

Chegando perto duma cruz alçada,Que entre ciprestes alvejava ao fim,Parou, sentou-se e com a voz magoadaOs ecos tristes acordou assim:

«Mulher formosa, que adorei na vida,«E que na tumba não cessei d'amar,«Por que atraiçoas, desleal, mentida,«O amor eterno que te ouvi jurar?

«Amor! engano que na campa finda,«Que a morte despe da ilusão falaz:«Quem d'entre os vivos se lembrara ainda«Do pobre morto que na terra jaz?

«Abandonado neste chão repousa«Há já três dias, e não vens aqui...«Ai, quão pesada me tem sido a lousa«Sobre este peito que bateu por ti!

«Ai, quão pesada me tem sido!» e em meio,A fronte exausta lhe pendeu na mão,E entre soluços arrancou do seioFundo suspiro de cruel paixão.

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«Talvez que rindo dos protestos nossos,«Gozes com outro d'infernal prazer;«E o olvido cobrirá meus ossos«Na fria terra sem vingança ter!

– «Oh nunca, nunca!» de saudade infindaResponde um eco suspirando além...– «Oh nunca, nunca!» repetiu aindaFormosa virgem que em seus braços tem.

Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,Longas roupagens de nevada cor;Singela c'roa de virgínias rosasLhe cerca a fronte dum mortal palor.

«Não, não perdeste meu amor jurado:«Vês este peito? reina a morte aqui...«É já sem forças, ai de mim, gelado,«Mas inda pulsa com amor por ti.

«Feliz que pude acompanhar-te ao fundo«Da sepultura, sucumbindo à dor:«Deixei a vida... que importava o mundo,«O mundo em trevas sem a luz do amor?

«Saudosa ao longe vês no céu a lua?– «Oh vejo sim... recordação fatal!– «Foi à luz dela que jurei ser tua«Durante a vida, e na mansão final.

«Oh vem! se nunca te cingi ao peito,«Hoje o sepulcro nos reúne enfim...«Quero o repouso de teu frio leito,«Quero-te unido para sempre a mim!»

E ao som dos pios do cantor funéreo,E à luz da lua de sinistro alvor,Junto ao cruzeiro, sepulcral mistérioFoi celebrada, d'infeliz amor.

Quando risonho despontava o dia,Já desse drama nada havia então,Mais que uma tumba funeral vazia,Quebrada a lousa por ignota mão.

Porém mais tarde, quando foi volvidoDas sepulturas o gelado pó,Dois esqueletos, um ao outro unido,Foram achados num sepulcro só.

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DESEJO

Oh! quem nos teus braços pudera ditosoNo mundo viver,Do mundo esquecido no lânguido gozoD'infindo prazer.

Sentir os teus olhos serenos, em calma,Falando d'além,D'além! duma vida que sonha minha alma,Que a terra não tem.

Eu dera este mundo, com tudo o que encerraPor tal galardão:Tesouros, e glórias, os tronos da terra,Que valem, que são?

A sede que eu tenho não morre apagadaCom tal aridez:Pudesse eu ganhá-los, e iria seu nadaDepor a teus pés.

E só desejando mais doce vitória,Dizer-te: eis aquiMeu ceptro e ciência, tesouros e glória:Ganhei-os por ti.

A vida, essa mesma daria contente,Sem pena, sem dor,Se um dia embalasses, um dia somente,Meu sonho d'amor.

Isenta do laço que ao mundo nos prende,A vida que vale?A vida é só vida se o amor nela acendeSeu doce fanal.

Aos mundos que eu sonho pudesse eu contigo,Voando, subir;Depois que importava? depois no jazigoSorrira ao cair.

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BOABDIL

ÚLTIMO REI MOURO DE GRANADA

De Granada nas torres já se ergueO pendão de Castela temido;Boabdil, o rei mouro vencido,Deixa a terra em que há pouco reinou.Do Padul às alturas chegado,Fez parar o seu tímido bando,E o corcel andaluz volteandoTais adeuses à pátria mandou:

«Ai, Granada, lá ficas entregue«Para sempre aos guerreiros de Cristo!«Quem teus fados houvera previsto,«ó sultana de tanto poder?«Acabou-se o domínio dos crentes«Neste solo tão belo de Espanha;«Não há força de heróica façanha«Que nos possa da ruína erguer:

«De Toledo, de Córdova, e Murcia,«De Jaên, de Baêza, e Sevilha,«Eras tu, ó gentil maravilha,«Que inda as glórias fazias lembrar.«E perdemos-te, ó flor do Ocidente.«Do Xenil, ó princesa formosa!«E curvamos a frente orgulhosa«Nós, os filhos valentes d'Agar!

«Deus o quis! nossa raça punindo«Fez baixar o seu anjo da morte,«E das iras d'Alá no transporte«Baqueou nossa altiva nação!«Nossos ódios civis nos perderam,«Neste abismo fatal nos lançaram,«E nem mesmo o valor nos deixaram«De morrermos com nosso pendão.

«Ó guerreiros das eras passadas,«Vencedores da Espanha descrida,«Lá nesse Éden feliz da outra vida«Vossas faces cobri de rubor!«Este braço, que ousou vossos louros«Arrastar ante os pés de Fernando,«Não ousou neste peito nefando«Embeber um punhal vingador!

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«Desonrado, do trono banido,«Que me resta por sorte futura?«Uma vida cobarde e obscura«No país em que outrora fui rei...«Nunca, nunca! o destino contrário«Dalém-mar nosso berço me aponta:«Lá irei resgatar-me da afronta,«Lá dos bravos a morte haverei.

«Para sempre adeus pois, ó Granada!«Adeus, muros, e torres vermelhas,«Que brilhais como vivas centelhas«Nas verduras de tanto jardim!«Adeus, paços e fontes d'Alhambra!«Adeus, altas, soberbas mesquitas!«E vós, tronos das luas proscritas,«Ó Comares, ó forte Albaicim!

«Para sempre, ai, adeus! té à morte«Viverás neste peito, ó Granada!«Mas debalde, ó mansão adorada,«Que estes olhos jamais te hão-de ver...«Acabou-se o domínio dos crentes«Neste solo tão belo de Espanha;«Não há força de heróica façanha«Que nos possa das ruínas erguer.»

Disse, e o pranto nas faces corriaDo rei mouro, dos seus que restavam.Longe, ao longe as trombetas soavamEm Granada já feita cristã:Era o canto d'alegre triunfoEm redor dos pendões de Fernando;Era o grito d'Alá desterrandoDas Espanhas os crentes do Islã.

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CANÇÃO

Que noite d'encanto!Que lúcido manto!Que noite! amo tanto!Seu mudo fulgor!Oh! vem, ó donzela;Não temas, ó bela,Que a noite só velaQuem sonha d'amor.

A luz infinitaDos astros, crepita,Arqueja e palpita,Serena a brilhar:Assim o teu seio,De casto receio,De tímido enleioCostuma pulsar.

A lua, qual chama,Que os seios inflama,Fanal de quem ama,Desponta no céu;E a nítida fronteRetrata na fonteE estende no monteSeu cândido véu.

E a fonte murmuraPor entre a verdura,E ao longe d'alturaLá desce a gemer:Que sons, que folguedos!Parece aos rochedosDizer mil segredosD'infindo prazer.

Silêncio! o trinadoLá volta enlevado,Das noites o amado,Da selva o cantor;E o hino que entoaNo bosque ressoaE ao longe revoa,Gemendo d'amor.

O facho da luaCoa sombra flutua,

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Avança e recuaNo chão do jardim;Nas asas da aragem,Que agita a folhagem,Recende a bafagemDa rosa e jasmim.

Que noite d'encanto!Que lúcido manto!Que noite! amo tantoSeu mudo fulgor!Oh! vem, ó donzela;Não temas, ó bela,Que à noite só velaQuem sonha d'amor.

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À PÁTRIA

Ao meu amigo A. C. Lousada

(1852)

Esta é a ditosa pátria minha amada.

CAMÕES – Lusíadas.

«Esta é a ditosa pátria minha amada!»Este o jardim de matizadas flores,Onde os céus com a terra abençoadaRivalizam nas galas e primores.

Este o país das tradições brilhantes,Onde cresceu a palma da vitória,Onde o mar conta às praias sussurrantesLongínquos feitos d'extremada glória.

Esta a nação de laureada frente,Esta a ditosa pátria minha amada!Ditosa e grande quando foi potente,Hoje abatida, sem poder, sem nada.

Pátria minha, que tens, que em desalentoVergas a fronte que alterosa erguias!Porque fitas o gélido moimento,Perdida a força dos antigos dias?

Que fizeste do génio destemidoCom que domavas esse mar profundo,E sorrias das vagas ao rugido,Ignotas praias descobrindo ao mundo?

Onde está esse vasto capitólioDe tuas glórias, o soberbo Oriente,Lá onde erguida em triunfante sólioEmpunhavas teu ceptro refulgente?

Então eras tu grande! os reis da terraDerramavam-te aos pés os seus tesouros;O mar, saudando teus pendões de guerra,Gemia ao peso de teus verdes louros.

Então de lanças e d'heróis cercada,Avassalando a Índia e a África ardente,A cada golpe da valente espada

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Mais uma palma te adornava a frente.

Então prostradas mil hostis falanges,Retumbava o fragor de teus combatesDesde as praias de Ceuta além do GangesFazendo estremecer o Nilo e Eufrates.

Então eras tu grande! hoje esquecida,Um eco apenas do teu nome soa;Nos braços da vitória adormecida,Perdeste o ceptro e a majestosa c'roa.

Os fortes pulsos entregaste aos laçosDa tirania e rude fanatismo,E descaídos os potentes braços,Caminhaste sem forças ao abismo.

Um livro apenas te ficou, ó triste,Por epitáfio da passada glória;Tudo o mais acabou, já nada existeDe tanto resplendor mais que a memória.

Das quinas os pendões já não revoam,Águias altivas, sujeitando os mares;Teus gritos de vitória, ai! já não soamNa Líbia e nos gangéticos palmares.

Nações obscuras, quando o mundo inteiroJá tua glória aprendido tinha,Vendo apagado teu ardor guerreiro,Arrancaram teu manto de rainha.

E repartindo entre elas seus pedaços,E soltando depois feroz risada,Disseram ao passar, cruzando os braços:«Oh! como essa nação jaz aviltada!»

E teus heróis na tumba inquietos,Vendo insultadas tuas altas glórias,Agitaram seus frios esqueletos,Despedaçando as lápides marmóreas.

E cada qual das pregas do sudário,Erguendo a dextra que empunhara a lança,De pés sobre o jazigo funerário,Com torva indignação bradou: vingança!

Debalde! ao verem sem valor as quinas,Eles murmuram nas geladas campas:Tu, quem sabe? ditosa te imaginas,

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E em tua história mil baldões estampas.

Não que dormes do sepulcro à borda,Ergue-te, surge como outrora ovante!Teu génio antigo, teu valor recorda,E aprende nele a caminhar avante!

Se longos anos d'opressão funestaTe pesaram na fronte hoje abatida,No seio de teus filhos inda restaFogo bastante para dar-te vida.

Longe da senda que gerou teu dano,Desata o voo por espaços novos;E o ardor que te levou além do oceano,Além te levará dos outros povos.

Ah! possa, possa ainda a meiga auroraDesse dia feliz brilhar-me pura!Possa esta lira, que teus males chora,Dar-te cantos de alegria e de ventura!

Mas ah! se negra página sombriaTens de volver em teus cruéis fadários,Se o arcanjo das ruínas há-de um diaPairar sobre os teus restos solitários:

Terra da minha pátria ouve o meu brado,Se inda da vida me restar alento,Tu que foste meu berço idolatrado,Sê minha tumba em meu final momento!

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ROSA BRANCA

Eu amo a rosa branca das campinas,A branca rosa, que ao soprar do ventoLânguida verga para o chão pendida.

Como a rosa dos vales, pura e belaNos campos da existência ela floria,Como a rosa dos vales que inda envoltaNo orvalho da manhã, desdobra o cáliceAo sol nascente, perfumando as auras.A idade das paixões mal despontavaEm seu meigo horizonte. Estava aindaNo declinar da melindrosa infância,Dessa quadra feliz em que a existênciaE sonho encantador em que os momentosSe deslizam na vida como as águasDe brando arroio, humedecendo os prados.Mas quão formosas já, quão sedutoras,Por entre as graças da mimosa infância,As graças juvenis lhe transluziam!

Com as sócias da infância ao vê-la às tardesVagando em seu jardim, vós a disséreisA açucena viçosa entre as boninas,Ou, entre os lumes da sidérea noite,A estrela da manhã. E, todavia,Ignorava o poder de seus encantos:No mundo que a cercava, outras imagens,Outros amores não sonhava ainda,Além de sua mãe que a idolatrava,De seu pequeno irmão, de suas flores.

E eu amava aquele anjo como se amamOs sonhos d'inocência doutra idade,Ou como essas visões que nos enlevam,De mundos d'harmonia a que aspiramos.

Vi-a uma vez ao descair da tarde,No jardim assentada ao pé da fonte,Olhando o tenro irmão; que em seu regaçoDepusera as boninas que ajuntara.No regaço também, junto das flores,Repousava, serena dormitando,A pomba que ele amava, e que sem medoViera procurar tão doce ninho:Nunca a meus olhos se mostrou tão bela,Tão cheia d'inocência. D'alvas roupasSuas formas angélicas cingidas,

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Se desenhavam, em gentil contorno,Nas verdes murtas que o jardim ornavam:Parecia qual cisne repousandoEntre a verdura, do seu lago à beira.

Uma rosa nevada, como as roupas,Lhe adornava as madeixas cor da noite,As formosas madeixas que nessa horaContrastavam mais negras e mais belas,Coa leve palidez que reflectia,Em seu rosto adorável e sereno,O clarão melancólico da tarde.Com terna languidez a face meigaRecostava na mão, curvado o braço,Enquanto com a outra ora afagavaSua pomba querida, ora os cabelosCompunha ao doce infante, que, sorrindo,Uma após outra lhe mostrava as flores.

Ao vê-la assim formosa, ao ver o grupoQue fazia com ela um par mimoso,A mente arrebatada figurou-maCeleste arcanjo que baixara ao mundoA recolher as orações da tarde,E que o infante e a pomba achando juntos,E a inocência do céu vendo na terraDos irmãos se esquecera e ali ficara.

Arcanjo da inocência, ai foge, foge!Não te iluda este mundo onde pousaste,Este mundo falaz, de ti indigno,Que tuas asas de brancura estremeCom seu veneno talvez manche um dia.Arcanjo d'inocência, ai foge! foge!Procura teus irmãos, revoa à pátria!E fugiu, e voou. No mesmo sítio,Uma tarde também junto da fonte,A mãe a foi achar sozinha e triste.Em suas plantas uma rosa brancaJazia desfolhada: era das floresA flor que mais queria. Ao ver ao ladoA mãe que idolatrava, estremecera.Pobre inocente! receou acasoNão poder por mais tempo disfarçar-lheSeu cruel padecer. A ardente febreLhe devorava o seio, e não gemia.Mas seu dia chegava... A exausta fronteLhe pendeu sem alento, e imersa em pranto,No regaço da mãe sumiu a face,Que já cobria a palidez da morte.

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Três dias depois deste a flor mimosaQue as grinaldas celestes invejavam,Caía desfolhada no sepulcro.

Eu amo a rosa branca das campinas,A branca rosa, que ao soprar do ventoLânguida verga para o chão pendida.

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ENFADO

Dos homens, ai quem me deraLonge, bem longe viver!Junto de mim só quisera,Como eu sonho, um anjo ter.Que esse anjo surgisse agora,E o mundo folgasse emboraEm seu nefando prazer.

Que vista! cede a inocênciaÀ voz do crime traidor;Folga a devassa impudência,Nas faces não há rubor.Traz o vício a fronte erguida,E a virtude, sem guarida,Geme transida de dor.

Vão ao templo da cobiça,Vão todos sacrificar:Consciência, fé, justiça,Tudo lhe deixam no altar.Devora-os a sede d'ouro;O seu deus é um tesouro,Porque o viver é gozar.

E que importa que o infanteMorra à fome, e o ancião?Que importa que gema erranteO proletário, sem pão?Oh! que importa que o talentoEsmoreça ao desalento?Que vale do génio o condão?

Proclamou-se a lei do forte:A lei do fraco é gemer.Ai do triste a quem a sorteFez entre espinhos nascer!É um dogma a tirania,A liberdade heresia,A servidão um dever.

Que tempos, que tempos estes!Quem há-de viver assimNo mundo que rasga as vestesDo justo; no seu festim?Quem há-de? mas esperança!Um dia foge; outro avança,E a redenção vem no fim.

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Hoje, porém, quem me deraLonge dos homens viver!Junto de mim só quisera,Como eu sonho, um anjo ter.Que esse anjo surgisse agora,E o mundo folgasse emboraEm seu nefando prazer.

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ANELOS

Que imenso vácuo neste peito sinto!Que arfar eterno de revolto mar!Que ardente fogo, que jamais extintoSomente afrouxa para mais queimar!Ai, esta sede que meu peito rala,Talvez a apague mundanal prazer:Ali ao menos poderei fartá-la,Ou num letargo sem paixões viver.

Mas dessa taça já provei... não quero!Quero deleites que inda não senti...A luta, os riscos dum combate fero!Talvez encantos acharei ali.

A luta, os riscos, em acção travadasGuerreiras hostes disputando o chão;O sangue em jorros, o tinir d'espadas,O fogo e o fumo do voraz canhão!Ali os gozos dum feroz delírio,À luz das armas, sentirei em mim,Ou numa delas o funéreo círioQue à paz dos mortos me conduza enfim.

Mas não, não quero sobre a terra escravaA vis tiranos imolar o irmão...O mar, o mar, que em sua fúria bravaNinguém domina com servil grilhão!

O mar, o mar! sobre escarcéus revoltosEm frágil lenho flutuar me apraz,Ao som das vagas e dos ventos soltos,E das centelhas ao clarão fugaz.Ali sorrindo da feroz tormenta,E dos abismos que me abrir aos pés,Dentro desta alma de prazer sedentaSublime gozo sentirei talvez.

Mas o mar livre tem um leito aindaQue os meus anelos poderá suster...O espaço, o espaço! na amplidão infindaTalvez que possa o coração encher.

O espaço, o espaço! qual ligeiro ventoIrei lançar-me nesse mar sem fim,E a longos tragos aspirar o alento,Sentir a vida que desejo em mim...Ora águia altiva, desprezando o solo,

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O rei dos astros buscarei entãoOra entre as neves do gelado póloVoarei nas asas do veloz tufão.

Mas solitário, sem cessar errante,De que valera na amplidão correr?...A glória, a glória, que em painel brilhanteMe of'rece a imagem dum maior prazer!

A glória, a glória! mil troféus ganhados,Mil verdes palmas e lauréis também;Triunfos, c'roas e sonoros bradosDa turba – é ele! – repetindo além...Então em sonhos duma vida infindaVerei a chama d'imortal farol,Que eu meu sepulcro resplandeça ainda,Bem como a lua, quando é morto o sol.

Mas não, que a inveja com a voz mentidaA luz em sombras poderá tornar...O amor, o amor, que redobrando a vida,A vida noutrem me fará gozar!

O amor, o amor, celestial perfumeQue a mão dos anjos sobre nós verteu,Doce mistério que num só resumeDois pensamentos aspirando ao céu!O amor, o amor, não mentiroso incensoQue em frios lábios só no mundo achei,Mas imutável, mas sublime e imensoQual em meus sonhos juvenis sonhei...

O amor! só ele poderá nesta almaRisonhas crenças outra vez gerar,De minha sede mitigar a calma,E inda fazer-me reviver, e amar.

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O FILHO MORTO

No povo d'além da serraVai a noite em mais de meio,E a pobre mãe velavaUnindo o filhinho ao seio.

«Acorda, meu filho, acorda,«Que esse dormir, não é teu;«E como o sono da morte«O sono que a ti desceu.

«Tarda-me já um sorriso«Nos teus lábios de rubim;«Acorda, meu filho, acorda,«Sorri-te ledo pra mim.»

Mas o infante moribundoEm seu regaço expirou;E a mãe o cobriu de beijos,E largo tempo chorou.

Em seu pequeno jazigoDois dias chorou também;Ao terceiro o sino tristeDobrou à morte dalguém.

E à noite no cemitérioOutro jazigo se via:Era a mãe que ao pé do filhoNa sepultura dormia.

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SÓCRATES

Já próximo do ocaso vai descendoO sol ao mar inquieto,Os moribundos raios estendendoNas alturas do Hymeto;E Sócrates, sentado sobre o leito,Inda aos alunos fala,No silêncio geral notando o efeitoDa razão que os abala.A verdade sublime lhes revelaEm palavras ignotas,Suaves como a voz de FilomelaOu do cisne do Eurotas.Cebes, o próprio Cebes emudece,Simias já não duvida:Nus olhos do inspirado resplandeceUm Deus e a eterna vida!

Mas o sol expirava: era o momentoQue Atenas decretara:Cumpre os deuses vingar: o sábio atentoÀ morte se prepara.Os discípulos tremem, contemplandoO dia já no resto;Eis o servo das onze entra chorandoNo cárcere funesto.O círculo cruzando, a brônzea taçaA Sócrates estende;O filósofo a empunha com a graçaQue nos festins resplende.«Ergamos, disse, nossa prece Aquele«Que ao longe nos convida,«Por que seja feliz por meio d'Ele«A viagem temida.»E aproximando intrépido e serenoA líquida cicuta,Como néctar a esgota, e do venenoEntrega a taça enxuta.

Um lamento geral, um só transportePercorre em torno o bandoDos alunos fiéis, chorando a sorteDo mestre venerando.Apolodoro geme; sucumbindo,Críton lhe responde;Fédon abaixa os olhos, e carpindoNo manto o rosto esconde.Ele sem vacilar, ele somente,

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Sorrindo á turba ansiada:«Amigos, que fazeis? um sol fulgente«Me luz em nova estrada.

«De presságios felizes rodeemos«Os últimos instantes!Chore quem não tem fé – nós que já cremos,«Nós sejamos constantes!»Disse, e deixando o leito em que jazia,Sereno move o passo,Que o veneno letárgico deviaObrar pelo cansaço.Das grades se aproxima, olha o Pártenon,Olha os muros d'Atenas,O Falero, o Pireu e as que lhe acenam,Regiões tão serenas;Olha os céus, olha a terra, a luz do diaExpirando nas vagas,E de harmonias tais se ergue à harmoniaDe mais ditosas plagas.Depois, volvendo ao leito, diz a tudoO adeus de despedida:Cobre o rosto co manto e aguarda mudo,O instante da partida.

O veneno progride, e já do efeitoRedobra a intensidade;Dos membros se apodera, sobe ao peito,E o coração lhe invade.Estremeceu! do gélido trespasseEra enfim a agonia...O executor lhe descobriu a face:Sócrates não vivia!

Triunfa, cega Atenas, ao martírioO sábio condenaste,E d'olímpicos deuses no delírioA razão enjeitaste;À voz do Areópago, à voz de ferroSufocaste a doutrina:A verdade sucumbe, a sombra do erroNo mundo predomina.

Mas que estrela futura se levantaRasgando a escuridade?Que palavra ressoa, e o mundo espantaPregando a alta verdade?E ele, e ele, o prometido às gentesNa voz das profecias!Curvai, ó gerações, curvai as frentes

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Ao Verbo do Messias!

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O GÓLGOTA

(fragmentos inéditos)

Vede-o na cruz erguido! sobre o peitoPendida a fronte na agonia extrema;Que sublime painel, que alto poemaDe sofrimento e amor!Um Deus, um Deus à terra se apresentaA resgatá-la dos grilhões do vícioE a terra ingrata lhe fulmina o exício,Dá-lhe em troca o rancor!

Ódio por afeição! tormento e mortePor vida e gozo prometido ao mundo;Noite escura por dia! um véu profundoPor luz de tanto sol!Martírio pela ideia! alto martírioA quem ao mundo proclamara o verboQue às gerações em seu destino acerboE qual doce farol.

Mas que ideia e que sol jamais aos homensSurgiu benigno sem que a vista afeitaÀ sombra escura, que o fulgor rejeita,Lhe não temesse a luz?Que vulto grandioso sobre a terraAo soltar da verdade a voz tremendaNa sagrada missão não vê a sendaQue ao martírio conduz?

Oh! mas o teu foi tão grande! o que era a terra?Sangrento circo de leões raivosos,Mãe d'abominações, festim de gozosDissolutos e vis.........................................................................

E ei-lo surge, e o fulgor da luz celesteDerramando na terra corrompida,Lhe regenera a fatigada vidaInspirando-lhe o amor.Existe um Deus somente: filhos todosSomos iguais, do Criador do mundo;Amarmo-nos, eis o profundoVerbo do Redentor.........................................................................

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Mas faltava morrer, faltava aindaNa extrema angústia proclamar seu Verbo,Do passamento no sofrer acerboEnsinar-nos a amar,Ensinar-nos a dor, a crença vivaCo próprio sangue assinalar na terra,Firmar a paz onde reinava a guerra,Erguer da cruz o altar!........................................................................

Ó Cristo! foi sublime a tua vidaMas foi mais que sublime a tua morte,Provando ao mundo no tremendo corteTua origem dos céus.No amor, na crença, doutrinando o mundoFoste o Messias d'inspirado alento;Ensinando o perdão e o sofrimentoFoste inda o homem Deus!

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A***

Acaso és tu a imagem vaporosaQue me sorriu nos sonhos doutra idade,Como a luz da manhã sorri formosaNos espaços azuis da imensidade?Es tu esse astro que minha alma anela,Que debalde busquei no mar da vida,Qual busca o nauta bonançosa estrelaNo meio da procela enfurecida?Ah! se és esse ente que meu ser domina,Se és essa estrela que meu fado encerra,Se és algum anjo da mansão divinaPairando sobre a terra;Já que baixaste a mim, já que a meu ladoMe apontaste sorrindo o etéreo véu,Não me deixes na terra abandonado,Transporta-me ao teu céu!

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ÚLTIMOS MOMENTOS DE ALBUQUERQUE

Ao meu amigo A. Aires de Gouveia.

Companheiros, sinto a mortePairando já sobre mim;Cessaram vaivéns da sorte,Desço à terra donde vim...Do cálice da desventuraEis esgotada a amargura;No leito da sepulturaTerei descanso por fim.

Terei: a campa é um asiloQue ao ímpio deve aterrar,Mas eu dormirei tranquiloSob a lájea tumular.Eu... desgraçado, que digo!Nem lá espero um abrigo,Que os meus restos no jazigoIrão talvez insultar.

Murmurando: «aqui repousaUm desleal português»,Irão partir minha lousa,Meu nome calcar aos pés;E o guerreiro que descansaNão poderá, por vingança,Brandir na dextra uma lança,Cingir ao peito um arnês...

Quais foram, rei, os meus crimesPara haver tal galardão?Porque a fronte assim me oprimesCom a tua ingratidão?De vis intrigas cercadoOuviste seu ímpio brado,E sobre as cãs do soldadoLançaste negro baldão.

Não merecia tal prémioQuem debaixo deste céu,Da roxa aurora no grémioUm novo império te deu;Quem à custa duma vidaNas batalhas consumida,Ante as quinas abatidaA Índia inteira rendeu.

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Por dar-te a c'roa brilhanteQue em tua fronte reluz,Fiz a meus pés arquejanteCair a opulenta Ormuz:Malaca sentiu meu raio,E em Goa, roto o Sabaio,Entre o sangue, entre o desmaio,Alcei o pendão da cruz.

Então desde o Nilo ao GangesCem povos armados vi,Erguendo torvas falangesContra mim e contra ti;Vi os filhos do desertoEm ondas rugindo perto;Mas com ferro em campo abertoÀs suas iras sorri.

Contra as lanças portuguesasA Índia lutou em vão,Que em troca d'ouro e riquezasVeio comprar seu grilhão.Aos golpes dos meus soldadosVi seus tronos abalados,Vi ante mim ajoelhadosReis d'Onor e de Sião.

Mas d’Ásia não pôde o ouroCegar-me com seu fulgor,Porque a honra ó o tesouroDos meus passados, senhor.Eu quis adornar-te a frenteCum diadema refulgente:Ganhei o ceptro do Oriente,E a teus pés o fui depor.

Nesses campos de batalha,Onde audaz o conquistei,Das armas sob a mortalhaPorque exangue não findei?Entre os louros da vitóriaMorrera ao menos com glória;Do teu soldado a memóriaNão a mancharas ó rei.

Eu desleal?! se meus bradosPodem chegar até vós,Erguei-vos, restos sagradosDe meus extintos avós!Erguei-vos da campa fria,

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E com sangue, à luz do dia,Lavai a nódoa sombriaQue arrojaram sobre nós!

Eu desleal?! mas ao mundoQue vale queixas mandar?As vozes dum moribundoNão vão na terra ecoar...Surge, ó morte!... e vós, amigos,Sócios de tantos perigos,Vinde... nem só inimigosMe restam ao expirar.

No reino vos deixo um filho –N ossos feitos lhe ensinai;Dizei-lhe qual foi o trilhoQue em vida seguiu seu pai...Dizei-lhe qual foi meu norte;Mas, enquanto à minha sorte,Oh! não lhe aponteis a morre,A vida só lhe apontai...

E se falardes um diaA dom Manuel, o feliz,Dizei-lhe que na agoniaAlbuquerque o não maldiz;Que à beira da sepultura,Para um filho sem ventura,Invoco sua ternura,Se alguns serviços lhe fiz.

E vós... e vós, portugueses,Nossa pátria defendei;Dai-lhe os peitos por arneses,Seja a pátria vossa lei.Num trono que ela não tinhaEu vo-la deixo rainha,Mas não sei o que adivinhaMeu pensamento... não sei...

Entre as sombras do futuro,Meu Deus! a pátria em grilhões!...Pelo mar em vão procuroSeus orgulhosos pendões...Coberta d'amargo pranto,Lá se envolve em negro manto...Lá roja a face em quebranto...Ela, a grande entre as nações!...

Oh! se este braço pudera

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A fria lousa quebrar,Este braço inda se ergueraDa tumba, para a salvar;Apontando-lhe a vingança;Inda lhe dera esperança,E empunhando a antiga lança,À morte a fora arrancar.

Mas eis marcado o momentoNo livro d'além dos céus...Eis a morte... o passamento...São findos os dias meus...Companheiros da vitória,De tantos dias de glória,Guardai... guardai na memória,D'Albuquerque o extremo adeus...

A morte... a morte... que anseio!Sinto um gelo sepulcral...Abre-me, ó terra, o teu seio,Quero o repouso final.Desce, guerreiro cansado,Desce ao túmulo gelado...Mas a afronta... desonrado...Índia... filho... Portugal!...

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A TI

Oh! quão formoso me surge o diaLá quando a noite se inclina ao mar,Quando na aurora que me extasia,Teu belo rosto cuido avistar!Não sei que esp'rança jamais sentidaEntão me adeja no peito aqui;E que na aurora saúdo a vida,Outrora escura, sem luz, sem ti.

Correm as horas, a noite avança,A lua brilha com meigo alvor;Então minha alma, que em paz descansaDivaga em sonhos d'ignoto amor.No véu d'estrelas, na branca luaMeus olhos buscam olhos que eu vi,E o pensamento longe flutua,E uma saudade revoa a ti.

Eis que adormeço, e um anjo assomaTodo cercado d'etérea luz;De seus cabelos recende o aromaDas castas rosas que o céu produz.O céu me aponta, sorri-lhe a face;Acordo, e o anjo foge dali;Mas em meu peito logo renasceDoce esperança que vem de ti.

Já pela terra surgem verdores,Auras serenas baixam do céu,As aves cantam novos amores,Tudo se cobre dum glóreo véu;E céus c terra, montes, paisagem,Tudo a meus olhos, tudo sorri;É que ali vejo só Lua imagem,É que hoje vivo, mas só por ti.

Talvez que eu sinta meu pobre enleioPassar qual brilho de luz fugaz:Que importa? ao menos dentro em meu seio,Já morta a esperança, tu viverás.Oh! sim, que os dias são mais serenosCom tua imagem gravada ali;Té mesmo a morte custará menos,Junto ao sepulcro pensando em ti.

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INFÂNCIA E MORTE

«Ó mãe, o que fazes? em cama tão fria«Não durmas a noite... saiamos daqui...«Acorda! não ouves a pobre Maria,«Pequena, sozinha, chorando por ti?

«Porque é que fugiste da nossa morada,«Que alveja saudosa no monte dalém?«Depois que tu dormes na terra gelada,«Quão só ficou tudo, mal sabes, ó mãe.

«A nossa janela não mais foi aberta,«O fogo apagou-se na cinza do lar,«As pombas são tristes, a casa deserta,«E as flores da Virgem se vão a murchar.

«Oh! vamos, não tardes... mas tu não respondes...«Em vão todo o dia meu pranto correu;«No fundo da cova teu rosto me escondes,«Não ouves, não falas... que mal te fiz eu?

«Escuta! na torre de frestas sombrias«O sino da ermida começa a tocar...«Acorda! que o toque das Avé-Marias«À imagem da Virgem nos manda rezar.

«A lâmpada exausta de Nossa Senhora«Ficou apagada, precisa de luz:«Oh! vem acendê-la, e à Mãe que se adora«Ali rezaremos, e ao Filho na cruz.

«Depois à costura, sentada a meu lado,«Tu hás-de contar-me, bem junto de mim,«Aquelas histórias dum rei encantado,«De fadas e mouras, dalgum querubim.

«A d'ontem foi triste, pois triste falavas«De vida e de morte, dum mundo melhor;«E o rosto cobrias, e muda choravas,«Lançando teus braços de mim ao redor.

«Depois em silêncio teus olhos fechaste,«Tão pálida e fria qual nunca te vi;«Chamei-te era dia, mas não acordaste,«E enquanto dormias trouxeram-te aqui.

«Oh! vamos, não tardes, que as noites sombrias.«Sem ti a meu lado, me causam pavor!

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«Acorda! que o toque das Avé-Marias«Nos diz que rezemos à Mãe do Senhor.»

Tais eram as queixas da pobre Maria...O sino da ermida cessou de tocar...E a mãe entretanto dormia, dormia;Do sono da morte não pôde acordar.

Três dias, três noites a filha sozinhaNo adro da igreja por ela chamou...Ao fim do terceiro já forças não tinha;Da mãe sobre a campa, gemendo, expirou.

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O CANTO DO LIVRE

Ao meu amigo Alexandre Braga.

Gema embora a terra inteiraAcurvada a iníquas leis;Esta fronte sobranceiraJamais de rojo a vereis.Oh! ninguém, ninguém a esmaga,Que eu sou livre como a vaga,Que sacode sobre a plagaO jugo d'altos baixéis.

Liberdade é o mote escritoNo céu, na terra, e no mar!Di-lo a fera no seu grito,E as aves cruzando o ar;Di-lo o vento da procela,A vaga que se encapela,E nos espaços a estrelaEm seu contínuo girar.

Di-lo tudo! mas aindaMais livre me criou DeusQue os astros da altura infinda,Os ventos, e os escarcéus.Eu tenho mais liberdadeDesta alma na imensidade,Pois tenho nela a vontade,Tenho a razão, luz dos céus.

Eu sou livre! erguendo a fronteDiz-mo uma voz na amplidão,Quando de pé sobre o monteMe elevo rei da soidão;Quando além do firmamentoAlçando meu pensamento,Solto nas asas do ventoMeu canto d'inspiração.

Eu sou livre! eis minha crença,Nem força contra ela vale.Que um tirano enfim me vença –Triunfarei por seu mal.Triunfarei, que algemadoE diante dele arrastado,Sou livre! será meu bradoTé ao momento final.

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E que importa que o tirano,Jurando vingança atroz,Faça erguer, sorrindo ufano,Um cutelo à sua voz?Minha fronte sempre erguidaHá-de encará-lo atrevida,E só cair abatidaAo rolar aos pés do algoz.

Mas nunca! pois fora um preitoDar os pulsos ao grilhão.Tenho um ferro, e neste peitoTenho um livre coração!Não! jamais serei cativo!Se vencido restar vivo,Cairei, sorrindo altivo,Sob o punhal de Catão!

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SAUDADE

Assim, pálida lua, assim teu rostoFulgurava tranquilo nessa noiteEm que o adeus lhe murmurei sentido;Quando, após os momentos preciososEm que inda pude vê-la, inda escutá-la,Afoutando meu ânimo indeciso,Sua trémula voz me disse: parte...Entanto que uma lágrima furtivaLhe escorria na face melindrosa,Mais pálida que a tua...

Astro saudosoAstro da solidão, quanto me aprazes!Eu amo o teu silêncio, amo o teu brilho,Mais que do sol os importunos raios.Que me importa desse astro a luz e a vida,Se a luz e a vida me ficaram longe?Se em meio do rumor que o dia espalha,A voz não ouço que responde à minha?

Estes vales, e selvas, estes montes,À luz do dia, são talvez formosos;«ias não é este o ar que ela respira,Não são estes os sítios que ela encantaCom seu mago sorriso. O dia é mudo;Porém tu surges, solitária amiga,Tu vens falar-me dela, astro saudoso.

Lua, desse áureo trono onde campeias,Tu vês os sítios caros. Que faz ela?Acaso; como pomba fatigada,Repousa adormecida? Verte, ó lua,Verte-lhe em torno o perfumado alentoQue a noite rouba às orvalhadas flores.«ias não; talvez agora em mim pensando,Agora mesmo sobre o teu semblanteEla fixa também os olhos tristes,« nossos pensamentos, nossas vistasSe confundem em ti. Oh! não podermos,Adejando como eles nesse espaço,Embora por momentos, confundir-nosEm teu regaço, deslembrando a ausência!Ao menos, astro amigo, ordena, ordenaQue o anjo da saudade, que em ti mora,Desça, e lhe diga o que minha alma sente.

Oh! quando solto d'importunos laços,

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Demandando outros céus, hei-de já livreVê-la, ouvi-la, falar-lhe? Quem o sabe?Mas tu entanto, confidente meiga.Em cada noite vem falar-me dela;E em meu peito sombrio e solitárioDerrama, envolto no teu doce brilho,O bálsamo suave da esperança.Assim possas tu ser, benigna deusa,A invocada dos tristes; e se acasoAmas também. se algum remoto lagoEntre floridas margens escondidoTe prende as feições, possas tu sempreNo cristalino azul das suas águasSem nuvens espelhar teu rosto ameno!

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AMOR E ETERNIDADE

Repara, doce amiga, olha esta lousa,E junto aquela que lhe fica unida:Aqui dum terno amor, aqui repousaO despojo mortal. sem luz, sem vida.Esgotando talvez o fel da sorte,Puderam ambos descansar tranquilos;Amaram-se na vida, e inda na morteNão pôde a fria tumba desuni-los.Oh! quão saudosa a viração murmuraNo cipreste virenteQue lhes protege as urnas funerárias!E o sol, ao descair lá no ocidente,Quão belo lhes fulguraNas campas solitárias!Assim, anjo adorado, assim um dia,De nossas vidas murcharão as flores...Assim ao menos sob a campa friaSe reunam também nossos amores!Mas que vejo! estremeces, e teu rosto,Teu belo rosto no meu seio inclinas,Pálido como o lírio que ao sol postoDesmaia nas campinas?Oh! vem, não perturbemos a venturaDo coração, que jubiloso anseia...Vem, gozemos da vida enquanto dura;Desterremos da morte a negra ideia!Longe, longe de nós essa lembrança!Mas não receies o funesto corte...Doce amiga, descansa:Quem ama como nós, sorri à morte.Vês estas sepulturas?Aqui cinzas escuras,Sem vida, sem vigor, jazem agora;Mas esse ardor que as animou outrora,Voou nas asas de imortal auroraA regiões mais puras.Não, a chama que o peito ao peito enviaNão morre extinta no funéreo gelo.O coração é imenso: a campa friaE pequena de mais para contê-lo.Nada receies, pois: a tumba encerraUm breve espaço e uma breve idade!E o amor tem por pátria o céu e a terra,Por vida a eternidade!

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O ESCRAVO

Tremes, escravo? baqueiasEntre os muros da prisão?Vergado sob as cadeiasRojas a fronte no chão?Já da turba ao longe o gritoPede teu sangue maldito:Sentes, escravo proscrito,Vacilar teu coração?

Não sinto! nada perturbaMinha alegria feroz –Nem o bramir dessa turba,Nem a lembrança do algoz.Vinguei-me! nada me aterra,Curvai-vos, homens da terra!Contra mim juraste guerra;Guerra jurei contra vós.

Eu era livre sem metaComo as ondas lá no mar;Era livre como a setaQuando sibila no ar:Em vossa avidez tiranaQue me algemou desumana...Ó minha pobre choupana!Ó florestas do meu lar!

Além, além nas florestas,Foi além onde eu nasci;Onde sem prisões funestasJá venturoso vivi.Foi dos bosques na espessuraQue eu tive amor e ternura;Mas liberdade e ventura,Pátria, amor, tudo perdi.

Perdi tudo! além da morteJá não me resta ninguém.Tinha um pai: a negra sorteDo filho sofreu também.Trouxe da pátria distanteO férreo jugo aviltante,Inda eu era tenro infanteNos braços de minha mãe.

Minha mãe!... oh! quantas vezesMe vinha a triste abraçar,

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E carpindo os seus revesesFitava os olhos no mar!Seu pranto caía ardente,Em bagas na minha frente;E eu, pobre infante inocente,Chorava de a ver chorar.

Mais tarde, quando o navioMe trazia à escravidão,Nas praias do mar bravioEu a vi cair no chão;Vi-a através dos espaços,Morrendo, estender-me os braços...Sacudi meus férreos laços;Mas, ai de mim! era em vão!

Perdi-a! só me restavaA virgem do meu amor,Que a mulher que eu adoravaQuis partilhar a minha dor.Mas tinha sua belezaSó dum escravo a defesa...Devia, oh raiva! ser presaDo meu infame senhor.

E eu, soberbo vezes tantas,Curvei-me daquela vez;Arrastei às suas plantasMinha feroz altivez.Debalde! que o vil tiranoEscarneceu do africano;Maldição! vaidoso, ufano,Meu amor calcou aos pés.

– É minha, só minha a escrava:A ti, pertence o grilhão: –Disse, e o sangue me escaldavaNo fundo do coração.Da vingança a torva imagemMe sorriu, me deu coragem –No meu gemido selvagemRugiu irado o leão.

Era noite! – negro sonhoQue destes olhos não sai!-Era noite! um céu medonhoVi tua sombra, ó meu pai...Rojando um grilhão pesado,Teu espectro ensanguentadoSe ergueu sombrio a meu lado,

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Sem dar um gemido, um ai...

Té que alçando a voz: – meu filho!Meu filho! – bradaste enfim,E os olhos turvos, sem brilho,Tinhas cravados em mim...Eu quis lançar-me em teus braços,Quis cingir-te em doces laços;Mas fugindo aos meus abraços,Volvias a olhar-me assim.

Foste escravo... teu destino,Tua morte compreendi,E um nome, o do assassino,Delirando te pedi;Mas sem atender a nada,Erguendo a dextra mirrada,– Vingança! – com voz iradaBradaste, e não mais te vi.

Sim, vingado foi teu sanguePor este braço afinal,Que um deles caiu exangueAos golpes do meu punhal.Era amargo o fel da taça –Vinguei a nossa desgraçaNum dos tigres dessa raça,No sangue do meu rival.

Vinguei o meu e teu jugo!Que importam férreos grilhões,O cadafalso e o verdugo,O suplício e as maldições?Entre os gozos da vingançaReluz enfim a esperança;Já não receio a lembrançaDe seus cruentes baldões.

Sinto correr-me nas veiasO fogo que lhe ateei...Quebrai-vos, duras cadeias,Escravo não mais serei...Sou livre! a morte o proclamaNeste peito que se inflama...Já nele circula a chamaDo veneno que eu tomei!

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O ANJO DA HUMANIDADE

Era na estância cristalina e pura,Que além do firmamento rutilanteSe ergue longe de nós, e está seguraEm milhões de colunas de diamante;Jerusalém celeste, onde fulguraDo eterno dia o resplendor constante,E onde reside a glória e majestadeD'Aquele que povoa a imensidade.

Na mansão mais recôndita e profundaA soberana Essência o trono encerra,Donde a fonte de amor brota fecunda,Os astros animando, os céus e a terra;Um mar de luz seus penetrais circunda,Que o próprio arcanjo deslumbrado aterra,Luz que em triângulo ardente se condensaQuando o Eterno os oráculos dispensa.

Por toda a parte o azul e as pedrariasNa cidade divina resplandecem;Mil arcadas de sóis, mil galeriasDe brilhantes estrelas a guarnecem;Os anjos em lustrosas jerarquiasNas harpas d'ouro melodias tecem,Outros em coros adejando voamE d'aromas e canto o céu povoam.

Eis de repente nos umbrais divinos,Sobre as asas pairando, um anjo entrava,Parecendo de sítios peregrinosQue às regiões celestes assomava;Cruzando o empíreo, as legiões, e os hinos,Qual rápido luzeiro perpassava,Té que chegando ao trono do Increado,Nus últimos degraus ficou pousado.

Pelos ebúrneos ombros o cabeloEm aneladas ondas lhe caía;A safira das asas sobre o geloDas roupagens reluzentes refulgia.Mais brilhante não é, não é mais belo,Comparado com ele, o astro do dia,Ou a estrela que brilha quando a auroraDe purpurina luz o céu colora.

Ao trono augusto levantou a frente,Mas com as asas a toldou ansioso,

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Não podendo suster o brilho ardenteQue despedia o foco luminoso.A milícia dos anjos resplendenteFixou atenta seu irmão formoso;Os concertos pararam, e ele entantoAssim falou entre o geral espanto:

«Eterno Ser, que as divinais moradas«Enches de glória em majestoso assento,«Fonte de vida e criações variadas,«Que dás ao mundo poderoso alento;«A cujo aceno tremem abaladas«As colunas do etéreo firmamento,«E cujo nome, que o universo entoa«No céu, na terra, e nos abismos soa!

«Por teu mando supremo destinado,«A conduzir a humana descendência,«Desde que a mancha do cruel pecado«A fez cair da primitiva essência –«Venho afinal, Senhor, de teu mandado«Dar-te conta fiel, após a ausência;«Fazer-te ouvir da humanidade os prantos,«E aguardar teus preceitos sacrossantos.

«Ordenaste-me, ó Deus, que sempre atento«Prosseguisse na terra a lei sob'rana«Que rege, na amplidão do firmamento«A criação que de teu seio emana:«Essa lei do progresso e movimento«Tenho cumprido na família humana,«Desde que ao mundo, a combater seu fado,«O desterrado do éden foi lançado.

«Primeiro, sobre a terra esclarecendo«Seus duvidosos passos vacilantes;«Depois, o justo c seu baixel sustento«Nas águas do dilúvio sussurrantes:«De novo à terra de pavor tremendo,«Conduzindo mais puros habitantes:«Mais tarde junto ao berço do Messias,«Anunciando ao mundo novos dias.

«Agora, sobre as ruínas dum império«Outro império de novo edificando;«Agora, as povoações dum hemisfério«Sobre as doutro hemisfério derramando:«Já do teu Verbo o divinal mistério,«Com as santas doutrinas propagando;«Já mostrando por fim à humanidade

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«Nova luz de justiça e de verdade.

«Quantos velhos sofismas desterrados!«Quantos ídolos falsos em ruínas!«Quantos sábios triunfos alcançados!«Quantas conquistas imortais, divinas!«Calcando o pó dos séculos passados,«O homem corre ao fim que lhe destinas;«Mas ah! Senhor, no meio da tormenta«Seu amor esmorece e desalenta.

«Seu valor esmorece! tantas lidas,«Tanto lutar contínuo das idades,«Tanto sangue e martírios, tantas vidas,«Tantas ruínas d'impérios e cidades:«E o homem sofre, e as gerações perdidas«Se revolvem num mar de tempestades,«Sem ver luzir esse fanal jucundo«Que por teu filho prometeste ao mundo.

«Quantos males ainda! a lei sublime,«A lei d'amor que derramou teu Verbo,«Sobre a face da terra, à voz do crime,«Sucumbe e morre por destino acerbo.«O férreo jugo que as nações oprime,«Os humildes abate, ergue o soberbo,«E o rei da terra, sobre a terra escravo,«Sofre mesquinho seu eterno agravo.

«Por toda a parte, em lastimoso acento,«Se ouve gemer a humanidade aflita.«A terra, a mãe comum, nega alimento«Dos filhos seus a à multidão proscrita:«Enquanto folga em vícios o opulento.«A indigência cruel na choça habita,«E a mãe, a mãe ao peito, em desalinho,«Aperta morto à fome o seu filhinho.

«Entanto a guerra, que a ambição ateia,«Ensanguenta as campinas e as cidades;«A crua peste, que ninguém refreia,«Converte as povoações em soledades;«Destes males cruéis a terra cheia,«Cobre-se inda de mil iniquidades;«O vício, o crime, a corrupção devora«A pobre humanidade, como outrora.

«Ao ver tanta miséria, o bom padece,«O mau blasfema de teu nome santo,«A voz dos inspirados esmorece,

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«O futuro se envolve em negro manto...«Eu mesmo, eu mesmo, recolhendo a prece«Que a humanidade te dirige em pranto,«Subi confuso ao eternal assento,«A depor a teus pés meu desalento.»

Disse, e um gemido d'aflição pungente,Semelhante a dulcíssona harmonia,Soltou do peito, reclinando a frenteCom celeste e ideal melancolia:Assim pendendo ao longe no ocidente,Se reclina saudoso o astro do dia;Assim reclina a pálida açucena,Açoutada do vento, a fronte amena.

Depois, continuando: «Ó Deus, quem há-de«Sondar mistérios que teu seio esconde?«Tuas leis divinais, tua vontade«Cumprirei sobre a terra. Eia, responde:«Os passos da mesquinha humanidade«Aonde os levarei, Senhor, aonde?"Uma voz retumbou do céu radiante.Que ao anjo respondeu, dizendo: – AVANTE!

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PARTIDA

Ai, adeus! acabaram-se os diasQue ditoso vivi a teu lado;Soa a hora, o momento fadado:É forçoso deixar-te e partir.Quão formosos, quão breves que foramEsses dias d'amor e de ventura!E quão cheios de longa amarguraOs da ausência vão ser no porvir!

Olha em roda estas margens virentes:Já o outono lhe despe os encantos;Cedo o inverno com gélidos mantosBaixará das montanhas dalém.Tudo triste, sombrio, e gelado,Ficará sem verdura nem flores:Tal meu seio, privado d'amores,Ficará de ti longe também.

Não sei mesmo, não sei se o destinoMe dará que eu te abrace na volta...Ai! quem sabe onde a vaga revoltaLevará meu perdido baixel?Sobre as ondas, sem norte, e sem rumo,Açoutado por ventos funestos,Sumirá por ventura seus restosNas voragens d'ignoto parcel.

Mas ah! longe esta ideia sombria!Longe, longe o cruel desalento!Após dias d'amargo tormentoVirão dias mais belos talvez.Dá-me ainda um sorriso em teus lábios,Uma esp’rança que esta alma alimente,E na volta da quadra florenteEu coas flores virei outra vez.

Mas se as flores dos campos voltaremSem que eu volte coas flores da vida,Chora aquele que em tumba esquecidaDorme ao longe seu longo dormir;E cada ano que o sopro do outonoDesfolhar a verdura do olmeiro,Lembra-te ainda do adeus derradeiro,Deste adeus que te disse ao partir!

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CANTO DE PRIMAVERA

Eis surge a quadra florida,A quadra dos amores,Vertendo almos fulgoresDo seio juvenil.Tudo revive ao hálitoQue a natureza aquece;Tudo rejuvenesceÀ luz do ameno abril.

Os bosques odoríferosSe cobrem de verduras:Nos montes e planurasRenasce a tenra flor;Dos perfumados zéfirosAs músicas suavesSe juntam das mil avesOs cânticos d'amor.

Salve, estação esplêndida,Ó luz apetecida,Que à terra dando vida,A tudo dás prazer!Minha alma em doces êxtasesFesteja a tua vinda,E se ergue à luz infinda,Manancial do ser.

D'onde. ó calor benéfico,Derivas teu alento?E d'onde o movimentoQue dás à criação?Do foco sempre vividoQue anima a naturezaPor toda a redondezaDa terra, e da amplidão.

Como nos campos fulgidosEspalha essas estrelas,Assim as flores belasNos campos terreais:Quão belo, ó Providência,É teu poder fecundoEnchendo o vasto mundoD'alentos imortais!

Debalde o imenso vórticeRetoma quanto gera:

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Tudo se regeneraNo perenal crisol,E tudo canta harmónicoO Ser que, das alturas,Aos gelos dá verduras,Às sombras novo sol.

Cantai, ó aves módulas,Cantai em coro ledo!Murmúrios do arvoredo,Cantai a Jeová!Campinas aromáticas,Erguei-lhe os mil perfumesDas flores em cardumesQue a primavera dá!

Abriu-se o tabernáculoDa terra florescente;Todo sorri fulgente,Todo respira amor:Ressoem nele os cânticosDe mística harmonia,Dizendo noite e dia:– Hossana ao Criador!

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***

Voltai, voltai, ó flores das campinas!Revesti-vos de galas, ó colinas!Aves, cantai d'amor!E vós ó minhas caras esperanças,Voltai-me ao coração; das áureas trançasDerramai-lhe fulgor!

Expulsou-vos do peito o desalento,Como no outono o proceloso ventoAs folhas do vergel;Mas como os dias da estação formosa,Novo dia surgiu, e cada rosaDa vida com seu mel.

Oh! quem pudera em sua quadra tristePensar que a alegre no futuro existe,Que existe a sombra e a luz!Que nos prantos do orvalho ri a aurora;Que a natureza, que imortal labora,Na ruína a flor produz;

Da inconstância geral nada se esquiva;Toda a existência para o mar derivaDo incógnito porvir!Agora o riso, ou dor, logo outra sorte;Aqui a vida, mais além a morte;Depois o ressurgir!

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CATÃO

Como em tarde anuviadaEm tarde de negros véus.Para a terra contristadaSorri o íris dos céus;Mas quando o sol esmorece,O íris desaparece,Tudo é negra escuridão;O mar ruge e se encapela,E nas asas da procelaCorre bramindo o trovão:

Tal ao sol da liberdadeQue sobre Roma luziu,Qual íris em tempestade,Catão à pátria sorriu.Mas esse astro que fulgenteDas águias brilhara à frente,Do Capitólio baixou;E ele, o íris da bonança,Ele, de Roma a Esperança,Com seu fulgor expirou.

Contra as iras da tormentaÓ forte lutaste em vão:Que pode a virtude isentaContra a geral corrupção?Já não luziam virtudesComo nos séculos rudesDessa Roma consular;O templo da tiraniaA seus ministros abriaAs portas de par em par.

Inda infante, viste MárioDe Roma o sangue beber;E envolvida num sudárioA pobre Itália gemer.Viste Sila, o monstro infando,Entre as cabeças folgando,Qual tigre, no seu festim;E, infante, bradaste ufano:– Dai-me um ferro, e o tiranoLivremos a pátria enfim! –

Não to deram: que lucravaO teu valor juvenil?Dum tirano outro brotava,

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Nascia a guerra civil.Enxuto de Roma o pranto,Eis que envolto em negro mantoLá surge um conspirador:Cintila a morte, a ruínaNo punhal de Catilina,De Catilina, o traidor,

Surge, víbora geradaDos vícios do lodaçal!Sobre Roma descuidadaLança o veneno fatal!Eia, empunha o facho ardente!Entrega a pátria inocenteAos punhais da tua grei!E entre o sangue, à luz do incêndio,Num trono de vilipêndioVem sentar-te como rei!

Mas treme! lá soa o bradoDe Marco Túlio, orador.Treme! Catão no senadoJá dos teus vence o furor.Sucumbiste, algoz ferino!Oh! mas vinga-te o destinoQue Roma jurou perder.Catão, cobre-te de luto,Que da Gália já escutoA guerra civil descer.

Gerou-a o triunvirato,Esse monstro d'ambição;Que as eras de Cincinato,Essas eras já lá vão.D'olhos fitos sobre a ItáliaEis desce o leão de Gália,E Arimino já tomou.É César! ei-lo que assoma:Abre-lhe as portas, ó Roma,Que às tuas portas chegou!

Ei-lo parte, e já na EspanhaOs três legados venceu!Só em Dyrrachio lhe ganhaA espada do grão Pompeu.Os mortos jazem aos centos:Sobre os seus restos sangrentosUm homem chora: é Catão.É ele que ali deploraEssa guerra assoladora,

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Guerra d'irmão contra irmão.

A liberdade expirava:O coração lho prediz.Roma, a livre Roma escravaIa dobrar a cerviz.Não se enganou: lá trovejaO fragor d'alta pelejaEm Farsália inda uma vez;Pompeu vacila e fraqueia;A liberdade baqueiaDe Júlio César aos pés.

Ei-la que expira, ei-la morta...Oh! que não! ressurge além!Catão é vivo: que importaQuanto César ganho tem?De Farsália aos naufragantesSobre as areias distantesDa Líbia surge um fanal:São dele, dele as bandeirasJuntando as rotas fileirasPara um combate final.

Mas César lá corre ovante,Vence Juba e Cipião;Tudo ante ele vacilanteSe prostra enfim maldição!Não tarda a hora funesta:De liberdade só restaDentro d'Utica um fulgor.Inda Catão lá impera:É lá que o vencido esperaAs iras do vencedor.

Que venha, que ao seu acenoCurvado não há-de verAquele rosto sereno,Que nunca soube tremer.Caminha, César altivo,E acharás em teu cativo,Em vez de preito, o desdém!Sabes vencer, porém correVem saber como se morre,Aprende a morrer também!

Catão, Catão, eis chegadoO momento de partir!Com que rosto sossegadoTe vejo à morte sorrir!

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Antes do golpe supremoTu paras inda no extremoA meditar com Platão:Assim a águia alterosaD'alta penha cavernosaMede sublime a amplidão.

E depois, assim como ela,Das nuvens rompendo o véu,Adeja sobre a procela,Deixa a terra, e busca o céu:Tal coa dextra sempre ousadaCravando no seio a espada,Partiste d'alma os grilhões;E dentre os vaivéns da sorteVoaste, calcando a morte,Às etéreas regiões.

César vence, e ao CapitólioLá sobe triunfador;Roma cai do altivo sólio,Rojando aos pés dum senhor.Catão, o livre, expirara...No suspiro que exalaraA liberdade voou.Começava o negro impérioQue um Calígula, um Tibério,Um Nero, monstro, gerou.

Ele, entanto, sepultadoNas praias junto do mar,Lá dormia descansadoSob a lájea tumular.Ali a queixosa vagaVinha, rolando na plaga,Beijar do livre a mansão;E inda falar com saudade,Da pátria, da liberdade,à estátua de Catão.

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AMO-TE

Da aurora que surge com mantos lustrososEu amo os sorrisos d'encanto sem fim;Mas inda mais amo teus lábios formosos,Teus lábios sorrindo d'amor para mim.

Eu amo as estrelas, dos plainos infindosVertendo num lago sereno fulgor;Mas inda mais amo teus olhos tão lindosVertendo em minh'alma seus raios d'amor.

Em serras, ao longe, cobertas de gelos,As ondas eu amo d'argênteo luar;Mas inda mais amo teus louros cabelosQue em ombros de neve costumas soltar.

Da brisa das tardes eu amo os lamentos,Dos bosques sombrios adoro o cantor;Mas inda mais amo teus brandos acentosEm termos descantes, em quebros d'amor.

Eu amo a florinha d'ao pé da corrente,E o cálice puro da nívea cecém;Mas inda mais amo tu'alma inocente,Tão pura que os anjos mais pura a não tem.

Eu amo dos astros a luz palpitanteE as vagas longínquas arfando no mar;Mas inda mais amo teu seio d'amante,Unido a meu seio, d'amor a pulsar.

Eu amo na brisa, que doce murmura,Colher os perfumes da rosa em botão;Mas inda mais amo sorver a doçuraDos beijos que, ardendo, teus lábios me dão.

Eu amo-te, eu amo-te, ó virgem celeste,Meus dias na terra, minh'alma, são teus;Eu amo-te, ó anjo que à terra vieste,O amor ensinar-me dos anjos dos céus.

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IMITAÇÃO DO ISLANDÊS

Um dia eu te dizia: – se roubadaMe fores, vem buscar-me – e tu não criasQue eu pudesse abraçar-te inanimada,Beijar teus olhos, tuas mãos já frias.

Mas eu não te amaria, se inconstanteTe pudesse esquecer na sepultura;Desbotou-se o frescor de teu semblante,Mas inda adoro tua imagem pura.

Apagou-se em teus lábios o ar da vida,Mas um sopro imortal veio animar-te;E tu inda és formosa, inda és queridaAo que na terra começou a amar-te.

Não me deixes em mísero abandono;Escuta ao longe, escuta a minha prece:Quando uma noite a viração do outonoGemer em nossas rochas, aparece!

E se a lua brilhar, se de passagemMe estenderes a mão d'etérea alvura,Eu surgirei por ver a tua imagem,Por ouvir tua voz serena e pura.

Depois, anjo celeste, no meu seioRepousa a fronte, aperta-me em teus braços;Deixa que eu te acompanhe sem receio,Desta existência desatando os laços.

Sobre a aurora do pólo arrebatadosVamos, no seio d'imortais venturas,Em nuvens d'ouro e púrpura embalados,Cantar, sonhar, dormir nessas alturas.

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LIBERDADE

UM ECO NO CATIVEIRO

Que tristeza quando pensoNos povos em servidão!Nos povos, gigante imensoRugindo humilde no chão!Ao pensar assim comigo,Quantas vezes eu maldigoEssa campa de jazigoQue pesa sobre as nações!Quantas vezes eu deploro,Quantas estremeço e choro,Ouvindo o ranger sonoroDe seus pesados grilhões!

Ouvindo tão tristes queixasRetumbando por esse ar,Tantas sentidas endechasSobre a terra a suspirar;Ouvindo-te, humanidade,Esse gemer de saudade,Que soltas na imensidadeSem que te escute ninguém;Ouvindo-te, ó malfadada,De teus filhos rodeada,Suspirar abandonadaComo suspira uma mãe!...

É triste a cena que vejo,É triste, mas ei-la aí...Aquém sofismas, sem pejo,Férreas algemas ali;Dum lado povos traídos,Pelos seus escarnecidos,Soltam queixas e gemidosQue ninguém quer acolher;Doutro povos humilhados,Sob um jugo avassalados,Por um peso recalcadosQuase nem ousam gemer...

Pobre raça deserdadaQue aí suspiras em vão,Quando hás-de ter entradaNa terra da promissão?Quando hás-de resgatar-te?Quando é que em toda a parte

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Há-de o mundo contemplar-teSemelhante a um homem só?Quando raiará o diaDe cessar tua agonia?Quando terás alegriaErguendo a fronte do pó?

Hás-de tê-la, que o desterro,Eia, ó triste, acabará,Que esse jugo vil de ferroEm pedaços cairá!Esgota o cálice inteiroDe teu duro cativeiro;Porém do solo estrangeiroFita ao longe a redenção!...Esta crença, força e vidaNos corações mal contida,Pode acaso ser retida?Acaso pode?... pode? – Não!

Debalde tentam detê-laPorque a corrente caudalHão-de majestosa vê-laTranspor o dique afinal...Tudo no mundo descansa,Nada progredindo avança,Tudo avante se abalançaNum eterno caminhar...Fitai o sol, as estrelas;Vede se podeis sustê-las,Se podeis, loucos, fazê-lasAo vosso aceno parar...

Quem me dera a mim agoraTer do fogo lá do céu,Daquele fogo que outroraTrouxe à terra Prometeu!Oh! que se eu pudera tê-lo,Eu havia de vertê-loNessa montanha de geloQue inda dos seios não cai...Sobre a raça amortecidaDos homens soprara a vida,E com voz, do mundo ouvida,Lhes bradaria: – Acordai! –

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ESPERANÇA

Povo! que fazes? desmaiasSob o peso do sofrer?Oh! nesse abismo não caiasSenão vê – tens de morrer:O teu colo não se dobre,Levanta essa alma que é nobre,Tens, ó povo, um coração!Ergue a fronte triunfante,Ergue-a qual cedro gigante,Não a rojes pelo chão!

Os teus irmãos sucumbiram?Ao longe os viste expirar?Não importa, – eles sorriramDe assim a vida exalar.Era pela humanidade, –Era pela liberdade:Que lhes custava morrer?Do céu te bradam: «esp'rança,Irmãos, irmãos a bonançaHá-de um dia alvorecer!»

Povo! olha ainda espumanteO sangue desses heróis;Olha as ruínas fumantesComo sinistros faróis;Contempla todo esse estrago,Olha de prantos um lago,Olha um pai órfão além,Um amante aqui chorando,Acolá um filho orandoNa campa de sua mãe!

Mil cadafalsos aos ares,Repara, não vês erguer?São teus irmãos que aos milhares,Ai de ti! lá vão morrer!Tu aos cruéis perdoavas,A vida tu lhe ofertavas,Que não tinhas mais que dar.Eles querem tua morte...Dá-lha, povo não te importe,Que o teu sangue há-de medrar.

Mas chora teus irmãos, chora;Quem é que o pranto retém?Chora, sim, que escrava outrora

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Já chorou Jerusalém:Chora, sim, como choravaO povo que suspiravaPela mísera Sião,Ou como na soledadeSuspirava de saudadeA corrente do Cedron.

Chora, mas em 'stragos tantosNão apagues teu ardor;Esgotaste sangue e prantos,Não esgotes teu valor:Recupera alento novo,O lume da esp'rança, ó povo,Não o deixes expirar;Guarda-o vivo na tormenta,Como a vestal que alimentaO sacro fogo no altar!

Vossa aurora bonançosa,Povos da terra, esperai!Vós a vereis majestosaComo os fogos do Sinai;Vós a vereis radianteVós a vereis triunfante,Qual no Gólgota brilhou,Quando a toda a humanidadeUma voz – fraternidade,Lá duma cruz ressoou.

Um dia essa voz que encerraO resgate universal,Retumbará pela terraComo a trombeta final...Há-de ver-se o tenro infanteSorrir à mãe nesse instante,E ela unindo-o ao coraçãoQue há-de dizer com ternura:«Filho, hás-de gozar ventura,Que chegou a redenção!»

Povos, povos, esse diaSerá um dia sem par:A campa que vos cobriaSe há-de então despedaçar;As nações hão-de enlaçar-se;Os homens hão-de sentar-seAo banquete fraternal,E o céu olhando o mundoHá-de em silêncio profundo

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Ver o abraço universal.

Nesse dia tão formoso,Astros! mostrai-vos sem véus!E tu, ó mar proceloso,Suspende teus escarcéus:Terra, cobre-te de gala,Os teus perfumes exala!Povos da terra, folgai!E entre mil nuvens d'incenso,Um hino geral e imenso,À liberdade entoai!

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À MORTE DO MEU AMIGOLICÍNIO F. C. DE CARVALHO

Morreste, amigo, partisteDesta mansão passageira!Bem depressa da carreiraTocaste a meta fatal!Com a folhagem dos bosquesGelou-te o vento do outono,E dormes o longo sonoDo teu leito sepulcral!

Já tua mão extremosaNão aperta a mão do amigoQue tantas vezes contigoEm sonhos vãos delirou.No seio da fria terraJá não me escutas nem falas,Contando lutos ou gaiasDo teu viver que passou.

Oh! quantas vezes, imersosNesses íntimos enleiosQue fazem um de dois seios,Sentimos horas fugir!Quantas, sonhando horizontesDe poesia, amor, ou glória,Numa expansão transitóriaCriamos longo porvir!

E morto jazes, ai! morto,Sem poder de teus anelosRealizar os sonhos belos,Cruzar a vasta amplidão?Morto sem ter dito ao mundoA palavra augusta e santaQue a turba ansiosa espanta,E que é do génio o condão?

Morto à luz da tua auroraSem que à luz da tua sestaPudesses, na hora funesta,Sorrir ao passado teu?Morto, ai, morto sem ter ganhoMais lágrimas de saudade,Tão doces à soledadeDaquele que já morreu!

Deus! se a vida é campo ameno

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Onde se vem colher flores,Porque, do sol aos fulgores,Não se hão-de as flores colher?Se é deserto ingrato e rude,Onde não brota uma fonte,Porque há-de em nosso horizonteA luz do dia nascer?

Mas dorme, descansa, amigo,Que a vida é o deserto às vezes...Estrada de mil reveses,E de voragens fatais...E que é o poeta? o viajanteQue fere os pés nos abrolhos,Enquanto levanta os olhosÀs regiões divinais.

Ave estrangeira que passaNeste clima proceloso,Com seu canto maviosoLevando as turbas d'após;Mas que chora de saudadePor sua pátria querida,Té que afinal abatidaCai sem alento e sem voz.

Descansa! no frio leitoDe teu eterno repousoNão te irá o sol formosoCada manhã despertar;Mas também, da aurora à noite,Não calcarás os espinhosQue em teus agrestes caminhosVerias da flor a par.

Lá não irão festejar-teRuidosos ecos do mundo,Que dizem, no som profundo,Qual é do génio o poder;Mas também tuas coroasNão regarás com teu pranto,Nem a inveja em negro mantoTua estrela há-de envolver.

Descansa! que digo! surge!Ergue-te à luz, ó poeta,E revoa aonde inquietaTe levava a inspiração!Sonhaste mundos brilhantes,Sonhaste amor e poesia:

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No país do eterno diaVai colher teu galardão!

Vai! das plagas do desterroEis-te afinal resgatado:Procura regeneradoA pátria que te sorri!Lá terás as harmoniasQue soltam milhões d'esferas,E florentes primaverasQuais não terias aqui.

Lá goza! lá, sacudidoSobre a terra o térreo manto,Desprende teu novo encantoDe novos sóis ao fulgor!E, se lá pode chegar-teEsta nota de saudade,Escuta a voz da amizadeEntre os mil hinos do amor!

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O MENDIGO

Nas turres soberbas da grande cidadeO sol desmaiado não tarda a morrer;Recrescem as sombras: que importa? a vaidadeNo manto das sombras envolve o prazer.

E u velho entretanto lá sobe a montanha,Caminha, caminha, no cimo parou:Em frígidas gotas o rosto lhe banhaSuor copioso, que à terra baixou.

Quis antes da morte, nas serras distantesFitar inda os olhos cansados da luz;A aldeia da infância saudar por instantes,Depois satisfeito depor sua cruz.

Olhou, e um suspiro de vaga saudadeJuntou a seus prantos em funda mudez;Depois, ao volver-se, topando a cidade,Que em ébrio tumulto folgava a seus pés:

«Mal hajas, cidade, que ao pobre faminto«O pão da desgraça negaste cruel!«Mal hajas, mal hajas, que a terra do extinto«Talvez lhe negaras, à tumba infiel!»

E exausto e sem forças, caiu de joelhos;E a fronte cansada firmou no bordão:Passados instantes, os olhos vermelhosAo céu levantava, dizendo: perdão!

Caíam-lhe soltas no colo vergadoAs longas madeixas em longos anéis:Que nobre semblante de rugas sulcado,Sulcado dos anos e mágoas cruéis!

«Perdão para as vozes que solta a desgraça!«Perdão para o triste, perdão, ó meu Deus!«Bem hajas, que aos lábios lhe roubas a taça«De fel e amarguras, abrindo-lhe os céus.

«Já filhos não tenho, levou-mos a guerra;«Esposa não tenho, finou-se de dor;«Amigos não vejo na face da terra:«Que faço eu no mundo? bem hajas, Senhor!

«Às portas do rico bati sem alento,«Eu rico n'outrora, mendigo por fim:

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«O rico sem alma negou-me o sustento,«Aqueles que amava fugiram de mim.

«Vaguei pelo mundo, nas faces mirradas«Colhendo os insultos que ao pobre se dão;«Sem pão, sem abrigo, por noites geladas«Pousei minha fronte nas lájeas do chão.

«Que vezes a morte chamei sem alento«Cansado dos anos, e fomes, e dor!«A morte não veio: sofri meu tormento...«Só hoje me ouviste! bem hajas, Senhor!

«Os homens e o mundo negaram-me os braços,«Mas tu me recolhes, tu me abres os teus...«Minha alma te busca, desprende-a dos laços...«Perdão para todos, perdão, ó meu Deus!»

E um ai derradeiro soltou d'ansiedade,Caindo por terra nas urzes do chão;Ao longe, no seio da grande cidade,Brilhava das festas nocturno clarão.

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A VIDA

A meu irmão

Que! lutar sempre em afanosa guerraContra os rigores dum feroz destino!A cada passo lacerar as plantasNesta agra senda que nomeiam vida!Correr após um sonho, uma esperançaQue leda nos sorria, a vê-la ao caboSumir-se, desfazer-se como o fumo!Ou, se tocamos o vedado pomo,Arrojá-lo de nós, murcho e vazio!Alcançar por um bem, mil dissabores!Por uma hora de gozo, mil de prantos!Sofrer, sempre sofrer, não vir um diaEm que possamos exclamar: ventura!E é este o cálice de aprazível néctarQue ao banquete do mundo nos convida?É este o éden que nos prende os olhos,E nos faz recuar ante o sepulcro?

Nascemos: com que pena à luz do diaSurgimos logo do materno seio,Filhos da dor, obedecendo à origem,Nos vagidos da infância a anunciamos:E ainda assim no deslizar serenoDos dias infantis, a vida encanta;A taça da existência tem doçura,Como se o mel lhe coroasse a bordaPara mais fácil nos tentar os lábios.O horizonte dos anos se dilata;Vem a idade do amor. Que belos sonhosEm mágico painel a vista iludem!Um ser, que a mente em chama nos diviniza,Nosso oásis feliz anima todo,Bem como o sol anima toda a natureza,Ou a rosa do vale os flóreos prados.Mas quantos podem na manhã da vidaColher a rosa de seu mago enlevo?Quantos a estrela que adoraram crentesSentem passar, e desfazer-se em breve,Não luzeiro do céu, porém da terra,Meteoro fugaz que baixa ao solo,E se dissipa, redobrando a noite!

As ilusões do amor se desvanecem:Desse mundo feliz o homem baqueiaE devorando a mágoa segue avante.

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Prometeu afanoso ei-lo procuraDar alma e vida ás criações que inventa,Ai! já não belas, mas de impura argila.Honras, glórias, poder, bens de fortuna,Ciência austera, festivais prazeres,A tudo se abalança, aspira a tudo,E em tudo encontra desenganos sempre,Ao ponto que fitara jamais chega,Ou, se o alcança, não lhe dura o gozo.Ai do que envolto em miserandas faixas,Embalada sentiu a pobre infânciaCos gemidos da fome! Esse à venturaQuase nem ousa levantar os olhos:Perpétuo desalento lhos abateÀ triste condição em que nascera.Planta gerada num terreno estéril,Não se ergue altiva, não estende os ramos,Vive entre espinhos, e entre espinhos morre.Em vão se cansa o triste: raras vezesA dura terra lhe concede o prémioDo suor e das lágrimas que verteNo seio ingrato dessa mãe ferinaUm pão acerbo que amassou com pranto,É o alimento que reparte aos filhos;E o marco do caminho à cabeceiraOnde desprende o moribundo alento.Ai dele! mas não menos desditosoO que em púrpuras e ouro vendo o dia,Ou conduzido pela mão da sorte,Chegou ao cumes que a fortuna habita;E, na posse dos bens que o mundo anseia,Palpou tremendo seu medonho nada.Este empunhando o ceptro, empalidece,Sentindo às plantas vacilar-lhe o sólio;No fastígio da glória aquele geme,Ao ver o louro que lhe cinge a frentePelo bafo da inveja emurchecido.Um as honras consegue, e as vê sem preço;Outro as riquezas, e lamenta os diasQue mais belos perdeu em seu alcance.Qual, a ciência devassando ousado,Após longas vigílias estremeceDa dúvida ante o espectro; qual ardenteDas festas no rumor despende a vida,E a taça do prazer lhe deixa o enfado.

Feliz aquele que em modesta lida,Isento da ambição e da miséria,No regaço do amor e da virtudeA vida passa. Mas feliz ainda

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Se, das turbas ruidosas afastado,À sombra do carvalho, entre os que adora,Sente a existência deslizar tranquila.Como as águas serenas do ribeiroQue as herdades pacíficas lhe banha.Mas, que digo! nem esse. Infindos malesComuns a todos, seu viver não poupam,Dum lado a crua guerra lhe sacodeO facho assolador às brandas messes;

A pálida doença, doutro lado,Dos entes que mais ama o vai privando;E ele mesmo talvez, infausta presaDessa serpente que nos liga à morte,Nos ecúleos da dor a vida exaure.E, como se estes males não bastaram,Sua mesma virtude lhe é suplício.Compassivo coa dor que os outros sofrem,A dor alheia o atormenta ainda.Justo, adora a justiça; e, olhando em torno,A injustiça e opressão verá reinando;Verá a inocência vítima do crime,A virtude humilhada, o vício altivo,Os prantos da miséria escarnecidos,Por toda a parte o mal, a dor; e as queixas,Ai dele, ai dele, se um momento páraNa atroz contemplação de tantos males!Ai dele, que turbado e confundido,Em maldições blasfemará terrívelDa virtude, de si, de Deus, de tudo!

Não! da vida no pélago agitadoUm abrigo não há, não há um portoOnde possamos descansar tranquilos.Em nós, dentro em nós mesmos, ruge iradaA tempestade que evitar queremos.Como a serpente no cristal da linfa,Na alma serena o sofrimento mora;Não pode o gozo dos mais belos diasEncher o abismo que no seio temos.Em vão, em vão ansiamos a ventura:Sumos na terra qual viajante exaustoQue ouve o sussurro d'escondida fonte,E morre à sede sem poder tocá-la.

Vida, tremenda herança d'amarguras,Eu te hei sondado nos meus próprios males,E em meus irmãos na dor, nos homens todos:Grilhão pesado que nos dá o berço,E que depomos nos umbrais da tumba

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A luta, a mágoa, eis os teus dons funestos.Mas donde a causa do sofrer eternoQue as gerações às gerações transmitem?Que um século, tombando de cansaço,Como um peso importuno lega ao outro?Donde o crime feroz que um tal castigoSobre nós atraiu? Se um Deus é justo,Que deus, que lei, sem escutar-nos, pôdeA sentença lavrar? Silêncio é tudo!Em vão, para sabê-lo, em vão mil vezesInterroguei confuso o céu e a terra:O céu de bronze não me ouviu a prece,A terra obscura não me soube o enigma.Dos profetas na voz, na voz dos sábios,A dúvida cruel achei somente.Pedindo à morte a solução da vida,Desci às tumbas; apalpei as cinzas;Quis ver se um eco da gelada campaSurgirá à minha voz; mas foi debalde.Frias ossadas, carcomidos restosDe quem sofreu também, só me disseramQue tudo acaba ali. A terra, a terra,O seio impuro dos famintos vermes:Eis o refúgio, a habitação amigaQue após a luta nos espera ao cabo!

Morte, morte, bem vinda sejas sempre,Em nome da existência eu te saúdo!Tu reinas pela dor na espécie humana,E, quem sabe? talvez nesse universo;O sol, o mesmo sol envolto nas sombras,Parece reflectir-te as negras asas;E acaso à tua voz, a cada instante,Um cometa voraz fulmina um globo.Por que inda tardas a empunhar o ceptroQue neste ao menos te pertence há muito?Ao desterrado do éden por que deixasO resto do poder que inda te usurpa?Eia, desprende sobre a terra as asas,Sobre esta criação, que abandonadaTalvez por seu autor como imperfeita,Qual nau perdida em tormentosos mares,Vaga sem rumo nesse espaço etéreo!

Mas que sinistra voz! Silêncio, ó lira!Não mais prossigas teu cantar blasfemo!Fanal de salvamento, luz d'esp'rança,Que na altura do Gólgota brilhaste,Desce à minha alma que a tristeza inunda!Desce! de todos resumindo as dores

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O cálice d'Ele foi o mais acerba.Ele sofreu! Soframos, e esperemos!Depois da noite escura vem o dia:Depois deste desterro, a eterna pátria!

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UM SONHO

Ah! si jamais le ciel j'était entre mes brasun des songes vivants attachés à mes pas

LAMARTINE, Jocelyn.

Inefável sentir, branda tristuraOh! quero-te sozinho aqui gozar...Eu te amo, tu não tens essa amarguraQue nos seios, a mão da desventuraCostuma derramar.Eu te amo qual amara a melodiaDe terna e melancólica canção,Ou o raio que o sol no fim do diaComo um beijo d'adeus, saudoso enviaÀ rosa da soidão...Oh! sim, eu te amo, ó mística saudadeVem, quero no teu seio reclinarA minha fronte, aqui na soledadeComo o lírio a que falta a humidade...Sim... quero aí chorar...Quantas vezes meu espírito elevandoAo céu em tuas asas de marfim,Os anjos um por um me andas mostrando!Oh! se desse gentil, celeste bandoTivesse um junto a mim!...Qual fonte que em deserto ressequidoDá conforto ao exausto viajor,Se houvesse sobre a terra um ente qu'ridoQue terno respondesse a meu gemidoCom meigo hino d'amor!..

Que vejo? as auras fendendoNívea pomba eis desce a mim,Do céu à terra descendo!...«um génio, um querubim,Já desceu e a mim chegando,E meu pranto contemplando,Já me uniu ao coração...,E dois seios se entenderam,E dois corações bateramEm uma só pulsação...

Virgem que à terra viesteLá do seio do Senhor,Deixaste o coro celestePra vir dar-me o teu amor?Vens os prantos enxugar-me

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Vens no teu sorriso dar-meO que ainda não senti?Vens do amor e da ternuraReceber essa flor puraQue eu guardava para ti?

Vem; tu surges qual estrelaQue surge meiga no céuQuando após uma procela,Se mostra pura e sem véu;Tu surges qual meiga aurora,Qual ao Nauta que o imploraSurge seu berço natal;Oh! quero pois adorar-te...Quero só viver d'amar-te...A vida sem ti que vale?

Sim, aqui junto ao teu seioTudo o mais quero esquecer...Nada no mundo receio;Junto a ti que hei-de temer?Este amor puro e ardenteSó bem o conhece e senteQuem vive do coração,..Cá na terra não no entendem,Só os anjos o compreendem,Só tu tens esse condão.

Tu eras, anjo, tu erasQuem ao mundo em vão pedi:Oh! escuta, se souberasTodo o pranto, que verti!...Mas meu pranto que importava?O coração que eu buscavaNo mundo não no achei...Era em vão que lho pediaO que só em ti havia,O que em ti só encontrei.

Mas nós somos tão felizes!É tão doce este viver!...Oh! essas falas que dizes,Torna-as, torna-as a dizer;Essas falas de ternuraD'inocência e de canduraQuero escutá-las sem fim...Diz-me, virgem celeste:Os anjos, donde vieste,São inocentes assim?

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Tu és inocente e puraComo a cecém ao abrirQuando a aurora na canduraLhe vem um beijo imprimir...Por uma manhã formosa.Quando desabrocha a rosa,Quando o prado rescender,Hei-de ir em cada florinha,Em cada tenra folhinha,A tua inocência ler...

Mas, repara neste diaComo é lindo o seu fulgor!Tudo nele é alegria,Tudo palpita d'amor...Não vês tu a naturezaRevestida de belezaNosso amor a festejar?Não vês como nos convidaA lançarmo-nos na vida,A vivermos para amar?

Eis pois, tudo olvidemosVivendo juntos aqui:Eia, nosso amor gozemos;Sê minha, vivo pra ti...Sim, és minha, as nossas vidas,As nossas almas unidas,Quem as pode separar?Até no último suspiro,Como um anjo em leve giro,Hão-de ao céu juntas voar!...

Um sonho... sim, um sonho e... feliz que ele eraPorém cedo fugiu...Ai! não sei que terror, que medo geraEsta mudez que imperaDês que ele se esvaiu...Pra quem sonhou na terra um céu d'amoresÉ tão triste o acordar!E, qual apaga o íris suas cores,Qual se vêem desbotar numerosas floresVer o sonho expirar!...Meu Deus! só vejo um ermo onde caminhoSem protectora mão,Qual triste o peregrino vê sozinho,Longe do pátrio ninho,Do deserto que pisa a solidão!

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DESENGANO

Vejo-a ainda! ressurge a meus olhosComo em tempos ditosos surgia,E, qual anjo de casta poesia,Desce às vezes num sonho d'amor;Vejo-a ainda nos céus e na terra,Nos encantos e risos da aurora,E, se o dia nas ondas descora,Das estrelas no meigo fulgor.

Era a luz que brilhava em minha alma,Era o astro que em sombras luzira,Era o fogo sagrado que a liraÀs doçuras d'amor acordou...Tudo c findo; debalde nas trevasBusco ainda seu facho luzente:Foi apenas um astro cadente,Meteoro fugaz que passou.

Pobre seio que ardente pulsasteEmbalado por falsas venturas,O fanal que na terra procurasSobre a terra jamais acharás.Não há seio que entenda no mundoEsse ardor de teus vagos anelos;Não há luz que em seus raios mais belosNão te esconda uma sombra falaz.

Que te resta? um futuro vazioD'ilustres que nutriu a esperança,E um passado de triste lembrançaComo é triste a verdade sem véu...Olvidar! olvidar! que ao presente,Ai! só cabe o repouso do olvido.Olvidar! e que em gelo sumidoSeja o fogo que em chamas ardeu!

Sonho belo, que esta alma iludiste,Chama ardente nos céus ateada,Voa, voa à celeste morada!Lá nasceste, do mundo não és.E tu, lira de lânguidas cordas,Que de amor suspiraste em desleixo,Vai, oh, vai! em silêncio te deixo...Vai, oh, vai para sempre talvez!

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AGAR

De Bersabé nos areais ardentesO desmaiado sol ia esconder-se,E Agar, a expulsa Agar, gemendo aflita,Unia ao peito o moribundo filho.O vaso d'água que lhe dera o esposoEsgotara-se em breve, e no desertoCom seu pobre Ismael não descobrira,Desde o romper do dia, a ansiada fonte.O dia declinava: eis que o infante,Que pela mão a acompanhava exausto,Ardendo em sede lhe sucumbe às plantas.Ela vê-o cair, ela estremece,E, os olhos turvos em redor lançando,Aqui e ali correndo busca ainda,Mas debalde, um frescor. Enfim, cansada,Ela mesma também, eis volve ao filho,Prostra-se, abraça-o, com maternos beijosTenta ansiosa prolongar-lhe a vida.

«Filho, meu filho – murmurava a triste –«À sede vais morrer! Oh! se o pudesse«Adivinhar teu pai, cruel não fora;«E Sara, a própria Sara, enternecida«Emudecera seus fatais ciúmes.«Oh! não gemas, não gemas, que debalde«Invocas tua mãe. Ela te escuta,«Mas não pode salvar-te: dentro em pouco«Em seu regaço exalarás a vida.«E hei-de eu ver-te expirar? ver nesses olhos«Sumir-se a luz do dia? e nessas faces,«Que tantas vezes me sorriram ledas,«Ver as ânsias da morte? Oh! não, não posso«Ver morrer o meu filho». Disse, e ao troncoDuma árvore vizinha o recostava;Depois, com tristes, vagarosos passos,Foi noutros sítios aguardar a morte.Ali, ao ver o sol que esmorecia,Desatou a chorar, e estes queixumesEm voz convulsa murmurou ainda:

«Sol do deserto, que o meu pobre filho«Vês expirando na soidão além,«Com teu suave, derradeiro brilho«Beijar-lhe a face carinhoso vem!«Oh! vem, que eu triste nessa face pura«Materno beijo nunca mais darei.«Perdi meu filho: sobre a terra dura

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«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Quando o teu facho ressurgir do oriente,«Tudo na terra sentirá prazer;« E lá nos campos de Mambré virente«Mais bela a rosa te verá nascer:«Só ele em sombras duma noite escura«Adormecido ficará, bem sei.«Perdi meu filho: sobre a terra dura«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Por mim não choro, que infeliz escrava«Meus tristes dias findarei aqui:«Ai! choro aquele que no mundo amava,«Choro meu filho, que expirando vi.«Maternos mimos, filial ternura,«Lembrai-me os tempos que feliz gozei!«Perdi meu filho: sobre a terra dura«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Oh! quem dissera nos passados dias«Em que ao meu colo te cerquei d'amor,«Oh! quem dissera que a morrer virias«Neste deserto sem achar frescor?«Emurcheceste, já não tens verdura,«Mimoso arbusto que gentil criei!«Perdi meu filho: sobre a terra dura«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Tantas esp'ranças, que o Senhor gerara«Na escrava humilde, findarão assim.«Foi mais feliz a geração de Sara:«Cruel destino só me coube a mim.«Em vão, em vão me prometeu futura«Longa progénie: sem ninguém fiquei,«Perdi meu filho: sobre a terra dura«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

«Aves agrestes que me ouvis as queixas,«Com tristes vozes o seu fim chorai!«Brisas do ermo, suspirai-lhe endeixas!«Astros da noite, seu dormir velai!«Velai-o todos, que a final ventura«Que vos reservo nem sequer terei.«Perdi meu filho: sobre a terra dura«Correi, meus prantos, sem cessar correi!

Mas Deus! que via ela,Que um ai desprendeu?Que pomba tão bela

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No manto do céu!Que penas de prata,D'azul, d'escarlata,O espaço retrataSereno, sem véu!

É anjo voando!Que brilho que tem!Que véus ondulandoDe pura cecém!Que anéis de cabeloNos ombros de gelo,No colo tão beloCaindo ao desdém!

Descendo, descendo,Já perto chegou;E a pobre tremendoCalada ficou;E o anjo sorriaCom doce magia,E à terra descia,Na terra pousou.

E em roda mil lumesDe brilho sem fimLançava, e perfumesDe nardo e jasmim;E a voz argentina,Suave, divina,Soltou peregrinaFalando-lhe assim:

«O que fazes, Agar, porque choras?«Nada temas, não tens que temer;«Se o teu filho perdido deploras,«Esses prantos converte em prazer.

«Do deserto chegou seu gemido«Às alturas que habita o Senhor:«Surge, surge, e teu filho querido«Vai ao longe buscar sem temor!

«Surge, surge, recobra a esperança«Que as promessas cumpridas serão!«O teu filho, o Senhor to afiança,«Será pai duma grande nação. «Glória a Deus, que no céu ouve as mágoas«De quem sofre na terra a carpir!

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«Eis um jorro de límpidas águas:«Ide nelas a sede extinguir!»

E, assim dizendo, lhe mostrava pertoUma fonte escondida entre verduras,Como nunca se vira no deserto,De tão grato frescor, d'águas tão puras.

Depois, batendo as esmaltadas penas,Deixou na terra um luminoso traço;E, agitando seu manto d'açucenas,Sumiu-se ao longe na amplidão do espaço.

Erguendo aos céus a radiosa fronte,A pobre mãe ao Senhor Deus louvava;E, enchendo o vaso no cristal da fonte,Com ele ao filho a salvação levava.

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MARIA, A CEIFEIRA

(IMITAÇÃO DE UHLAND)

«Bons-dias, Maria: da lida do prado«Nem mesmo te afastam cuidados d'amor,«Se ao fim de três dias mo deixas ceifado«A mão do meu filho te quero propor.»

Promessa é do rico, soberbo rendeiro:Maria, oh! quão ledo seu peito bateu!Seus olhos brilharam, seu braço ligeiroMais forte nas messes a foice moveu.

Soou meio-dia: que ardente secura:Já todos demandam a fonte, o pinhal;Somente nos ares a abelha murmura:Maria não pára, que é sua rival.

O sol esmorece, bateram trindades:Debalde o vizinho lhe grita: bastou!Zagais e ceifeiros se vão às herdadesMaria, coa foice, lidando ficou:

O orvalho desliza; desponta a seu turnoA estrela no espaço, na selva o cantor;Maria, insensível ao bardo nocturno,A foice incansável agita ao redor.

Os dias e as noites assim por tais modos,Nutrida d'amores, mal sente passar,Três dias findaram: oh! vinde ver todosMaria ditosa d'esp'rança a chorar.

«Bons-dias, Maria; já tudo ceifado!«Lidaste deveras: a paga hás-de ter.«Enquanto a meu filho, foi graça o tratado;«Quão loucos e simples o amor nos faz ser!»

Tal disse, e passava... no peito constante,Ai pobre Maria, que transe cruel!Teu corpo formoso tremeu vacilante,E exausta caíste, ceifeira fiel.

Um ano a coitada, sozinha consigo,Vivendo de frutos, vagou sem falar...No prado mais verde cavai-lhe o jazigo:Ceifeira como esta jamais heis de achar.

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A MONJA

(TRADUÇÃO DE UHLAND)

Sobre os jardins da clausuraBrilha da lua o fulgor;Jovem monja entre a verduraLá divaga e a face puraLhe banham prantos d'amor:

«Doce amigo, que tão cedoFoste na campa habitar,Posso eu amar-te em segredo?Ai, posso! aos anjos, sem medoNosso amor podemos dar.»

Aos pés da Virgem que adoraTrémulos passos detém;O doce olhar da SenhoraLhe faz brilhar, como a aurora,O rosto cor de cecém.

Na terra fria ajoelhando,À Virgem Santa rezou:Pôs nela os olhos chorando,E o longo véu abaixando,Muda e tranquila expirou.

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O FIRMAMENTO

Ao meu amigo J. S. da Silva Ferraz

Glória a Deus! eis aberto o livro imenso,O livro do infinito,Onde em mil letras de fulgor intensoSeu nome adoro escrito.Eis do teu tabernáculo corridaUma ponta do véu misterioso:Desprende as asas retomando a vida,Alma que anseias pelo eterno gozo!

Estrelas, que brilhais nessas moradas,Quais são os vossos destinos!Vós sois, vós sois as lâmpadas sagradasDe seus umbrais divinos.Pululando do seio omnipotente,E sumidas por fim na eternidade,Sois as faíscas do seu carro ardenteAo rolar através da imensidade.

E cada qual de vós um astro encerra,Um sol que apenas vejo,Monarca doutros mundos como a terraQue formam seu cortejo.Ninguém pode contar-vos: quem puderaEsses mundos contar a que dais vida,Escuros para nós qual nossa esferaVos é nas trevas da amplidão sumida?

Mas vós perto brilhais, no fundo acesasDo trono soberano:Quem vos há-de seguir nas profundezasDesse infinito oceano?E quem há-de contar-vos nessas plagasQue os céus ostentam de brilhante alvura,Lá onde sua mão sustém as vagasDos sóis que um dia romperão na altura?

E tudo outrora na mudez jaziaNos véus do frio nada:Reinava a noite escura; a luz do diaEra em Deus concentrada.Ele falou! e as sombras num momentoSe dissiparam na amplidão distante!Ele falou! e o vasto firmamentoSeu véu de mundos desfraldou ovante!

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E tudo despertou, e tudo giraImerso em seus fulgores;E cada mundo é sonorosa liraCantando os seus louvores.Cantai, ó mundos que seu braço impele,Harpas da criação, fachos do dia,Cantai louvor universal ÀqueleQue vos sustenta, e nos espaços guia!

Terra, globo que geras nas entranhasMeu ser, o ser humano,Que és tu com teus vulcões, tuas montanhas,E com teu vasto oceano?Tu és um grão d'areia arrebatadoPor esse imenso turbilhão dos mundosEm volta do seu trono levantadoDo universo nos seios mais profundos.

E tu, homem, que és tu, ente mesquinho,Que soberbo te elevas.Buscando sem cessar abrir caminhoPor tuas densas trevas!Que és tu com teus impérios e colossos?Um átomo subtil, um frouxo alento:Tu vives um instante, e de teus ossosSó restam cinzas que sacode o vento.

Mas ah! tu pensas, e o girar dos orbesÀ razão encadeias;Tu pensas, e inspirado em Deus te absorvesNa chama das ideias:Alegra-te, imortal, que esse alto lumeNão morre em trevas dum jazigo escasso!Glória a Deus, que num átomo resumeO pensamento que transcende o espaço!

Caminha, ó rei da terra! se inda és pobre,Conquista áureo destino,E de século em século mais nobreEleva a Deus teu hino!E tu, ó terra, nos floridos mantosAbriga os filhos que em teu seio geras,E teu canto d'amor reúne aos cantosQue a Deus se elevam de milhões d'esferas!

Dizem que já sem forças, moribunda,Tu vergas decadente:Oh! não, de tanto sol que te circundaTeu sol inda é fulgente.Tu és jovem ainda: a cada passo

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Tu assistes dum mundo às agonias,E rolas entretanto nesse espaçoCoberta de perfumes e harmonias.

Mas ai! tu findarás! além cintilaHoje um astro brilhante;Amanhã ei-lo treme, ei-lo vacila,E fenece arquejante:Que foi? quem o apagou? foi seu alentoQue extinguiu essa luz já fatigada;Foram séculos mil, foi um momentoQue a eternidade fez volver ao nada.

Um dia, quem o sabe? um dia, ao pesoDos anos e ruínas,Tu cairás nesse vulcão acesoQue teu sol denominas;E teus irmãos também, esses planetasQue a mesma vida, a mesma luz inflama,Atraídos enfim, quais borboletas,Cairão como tu na mesma chama.

Então, ó sol, então nesse áureo tronoQue farás tu aindaMonarca solitário, e em abandono,Com tua glória finda?Tu findarás também, a fria morteAlcançará teu carro chamejante:Ela te segue, e profetisa a sorteNessas manchas que toldam teu semblante.

Que são elas? talvez os restos friosDalgum antigo mundo,Que inda referve em borbotões sombriosNo teu seio profundo.Talvez, envolto pouco a pouco a frenteNas cinzas sepulcrais de cada filho,Debaixo deles todos de repenteApagarás teu vacilante brilho.

E as sombras pousarão no vasto impérioQue teu facho alumia;Mas que vale de menos um saltérioDos orbes na harmonia?Outro sol como tu, outras esferasVirão no espaço descantar seu hino,Renovando nos sítios onde imperasDo sol dos sóis o resplendor divino.

Glória a seu nome! um dia meditando

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Outro céu mais perfeito,O céu d'agora a seu altivo mandoTalvez caia desfeito.Então, mundo, estrelas, sóis brilhantes,Qual bando d'águas na amplidão disperso,Chocando-se em destroços fumegantes,Desabarão no caos do universo.

Então a vida, refluindo ao seioDo foco soberano,Parará, concentrando-se no meioDesse infinito oceano;E, acabando por fim quanto fulgura,Apenas restarão na imensidade –O silêncio aguardando a voz futura,O trono de Jeová, e a eternidade!

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TRISTEZA

Extingue-se o ano, são findos os diasQue os vales encheram de próvida luz;O inverno c'roado de névoas sombrias,Seus pálidos gelos à terra conduz.

O rio em torrentes inunda as campinas,As veigas perderam seu flóreo matiz,Pesada tristeza reveste as colinas,E as selvas que há pouco sorriam gentis.

Em tudo a meus olhos avulta uma imagemDe triste abandono, de mística dor:Apraz-me este luto que veste a paisagem,Apraz-me esta cena d'extinto verdor.

Como estas campinas outrora florentes,Meus dias formosos floriram também;Como elas agora, meus dias cadentes,Despidos d'encantos, já viço não tem.

Quão rico de gozos o tempo corria!Quão triste o presente, quão pobre ficou!Só resta a saudade, qual vaga harmoniaQue uma harpa nocturna de longe soltou.

Mas essa que vale, perdida a esperança?Que vale um passado que já não é meu?Ã flor desbotada que importa a lembrançaDa aurora suave que aroma lhe deu?

Um dia outra quadra mais bela e mais puraVirá de boninas ornar os vergéis;Mas vós, ó meus tempos d'amor e venturaSois findos pra sempre, jamais voltarei.

Sondando o futuro, minha alma conheceQue os ermos do mundo já rosas não tem:Já tudo sucumbe, já tudo fenece,O sol da ventura, e a esp'rança também.

Té mesmo em meu peito vacila agitadaA chama da vida perdendo o calor;Meus dias declinam qual luz desmaiadaQue doura as montanhas com tíbio fulgor.

Se tudo, ah! se tudo findou no passado,Se as trevas se estendem nos céus do porvir,

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Que esperas, minha alma? do livro do fadoSão negras as folhas: só resta partir.

Ao longe, quem sabe? sulcando as alturas,Jardins mais formosos verás na amplidão,De flores eternas, d'eternas verdurasQue os gelos da terra jamais secarão.

Temendo os rigores do outono vizinho,As aves adejam buscando outros céus:Tu és, ó minha alma, qual ave sem ninho, –Procura outros climas, rasgando os teus véus!

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A MÃE E A FILHA

– Filha, filha, que linda alvorada!Anda ver este sol ao nascer:Há três dias que gemes deitada.Mas já hoje sorris de prazer.

– Oh! que sonhos d'encantos divinos!Tudo em roda luzia em fulgor,E mil anjos cantavam seus hinosEm jardins d'açucenas em flor.

Era longe dos olhos humanos,Numa terra mui longe daqui...Oh! que mundo tão livre d'enganos!Oh! que vida que nele vivi!

– Olha o sol que tão belo se escondeNas montanhas sombrias dalém...Tão calada, tão triste! responde,Que tens tu, minha filha, meu bem?

Vou na pátria d'eternos amores,Vou ao longe ditosa viver,Mas, no seio de mundos melhores,Ai! não te hei-de a meu lado já ver!

Eis um anjo que desce os espaços...Que harmonias! que brilho sem fim!Mãe, oh mãe, dá-me ainda os teus braços..Já não sofro, não chores por mim.

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IDADE MÉDIA

Pelos salões e terradosPasseia o conde a gemer.É sombrio o seu aspecto,Nada lhe causa prazer.Os servos tremem ao vê-lo,Nem sequer lhe ousam falar.Vagam sombras, alta noite,No castelo, à beira-mar.

Vive assim desde que a morteA dois inocentes deu,Causando também a doutroQue por amor os perdeu.Que noite aquela de sanguePara o seu nobre solar!Vagam sombras, alta noite,No castelo à beira-mar.

Chegara o conde uma tardeDas guerras contra o Almanzor:«Alguém há, lhe diz seu aio,Que vos desonra, senhorVelai no jardim à noite...»Mais não quis acrescentar.Vagam sombras, alta noite,No castelo, à beira-mar.

Brilhara a lua formosaNos laranjais e jasmins,........................................................................

Um trovador, junto à fonte,Começara o seu cantar...Vagam sombras, alta noite,No castelo, à beira-mar.........................................................................

Eis-me aqui, diz ao amante,E nos braços lhe caiu;Na fronte de puro jaspeEle um beijo lhe imprimiu.Quis falar-lhe, mas um ferroSobre o peito viu brilhar...Vagam sombras, alta noite,No castelo, à beira-mar.

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Mas logo, junto do conde,Ressoa um grito cruel:Matai-me, senhor, matai-me!Vossa esposa era fiel;Com as vestes da condessa,Quis meu amor ocultar...Vagam sombras, alta noite,No castelo, à beira-mar.

Era da aia da condessaEssa voz que tal lhe diz.Ele estremece, olha em sangue,Banhada, a esposa infeliz.Vingativo, cravo o ferroNa donzela sem falar...Vagam sombras, alta noite,No castelo, à beira-mar.

Desde essa noite funesta,Nunca mais sentiu prazer.Pelos salões solitáriosPasseia triste a gemer.Dizem todos em segredoQue os mortos lhe vêm falar.Vagam sombras, alta noite,No castelo, à beira-mar.

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NUM ÁLBUM

(do Ex.mo Sr. A. M. Cabral)

Que valem versos escritosSem o ardor da inspiração,Sem que por céus infinitosEsvoace o coração?A poesia é só poesiaQuando eleva a fantasiaÀs regiões do ideal;Doutra sorte é apenas verso,Som pelo vento disperso,Murmúrio que pouco vale.

É por isso que apagadaSentindo a chama sagrada,Meu nome vou escrever:Se é pobre, melhor escolhaFazei volvendo esta folha,E na seguinte ide ler.

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O MOSTEIRO DA BATALHA

Pulsemos a lira, que além se levantaPadrão de vitória que imenso reluz!Um templo e altares à Mãe sacrossanta;Um templo, um poema que altivo descantaGrandezas da pátria nos átrios da cruz.

Grandezas da pátria quem traz à memóriaQue o peito não sinta d'orgulho bater?Pulsemos a lira! do livro da históriaVolvamos as folhas, que a musa da glóriaEm nuvens etéreas sentimos descer!

Eis já d'Aljubarrota nas campinasSe encontram as hostes contendoras.Daqui tremulam portuguesas quinas:Dalém as castelhanas invasoras.Daqui é João primeiro, cuja lançaA coroa defende e a pátria cara:Dalém o estranho rei, pedindo a herançaDa princesa Beatriz que desposara.

Refulge o sol nas armas, os cavalosRincham fogosos, escarvando a terra;Dum lado e doutro os chefes a intervalosCorrem as alas animando à guerra.Pouco avultam as hostes portuguesas;Tremendo é de Castela o poderio;Mas quem à pátria negará proezasD'alto valor, e generoso brio!

A véspera é do dia consagradoÀ Assunção gloriosa de Maria;Os olhos levantando, o rei soldado:«Senhora, exclama, nosso esforço guia!«Se vencermos, um templo majestoso«Te erguerei sobre o campo de batalha!»Diz, e esporeando seu corcel fogosoBrios em todos com sua voz espalha.

Soam trombetas; o sinal é dado;Flutuam soltos os pendões na frente:– São Tiago! – brada o castelhano ousado;– São Jorge e avante! – a portuguesa gente.Rédeas soltando, os esquadrões galopam,E dão em cheio com furor insano,Como torrentes que no vale se topam,Ou como as ondas no revolto oceano.

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Retine o ferro, a multidão se agita;As achas d'armas, os broquéis lampejam;Peões, ginetes, com medonha grita,Num mar de sangue em turbilhão pelejam.O sol já desce a mergulhar no oceano,E inda referve a encarniçada lida;Eis redobra d'esforço o lusitano,E o estrangeiro leva de vencida.

Foge o rei castelhano espavorido;Fogem os seus em debandada solta;Persegue-os João primeiro, e destemidoA gozar do triunfo ao campo volta.Já se erigem troféus, já resplandeceO céu da pátria co fulgor da glória;Faltava o monumento que dissesse:– Foi aqui! eis o campo da vitória!

*

E ei-lo aí que se levantaCom majestosa grandeza,Daquela gentil proezaSublime recordação:Fi-lo aí aos céus erguido,Como um colosso giganteApontando ao caminhanteO sítio da grande acção.

Altos pórticos, lavoresD'ostentosa arquitectura,Coruchéus d'imensa alturaRoçando a fronte nos céus;Dentro, a nobre majestadeDo santuário profundo,Onde, extinta a voz do mundo,Só lembra o passado, e Deus.

Sobre os góticos pilaresBrilham trémulos fulgores,Que das vidraças de coresEntorna a mística luz.Tudo cala, mas, se o órgãoPor entre as naves ressoa,Tudo se anima, e apregoaO santo Verbo da cruz.

Então a mente se enlevaNas torrentes da harmonia

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Que da abóbada vaziaRetumbam pela multidão;E, abrasada nos fulgoresDos vivos, sagrados lumes,Sobre as asas dos perfumesRevoa à etérea mansão.

Se tudo cai em silêncio,Cai em si mesma, e medita,Recordando a data escritaNesses góticos umbrais.Pensa então nos heroísmos,E crenças de meia idade,Combatendo a escuridadeDaqueles tempos feudais;

Pensa nos vultos heróicosDos antigos cavaleiros,E em nossos feitos guerreirosPela pátria e pela cruz;Pensa na grande vitóriaQue nos fez independentes,E que aos olhos dos presentesNesse moimento reluz;

Pensa num povo pequenoMas esforçado e guerreiro,Triunfando do estrangeiroÀ voz do rei popular;Pensa no mestre valente;E sua sombra giganteParece às vezes distanteEntre as colunas vagar.

E pensa também no artista,Nesse arquitecto inspirado,Que um poema sublimadoAli traçou a cinzel;Que cego da luz dos olhosAcendeu a luz do engenho,E consumou seu empenho,Ao grande assunto fiel.

E Afonso Domingues surgeNesse padrão sobranceiroAo lado de João primeiro,Seu imortal fundador;Reis ambos: um pelo berço,Que lhe deu sua nobreza:Outro, rei pela grandeza

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Do seu génio criador.

Lá dormem! um rodeadoDos brasões da sua glória,Como depois da vitória,Sob a tenda a descansar;Outro à sombra desses tectosEm campa singela e nua,Como querendo a obra suaDalém da tumba guardar.

*

E lá dormem também outros que a morteJuntou à sombra do lugar sagrado,D'infantes e de reis alta corte,Servindo de cortejo ao rei soldado.

Reunidos enfim no chão funéreo,Fernando, Pedro, e Henrique, os três infantes;Henrique, o sábio audaz que outro hemisférioPrimeiro abriu aos lusos navegantes.

Duarte e João segundo descansandoD'altas vitórias na mansão tranquila;Afonso quinto cos lauréis sonhandoD'Alcácer, Tânger, e da forte Arzila.

E no sopro do vento que perpassa,E lhes roça nas frias sepulturas,Parecem murmurar em voz escassa,E agitar suas ferozes armaduras.

E lá quando o luar pelas janelasLhes escoa nas lápides marmóreas,Talvez erguidos se recostam nelasA falar entre si de nossas glórias.

Dormi em paz, ó chefes do passado,Heróico fundador, prole valente;Dormi em paz no túmulo calado,Recordando os lauréis da vossa gente.

Enchei em roda os penetrais divinosDe vossos gloriosos esplendores;E se tendes poder sobre os destinos,Defendei-os do tempo e seus furores.

Que as gerações passando reverentesPossam, volvendo as páginas da história,

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Largas eras saudar, curvando as frentes,Esse padrão d'imorredoira glória!

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DESALENTO

Cansado, ai! já cansado, quando a vidaEm flor nascente desabrocha ao mundo!Quando a esperança, d'ilusões vestida,Sorri a todos num porvir jucundo!

Alma que gemes em letal quebranto,Desprende as asas nos vergéis celestes!Amor, glória, prazer, dai-me inda o encantoQue nos dias passados já me destes!

Mas que é o amor da terra? luz divinaQue mal desce do céu logo se apaga;Cândida rosa que o tufão inclina,Que o tempo e a morte desfolhando esmaga.

Doces imagens que em ditoso enleioCerquei outrora d'ilusão infinda,D que é feito de vós? ai! neste seioViveis apenas, se viveis ainda.

E tu, que és tu, ó glória? um som que passa,E de século em século retumba,Mas que a frígida lousa não traspassaDe quem já dorme na calada tumba.

Astro que brilha e queima, espectro ovanteQue a desgraça acompanha, e o génio ilude:Vós o sabeis, Camões, e Tasso, e Dante,Vós que gemeis ainda no ataúde.

Que é o gozo, o prazer? fumo d'incensoQue embriaga um momento, e se evapora;Que é o saber, a ciência? espaço imensoEm que a verdade mal reluz na aurora.

Que é este mundo, que eu sonhei tão belo?Profundo abismo de tormenta escura;Que é pois a vida? um fadigoso aneloQue levamos do berço à sepultura.

A morte! oh! se além dela o porto amigoNos surgisse afinal ledo e formoso!Se nesses mundos da esperança abrigoDespontasse outro sol mais bonançoso!

Mas quem sabe da morte? o ouvido atentoNo silêncio das campas nada escuta;

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E Sócrates não diz se um novo alentoAchou, bebendo a gélida cicuta.

Senhor, Senhor, por que vim eu ao mundo,E qual é sobre a terra o meu destino,De mim que homem geraste, e que fundoDeste vale d'angústia erro sem tino?

Infeliz de quem nasce! a ave que gira,A fera, o tronco, o verme que rastejaTambém nasceu, mas esse nada aspira,Ou se aspirou alcança o que deseja.

E o homem nasce, pensa, e aspira ansiosoÀs ilusões que a mente lhe depara,E a cada passo lhe esmorece o gozo,E acha só trevas onde luz sonhara.

E caminha, e caminha, e sem alentoCai abismado no seu térreo leito,Onde após a fadiga e o sofrimentoA lousa sepulcral lhe esmaga o peito.

Aqui, de dor um pélago profundo;Além, os vermes da feral jazida;Senhor, Senhor, por que vim eu ao mundo?Por que do nada me chamaste à vida?

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NUM ÁLBUM

(do Exº Sr. Gaspar de Queiroz)

Nossas lides findaram. Chega o diade deixar estas margens bonançosas,onde colhemos as purpúreas rosasda ciência, do amor, c da poesia. Quem sabe, amigo, o que a fortuna ímpia,nos guarda em suas ondas procelosas?...apertemos as destras extremosas,como quem um adeus eterno envia. Errante, ou do teu lar no doce abrigo,recorda-te daquele a quem o fado,em serena amizade uniu contigo.Lembrança desse tempo que é passado, meu nome aqui te deixo: o teu, amigo,dentro do coração levo gravado.

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CONSOLAÇÃO

Quando nas trevas de minha alma aflitaA procela da dor mais se encapela,E o desalento, a dúvida, e a descrençaCoas negras asas me escurece o dia,A ti, ó Deus, a ti com mais esforço,Através do infinito onde te escondesBusco elevar-me, demandando auxílio;E tu, Senhor, descendo a quem te chama,Fulguras entre as sombras, e a tormentaQue dentro d'alma rebramia fera,Vai pouco e pouco serenando as iras.

*

Bem hajas! quem te procuraJamais te procura em vão:Tu desces, e a noite escuraSe volve em doce clarão;Tu desces e a luz da esp'rança,Como estrela de bonança,Brilha no mar da aflição.

A vida é triste: no mundoSofremos até morrer;Mas, Senhor, quem sonda a fundoMistérios do teu poder?A vida é triste, mas breve;E o futuro que se eleve,Eterno, imenso há-de ser.

Mundos e mundos no espaçoVão rolando à tua voz,Presos em místico laçoNesses jardins sobre nós;E tudo canta à porfiaAquela grande harmoniaQue ensinam teus anjos sós.

Tudo folga: só na terraHá-de o homem padecer?Acaso tão pouco encerraSeu fado? não pode ser.Se o homem foi obra tua,Neste mar em que flutuaHá-de um porto enfim haver.

Bem hajas! a dor e o pranto

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Vem de ti, do teu amor;São crisol augusto e santoQue nos apura em fulgor;São a chama, o fogo intenso,Que nos ergue como incenso,E a teus pés nos vai depor.

Tu sabes porque sombriaVaga a noite na amplidão,Porque a terra se anuvia,E ruge irado o tufão:É que o dia segue a noite,E das procelas no açoiteSe esconde a flórea estação.

Bem hajas, Senhor, bem hajas!O teu poder nos conduz;Se de luto um dia trajas,Outro dia além reluz.Neste giro sempiterno,Vem o estio após o inverno,E após as sombras a luz.

Bem hajas! feliz no mundoQuem tua face entrevê,E deste abismo profundoSe ergue nas asas da fé!Feliz quem sorrindo às vagas,De olhos fitos sobre as plagas,Espera, confia e crê!

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O BUÇACO

Oh! salve, irmão do Líbano,Que altivo ergues a fronte,Monarca destas serras,Senhor da solidão!Salve, gigante cúpula,Que ostentas no horizonte,Erguida sobre as terras,A cruz da Redenção!

Em teus agrestes píncarosO homem vive e senteMais longe deste mundo,Mais próximo dos céus:Por isso, nos seus êxtases,O monge penitenteAqui meditabundoSe erguia aos pés de Deus.

Por largo tempo o cânticoDo pobre cenobitaSoou na ermida rudeDa tua solidão:Hoje o silêncio lúgubreSomente nela habita,Silêncio d'ataúdeEm fúnebre mansão.

Porém se os coros místicosFindaram sua reza,Se a voz do santo hossanaEm ti já feneceu;Tu vives, e inda incólumeAo Deus da natureza,Calada a voz humana,Descantas o hino teu.

Oh! como és belo, erguendo-teÀ luz do novo dia,Que os mantos de verduraTe banha de fulgor!Quando o gemer dos zéfiros,Das aves a harmonia,Acordam na espessuraLouvando o Criador!

Mas quanto mais esplêndidoSerás quando a tormenta,

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Sublime, rugidora,Em teu regaço cai!Quando de mil relâmpagosTeu cume se apresentaC'roado, como outroraO fulgido Sinai!

Quando os tufões indómitos,Rugindo nas escarpas,Se abraçam às torrentesCom hórrido fragor!Depois, em negro vórtice,Desferem nas mil harpasDe teus cedros ingentesUm cântico ao Senhor!

Tu és grandioso; o ânimoQue a sós aqui meditaRecolhe altas imagensDe santa inspiração.Oh! porque veio túrbidaA guerra atroz, maldita,Soltar nestas paragensAs vozes do canhão?

Dum lado eram as bélicasHostes de Bonaparte;Do outro heróico e ufanoO povo português:A liberdade e a pátria,Ergueu seu estandarte,E a história do tiranoContou mais um revés.

Tudo passou: sumiram-seVencidos, vencedores;Té mesmo do giganteSoou a hora fatal;Só tu, sorrindo impávidoDo tempo e seus furores,Inda ergues arroganteTeu vulto colossal.

E cada vez que fulgidoRenasce o novo dia,De nova luz te banhas,Despindo os negros véus;E dizes, em teu júbilo,Ao sol que te alumia:– O rei destas montanhas

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Saúda o rei dos céus.

Depois, ao vê-lo pálidoNas vagas do horizonte,Pareces ao mar vastoDizer com altivez:Em teu regaço, ó pélago,Tu lhe sumiste a fronte:Avança, que de rastoVirás beijar-me os pés.

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A FONTE DOS AMORES

Eis os sítios formosos, onde a tristeNos dias d'ilusão viveu ditosa;Eis a fonte serena, e os altos cedrosQue os segredos d'amor inda lhe guardam.Oh! quantas vezes, solitária fonte,Após longo vagar por esses camposDo plácido Mondego, nestas margensA namorada Inês veio assentar-se,E ausente de seu bem carpir saudosa,Aos montes e às ervinhas ensinandoO nome que no peito escrito tinha!E quantas, quantas vezes no silêncioDesta grata soidão viste os amantes,Esquecidos do mundo e a sós felizes,Nos êxtases da terra os céus gozando!

Pobre, infeliz Inês! breves passaramOs teus dias d'amor e de ventura.Ao régio moço o coração renderas,E o que em todos é lei, em ti foi crime.Eis do bárbaro pai, do rei severo,Se arma a dextra feroz, ei-lo que aos sítiosOnde habitava amor conduz a morte.Distante do teu bem, ao desamparo,Ai! não pudeste conjurar-lhe as iras.Debalde aos pés d'Afonso lacrimosaPediste compaixão; debalde em ânsiasAbraçando teus filhinhos inocentes,Os filhos de seu filho, a naturezaInvocaste e a piedade: a voz dos ímpios,Dos vis algozes, te abafou as queixas,E o cego rei te abandonou aos monstros.Ei-los a ti correndo, ei-los que surdosAos ais, aos rogos que tremendo soltas,No palpitante seio cristalino,Que tanto amou, oh bárbaros! os ferros,Os duros ferros com furor embebem.Prostrada, agonizante, os doces filhosPor derradeira vez unes ao peito,E de teu Pedro murmurando o nome,Aos inocentes abraçada expiras.

Inda, infeliz Inês, inda saudososEstes sítios que amavas te pranteiam.As aves do arvoredo, os ecos, brisas,Parecem murmurar a infanda história;Teu sangue tinge as pedras, e esta fonte,

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A fonte dos amores, dos teus amores,Como que em som queixoso inda repeteÀs margens, e aos rochedos comovidosTeu derradeiro, moribundo alento.

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A UM TEATRO ACADÉMICO

Abrindo sepulcros, rasgando mistérios,Quem mortos gelados levanta de pé?Quem varre coas asas as cinzas d'impérios,E os vultos heróicos anima, quem é?

Quem tira do nada uma forma divina?Quem finge uma imagem de negro terror?Quem ergue virtudes, e o crime fulmina?Quem risos excita, quem prantos de dor?

– O génio do drama e o génio da cena! –São eles que traçam, em véu d'ilusões,D'Amor, de ciúme, de riso, e de penaO jogo travado, falando às paixões.

São eles unidos que em chama inquietaSentiu Gil Vicente na fronte escaldar?São eles que o bardo da terna Julieta,E a fronte de Talma vieram c'roar.

São eles, mancebos, que em nuvens de floresA senda apontaram que afoitos seguis,De palmas e c'roas, de magos fulgores,Mas senda d'espinhos; co génio condiz.

Em nobre fadiga, que os ócios despreza,D'acerbos estudos assim descansais!Foi belo o desígnio, difícil a empresa:Quem logra nas artes repouso jamais?

Que importa? na luta se provam alentos,Somente na luta se colhem lauréis;Aos peitos ardentes, de glória sedentos,Reluz a bonança por entre os parcéis.

Avante! e que o génio das artes potenteD fogo das artes vos possa trazer!Que em cenas de prantos o pranto rebente,Que em cenas alegres se goze o prazer.

As artes e as letras nasceram amigas:Às aras das duas incensos levai,E os louros colhidos em sábias fadigas,Os louros do palco viçosos juntai!

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NUM ÁLBUM

Do sofrimento o arcanjo lamentosoSobre a face do mundo estende o braço;Um diadema ofertava, e pavoroso:«Para o que mais sofreu!» gritou no espaço.

Eis logo imensa turba se atropela,Todos querem ganhar a prenda infausta;Mas nenhum dos que chegam por obtê-laMostrava a taça da amargura exausta.

«Afastai-vos!» lhes brada o génio esquivo,«Nenhum tocou do sofrimento a meta:«Tu, só tu mereceste o prémio altivo;«Ergue a fronte, coroa-te, poeta!»

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NO ÁLBUM

DO DR. MANUEL TEIXEIRA PINTO

Um nome é uma lembrança: neste mundoDe que servem lembranças e memórias?Tudo se esvai no pélago profundoQue sorve gerações, vidas e glórias.

Tudo se esvai na tumba regelada,Tudo morre, afinal tudo se esquece,E após o esquecimento resta o nada,Como os espaços onde um som fenece.

Busquemos, já que tudo se consome,Busquemos à memória um doce abrigo;Eu só quisera soletrar meu nomeGravado em mais dum coração amigo.

Porto – Agosto de 55.

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JOSÉ JOAQUIM GOMES COELHO

Vinte anos! Ai, bem cedo arrebatadoO guardaste no seio, oh campa fria!Flor passageira, sucumbiste ao fado,E seus perfumes exalou num dia.

Quanta ilusão desfeita em seu transporte?Sonhou glórias talvez, sonhou amores!Tudo, tudo aqui jaz! Carpi-lhe a sorte,Derramai-lhe na tumba algumas flores.

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À MORTEDO TALENTOSO JOVEMHELIODORO AUGUSTO DE SOUSA

Passou por junto dele revoandoO arcanjo do Senhor:Tocou-lhe com as asas perpassando,E a vida lhe ceifou qual tenra flor!...

Poucos passos no mundo apenas dera...Ai! mancebo, era ainda a primaveraSua quadra louçã...Ainda da existência os amargoresOs sorvia entre aromas, entre flores,Da vida na manhã!

Porém na primavera eis arrebentaO vulcão, e ao embate da tormenta,Cai o lírio do vale:Da vida na manhã eis soa a hora,E a existência a sorrir inda na auroraCai ao brado fatal!

Oh! meu Deus, porque à morte assim condenasA flor que o seio tímido abre apenasDo sol ao resplendor!Porque assim a desfolhas indiferente,Remessando-a dos tempo na corrente,Desbotada e sem cor?

*

É noite, na escura igrejaVê-se passar um caixão...Luz de tochas relampeja,O sino brada: – oração!...Eram tão negras as telasEm que a chama dessas velasIa soturna expirar!...Era tão negro o esquife,Aquele triste recifeEm que se vai naufragar!...

Quem vinha na fria tumba?Por quem era o funeral?O brado que além retumbaCom estridor sepulcral?1: que há pouco ainda haviaUm coração que batia

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Em Juvenil pulsação.Havia um peito que amava,Uma fronte que pensavaE que gelados estão...

Ai, dessa tão curta vidaToda esp'rança e juventudeQue restava? – uma jazidaNas tábuas dum ataúde...Restava uma mão gelada,Uma face descoradaComo o mármore duma cruz...Restava uma testa fria,Um seio que não batia,Uns olhos mortos à luz!

Mas já cessara o memento...Tudo na igreja calou...Eis que um triste saimentoDali a tumba levou...Aonde? – ao leito gelado...Porém que importa o finado,E onde o foram conduzirQue te importa a ti, ó mundoCom esse sono profundoQue o cadáver foi dormir?...

Mas o sino lá na torreSempre – Morte! – a retumbarE o brado que ao longe morreO cadáver a chamar...O luar no cemitérioBrilhava com tal mistério!...Com tão sinistro fulgor!A terra estava tão fria!O mocho que lá carpia,Inspirava tanto horror!

E em mim recolhidoPensei no coitado,Ao mundo trazidoPra ser já ceifadoTão cedo em botão...E a fronte pendida,No peito caída,E os olhos no chão,Meus lábios tremeram...O que eles disseram,Oh! não sei eu, não!...Nem sei se rezei,

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Se ali blasfemei...

*

Perdão. Perdão, meu Deus, tu és imenso...Tu recolhes nos céus o sacro incenso,Deixando à terra a cinza sem valor:À terra deixas vir noite sombria,Mas logo no oriente o novo diaLá mostras em fulgor!

Que vale, Senhor, a morte, quando a almaVoa a ti, qual incenso, roto o véu?Que vale da tumba a noite, quando a palmaTu lhe of'reces da aurora lá do céu?

Silêncio, pois, homem, silêncio, não murmures,Sondar os seus mistérios não procures,Curva a fronte no chão!Quem põe freio de bronze ao mar irado,Quem povoa do mundo cum só bradoDos céus a imensidão?

Quem só com leve aceno a terra abala,Quem cerce pla raiz cum sopro estalaO cedro secular,Acaso sobre o chão, livre e sem custo,Não pode derribar o pobre arbustoQue fizera também do chão brotar?

*

Feliz tu que buscaste um asiloEntre os coros dos anjos no céu;Que sorris desse porto tranquiloAo furor do mundano escarcéu.

Qual a pomba do arroio à beira,Mal a onda acabou de tocar,Parte logo voando ligeiraDoces brisas no céu a aspirar.

Assim tu, assim tu peregrinoCá na terra onde o génio é cruz,Procurando o teu foco divinoRevoaste à origem da luz.

Não tardou que aos irmãos que choravasLá te foste no céu confundirE que aos entes que tanto amavas

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Para sempre te fosses unir...

Oh! que hinos de maga doçura,Oh! que hossanas celestes d'amor,Num abraço de meiga ternuraSe elevaram de vós ao Senhor!

Mas se ainda em presença do EternoEntre os gozos é dado chorar,Oh! dizei, no amplexo fraternoNão sentistes o pranto assomar?

Um suspiro, uma prece piedosaNão roçou vossos lábios também,Ao pensar que deixastes saudosaA gemer solitária uma mãe?

Oh! mas esse suspiro profundo,Como prece ao Eterno se ergueu...O que importa deixá-la no mundoSe por ela rogais lá no céu!

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VISÃO DO RESGATE

Ao meu amigo Alexandre Braga.

E eu achei-me assentado solitárioJunto dum grande mar triste e sombrio,Cujas ondas d'aspecto funerárioSe agitavam, qual trémulo sudárioSobre um cadáver macilento e frio.

E eu era triste! sepulcrais gemidosMe vinham dessas ondas tormentosas;Seu fragor penetrava em meus ouvidos,Como o arfar de mil peitos oprimidosEm duros transes d'aflições penosas.

E por cima na abóbada do mundoUm véu de nuvens se estendia baço;Rebramava o trovão rouco e profundo,E o mar respondia gemebundo,E a tristeza reinava em todo o espaço.

E um suor frio me escorreu na fronte,Como o orvalho na cruz dum cemitério;E cie meus prantos desatou-se a fonte,E pedi ao Senhor que do horizonteMe tirasse esta nuvem do mistério.

E o Senhor deu ouvidos a meu rogo,Pois vi descer a mim do firmamentoUm facho ardente de celeste fogo,Que as trevas de meus olhos varreu logo,Qual varre as nuvens num tufão violento.

E eu vi tudo! esse mar de ondas sombriasEra um mar de nações que se agitava;E eu conheci que em leito d'agonias,Chorando em vão seus miserandos dias,Aquela multidão gemia escrava.

Ali fraco de pavor transidoArrastava grilhões aos pés do forte;O perverso ostentava o rosto erguido,E o justo era qual pombo foragidoQue nas garras do açor encontra a morte.

O mendigo nos átrios do opulentoPedia amparo e maldições colhia;O filho do trabalho, sem alento,

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Comprava o escasso pão ao avarentoA troco dos andrajos que despia.

E entre as garras da fome devoranteO mancebo lutava enfraquecido,O velho desmaiava agonizante,E a mãe sem forças apertava o infanteAo peito como a urze ressequido.

E um espectro medonho e ensanguentadoPor entre aqueles povos divagava,Brandindo um ferro com medonho brado;E o chão que ele pisava era abismadoComo em torrentes d'incendida lava.

É que esses povos, como iradas feras,Ao seu brado feroz se levantavam:E a matança era tanta, que disserasVer um circo de hienas e panterasQue entre as garras cruéis se espedaçavam.

E no meio de tudo em alto monteSe erguia um trono de rubins acesos,No qual um anjo, coroada a fronte,Dominava soberbo esse horizonteDe povos algemados e indefesos.

E no semblante desse arcanjo ardenteO dedo do Senhor estava escrito;E eu pude ler-lhe na sombria frente,Gravadas em caracter refulgente,As sinistras palavras: – sê maldito!

E outro arcanjo de negras armadurasDe joelhos aos pés se inclinava;E, infausto mensageiro d'amarguras,Na sinistra empunhava algemas duras,Na dextra férrea urna sustentava.

E ofertando-lhe a urna com respeito,Lhe dizia com voz assustadora:«Anjo do mal, que o homem tens sujeito,«Neste vaso de dor recebe o preito«Das lágrimas cruéis que o mundo chora.

«Eis o penhor fiel que a tirania«Por mim, seu anjo, te conduz às plantas.«Os humanos resistem noite e dia,«Mas o laço do amor não concilia«As suas turbas, que feroz suplantas.

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«Mal haja o Cristo, que o amor ensina!«Seu vil reinado sucumbiu na terra.«Triunfa, anjo do mal, reina e domina,«E mil flagelos às nações fulmina,«De crime, divisões, de luto e guerra!»

E o arcanjo brandindo seu ceptro ardente,Sorria com feroz perversidade:E ao longe murmurava um som frementeComo o rugido dum vulcão latente,Ou a voz de longínqua tempestade.

E eu cedi ao vaivém de minhas mágoas,Como ao sopro do vento a frágil hera,Té que uma voz, como a das grandes águas,De minhas penas abrandando as fráguas,Me bradou aos ouvidos: – crê e espera!

*

E súbito uma auroraSerena, refulgente,Das trevas do orienteDesfez os negros véus;Lavrou, como um incêndio,Nas sombras horrorosas,E alfim cobriu de rosasA cúpula dos céus.

E um astro despontandoNa franja do horizonte,Alçou a meiga fronteCoberta d'áurea luz:Sobre ele campeandoCercada d'alta glória,Promessa de vitória,Brilhava a eterna cruz.

E logo ardente nuvem,Relâmpago soltando,Baixou do céu, voandoNo carro dos trovões;Bem como de trombetaSoltava estranho acento,E prestes como o ventoRolou sobre as nações.

E nela a glória imensaDo Deus que o mundo adora

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Brilhava como outroraNo topo do Sinai;E o grito da trombetaDizia em som de guerra:– Surgi, povos da terra,Num só vos ajuntai! –

E o trono do mau anjoTremeu nos fundamentos,E eu vi passar nos ventosO espírito de Deus;Seu brado erguia aos povos,Bem como a tempestadeDo mar na imensidadeLevanta os escarcéus.

*

E as turbas procelosas remoinharamComo as areias que o tufão agita:E alçando todas pavorosa grita,Com laços fraternais se coligaram.

E enquanto erguiam seus pendões de guerraEis que as asas batendo nas alturas,Cingidos de brilhantes armaduras,Dois arcanjos pairaram sobre a terra.

Cobriam-lhes as formas delicadasEscudos e couraças diamantinas,Áureos elmos as frontes peregrinas,Nas dextras empunhando ígneas espadas.

E eu vi-os, como sóis relampejantes,Adejarem velozes sobre a terra,Brandindo irados, em sinal de guerra,As terríveis espadas flamejantes.

Té que chegado o instante do resgate,Fitando os povos que os olhavam mudos,Bateram coas espadas nos escudos,Bradando às multidões: – cia ao combate!

*

E os povos ao brado,Qual mar agitadoFervendo em cachões,Erguiam-se fortesEm densas cortes,

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Em mil turbilhões;E à guerra corriam,E feros bramiamQuais feros leões.

Corriam, chegaram,E o trono cercaramDo anjo do mal;Mas ele! – maldito! –Das lutas o gritoSoltara fatal;Na mão, qual espectro,Luzia-lhe um ceptroDe lume infernal.

Com fúria sombria,Da vil tiraniaAo anjo acenou,E o pronto ministroSeu mando sinistroFiel aceitou;E eis rápido logoAs armas de fogoMedonhas tomou.

E enormes serpentesVermelhas, ardentes,Soltou pelo chão;Das férreas escamasSaíam-lhe chamasDe torvo clarão;Cada uma nos povosSaltava em corcovosD'horrenda visão.

Os povos, que as viam,Debalde investiamSeus giros mortais:Cruéis labaredasAbriam veredasÀs serpes fatais;E a turba d'exangueCaía do sangueNos rios caudais.

Mas nisto ligeirosOs anjos guerreiros,No ar inda então,Baixaram luzentes,Quais astros cadentes,

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À térrea mansão;E aos anjos malvadosCorreram iradosCom voz de trovão.

E todos, alçadasAs ígneas espadasBrandiam a par;Cada uma semelhaLuzente centelhaCruzando no ar;Semelha no embateA onda que bateNa rocha do mar.

Seus olhos vibravam,Seus gritos soavamEm ecos d'horror;As turbas rugiam,As armas tiniamCom novo rancor:O carro da guerraRolava na terraCom torvo fragor.

Até que um ribomboSoou, como tomboRuidoso e fatalDe penha que d'altoDesaba, e dum saltoRetumba no vale:Era alto ruídoDo trono abatidoDo génio do mal.

E logo infinitosOuvi ledos gritos,E ouvi maldições;E soltos aos ventosVi centos e centosD'ovantes pendões;Vi feitos pedaçosAlgemas, e laçosE férreos grilhões.

Vi tronos caídosVi ceptros partidosRolarem no pó;Vi áureos emblemas,Vi mil diademas

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Calcados sem dó;Vi povos diversosOutrora dispersos,Unidos num só.

*

Vi a terra já livre d'ansiedadeRasgar altiva seu funéreo manto;Vi os homens à voz da liberdadeSurgirem fortes do letal quebranto.

Vi-os, tecendo fraternais abraços,Sem ódios, sem rancor, e sem vingançasEstreitarem d'amor serenos laços,Unidos em sublimes alianças.

E eu louvei o Senhor! já não reinavaO anjo do mal coa tirania fera:Seu trono demolido semelhavaD'apagado vulcão torva cratera.

Coberto de mantos de pura safiraQue dia tão ledo brilhava sem véus!A estrela formosa que aos homens surgiraReinava em triunfo no campo dos céus.

Seu facho divino cercado de rosasVertia no mundo torrentes de luz,E o mundo coberto de galas formosasSaudava nesse astro do Gólgota a cruz.

Dos vales, dos montes, da terra, e dos mares,Saíam murmúrios de paz e d'amor,Coa voz dos humanos soando nos aresEm cantos infindos d'infindo louvor.

Batendo serenos as asas douradas,Os anjos formosos pairavam no céu,Qual nítido bando de pombas nevadasCruzando os espaços num dia sem véu.

Nem elmos agora, nem malhas luzentesCobriam dos anjos as formas gentis:De branco trajados, seus véus inocentesOndeavam tremendo nas auras subtis.

Caíam-lhe soltos os longos cabelosNo colo, nos ombros d'alvura louçã,Seus rostos ornando, mais puros, mais belos

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Que a estrela argentina da rósea manhã.

Traziam pousadas nas cândidas frentesGrinaldas singelas de casta cecém,E as harpas ebúrneas tangiam cadentes,C'roadas de rosas e lírios também.

Um coro celeste voando em cardumesSeguia os arcanjos com doces canções;E todos lançando na terra perfumesAssim descantavam por sobre as nações;

O ARCANJO DO CRISTIANISMO

Salve, dia que meigo fulguras,Despontando no mundo sem véu!Salve, estrela d'amor e de venturas,Que ressurges formosa no céu!

Pura e bela surgiras outrora,Densa névoa cobria tua luz;Pura e bela ressurges agora,Vem reinar sobre os homens, ó cruz!

Vem remi-los da negra maldade,Vem na face do mundo luzir;Vem trazer-lhes a luz da verdade,Que o Messias lançou no porvir!

Era um anjo das trevas malditoQuem do mundo regia as nações;Foi o Verbo, o Messias predito,Que desceu a partir seus grilhões.

Novas crenças brotando dos lábiosRevelou em seu Pai um Deus só,E, caladas as vozes dos sábios,Falsos deuses caíram no pó.

Viu as gentes sepultas no crime,E eis que armado d'augusta missãoDeu lições de virtude sublime,D'inocência, d'amor e perdão.

Ensinou a brandura ao tiranoAo soberbo dos justos a lei;Ao avaro bradou: – sê humano!E ao perverso e ao ímpio: – tremei!

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Deu ao fraco palavras de vida,Deu ao triste consolos na dor,Deu a todos a esp'rança perdidaD'outro reino de paz e d'amor.

E cumprindo do mundo a sentençaNo tormento da cruz expirou;Mas com sangue dum Deus sua crençaSobre a terra gravada ficou.

Do Calvário, librado nas penas,A mil povos com ela voei;Mil coroas teci d'açucenas,Com que tantos martírios ornei.

Foi então... dá-me queixas, ó lira,Dá-me notas de fundo pesar...Cristo, ó Cristo, a calúnia, a mentira,Ai! ousaram teu Verbo ultrajar.

Teus ministros, sem fé na verdade,Renegaram da santa missão,E entregaram a lei da igualdadeAos tiranos, à voz da ambição.

Logo o facho sangrento da guerraAcenderam com ímpio furor,E em teu nome cobriram a terraD'extermínio, de sangue e d'horror.

D'ouro e sangue mantendo seus víciosTeus preceitos calcaram no pó;E mil cenas de horrendos suplíciosOstentaram ao mundo sem dó.

Então eu à celeste moradaD'entre os homens voando subi,E a teus pés com a fronte curvadaLargas eras, ó Cristo, gemi.

Mas das trevas não pôde o combateApagar o teu astro de luz:Aos cativos, sinal do resgate,Ei-lo surge brilhante na cruz.

Povos, povos, secai vosso pranto!Levantai-vos do leito da dor!Terra, entoa de novo o teu canto,Doce canto de paz e d'amor!

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Da maldade, dos ódios, da guerra,Para sempre o reinado morreu.Paz aos homens na face da terra!Glória a Deus nas alturas do céu!

CORO DOS ANJOS

Hossana! hossana! sinal de vitória,A cruz do resgate já brilha às nações:Hossana! e se eleva nos cantos de glóriaDos anjos, dos homens, de mil gerações!

O ARCANJO DA LIBERDADE.

Bem-vindo sejas, bonançoso dia,Que ao mundo trazes a perdida luz!Bem-vindo sejas! teu fulgor lhe enviaNo facho eterno que as nações conduz!

Assim de galas e esplendor vestidaÀ voz do Eterno a criação rompeu;E a liberdade se ligou à vida,No mar, na terra, na amplidão do céu.

– Vivei, sois livres, caminhai avante! –O Eterno disse, e me entregou a lei:Seu dedo a terra me apontou distante,E eu das alturas com prazer baixei.

E a lei dos mundos vim gravar na selva,No leão das brenhas, e no açor do ar,No cedro altivo, na modesta relva,Nas bravas ondas do revolto mar.

No ser humano, d'entre os mais aceito,Gravei mais fundo o universal condão,E d'entre as asas lhe verti no peitoViva centelha d'imortal clarão.

Então, qual fumo d'abrasado incenso,Voou da terra festival louvor;E a natureza no seu giro imenso,Pulsou de vida, liberdade e amor.

Mas ai! que o homem de seus dons celestesNo altar dos vícios holocausto fez:Rasgou impuro da inocência as vestes,Calcou tirano seus irmãos aos pés.

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Tomando o ferro de cruel verdugo,Fartou com sangue mil cruéis paixões;Impôs ao fraco seu tirano jugo,E o fraco às plantas lhe arrastou grilhões.

Então a terra suspendeu seus hinos,A luz do dia se turvou no céu,E esta harpa triste, nos umbrais divinos,Aos pés do Eterno desde então gemeu.

De negras sombras se toldara o mundo,Mas eis que os tempos eram findos já;Eis que uma estrela de fulgor jucundo,Sorrindo à terra, alumiou Judá.

Em vão; só hoje triunfar deviaEsse astro imenso de serena luz:Eis surge, eis surge do resgate o dia,Brilhando aos homens sobre a eterna cruz.

Povos, sois livres, enxugai o pranto!Do leito amargo do penar surgir!Terra, modula teu festivo canto,Que o novo dia já reluz em ti!

Dum Deus o sangue resgatou a afronta:Quebrai a taça da agonia e dor!Novo porvir às gerações despontaDe liberdade, de ventura e amor.

Eterna glória ao que desceu à terra!Eterna glória do universo ao Rei!Que o fraco exalta, que o soberbo aterra,Que impõe aos orbes e às nações a lei!

CORO DOS ANJOS

Hossana! hossana! seu nome infinitoRefulge de glória, qual astro seu véu,Na luz da verdade, no Verbo predito,No mar, nos abismos, na terra, e no céu!

*

E subindo através do espaço imensoO coro – hossana, hossana – repetiaEntre nuvens d'azul, d'ouro, e d'incenso,E entre notas d'angélica harmonia.

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Entanto eu com a face unida à terraDo novo dia o resplendor saudava,E sobre o campo da passada guerraAo Senhor dos exércitos orava.

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AO PORTO

Doce pátria que amo tanto,Onde a luz primeira vi,Erga-se hoje a ti meu canto,Pois que em teu seio nasci.Foi a tua heroicidadeQuem me inspirou, ó cidade:– Atleta da liberdade,Voem meus versos a ti!

Pelo clarim das batalhasVou modular a canção...Dizem guerra essas muralhasQue cingem teu morrião:A teus pés di-lo o rugidoDesse Douro embravecido,Entre penhas escondidoRugindo como o leão.

Guerreiro e livre, uma serra,Quiseste pra te encostar;A águia não quer a terra,Quer as penhas, quer o ar:Do oceano junto às plagasQuiseste um leito de fragas,Donde além visses as vagasCorrendo livres no mar...

Que insofrido como as ondasA natureza te fez;A pátria d'EpaminondasFoi menos livre talvez...Erga-se o véu do passado:Em combates empenhado,Sempre lá te vejo ousadoCampear com altivez.

Mas a glória do presenteFoi maior que essa d'então;Hoje abriu-se ao combatenteDoutra arena a vastidão;Que se à pátria inda n'aurora,Tinhas dado o nome outrora,Coa lança a remiste agoraDos ferros da escravidão.

Jazia a triste arquejante,Ninguém dela tinha dó...

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O seu rei fora distante;Seu rei a deixará só...Mas tu calaste a viseira,Tu bradaste, e a Europa inteiraViu à tua voz guerreiraPortugal surgir do pó.

Que valeu? – correram anos...Jaz aos pés calcada a lei;Pesa o jugo dos tiranosNo colo da pobre grei...Que negro porvir tão triste!Liberdade, sucumbiste...Mas o forte ainda existe;Ei-lo que se ergue – tremei!

Lá não tendes vis escravosQue saibam rojar grilhões:Os ferros daqueles bravosSão espadas e canhões...Pararam na marcha sua?Também a vaga recua,Mas depois à praia nuaArroja cem galeões.

Pararam... porque o martírioÉ preciso inda afrontar,Que das crenças o alvo lírioDo sangue deve brotar.Pararam... agora, avante!Surja o cutelo brilhante,Que o mártir estende ovanteO colo sem vacilar...

Raiou o dia do pranto,Ó nova Jerusalém...Não vês trajar negro mantoA liberdade também?...Não vês... não vês decepadasCabeças ensanguentadas,Palpitando desgrenhadasNos postes aqui e além?...

Mas não tarda do desterroQuem há-de o mártir vingar:Dos livres já brilha o ferroPor entre as ondas do mar.Enxuga teu pranto ardente,Que nas vagas do ocidenteJá do exército valente

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Descubro as naus a alvejar.

Ei-los correndo a teus braçosMuros adentro já são;Das masmorras em pedaçosEstala o férreo portão.Ei-los à praça chegados...Os cadafalsos alçadosPor mil ombros derrubadosCaem prostrados no chão.

No regaço da cidadeQue espectáculo não vai!Do longo exílio a saudadeEm beijos d'amor se esvai.Findara a ausência amargosa,Tudo sorri, tudo goza,O esposo abraça a esposa,Abraça o filho seu pai.

Foi prazer dum só momento,Prazer que aos contrários dói...Eis corre um bando sedentoDe ver se o Porto destrói.Mas não treme o sitiado;Guerra! guerra! – eis o seu brado,Cada livre é um soldado,Cada soldado um herói.

Rufa o tambor a rebateRetreme a voz do clarim...Eia, ó livres, ao combateQue hoje é dia de festim.Querem morte? – reine a morte!Que importam filhos, consorte?Triunfar é vosso norte,Heis de alcançá-lo por fim.

Por entre a fuzilariaRestruge a voz do canhão;O fogo da artilhariaFaz do reduto um vulcão.Vós que tentais no estragoSumir a nova Cartago,Vinde de sangue num lagoRojar as fúrias em vão!

E tu, soldado atrevido,Vencedor da forte Argel,À tirania vendido,

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À liberdade rebel,Contra os muros da cercada,Ergueste feroz a espada;Procura-a no chão quebradaOnde jaz com teu laurel...

Ó cidade, nos teus valosQuantos viste o pó morder,E sob os pés dos cavalosSeus tiranos maldizer!..Debalde as hostes escravasBramiam quais ondas bravas,Tu sorrindo as afrontavasQual rochedo, sem tremer.

Debalde vinha a granadaTeu seio despedaçar,Cada pedra ensanguentadaEra à glória um novo altar.A fome, a pálida fomeTuas entranhas consome,Mas q'rias d'invicta o nomeTudo soubeste afrontar.

Té que afinal a vitóriaTeu estandarte empunhou,E o caminho para a glóriaAos teus livres apontou...Eram águias altaneirasVoando, suas bandeiras;Ante essas hostes guerreirasTudo o joelho curvou,

Largo tempo era passadoE num leito de broquéisDescansavas reclinadoÀ sombra dos teus lauréis...Mas eis no Tejo distanteA liberdade arquejante...Ergue-te, ergue-te, ó gigante,Com teus soldados fiéis.

Cingiu as suas muralhas...Vinde deitar-lhe grilhõesAo colosso das batalhasEriçado de canhões.Glória à tua valentia,Escolho da tirania,Para conter-te a ousadiaMal bastaram três nações.

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Cederas... por toda a parteNo meio de sangue e horror,Cai dos livres o estandarte«s plantas do vencedor...Que vista! – o herói de NovaraQue a pátria n'alma abrigaraHoje busca, e não deparaUm abrigo à sua dor...

Vem, altivo e nobre cedroDerribado sobre o chão,Junto ao coração de PedroAsilar teu coração...Nesses muros inda o bradoSe escuta do rei soldado;Vem ouvi-lo, ó malfadado,Do desterro na soidão...

Veio... mas enfim à morteO herói ali cedeu...Ali nas cinzas do forteUm povo carpiu, gemeu...Eras escrava, ó cidade;Foi teu pranto de saudadeUm hino que à liberdadeDentre as algemas se ergueu.

Eras escravo, ó guerreiroSurgirás inda outra vez?Nos ferros do cativeiroAcabaremos? – talvez!...Oh! mas não! – se a forte lançaInda ao lado lhe descansaTiranos, vossa esperançaJaz para sempre a seus pés.

Dizei que somos escravos.Que hemos de ter perros vis:Nesses muros inda há bravosPara bradar-vos – mentis!Inda existes, ó gigante,Sempre indómito e possante,Para calcar triunfanteGrilhões e jugos servis...

Se aos golpes da tiraniaVires tremer Portugal,À sua voz d'agoniaSurge outra vez colossal!

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Do teu peito dá-lhe o abrigo,Defende-o, salva-o contigo,Ou no pó do seu jazigoDorme o teu sono final.

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VERSÕES DE H. HAINE

I

Quero enterrar os meus cantos,Os meus sonhos de tristeza;Ide buscar-me um esquife,Mas d'espantosa grandeza;

Um esquife em que se guardeO que em muitos não se albergue,Que seja mais largo aindaDo que o tonel de Heidelberg.

Que seja de tábuas firmesE duma extensão imensa;De mais comprimento aindaDo que a ponte de Mayença.

E venham doze gigantesQue façam julgar pequenoO vulto de São CristóvãoDe Colónia, sobre o Reno.

Pois têm de levar o esquifeAo mar que a terra nos banha;Um caixão de tal grandezaPede uma cova tamanha.

Sabeis para que precisoEsquife de tal largura?Para encerrar dentro deleMeu amor e desventura.

II

Quando ao sepulcro desceresEu contigo descerei;E ao meu peito hei-de apertar-teÓ tu a quem tanto amei.

Hei-de apertar-te em meus braços,Muda, fria e já sem cor,Estremecer, invocar-teE depois morrer d'amor.

À meia-noite os espectrosPara as danças surgirão:

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Nós ficaremos unidosSem quebrar nossa união.

No dia do julgamentoA trombeta há-de soar;Mas nós para sempre unidosNada havemos d'escutar.

III

Se as florinhas da campinaSoubessem o meu penar,Em minha chaga verteramSeu bálsamo salutar. Se os rouxinóis do arvoredoConhecessem minha dor,Cantavam por distrair-meSuas cantigas d'amor. Se ao longe, as estrelas d'ouroNotassem minha aflição,O firmamento deixaramPor dar-me consolação. Mas nada sabem as flores,Aves, nem astros do céu;Ela só conhece tudo,Aquela que me perdeu.

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VERSÕES D'OSSIAN

AO SOL

(fragmento do poema de «Carthon»)

Ó tu que rolas nesse campo etéreo,Semelhante ao broquel dos meus passados,Donde vêm os teus raios, sol brilhante?Donde recebes tua luz eterna?Tu despontas solene e majestoso;As estrelas se escondem quando passas,A lua fria e pálida mergulhaNas vagas do ocidente; e tu caminhasSolitário nos céus. Quem na carreiraTe pode acompanhar? Os altos roblesBaqueiam das montanhas, e elas mesmasSob o peso dos anos se arruínam;O oceano ora se eleva, ora se abaixa;A própria lua na amplidão fenece:Só tu caminhas sempre, e sempre o mesmo,E de tanto fulgor te vanglorias!Quando a borrasca entenebrece o mundo,Quando rolam trovões, e adeja o raio,Tu olhas dentre as nuvens sobranceiro,E sorris da tormenta! Mas debaldeOlhando Ossian procuras, que os teus raiosOssian não mais verá, quer teus cabelosEm nuvens orientais flamejem soltos,Quer descendo os espaços estremeçasÀs portas do ocidente. Sol, um diaTalvez como eu serás; talvez, quem sabe?Dos anos teus acabarás o giro,E insensível à voz da madrugada,Em tuas nuvens ficarás dormindo.Mas folga, folga entanto majestosoNo verdor de teus anos: a velhiceÉ solitária e triste; é semelhanteAo clarão melancólico da luaQuando brilha entre nuvens, quando o norteRevoa na planície, e o caminhantePára convulso e de pavor transido.

COLMA

(fragmento dos cantos de Selma)

Era em Selma e nas festas. Começava

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Dos bardos o cantar: eis se adiantaD'olhos fitos no chão, banhada em pranto,A doce, a amável Minona. Os cabelosLhe ondeavam soltos ao soprar da brisaQue vinha das montanhas.As almas dos heróis se enterneceramMal que as primeiras notasDe seu canto dulcíssimo soaram.Muitas vezes o túmulo de Sálgar,E o túmulo de Colma tinham visto,Da triste Colma abandonada às queixas,Na colina deserta. Um dia SálgarPrometera de vir e não viera:Em torno dela já descia a noite:Ouvi da triste ColmaA queixa solitária:

«É noite! sozinha no monte elevado«Dos ventos ruidosos escuto o bramir...«Sombria a torrente sussurra a meu lado...«Em triste abandono me é doce carpir.«Descobre-te, ó lua, refulge brilhante!«Estrelas formosas, mostrai-vos também!«Guiai os meus passos ao sítio distante,«Onde ora cansado repousa o meu bem!

«Ó Sálgar, ó chefe dos montes valente,«Quebraste a promessa que em balde te ouvi...«D tronco, os rochedos, a voz da torrente«São estes, ó Sálgar, mas faltas aqui...«Deixei por seguir-te na dor abismados«O irmão que estremeço, meu pai que olvidei:«São velhos os ódios dos nossos passados,«Mas eu, ó meu Sálgar, jamais te odiei.

«A lua calada fulgura na selva,«Nas águas, nas rochas, com doce clarão...«Quem jaz em distância dormindo na selva«És tu, ó meu Sálgar? és tu, meu irmão?«Falai, meus amigos: imóveis, deitados,«Porque inda em silêncio me não respondeis?«Ai mortos! ai mortos! em sangue banhados!«E tintos de sangue seus ferros cruéis!

«Mataste, ó meu Sálgar, o irmão de minha alma!«E tu, doce amigo, tu jazes também!«Perdi-vos; só resta chorar-vos sem calma...«Como eu vos amava não ama ninguém.«Tu eras formoso nas tuas colinas:«Ele era terrível das lutas no ardor.

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«Quem vossas espadas guiou assassinas?«Quem pôde inspirar-vos da morte o furor?

«Mas, ai! já não ouvem meus longos gemidos...«Na terra gelada gelados estão...«Falai dentre as nuvens, fantasmas queridos,«Que as vossas palavras medonhas não são!«No monte sombrio que além se divisa,«Dizei-me a caverna que triste habitais!...«Calados! calados! nem sopro da brisa,«Nem voz de tormenta me traz os seus ais!

«Sentada no monte, cos olhos absortos,«Espero chorando do dia o raiar.«Erguei-lhes as tumbas, amigos dos mortos,«E nelas a Colma guardai um lugar!«Passou de meus dias o sonho tão ledo,«Passou para sempre! não mais viverei...«Ao pé da torrente que banha o rochedo,«Oh! dai-me o repouso daqueles que amei!

«De noite, na serra batida dos ventos,«Meu triste fantasma de pé surgirá;«E ao som da rajada soltando lamentos,«No meio das nuvens gemendo errará.«Ao longe o viandante nos bosques perdido«Ouvindo-lhe as queixas terá compaixão;«As queixas, o pranto de Colma sentido«Chorando os amigos que mortos já são.»

Tal foi, tal foi, ó Minona, o teu canto,Doce filha de Tórman. Tristes eramNossas almas por Colma, e em nossas facesDeslizavam as lágrimas em fio.

FINGAL

(CANTO PRIMEIRO)

Assentado de Tura junto aos murosEstava Cuthullin, perto do troncoDe folhas rumorosas. Tinha a lançaEncostada ao rochedo, e aos pés o escudo.No poderoso Cárbar meditava,Nesse herói que vencera: eis lhe apareceNóran, filho de Fithil, sentinelaDo proceloso oceano. «Ergue-te», disse,«Ergue-te, ó Cuthullin! Eu vi ao largo«Os navios do norte. Numerosos

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«Os inimigos são; muitos os bravos«Do potente Swáran.»«Sempre tremes,«Sempre, ó filho de Fithil, lhe responde«O belicoso chefe, e assim aumentas«As forças do inimigo. Fingal era,«Fingal, rei dos desertos, que o socorro«Traz a Erin dos ribeiros.»«Vi seu chefe,«Replica Móran, qual rochedo avulta!«Como um pinho sem rama é sua lança!«Como a lua nascente o seu escudo!«Assentado na praia semelhava«Nuvem que pousa no calado serro!«– Muitos, ó rei dos heróis, muitos, lhe disse,«Nossos guerreiros são. Chamam-te o forte,«Mas os fortes em guerra não têm conta«Junto às muralhas da nublosa Tura. –«Com estrondoso acento semelhante«Ao da vaga na rocha, ele me brada:«– Resistir-me quem ousa? os mais valentes«Aos meus golpes sucumbem. Só pudera«Fingal, o rei de Selma, ele somente,«Meu ímpeto arrostar. Já combatemos«Uma vez em Malmor. Com nossas plantas«Volvíamos a terra; as duras rochas«Despegadas caíam; as torrentes«Recuavam de susto murmurando.«Três dias combatemos; os guerreiros«Nos olhavam ao longe e estremeciam.«Diz Fingal que cedi, que o rei do oceano«Caiu por terra ao quarto: o rei do oceano«Resistiu sempre firme! Ceda-lhe hoje«O torvo Cuthullin! ceda ao que é forte«Como as tormentas de seu pátrio berço! –«Oh! não, lhe torna o chefe, a nenhum homem«Cuthullin cederá, mas há-de em campo«Triunfar ou morrer! Toma esta lança:«Parte, ó filho de Fithil, vai com ela«Bater de Semo no sonoro escudo!«De Tura à porta vê-lo-ás suspenso.«Sua voz estridente é voz de guerra:«Hão-de ouvi-la os heróis e obedecer-me.»

Partiu. Bateu no escudo. EspavoridaTremeu na selva a corça; em torno os montes,Os côncavos rochedos retumbaram.Dos íngremes penhascos saltam logoCurach, e Cónnal de sanguínea lança.Bate de Crúgal o ansioso peito;

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O filho de Favi deixa a caçada;«É o escudo de guerra?» brada Rónnar;«De Cuthullin a lança!» brada Lúgar,Empunha, ó Calmar, a soante espada!Ergue-te, ó Puno, temeroso chefe!Deixa, ó Caírbar, o ramoso Cromla!Eth, aproxima-te; à planície desceDas torrentes de Lena! Os alvos peitosMostra, ó Cathol, atravessando o plainoSussurrante de Mora; os peitos alvosComo as espumas que arremessa a vagaAos rochedos de Cúthon!Eis os chefes!Ei-los soberbos dos antigos feitos!Inflamados recordam as proezas,As glórias do passado. Os olhos torvosChamejantes revolvem, procurandoInimigos da pátria. As mãos valentesDescansam nas espadas. Cada vultoLampeja armado de brunido ferro.Brilhantes são os chefes da batalhaCoas armas de seus pais! Sombrios, torvosOs seguem seus heróis, como a catervaDe pluviosas nuvens segue os ígneosMeteoros do céu. Por todo o campoRessoa o estrondo d'armas, e d'envoltaOs uivos dos mastins; de quando em quandoRompem cantos de guerra, e o alaridoSe repercute no fragoso Cromla.Sobre o plaino de Lena estão postados,Como a névoa do outono sobre o outeiro.A movediça névoa tenebrosaQue aos céus levanta a retalhada fronte.

«Filhos dos vales, Cuthullin exclama,«Caçadores do gamo, eu vos saúdo!«Uma nova caçada nos convida:«O inimigo se adianta como as vagas«Que se arrojam sombrias sobre a costa.«Combateremos nós, filhos da guerra,«Ou cederemos nossa Frin viçosa«Aos filhos de Lochlin? Responde, ó Cónnal,«Tu primeiro entre os homens, tu que partes«Os escudos na guerra! Já mais vezes«Com Lochlin pelejaste: empunhar queres«A lança de teu pai?»«De há muito sabes,«O chefe lhe responde, se nas guerras«Minha lança fulgura. Seu deleite«É ferir nos combates, é banhar-se

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«No sangue d'inimigos. Mas se o braço«Arde por combater, sereno o peito«É pela paz d'Erin. Ó tu na guerra«De Curmac o primeiro, observa ao longe«A frota de Swáran. São mais densos«Os seus mastros na costa do que os juncos«Na lagoa de Lego. Os seus navios«São florestas nublosas, cujos troncos«Cedem a espaços ao soprar do vento.«Os seus chefes guerreiros não têm conta.«Cónnal é pela paz. O próprio Fingal«Que dormes junto à rocha! Eis-te caída«Evitara a peleja, ele que sabe"Dispersar os heróis como dispersa«O vento os sons de Colna quando a noite«Carregada de nuvens cobre o outeiro.»

«Ah! foge, homem de paz, foge! lhe brada«Cálmar filho de Matha. Vai, regressa«Aos teus montes calados, onde a lança«Jamais brilha na guerra! Vai, acossa«O veado do Cromla com teus dardos«Fere a corça de Lena! Tu, entanto,«Tu, ó filho de Semo, desta guerra,«Ó árbitro supremo, abate o orgulho«Dos filhos de Lochlin! Suas fileiras«Rompe atrevido! Que nenhum navio«Das regiões da neve ouse de novo«Galgar as ondas d'Inistor sombrias!«Negros ventos d'Erin, rugi! Erguei-vos,«Ó turbilhões de Lara! Que entre as nuvens«Me espedacem as iras dos fantasmas«Se há prazer para Cálmar como a guerra!

«Quando, ó filho de Matha, lhe responde«Cónnal com lenta voz, quando me viste«Aos combates fugir? Embora obscuro«Seja o nome de Cónnal, sempre à guerra«Cos amigos corri, sempre dos fortes«O triunfo ajudei. Mas a ti falo,«A ti, filho de Semo, e tu me escuta.«A metade das terras e presentes«Dá em troca da paz, até que Fingal«Aporte às nossas praias. Mas se a guerra«Desejas antes, minha lança e espada«Erguerei satisfeito! os inimigos«Correrei a afrontar! e como sempre«Brilhará o meu ânimo na luta!»

«Eu, tornou Cuthullin, amo o som d'armas

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«Como a voz do trovão acompanhado«Dos chuveiros do estio. Vossas tribos«Ide pois ajuntar, para que eu possa«Ver os filhos da guerra. Que eles passem«Brilhantes como o sol antes que o vento«Acumulando as nuvens remurmure«Nos carvalhos de Mórven. Mas que é feito«Dos amigos que eu tinha? Onde os que ajudam«Meu braço nos perigos? Onde páras,«Ó Cathba d'alvo peito? Onde te escondes,«Nuvem da guerra, varonil Duchómar?«Tu, Fergus, onde estás? Porque me deixas«No dia da tormenta? Ei-lo que chega!«Fergus, filho de Rossa, tu primeiro«No prazer dos festins, braço da morte,«Vens de Malmor acaso? vens correndo«De tuas serras como leve gamo?«Salve, filho de Rossa! que tristeza«Assombra a alma da guerra?«Quatro pedras,«Responde o chefe, a sepultura cobrem«Do valoroso Cathba; e já na terra«Dorme também o varonil Duchómar.«Tu eras para Erin, eras, ó Cathba,«Como um raio do sol! e tu, Duchómar«Como a névoa do Lane, que no outono«Rola sobre a planície, e leva a morte«A viventes sem conta! ó Morna, ó bela«Entre as mais belas, sossegado é o sono«Que dormes junto à rocha! Eis-te caída«Entre as sombras da morte, como a estrela«Que se esvai no deserto, e o caminhante«Deixa saudoso de seu raio esquivo.»«Ah! conta-nos, lhe diz de Semo o filho«Conta-nos, Fergus, como foram mortos«Os guerreiros d'Erin. Caíram ambos«Em combate de heróis? Diz-nos, Fergus,«Porque é que a terra nos esconde os fortes?»

«Cathba, lhe torna o chefe, caiu morto«Aos golpes de Duchómar: caiu junto«Do roble das torrentes. Exultando«O fero vencedor foi ter com Morna«À caverna de Tura. – Amável filha«Do valente Cormac, ele lhe disse,«Porque saudosa no fragoso serro,«Na caverna da rocha venho achar-te?«O ribeiro murmura; a árvore anosa«Geme ao sopro do vento; o lago é turvo;«Negras as nuvens que no céu revoam!

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«Mas tu és como a neve da planície:«Como o vapor do Cromla é teu cabelo.«Como o vapor do Cromla quando brilha«Aos raios do poente! São teus peitos«Como os lisos rochedos que se avistam«De Branno dos Ribeiros; são teus braços«Como as alvas colunas espalhadas«Pelas salas de Fingal!«– Donde, inquieta«Lhe diz a virgem de formosas tranças,«Donde vens, ó Duchómar, tu dos homens«O mais torvo e sombrio? Carregado«Trazes o rosto, e ensanguentada a vista.«Descobriu-se o inimigo! Que notícias«Trazes tu lá do mar? – «– É da montanha«Que eu venho, ele responde; da montanha«Dos escuros veados. Três caíram«Traspassados por mim; três foram mortos«Por meus ágeis lebréus. Um deles tinha«Majestosa a cabeça, e os pés movia«Ligeiros como o vento. Amo-te, ó bela!«Para ti o matei; não mo rejeites! –«– Ah! foge, homem sinistro! ela lhe torna.«Carregado e terrível tens o rosto,«E duro o peito como rocha dura!«Tu, ó filho de Tórman, tu, ó Cathba,«És meu único amor! és a meus olhos«Como um raio de sol em tempestade!«Oh! diz-me se o viste, o jovem belo«Na serra dos seus gamos, pois há muito«Que neste sítio o espero! –»«– E largo tempo«O esperaras, ó Morna, ele responde!«Olha esta espada nua: aqui o sangue«De Cathba inda escorre. Caiu junto«Da torrente do Branno: sobre o Cromla«Lhe erguerei o sepulcro. Volta os olhos,«Volta-os para Duchómar: é seu braço«Forte como a tormenta. –»«– Morto, exclama«Em desespero a angustiada virgem,«Morto o filho de Tórman! nos seus montes«Extinto o jovem de nevado peito!«O primeiro em caçadas, e inimigo«Dos guerreiros do Oceano! Eu te detesto,«Ó Euchómar cruel! Dá-me essa espada!«Nesse bárbaro ferro quero ao menos«Ver o sangue de Cathba! – »«– Ele movido

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«De suas queixas, lhe confia a espada,«E ela no peito varonil lha embebe.«Bem como se despenha a ribanceira«Da torrente da serra, ele baqueia.«Na agonia mortal estende à virgem«A mão convulsa, e diz: Por ti fui morto«No verdor de meus anos. Sinto a espada«Fria, ai, fria no peito! Meu cadáver«Entrega à bela Moina: Eu era o sonho«Das noites dessa virgem. Compassiva«Meu sepulcro há-de erguer; e há-de o meu nome«Cantar o caçador. Mas vem do peito,«Oh! vem tirar-me este gelado ferro! –«De lágrimas banhada acode a virgem,«O agudo ferro extrai e ei-la que a furto«O cristalino seio lhe atravessa.«Vacilando ela cai: o sangue em ondas«Lhe tinge os braços níveos, a madeixa«Desgrenhada lhe roja, e na caverna«Seus extremos gemidos escoaram.»«Paz, disse Cuthullin, paz e descanso«Às almas dos heróis! Sublimes foram«Seus feitos de valor! Que eles me cerquem«Pairando sobre as nuvens! que eu lhes veja«As guerreiras figuras! Então forte«Nos perigos serei; será meu braço«Como o fogo do céu! E tu, ó Morna,«Sobre um raio da lua me aparece!«Às horas do descanso quero ver-te«Quando em paz estiver, quando cessarem«Os tumultos da guerra. Mas as hostes«Ordenai, meus amigos, e marchemos«Para a guerra d'Erin! Tomai por norte«Meu carro de batalha! extasiai-vos«Ao rumor do seu curso! Eia, a meu lado«Três lanças colocai! De meus cavalos«O galope segui! Que eu possa afoito«Com meus sócios contar quando esta espada«Relampejar nas sombras da peleja!»

Como espúmea torrente que se arrojaDo tenebroso Cromla, quando rolaO trovão pelos céus, e a escura noiteImpera na montanha, quando os rostosDos lívidos fantasmas aparecemNas fendas da borrasca: assim furiosa,Vasta, e medonha se arremessa a turbaDos guerreiros d'Erin. Na frente avançaO valoroso chefe, semelhandoA baleia do oceano acompanhada

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Do marulho das ondas, ou torrenteQue arrasta as águas através dos campos;Aos filhos de Lochlin chega o ruídoComo o surdo rumor da tempestade:No pesado broquel bate SwáranChamando o filho d'Arno. «Que sussurro,«Lhe diz, é este que nos montes soa,«Semelhante ao zumbido que levantam«Os insectos da tarde? Acaso descem«Os guerreiros d'Erin? Rugem acaso«Os ventos na floresta? É assim que às vezes«Eles soam no Gormal quando querem«Das minhas vagas açoitar o dorso.«Sobe já, filho d'Arno, sobe ao monte,«E estende a vista pelo escuro plaino.»

Partiu. Em breve regressou tremendo.Em torno os olhos revolvia inquieto;O coração lhe palpitava ansioso;As palavras a custo proferiaCortadas, vagarosas. «Surge, disse,«Surge, ó filho do Oceano, altivo chefe«Dos escuros broquéis! Eu vi a negra«Caudalosa torrente da batalha!«As movediças forças numerosas«Dos guerreiros d'Erin! Já temeroso«Como a chama da morte se aproxima«De Cuthullin o belicoso carro!«Na parte posterior é recurvado«Como a vaga ante a rocha, ou como a névoa«Dourada pelo sol. São embutidos«De pedraria os lados, e resplendem«Como em torno da barca ondas nocturnas.«É de polido teixo fabricado«O comprido timão; e o liso assento«D'osso branco e macio. Tem os bordos«Recheados de lanças, e no fundo«O degrau dos heróis. Diante do carro,«À dextra parte, relinchando avulta«O d'amplas crinas, largos peitos, forte,«Agil, fero cavalo da montanha.«Estrondoso galopa; a crina esparsa«Pelo pescoço, os turbilhões imita«Do vapor que se estende pelas rochas.«de brancas espáduas, e chamado«Sulin-Siffada. Do outro lado, o esquerdo,«Resfolga ardente o d'elevado colo,«De raras crinas, duros pés, ligeiro«Filho da serra, saltador ginete.«Tem por nome Durósnnal entre os filhos

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«Da guerra procelosa. Os duros freios«Entre frocos d'espuma resplandecem.«Cheias de pedraria as finas rédeas«Batem no colo dos frisões soberbos,«Que ligeiros resvalam na planície«Como o vapor nos paludosos vales.«Seu rápido galope é como a fuga«Do trépido veado, e irresistível«Como a descida da águia sobre a presa.«Dentro do carro se divisa armado«De rijas peças o valente chefe.«Chama-se Cuthullin, progénie ilustre«De Semo, rei das taças. Tem corado«O belo rosto como este arco liso«Sob as negras arcadas dos sobrolhos«As pupilas azuis amplas revolve.«Como uma chama lhe flutua a coma«Quando se inclina ao manejar a lança.«Ah! foge, rei do Oceano! Ele se adianta«Como vasta procela que rugindo«Corre ao longo do vale!»«Fugir? e quando«Fugir me viste? responde Swáran.«Quando medroso se esquivou meu braço«À batalha das lanças? Quando, ó chefe«D'alma pequena, recuei eu nunca«Em frente do perigo? Eu já do Górmal«Encarei as tormentas, quando as ondas«Espumavam raivosas; já das nuvens«Arrostei os combates: hei-de agora«Ante um homem tremer? Oh não; nem Fingal«Me pudera assombrar. Eia, ao combate,«Ó valentes guerreiros! Rodeai-me,«Como túrbidas águas! Cercar vinde«De vosso rei o chamejante gládio!«A firmeza mostrai das nossas rochas,«Dessas montanhas que a tormenta encaram«E opõe ao vento os pinheirais sombrios!»

Como duas procelas que no outonoCorrendo opostas de diversos montesSe avizinham medonhas, assim torvosUns contra os outros os heróis correram.Como duas torrentes que à planícieD'altas rochas descendo as bravas ondasEncontram restrugindo, assim ruidosa,Fera, e terrível se encontrou a genteDe Lochlin e Inisfail. Chefe com chefe,Homem com homem se travou em luta.O ferro bate no sonoro ferro;

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Abrem-se os capacetes; jorra o sangue;As cordas zumbem nos polidos arcos;Atravessando o espaço as frechas voam;As lanças descem como a luz que douraOs véus da noite em alongadas curvas.Como o rumor do Oceano quando as vagasEncapela raivoso, como o extremoRebramar do trovão, assim ressoaO fragor do combate. Quando mesmoPara a luta cantar ali viessemDe Cormac os cem bardos, ao estragoDos cem bardos a voz não bastaria,Muitas foram as mortes, muito o sangueDe heróis valentes nesse chão vertido.

Chorai, filhos do canto, chorai mortoO nobre Sithallin! Que de FionaOs suspiros ressoem na planícieDo seu Ardan querido! Ambos caíramComo dois gamos do deserto aos golpesDo potente Swáran. Na refregaEle rugia dominando as hostesComo o espírito fero da tormentaQue entre as nuvens campeia, e olha em triunfo

O nauta que soçobra. Nem ocioso,Chefe da ilha das neves, foi teu braço!Muitos, ó Cuthullin, à morte deste!Era o teu gládio como o fogo etéreoQue incendeia as montanhas, e fulminaOs íncolas do vale. Calcando os mortosRelinchava Durósnnal; e no sangueGalopava Siffada. Todo o campoDestroçado deixavam, como as selvasFicam no Cromla quando passa o ventoCarregado d'espíritos da noite.

Sobre a rocha dos ventos chora aflita,b virgem d'Inistor! Inclina às ondasA formosa cabeça; tu mais belaQue o espírito da serra quando às vezesDo meio-dia sobre um raio desceAo silêncio de Mórven! Teu amigo,O teu jovem amigo já não vive!Pálido vacilou, caiu extintoDe Cuthullin sob a tremenda espada!Nunca mais teu amor em valentia«À grandeza dos reis há-de elevar-se.Trénar, o belo Trénar caiu morto,ó virgem d'Inistor! Debalde o chamam

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Seus cães uivando: no solar só vêemSeu espectro vagar. Pende na salaDesarmado o seu arco, e no aposentoDos seus veados, o silêncio reina!

Como rolam mil vagas contra a rocha,Tais arremetem de Lochlin as hostes.Como o rochedo vagas mil afronta,Tais lhe resistem as d'Erin seguras.À pavorosa grita que ressoaO tinido das armas se reúne.É cada herói como um pilar de névoa;Sua espada na dextra é como um raioDe lado a lado todo o campo soaSemelhando a fornalha onde retumbamNa vermelha bigorna cem martelos.Quem são esses que tétricos pelejamNa campina de Lena? Quem são essesQue duas nuvens na figura imitam,Cujas espadas sem cessar lampejam?Em derredor os montes espantados,Os rochedos medrosos estremecem;Quem são eles senão d'Erin o chefe,Senão o filho do Oceano? Pelo campoCoa vista inquieta os acompanham sempreSeus guerreiros ansiosos. Mas a noiteOs envolve nas sombras, e crescendoÀ batalha terrível põe remate.

Do emaranhado Cromla sobre a encostaDepositara Dorglas o veadoQue ao romper da manhã fora colhido;Estando ainda na montanha as hostes,Eis ajuntam a lenha cem mancebos,Dez guerreiros acendem a fogueira,E trezentos escolhem lisas pedras:O fumo do banquete sobe aos ares.O poderoso espírito concentraCuthullin meditando; e recostadoÀ lança refulgente a voz dirigeAo filho das canções encanecido,A Cárril doutros tempos. «Devo acaso«Do banquete gozar, e há-de isolado«Longe do gamo das montanhas suas,«Longe das festas dos salões ruidosos,«O chefe de Lochlin ficar na praia?«Vai, ó Cárril anoso, vai levar-lhe«Amigáveis palavras. Anuncia«Ao que as ondas ruidosas nos trouxeram,«Que vai dar Cuthullin o seu banquete.

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«Venha ouvir o murmúrio dos meus bosques«Pelas sombras da noite, pois gelado«Sussurra o vento nas espúmeas vagas.«Venha gozar os trémulos acentos«Da harpa melodiosa; escutar venha«O louvor dos heróis!»

ObedecendoParte o velho cantor, e em tom benignoDos escuros broquéis diz ao monarca:«Acorda, ó rei das selvas, eia acorda!«Dentre as peles da caça te levanta!«Na alegria das taças, no banquete«Do príncipe d'Erin vem tomar parte!»Como o sinistro sussurrar do CromlaAntes da tempestade, ele responde:«Quando mesmo, Inisfail, as tuas virgens«Me estendessem os braços cor de neve,«E descobrindo os palpitantes seios«Os amorosos olhos me lançassem,«Firme neste lugar, como são firmes«As rochas de Lochlin, ficara ainda!«Neste lugar esperarei que o brilho«Da matutina luz venha chamar-me«De Cuthullin à morte. Eu amo o sopro«Dos ventos de Lochlin! Eles cruzaram«Os espaços do mar! Eles me falam«No zumbir das enxárcias, e me trazem«Minhas verdes florestas à lembrança;«As florestas do Górmal, que eu ouvia«Rugir ao seu bafejo, quando a lança«Do javali na caça manejava.«Oh! vai: que o torvo Cuthullin me ceda«O trono de Cormac, ou em torrentes«Correrá das montanhas à planície«De seus guerreiros o espumoso sangue!»

«Funestos são, diz Cárril doutros tempos,«Os ditos de Swáran!» –»Sim, funestos,«Responde Cuthullin, lhe hão-de ser eles.«Mas ergue a voz, ó Cárril, e reconta«Os feitos do passado. Com teus cantos«Nos abrevia a noite; em nós desperta«O gozo da tristeza. Heróis infindos,«E mil virgens amantes hão passado«Na terra d'Inisfail. Doces ressoam«Os cantos do infortúnio que se elevam«Nas rochas d'Albion quando emudece«O rumor da caçada, e às vozes d'Ossian«Se casa o murmúrio das correntes.»

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«No tempo que passou, começa o bardo,«Os guerreiros de oceano a Erin vieram.«Numerosos baixéis galgando as ondas«Aportaram d'Erin às mansas praias.«Os filhos d'Inisfail se levantaram«Dos escuros broquéis sustando a raça.«Militava no exército Caírbar,«Dos homens o primeiro. e o jovem Grúdar,«De garbosa figura. Desde muito«Que entre si contendiam pela posse«Do imaculado touro que mugia«Na campina de Golbum; desde muito«Que a morte viam nos agudos ferros.«Contra os filhos do mar um tempo unidos«Combateram a par, venceram juntos.«Quem na montanha possuía a glória«De Caírbar e Grúdar? Mas, oh pena!«Porque mugia o imaculado touro«Na campina de Golbum? Mal que o viram«De novo a sanha lhes brotou nos peitos.

«Sobre as margens do Lúbar combateram:«Grúdar caiu sem vida. Então Caírbar«Caminhou para o vale, onde Brassolis,«Sua irmã formosíssima, entoava«O canto da tristeza. Ela narrava«As façanhas de Grúdar, o mancebo«De seu íntimo afecto; ela chorava«Seus perigos no campo, e sua volta«Esperava com ânsia. O branco seio«Lhe transluzia sob as roupas leves«Como a lua entre nuvens; e mais doce«Era seu canto que os gemidos da harpa.«Em seu bem adorado tinha a mente,«E seus olhos gentis falavam dele.«– Quando virás enfim? ela dizia;«Quando virás, ó poderoso em guerra? –

«– Guarda, lhe diz o irmão, guarda, ó Brassolis,«Este escudo sangrento: vai fixá-lo«Da minha sala no elevado tecto.«É o escudo de Grúdar! – Mal que o ouve«A donzela estremece, e a cor perdendo,«Sem tino, ei-la que parte. Envolto em sangue«Na planície de Cromla vê o amante,«E junto dele, vacilando, expira.«É este, Cuthullin, é este o sítio«Em que repousam ambos! Estes cedros«Lhes brotaram nas campas, e saudosos«Do furor das tormentas os defendem.

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«Formosa era Brassolis na planície!«Elegante era Grúdar na montanha!«Hão-de os cantos dos bardos memorá-los«E ao remoto porvir levar seus nomes!»

«Suave é tua voz, suave, ó Cárril,«Diz o chefe d'Erin. São aprazíveis«Os contos do passado, como o orvalho«Da amena primavera quando brilha«Pelos campos o sol e a nuvem leve«Revoa nas colinas. Ao som da harpa«Celebra o meu amor, a luz serena«Da solitária estrela de Dunscaith.«Canta a gentil Bragela, a terna Esposa«Que saudosa deixei na ilha das névoas.«Que fazes, doce amiga? acaso elevas«Sobre a rocha escarpada a bela fronte,«E meus navios descobrir procuras?«O mar se agita ao longe: a branca espuma«Por minhas velas tomarás acaso?«Recolhe-te, que é noite, amor querido:«Em teu cabelo o vendaval murmura.«Aos meus paços festivos te recolhe,«E pensa em outros dias. Aos teus braços«Não poderei voltar sem que serene«A tormenta da guerra. Fala, ó Cúnnal,«Fala-me d'armas só: quero as saudades«Do meu seio expulsar, quero esquecê-la.»«– Dos guerreiros do oceano te acautela,«Responde o lento Cónnal. Sem demora«Manda escoltas nocturnas que vigiem«O campo do inimigo. Sou de voto,«Ó Cuthullin, que a pelejar não vamos«Sem que Fingal, dos homens o primeiro,«Aporte às nossas praias, sem que brilhe«Como os raios do sol em nossos campos.»

Sobre o escudo d'alarma bate o chefe,E o nocturno esquadrão se põe em marcha.O restante do exército no campoAo serena da noite se adormece.Dos derradeiros mortos os espectrosDivagavam em torno e flutuavamEntre as nuvens sombrias. Longe, ao longe– Por sobre a escura solidão do LenaFunéreas vozes murmurar se ouviam.

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TÍBURE

A cidade chamada antigamente Tíbure, e hoje Tivoli, acha-se situada a cinco léguas pouco mais ou menos distante de Roma, sobre um monte escamado que é parte duma ramificação dos Apeninos. Da altura em que está assente se despenha o rio Teverone (antigamente Anho), formando junto dela uma grande catadupa, Preceps Anio, de Horácio. A sua origem remonta a mui afastada antiguidade. Foram seus fundadores, segundo se crê, o grego Tiburto, e seus irmãos Catilo e Coras, que depois da morte de seu pai, Anfiarau, no cerco de Tebas, passaram à Itália; de onde lhe veio o nome de Tíbure, tomado do mais velho dos’ três fundadores. Desta origem fazem menção os versos de Virgílio:

Deixam então os tiburtinos muros, Povo que o nome tem do irmão Tiburto, Catilo e Coras, os argivos moços.

(En., liv. VII, vera. 670.)

Ao que parece, era esta cidade já antes da fundação de Roma uma das mais poderosas do Lácio, segundo os versos do mesmo poeta:

Cinco grandes cidades já concertamAs armas para a guerra: Átina forte,Tíbure soberba, Ardeia, Crustumero,E a turrígera Antemna.

(En., liv. VII, vera. 629.)

O seu poder não a isentou porém do jugo dos Romanos, que sob o comando de Camilo a submeteram cerca do ano 400 da fundação de Roma.

Com o andar do tempo fez-se Tíbure mui afamada em toda a Itália pela formosura da sua situação, e pela presença e amenidade dos seus contornos. Sobranceira à queda magnífica do Anho, dominando da sua altura extensos horizontes, cercada de águas, de pomares e de verduras,

Et preceps Anio, et Tiburni lucus, et udaMobilibus pomaria rivis........................

ela devia a estas qualidades a reputação em que era tida. Muitos poetas romanos, e principalmente Horácio que nela residiu, falam da sua amenidade, e celebram as suas belezas. A frescura do seu clima era tal, que, segundo uma crença popular, fazia mais branco o marfim, ao que se refere Marcial no epigrama:

A trigueira Licoris foi-se a TibureCrendo que tudo lá se torna branco.

(Liv. IV, Ep. L.)

A salubridade dos seus ares era também proverbial entre os Romanos, como o indicam os seguintes versos, em que o mesmo poeta contrapõe Tíbure à Sardenha

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naquele tempo mui doentia:

Não há lugar onde escapeis à morte:Quando ela chega, Tíbure é Sardenha.

(Liv. IV, Ep. XLVIII.)

Com estas vantagens, e pela sua proximidade de Roma, era Tíbure, ou antes os seus arredores, o lugar predilecto onde os romanos costumavam ir passar os verões. Ali tiveram suas villas, ou casas de recreio deliciosas, Horácio, o grande lírico romano, os poetas Catulo seu antecessor, e Tíbulo seu contemporâneo, o ministro de Augusto e célebre protector das Letras Mecenas, Quintílio Varo, o cônsul que depois foi morto com, as suas legiões na Germânia; e o imperador Adriano. De todas estas vilas existem ainda hoje mais ou menos restos, sendo os mais consideráveis os das sumptuosas residências de Mecenas e de Adriano.

A vila de Mecenas, que dominava do alto da colina o vale onde corre o Ânio, ostenta ainda em seus pórticos derrocados soberbos vestígios do que foi. A de Adriano, mais sumptuosa, e que abrangia um circuito de dez milhas, apresenta em suas ruínas menos o aspecto de uma habitação particular que o de uma cidade destruída, tal era a sua grandeza, e o número de construções que encerrava. Tendo visitado as províncias do seu vasto Império, este príncipe quis imitar nesses jardins os monumentos e os sítios que mais admirara nas suas excursões. Bastará enumerar estas obras, juntamente com os edifícios propriamente romanos incluídos no mesmo recinto, para se fazer ideia da grandeza daquela vila; é Chateaubriand quem os menciona fazendo no Itinerário a descrição das suas ruínas. O palácio do imperador, a biblioteca, os hospícios, a praça de armas, as termas, o hipódromo, o teatro, o estádio, a naumaquia, os templos de Hércules, de Júpiter, de Diana, de Vénus, de Plutão e Proserpina, as imitações dos edifícios gregos da Academia, do Liceu, do Pescilo, do Odeon, do Teatro, do Pritaneu, um templo imitando o de Serápis no Egipto, prados fingindo o vale de Tempe, outeiros figurando o Ossa e o Olimpo, tudo isto ali fora aglomerado pelo capricho desse senhor do universo.

Bem menos sumptuosa, porém destinada a não menor celebridade, era a residência em que um século antes de Adriano habitara nesses mesmos lugares outro príncipe pela realeza do entendimento. Ainda ao pé da vila arruinada de Mecenas se descobrem hoje no cimo de um outeiro os últimos vestígios da que pertencia a Horácio. No dizer de Chateaubriand, que ali passou, a natureza do lugar não permitia que ela fosse grande; mas em compensação estava belissimamente situada, desfrutando daquela altura uma vista imensa de paisagem. Era nesse retiro, descrito pelo poeta no começo da epístola XVI do liv. I dirigida a Quíntio, que ele costumava passar o melhor tempo do ano, trocando pela solidão do campo a corte de Augusto, e gozando da convivência com Mecenas. Era à sombra ameníssima desses bosques, e ao suave murmúrio dessas fontes, que ele colhia, como o diz na ode 3ª do liv. IV, muitas das inspirações que, a sua musa encantadora nos legou. Ali foram compostas a ode 7ª do liv. I, em que ele antepõe esses lugares aos mais formosos da Grécia, a ode 13ª do liv. III em que celebra a fonte de Blandusio, mais esplêndida que o vidro, a epístola vi do liv. I dirigida a Mecenas, a l0ª do mesmo liv. dirigida a Fusco Arístio, a 16ª do mesmo liv. dirigida a Quíntio, e outras poesias.

O que fica dito refere-se propriamente à antiga Tíbure. A moderna Tívoli, é uma cidade apenas de cinco mil habitantes, e cuja importância está longe de igualar a que a tradição atribui à antiga. O que a faz notável, e muito frequentada pelos

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viajantes, são as eternas belezas da sua situação e dos seus contornos, e não menos o espectáculo das ruínas que apresenta. Entre estas as que mais avultam são as da vila de Adriano, e as dos templos de Vesta e da Sibila Tiburtina, situados sobre o precipício de onde se despenha o Teverone. Entre as belezas naturais sobressai esta cascata que forma o rio, caindo ruidosamente na fraga chamada pelos modernos a gruta Neptuno, a cinquenta pés de profundidade. Além desta outras cascatas menores, formadas por braços da principal corrente, despenham suas águas no mesmo vale, dando todas a estes sítios os mais belos aspectos, e essa frescura que os antigos tanto apreciaram.

Nos arredores de Tívoli ainda hoje, como nos tempos da antiga Roma, se vêem muitas villas magníficas pertencentes a nobres e opulentas famílias romanas. A mais sumptuosa é a que no século XVI mandou construir o cardeal d'Est, e onde afirmam alguns que Ariosto compôs o seu imortal poema Orlando.

Os Fastos de Públio Ovídio Nasão, com tradução em verso português por António Feliciano de Castilho, t. III, págs. 522 a 526. (Nota quadragésima, p. 167, v. 21.)

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22 Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras.

Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

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ÍNDICE

SOARES DE PASSOS (escorço biográfico)NOTA BIBLIOGRÁFICA

A Camões O Outono O Noivado do Sepulcro Desejo Boabdil Canção A Pátria Rosa Branca Enfado Anelos O Filho Morto Sócrates O Gólgota A*** Últimos Momentos de Albuquerque .A Ti Infância e Morte O Canto do Livre Saudade Amor e Eternidade O Escravo O Anjo da Humanidade Partida Canto de Primavera Catão Amo-te Imitação do Islandês Liberdade À Morte do Meu Amigo Licínio P. C. de Carvalho.O Mendigo A Vida Um Sonho Desengano Agar Maria, a Ceifeira A Monja O Firmamento Tristeza A Mãe e a Filha Idade Média Num Álbum O Mosteiro da Batalha Desalento Num Álbum

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Consolação O Buçaco A Fonte dos Amores A Um Teatro Académico Num Álbum No Álbum do Dr. Manuel Teixeira Pinto (inédita)José Joaquim Gomes Coelho À Morte de Heliodoro Augusto de Sousa .Visão do Resgate Ao Porto Versões de H. Heine Versões d'Ossian:. Ao Sol . Colma . Fingal Tíbure

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