Poética Feminista – Poética Da Memória - VIANNA Lucia Helena -

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Labrys estudos feministas número 4 agosto/dezembro 2003 Poética feminista – poética da memória Lúcia Helena Vianna Resumo: Ainda hoje a existência de uma poética feminista não é uma questão fechada, no campo dos estudos literários e culturais. Pesquisadoras do feminismo, que trabalham em universidades estrangeiras com a literatura de mulheres brasileiras, manifestam dificuldade no tratamento das narrativas de autoria feninina do Brasil, que estas fogem à linha das narrativas hispanoamericanas.Tal constatação nos motivou a buscar vias de leitura apropriadas á particularidade da ficção de nossas autoras. Pesquisa realizada com contos de escritoras brasileiras do século XX nos aponta a memória como uma categoria metodológica de significativa produtividade na construção de uma “poética feminista” possível. Sem ser exclusiva, revela enfática presença nos escritos femininos. Palavraschave: memória, ficção, poética feminista Este trabalho procura responder à necessidade de se construir vias de leitura apropriadas para a narrativa das mulheres, levandose em consideração os princípios definidores de uma poética feminista. De início devo salientar dois pontos fundamentais para a sustentação metodológica deste texto. O primeiro consiste em relembrar que, para a teoria feminista de base pósestruturalista, a linguagem não é a expressão apenas de uma individualidade, mas o lugar de construção da subjetividade, que se de modo socialmente específico: “quando se adquire a linguagem, aprendemos a dar voz e sentido a nossa experiência e a entender os diferentes modos de pensamento, discursos particulares, os quais prédatam nossa entrada na linguagem”( WEEDON, 19 , 33). Por conseqüência, o segundo ponto é que a linguagem é o lugar onde atuais e possíveis formas de organização e seus

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A poética feminista pode ser definida como qualquer discurso, consciente ou não, que desperte alguma mudança para as mulheres.

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Labrys

estudos feministas

número 4

agosto/dezembro 2003

Poética feminista – poética da memória

Lúcia Helena Vianna Resumo: Ainda hoje a existência de uma poética feminista não é uma questão fechada, no campo dos estudos literários e culturais. Pesquisadoras do feminismo, que trabalham em universidades estrangeiras com a literatura de mulheres brasileiras, manifestam dificuldade no tratamento das narrativas de autoria feninina do Brasil, já que estas fogem à linha das narrativas hispano­americanas.Tal constatação nos motivou a buscar vias de leitura apropriadas á particularidade da ficção de nossas autoras. Pesquisa realizada com contos de escritoras brasileiras do século XX nos aponta a memória como uma categoria metodológica de significativa produtividade na construção de uma “poética feminista” possível. Sem ser exclusiva, revela enfática presença nos escritos femininos. Palavras­chave: memória, ficção, poética feminista

Este trabalho procura responder à necessidade de se

construir vias de leitura apropriadas para a narrativa das

mulheres, levando­se em consideração os princípios definidores

de uma poética feminista.

De início devo salientar dois pontos fundamentais para

a sustentação metodológica deste texto. O primeiro consiste

em relembrar que, para a teoria feminista de base

pós­estruturalista, a linguagem não é a expressão apenas de

uma individualidade, mas o lugar de construção da

subjetividade, que se dá de modo socialmente específico:

“quando se adquire a linguagem, aprendemos a dar voz – e

sentido – a nossa experiência e a entender os diferentes modos

de pensamento, discursos particulares, os quais pré­datam

nossa entrada na linguagem”( WEEDON, 19 , 33).

Por conseqüência, o segundo ponto é que a linguagem é

o lugar onde atuais e possíveis formas de organização e seus

respectivos desdobramentos políticos são definidos e

contestados. Por isso se faz sempre necessário reconsiderar a

relação das mulheres com a linguagem na narrativa de autoria

feminina. Pesquisadoras do feminismo, que trabalham em

universidades estrangeiras com a literatura das mulheres

brasileiras, já manifestaram a dificuldade no trato com a

prática narrativa de autoria feminina na Brasil ( Peggy

Sharpe, Cristina Ferreira Pinto)[1].

Nota­se mesmo uma certa ansiedade dessas estudiosas,

que vivem e exercem suas atividades num contexto cultural

internacional, em resolver as dificuldades de aplicação do

conjunto teórico feminista às práticas discursivas das

narradoras brasileiras . É desta constatação que quero partir

para propor um viés crítico baseado na importância da memória

para a construção do que se está chamando de “poética

feminista”. Trata­se de um projeto em andamento e esta é sua

primeira formulação, daí o caráter possivelmente simplista que

possa apresentar.

E como entender categoria assim denominada de “poética

feminista”? Não se trata aqui de falar de “poética

feminina”, que se refere tão somente a um modo de escrever

próprio das mulheres e que vai tangenciar com a já

exaustivamente polemizada questão da “escritura feminina”.

Penso que por poética feminista se deva entender toda

discursividade produzida pelo sujeito feminino que ,

assumidamente ou não, contribua para o desenvolvimento e a

manifestação da consciência feminista , consciência esta que é

sem dúvida de natureza política( O pessoal é político), já que

consigna para as mulheres a possibilidade de construir um

conhecimento sobre si mesmas e sobre os outros, conhecimento

de sua subjetividade, voltada esta para o compromisso

estabelecido com a linguagem em relação ao papel afirmativo do

gênero feminino em suas intervenções no mundo público.

Consciência com relação aos mecanismos culturais de

unificação, de estereotipia e exclusão. E ainda, a consciência

sobre a necessidade de participar conjuntamente com as demais

formas de gênero ( classe, sexo, raça ) dos processos de

construção de uma nova ordem que inclua a todos os diferentes

, sem exclusões. Poética feminista é poética empenhada, é

discurso interessado. É política.

Estudar a memória em suas diversas formas de

manifestação eas estratégias pelas quais ela se apresenta nos

textos, parece­me de significativa produtividade para a

construção da poética feminista. A memória, como categoria

fundacional de tal discursividade, manifesta­se tanto no

texto de invenção, em prosa ou verso,[2] como o nos textos

referenciais, compromissados com os registros históricos e

culturais.

Nosso tempo é tempo de memórias. Na área acadêmica e

na área cultural, tem­se discutido intensamente as suas

diferentes manifestações nas literaturas, através de

testemunhos, biografias e autobiografias, relatos

memorialistas e confissões; na arquitetura, no resgate do

patrimônio arquitetônico, restaurações, catalogação; na

história, pela recuperação de trajetórias de vida, de

publicação de documentos; na imprensa , a reunião de

depoimentos de jornalistas que acompanharam a história recente

do país, tanto no campo político como cultural.

A determinação em levantar todo esse substrato do

vivido, de experiências individuais e coletivas, da vida

privada e da vida pública, delega à memória a função de

ponto de resistência face à incessante pulverização das

identidades nos tempos atuais, marcados pela volatilidade das

lembranças: o que mal aconteceu, já passou, para dar lugar a

um novo e fugaz evento. Ao indivíduo monitorado pelas

máquinas de comunicação não é dado tempo para recordar. Se por

um lado os aparatos tecnológicos aceleram as interações

virtuais, por outro, eles contribuem para tornar menos

evidentes essas mesmas interações virtuais.

As próprias mulheres, reconhecidas desde a

ancestralidade como matrizes narrativas, guardiães da memória,

representadas no mito de Mnemosine ­ “com que prazer essas

mulheres acrescentavam às aventuras que lhes chegavam, outras

aventuras”, rememora Nélida Piñon, em recente palestra na

Biblioteca Nacional.( BN, 2002 ) ­ pagam hoje o preço pelas

conquistas públicas que obtiveram. Assoberbadas de tarefas e

de solicitações externas, pouco tempo lhes resta para

re­elaborar suas própria experiência de vida, muito menos para

desfiar lembranças, recordar e transmitir narrativas do

passado.

Clarice Lispector percebeu com alguma antecipação a

crise na temporalidade que hoje vivenciamos quando articulou

poeticamente uma categoria para dar conta da volatilidade do

presente, o ‘instante­já”:

O presente é o instante em que a roda

do automóvel em alta velocidade toca minimamente o

chão. E a parte da roda que ainda nãotocou, tocará

num imediato que absorve o instante presente e

torna­o passado.”( ‘Água Viva 1973/ 1979,19)

A velocidade desenfreada do tempo atual é inimiga

mortal da memória. Talvez fosse o caso de se editar o manual

de sobrevivência da memória. Reeditar o mito de Sherazade,

ícone salvacionista das reminiscências e, de modo idêntico,

de sua função narratária. A memória é o lócus privilegiado do

imaginário, berço de toda ficção. Essa memória quanto mais

enterrada no âmbito do privado, mais frutifica no plano

simbólico, atesta Nélida Piñon, que confessa :Sempre que narro

, empreendo a viagem ao meu centro, cujas margens desconheço”(

BN, 2002 ). A memória individual é o território do secreto.

Espaço de absoluta privacidade.

A memória individual faz o inventário caótico das

coisas mínimas, é completamente amoral, roça sempre o

inexplicável, ao contrário da memória coletiva que atende à

construção de uma moralidade( Agullol ) .O tempo da memória

individual nada tem a ver com o tempo normativo da memória

coletiva: é o tempo que nos configura, caótico, desmascarado ,

epifânico. Tempo anárquico e inominável, da obsessiva procura

clariceana por capturar o presente, lidar com temporalidade

fora das margens cognoscíveis do real, entrar na sua quarta

dimensão . Que tempo­espaço é este, senão o espaço­tempo da

memória.

Nas narrativas femininas, em especial nos contos de

escritoras brasileiras, a que desejo dar relevo, recordações

e reminiscências, lembranças e esquecimentos manifestam _ ora

explicitados ora de forma escamoteada, sob diferentes ardis

estratégicos __ a permanente intervenção de material

memorialístico na matéria narrada.

Faço agora um parênteses para dizer que já havia

detectado há algum tempo um vazio em nossas publicações. Das

várias antologias de contos publicadas no período de 2001

/2002, não encontramos nenhuma inteiramente dedicada às

mulheres. E como é de praxe, elas aparecem em menor número

nas edições que acolhem textos de ambos os gêneros. Pensamos,

pois, Márcia Lígia Guidin e eu, em organizar uma seleção de

contos de escritoras brasileiras que pudesse atualizar

publicamente o trabalho contínuo e sistemático que vem sendo

realiza por diversas autoras.

Pesquisamos um meia centena de contos publicados do

final do século XIX aos nossos dias. Em razão do compromisso

assumido junto à editora Martins Fontes, que vai publicar o

livro, devemos nos restringir a 30 contos. Usamos ,para a

seleção, um critério elástico, não rigorosamente acadêmico.

Pensamos em narrativas que possam interessas às leitoras e

aos leitores comuns, sem contudo desconsiderar a qualidade

estética dos textos. Adotamos, porém, um critério de valor um

tanto subjetivo: pensamos que o conto que fica para sempre

marcado em nossa lembrança, em razão de uma cena, de certa

imagem, ou de qualquer outro efeito escritural, deve ser bom.

Deve ter um capital literário agregado. Também

desejamos ampliar o conhecimento do público sobre aquelas

que fazem literatura, algumas esquecidas no tempo, outras mais

jovens e pouco nomeadas . Legitimam a seleção os nomes já

canônicos das nossas grandes narradoras, como Lygia Fagundes

Telles, Clarice Lispector, Rachel de Queirós, Nélida Piñon. E

outra em vias de canonização, como Sônia Coutinho , Olaga

Savary, Marina Colasanti, Helena Parente Cunha, Márcia Denser,

Marilene Felinto, Zulmira Tavares.

No conjunto, os contos selecionados comprovam a tese de

que a “invenção”, aquilo que aparece no texto narrativo como

ficção , tem suas raízes na memória.. Memória nem sempre

evocada voluntariamente , nem sempre explicitada, e muitas

vezes fechada a sete chaves, mas que trapaceia com o sistema

de consciência e, desliza, desloca­se, na máscara forjada da

ficção provida pelo imaginário, onde o “secreto” da

individualidade ou da coletividade se desrecalca , em

différance, como quer Derrida. Ponto de intercessão onde se

interceptam os extratos do pessoal, os do social e os da

cultura, promovendo um amálgama diferenciado que passa a ser

visto como invenção.

Ao “pacto fantasmático” de que fala Philippe Lejeune ,

para definir as relações entre o leitor e o texto

autobiográfico, poderíamos contrapor um “pacto

memorialístico”, lembrando que os leitores, mulheres e homens,

são convidados a ler os contos não somente como invenções,

ficção, mas como resíduos de uma memória individual e

cultural, que não deixam de se apresentar como “fantasmas”

reveladores do mundo íntimo do indivíduo e , em especial, das

mulheres. Este mundo secreto é o capital simbólico do

feminino( não exclusivamente dele, mas predominantemente

nele).

Pela intervenção da memória se constrói a narrativa

secreta de nossa vida, que se separa da narrativa oficial(

quando não se opõe a ela), construção que tentamos legalizar,

não só em relação ao mundo exterior mas também em relação ao

nosso próprio mundo. E a narrativa secreta é sempre

inquietante, subversiva e, no sentido possível deste termo,

verdadeira ( Agullol)[3]..

O conto, por suas características estruturais de

economia textual, favorece mais do que o romance, o

investimento no processo de memória/invenção. Mais centrado

no eixo temático único, sua estrutura concisa proporciona o

lócus fértil para as cenas passadas retornarem, no

deslocamento de uma experiência vivida, pessoal , de outrem ou

coletiva. Modernamente, com a distensão verificada nos limites

estruturais da narrativa curta, com a liberação de um discurso

mais subjetivo e íntimo, as relações com a memória se tornaram

ainda mais visíveis. A insistência com os efeitos mnésicos se

dão ver no texto, independe da época, podendo­se apenas

constatar sua maior evidência ou sua ocultação por meio de

recursos simbólicos.

Se tomamos um conto de Júlia Lopes de Almeida (

1887), Memórias de um leque, encontramos um hábil processo de

mascaramento da memória. Um leque caído do regaço da velha

senhora burguesa do século XIX, personificado, toma a posição

de narrador, para evocar a história daquela mulher.

Subterfúgio da técnica narrativa, que transfere ao objeto

inanimado a função de rememorar ,como testemunha, eventos

passados e atribuir­lhesverossimilhança. Enquanto narra, por

efeito da ficcionalização, configura­se aquele acessório da

coquetterie feminina como espelho mediador entre o mundo

público e o privado. Num arroubo apaixonado, um pintor

imprimiu no leque “meio encoberto por um tênue véu branco” o

retrato nítido, perfeito, de Amélia, a personagem de que

estamos falando.

Transformado em objeto simbólico, o leque passa a

valer como sutil tecido da memória, a guardar o segredo da

paixão verbalizada obliquamente pelo homem e não

correspondida pela mulher. Através da estratégia simbólica que

protege a discrição comportamental exigida naqueles tempos

para a mulher, deixa contudo ao leitor a possibilidade de ler

o quanto de renúncia amorosa foi exigida das mulheres em nome

dos bons costumes da época. Carmem Dolores , por sua vez,

reage à situação subalterna, como se pode ler no conto Lição

póstuma (1910).

A morte de uma amiga querida, assujeitada aos costumes

do tempo, que negava às mulheres o direito a manifestar os

próprios desejos, provoca na protagonista, viúva como a outra

e da mesma idade, a determinação de mudar os rumos de uma

existência para a qual a cultura da época não previa futuro .

Recusa a condição de mãe, avó e sogra, servidora e resignada,

muda a aparência , encontra um novo marido , surpreendendo a

família. Ilumina seguramente a consciência das leitoras para

uma saída possível fora das amarras da prisão patriarcal.

De um modo geral, as escritoras, à medida que se firmam

no cenário das letras e são chamadas a depor sobre sua obra,

confirmam essa função matricial das lembranças e das

recordações em seu projeto poético. Marilene Felinto,

escritora da safra de 80/90 , em nota introdutória ao livro

Postcard( 1991)[4] assume esta dívida:

Devo esse livro à mangueira e à

romãzeira da minha casa de infância em Recife, ao

ladrão que destelhou nossa cozinha de madrugada;

aum carneiro todo branco, felpudo e vivo que ganhei

de presente de aniversário de cinco anos; a

Reinilton ou qualquer outro nome de

meninopernambucano por quem primeiro me apaixonei

_ devo a eles, porque são os motivos de inspiração

das primeiras histórias que escrevi na vida,longe

do mundo, dos papéis e dos homens de mercado

.(1991)

Neste mesmo livro encontra­se o conto Muslim Woman ,

onde se pode localizar os princípios do que estamos chamando

de poética feminista, pela ficcionalização exemplar dos

impasses contemporâneos nas relações de gênero. A cena se

passa no saguão de um aeroporto internacional. A mulher ,

protagonista e narradora, se mostra desconfortável naquele

espaço estrangeiro, olhada com curiosidade pela saia curta que

veste. Vivencia naquele tempo de espera relações

problemáticas com o marido, articuladas em torno da mala de

rodinhas que este comprou a contragosto dela. Seu discurso é

queixoso: ele que lhe não outorgava senão o status de

fantasma.

É a mulher muçulmana sentada à frente da protagonista

que permite a esta revisionar a condição identitária. A

lágrima que escapa dos olhos da protagonista funciona como

espelho, iguala as duas em toda a sua diferença.

Estabelece­se, então, entre elas um conversação feita apenas

de olhares.

Uma única palavra na língua internacional (Madam) as

aproxima (1991, 18) . Simbolicamente a irmandade

feminina/feminista ultrapassa fronteiras e barreiras de

linguagem. A poética do conto exibe os conflitos e as

negociações que se passam no cerne das relações de gênero , as

dificuldades de conciliar o desejo e a vontade entre

masculino e feminino , e a sororidade a cumplicidade entre

mulheres, o entendimento silencioso de que, não importa em que

território estejam e que língua falem, que trajes vistam,

compartilham de uma história comum, cifrada na palavra mágica

em língua estrangeira –Madam – que apresenta­se revertida em

anagrama ADAMA, nome que aparece na etiqueta da mala da

muçulmana.

O conto é iluminado internamente por um enclave

narrativo de memórias da infância, quando a personagem,

menina, aprendera a criar abrigos para se proteger, abrigos

que eram na verdade estórias fantásticas que inventava , onde

ela sempre se salvava, escondendo­se em “um abrigo secreto da

floresta”(15) Não é difícil extrair a conclusão que a ficção

pode ser abrigo e salvação para as mulheres, sempre

estrangeiras no mundo público, causando estranhamento onde

chegam.

Para Nélida Piñon, graças à memória ingressa­se no

domínio da invenção”. A arte de narrar certamente tem como

função inventariar a memória. Para nascer , diz ela, o texto

atravessa inexorável terra, camadas incessantes, que o

escritor leva dentro de si”. No seu romance República dos

sonhos, atribui à personagem Eulália, a velha matriarca, a

função de encarnar a memória[5] . Já o conto I love my

husband( No calor das coisas), temos a explícita manifestação

da transparência de uma poética feminista, cuja matriz

temática latente na memória tardia do papel devotado da

mulher ao casamento e ao marido, em nome dos quais, recalca

seu mais secretos sonhos de liberdade, sua fantasia de

autenticidade..

O cenário da paz conjugal quase é abalado quando a

mulher, movida por incontido desejo de aventura, menciona a

palavra futuro. À simples menção desta palavra, a estabilidade

masculina balança, trazendo inquietação e incerteza para o

homem. Tudo não passa de um momento fugaz, que se reverte no

status quo da vida doméstica , nesta narrativa estruturalmente

circular, que se abre e se arremata na eloquência assertiva da

proclamação feminina: EU AMO MEU MARIDO, subjacente a qual se

pode localizar o fio da fina ironia subscrevendo ,de forma

implícita, que a autora não compactua com a ética proclamada

no conto. O grifo irônico obriga a ler o conto como paródia

comportamental feminista segundo um olhar pós­moderno.

Márcia Denser , da geração de 80, no livro Toda

Prosa(2002), rememora a figura da mãe( um dos motivos mais

recorrentes no texto memorialístico das mulheres), e o faz

através da colagem da imagem mnésica original às imagens

extraídas de uma memória cultural cinematográfica. Ao batizar

a personagem materna com o nome composto Vivien O’Hara,

conjuga, num único denominativo, ícones do período áureo do

sonho hollywoodiano dos anos 50. Aí estão coladas ou

bricoladas as imagens glamurosas de Vivien Leigh( atriz) e

Scarlett O’Hara(personagem), do célebre E o vento

levou....(1947). Mas também evoca Rita Hayworth e Maureen

O’Hara, atrizes célebres dessa geraçao:

"Vivien possuía uma espécie de síntese

de todo o capital estético das divas de Holywwood

dos anos 50, mas como quem saca semfundos”

A intervenção também aqui do comentário

irônico desfaz qualquer ilusão de estarmos diante de uma

comparação ingênua e ocasional, de memorialismo simplório,

inscrevendo o estilo na poética da pós­modernidade. A

escritora maneja conscientemente o jogo de simulacros,

amalgamando a memória materna da infância à rede de ícones

femininos produzidos pela cultura cinematográfica, e às suas

próprias lembranças pessoais, obtendo um significativo lucro

simbólico:

A irmandade materna feminina emergiu

com o sonho americano na década de 50 e pergunto­me

até que ponto não foram os mesmossonhos que

assombraram minha infância, quando, encantada,

contemplava tia Jane ou tia Marjorie na penteadeira

iluminada por lâmpadas decamarim (2002)

Leitora, autora e narradora se irmanam igualmente na

mesma reminiscência da experiência compartilhada por toda uma

geração de mulheres: a contemplação narcísica da imagem

refletida no espelho do mobiliário doméstico, próprio ao

quarto das moças, a penteadeira , espelhada nas laterais, que

gerava uma perspectiva em abismo, multiplicando ao infinito a

face daquela que ali se procurava.

A irmandade feminina/feminista emergiu no texto das

mulheres mais decididamente nos anos 60/70, pleiteando

direitos no mundo público, deflagrando um processo de

afirmação identitária que permanece avançando e tem como um

dos seus espaços de combate a linguagem, lugar onde o

conhecimento sobre nós mesmas se realiza e onde a

subjetividade é construída. Ao multiplicarem­se o número de

publicações de textos escritos por mulheres, multiplicam­se as

possibilidades de conhecimento sobre as diferentes

perspectivas pelas quais elas se dão a conhecer no mundo . No

entanto permanece o impasse sobre o modo de abordagem teórica

das práticas narrativas femininas que não seja sustentado por

teorias estrangeiras..

Quando se constata a onipresença da memória nas

produções discursivas, fica difícil pensar a invenção, seja

poética ou teórica, nascida do nada, do zero absoluto, de um

ponto original. Por ser o sujeito, autor/autora, um ser

cultural, ele carrega um acervo de heranças mnésicas

impossíveis de catalogar. De outro modo deve­se considerar que

a entrada na ordem da linguagem se dá por um ato de violência

. Momento em que se rompe o laço unitário e narcíseo com a

figura materna, totalidade amorosa que permanecerá como

memória mais funda de toda memória. Pela memória linguageira

do Eros original, se instalam as matrizes do poético, outra

língua, anárquica, fora das regras oficiais. Já pela

intervenção do senhor da Lei, ordem da cultura, passamos ao

assujeitamento à hegemonia do patriarcado, às normas, às

técnicas , à competência e aos racionalidade. Este processo de

entrada no mundo simbólico, que se dá do mesmo modo para

qualquer um dos gêneros, atinge fundamente a subjetividade

das mulheres, que se vêem obrigadas a recalcar a fala materna,

a outra língua do passado esplêndido de comunhão identitária.

E somente o poético será a via produtiva do reencontro com

essa linguagem e elucidação e desrecalqueda memória original.

Mas o imaginário se nutre não apenas das memórias

pessoais, conquistadas na experiência de vida. Também se

alimenta das memórias dos outros, memórias coletivas,

memórias de outras memórias, camadas que se superpõem em

palimpsesto construindo uma reserva mnésica que muitas vezes o

sujeito desconhece em sua totalidade e abrangência. Esse

substrato , amálgama de sedimentações mnésicas, mnemosfera

como fala Agullol, é o nutriente de toda imaginação. O que

chamamos de invenção, no campo literário, resulta das

operações de linguagem que selecionam e combinam, promovendo

articulações sintagmáticas que tecem um enredo, configuram um

personagem, armam um cena, dando outra cara àquilo que um dia

foi vivido no corpo, reinventando a existência, trazendo à

tona tudo o que devia permanecer oculto no território secreto

da memória.

Memória evocadora e metafísica, memória desconstrutora

e desconstruída (Clarice Lispector ), memória feita de

citacionalidades, colagens de múltiplas referências culturais

( pós­modernas em, Sônia Coutinho , Olga Savary, Márcia

Denser, Helena Parente Cunha[6]). Como as mulheres se situam

perante as questões de produção e reprodução simbólica e

material, e que se revelaria na literatura, na narrativa de

ficção?

Para Júlia Kristeva, o resultado desse processo poderia

fornecer o denominador simbólico comum das mulheres ( Les

temps des femmes, 1979). Qual seria esse denominador

simbólico? Penso poder reconhecê­lo , mesmo que precariamente,

nesse corpo heterogêneo, mas irmanado, de uma poética

comprometida com as especificidades do gênero mulher e que nos

convoca a referendar , nesta conclusão, o alerta de Peggy

Sharpe quanto a responsabilidade que temos como leitores,

críticos e atores políticos ao lidarmos com os textos das

mulheres escritoras.

Referências

AGULLOL, Roberto. O Eros da memória. Horizontes da memória. Colóquio Internacional UNESCO/ Colégio Brasil. Rio de Janeiro : Fundação Biblioteca Nacional, set. de 2002 ALMEIDA, Júlia Lopes. Traços e iluminuras. Contos. Lisboa : Tipografia Castro Irmão, 1887. DERRIDA, J. A escritura e a diferença. Ed.Perspectiva : São Paulo ,1967 FELINTO, Marilene. Postcard. São Paulo : Iluminuras, 1991 KRISTEVA, Júlia. Les temps de femmes. Paris, 1979. LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique, Paris: Ed. Du Seuil, 1975 LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1979 PIÑON, Nélida. O calor das coisas. Rio de Janeiro: Record, 1997 _____________. A memória feminina. Colóquio Internacional UNESCO/ Colégio Brasil, Rio de Janeiro , set. de 2002. _____________.O gesto da criação: sombras e luzes. In SHARPE, Peggy. Entre resistir e identificar­se. Florianópolis: Mulheres; Goiânia: UFB, 1997. PINTO, Cristina Ferreira. Consciência feminista / Identidade feminina: relações entre mulheres na obra de Lygia Fagundes Telles. In SHARPE, P. (org.) Entreresistir e identificar­se. Florianópolis: Mulheres; Goiânia: UFB, 1997. SHARPE, Peggy.(org.) Entre resistir e identificar­se. Para uma teoria da prática da narrativa brasileira de autoria feminina. Florianópolis: Ed.Mulheres; Goiânia: UFG, 1997 Nota biográfica: Lúcia Helena Vianna, nasceu no Estado do Rio de Janeiro, onde vive. É escritora( ensaísta), pesquisadora do CNPq ( Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Nacional (CNPq) e professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal Fluminense(UFF), aposentada. Entre as suas publicações, merece relevo o livro Cenas de amor e morte na ficção brasileira, que em 1966 recebeu o Prêmio Casa de las Américas ( Havana / Cuba). O livro foi publicado em espanhol , por aquela casa de cultura, no ano de 1997 e que em 1999 ganhou sua edição brasileira (EDUFF, Niterói / RJ). O seu primeiro livro,A ponta do novelo. Uma interpretação de Angústia, de Graciliano Ramos, publicado em 1983, (Lúcia Helena Carvalho), constitui referência para o conhecimento daquele escritor alagoano, mas já revela o interesse pela questão da mulher, que tem dominado suas pesquisas posteriores . Publicou ainda o Roteiro de leitura de São Bernardo( 1997 ) e recentemente a antologia Contos de Escritoras brasileiras, que organizou em parceria com Marica Lígia Guidin ( dez.,2003)

[1] SHARPE, Peggy(org.) Entre resistir e identificar­se. Florianópolis: Ed.Mulheres , Goiânia: Ed. UFG,1997

[2] [2]: “estou tentando captar a quarta dimensão do instante­já que de tão fugidio não é mais porque tornou­se um novo instante – já que também não é mais.”(...) “Só no tempo há espaço para mim”. LISPECTOR, 1979,9. [3] Estou utilizando contribuições trazidas por Roberto Agullol, em palestra intitulada O eros da memória, recentemente apresentada no congresso Internacional Horizontes da Memória, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro . [4] FELINTO, Marilene. Postcard. Iluminura: São Paulo ,1991. [5] PIÑON, Nélida. O gesto da criação: sombras e luzes. SHARPE, Peggy. Entre resistir e identificar­se: para uma teoria da prática de narrativa brasileira de autoria feminina. Editora Mulheres: Florianópolis; Goiânia; Editora de UFG, 1997,p.82 [6] Helena Parente Cunha também reconhece explicitamente a importância da memória na ficção produzida pelas mulheres: No desenrolar temático das narrativas femininas, as personagens com freqüência recorrem à memória, a fim de encontrar prováveis respostas para indagações em torno de suas verdades.(...) Trata­se de um dos mais significativos traços recorrentes na narrativa feminina em geral e com razoes ainda mais ostensivas no segmento brasileiro e, com isto, naturalmente, estou falando de Mulher no espelho e Doze cores do vermelho.”In SHARPE, P. Ob. cit. P. 129